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62 Primeiro momento I Do real à fotograficidade ria: seus corpos de mulheres, seus corpos de elefantes e seus corpos de árvores encontram-se, misturam-se e confundem-se nesse espaço novo que é o espaço fotográfico, nesse Pays de permissiori, como indica o título de seu livro. A arte é um país onde tudo é permitido, basta existirem leis. É esse mesmo procedimento que anima Évrard em sua série Murs installés. O artista parte de uma realidade já existente e nela se instala. As paredes dete- rioradas e cansadas adquirem então um novo sentido ao se tornarem fotográfi- as. Évrard, que à primeira vista parecia repórter, situa-se, aqui, nas antípodas das constatações de Lewis Baltz: torna-se plástico e passa a preocupar-se com matéria, com luz e com forma, em resumo, com estilo, como Pascal Kern. O objeto a ser fotografado foi o ponto de partida do repórter e não seu ponto de chegada: o repórter colocou-o em movimento, mas não o atingiu. No entanto, sem ele, não teria havido trabalho nem obra. Ele foi apenas um objeto-pretexto. Portanto, mesmo na reportagem, é possível passar do objeto a ser fotogra- fado ao objeto fotográfico e, assim, dar adeus a uma relação sonhada com O primeiro para se confrontar com uma relação real com O segundo. Uma estética da reportagem deve partir desse deslocamento. Veremos como tal estética só assume seu sentido articulada com uma estética do "ao mesmo tempo"." A reportagem não atinge nem fotografa o objeto a ser fotografado. Será que isso é um fracasso? Não, é uma condição de possibilidade da realização de uma obra; todas as grandes reportagens, como, a título de exemplo, a obra fotográfica de Robert Frank sobre os norte-americanos ou aquelas da FSA,nos levariam às mesmas conclusões. Será possível esperar do retrato uma melhor apreensão do objeto a ser foto- grafado? - 78 Ver "Rumo a uma estética do 'ao mesmo tempo". no capítulo 7, e "A estética do 'ao mesmo tempo' e o político", no capítulo 8. 2 DO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" Neste capítulo, o problema da possibilidade de a fotografia captar o real e, por- tanto, atingir o objeto a ser fotografado é inicialmente aprofundado a partir do retrato: é preciso substituir um "isto existiu" por um "isto foi encenado". Essa tese pode ser universalizada para a fotografia em geral. Mais do que isso, ela é um dos fundamentos de uma estética do "isto foi encenado", que integra a esté- tica do retrato, articulada com a da encenação. Esta reflexão baseia-se numa análise poiética das obras e das fábulas de Ca- meron, Gelpke, Thrner, Michals e Klein. O conceito condutor é aqui o de "isto foi encenado": uma estética do "isto foi encenado" deve ser aplicada.

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Page 1: permissiori,foto.art.br/uploads/soulageretrato2.pdf · 62 Primeiro momento I Do real à fotograficidade ria: seus corpos de mulheres, seus corpos de elefantes e seus corpos de árvores

62 Primeiro momento I Do real à fotograficidade

ria: seus corpos de mulheres, seus corpos de elefantes e seus corpos de árvoresencontram-se, misturam-se e confundem-se nesse espaço novo que é o espaçofotográfico, nesse Pays de permissiori, como indica o título de seu livro. A arte éum país onde tudo é permitido, basta existirem leis.

É esse mesmo procedimento que anima Évrard em sua série Murs installés.O artista parte de uma realidade já existente e nela se instala. As paredes dete-rioradas e cansadas adquirem então um novo sentido ao se tornarem fotográfi-as. Évrard, que à primeira vista parecia repórter, situa-se, aqui, nas antípodas

das constatações de Lewis Baltz: torna-se plástico e passa a preocupar-se commatéria, com luz e com forma, em resumo, com estilo, como Pascal Kern. Oobjeto a ser fotografado foi o ponto de partida do repórter e não seu ponto dechegada: o repórter colocou-o em movimento, mas não o atingiu. No entanto,sem ele, não teria havido trabalho nem obra. Ele foi apenas um objeto-pretexto.

Portanto, mesmo na reportagem, é possível passar do objeto a ser fotogra-fado ao objeto fotográfico e, assim, dar adeus a uma relação sonhada com O

primeiro para se confrontar com uma relação real com O segundo. Uma estéticada reportagem deve partir desse deslocamento. Veremos como tal estética sóassume seu sentido articulada com uma estética do "ao mesmo tempo"."

A reportagem não atinge nem fotografa o objeto a ser fotografado. Será queisso é um fracasso? Não, é uma condição de possibilidade da realização de umaobra; todas as grandes reportagens, como, a título de exemplo, a obra fotográficade Robert Frank sobre os norte-americanos ou aquelas da FSA,nos levariam àsmesmas conclusões.

Será possível esperar do retrato uma melhor apreensão do objeto a ser foto-grafado?

-78 Ver "Rumo a uma estética do 'ao mesmo tempo". no capítulo 7, e "A estética do 'ao mesmo tempo' e o político",no capítulo 8.

2

DO objeto do retrato ao objetoda fotografia em geral:

"Isto foi encenado"

Neste capítulo, o problema da possibilidade de a fotografia captar o real e, por-tanto, atingir o objeto a ser fotografado é inicialmente aprofundado a partir doretrato: é preciso substituir um "isto existiu" por um "isto foi encenado". Essatese pode ser universalizada para a fotografia em geral. Mais do que isso, ela éum dos fundamentos de uma estética do "isto foi encenado", que integra a esté-tica do retrato, articulada com a da encenação.

Esta reflexão baseia-se numa análise poiética das obras e das fábulas de Ca-meron, Gelpke, Thrner, Michals e Klein.

O conceito condutor é aqui o de "isto foi encenado": uma estética do "isto foiencenado" deve ser aplicada.

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:64 Primeiro momento I Do real à fotograficidade

Julia Margaret Cameron, A Rembrandt (Sir Henry Taylor, 1865).

Do objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" 65

Se existisse uma representação exata, eu não fotografaria.

Claude Maillard, " ... Sur l'imphotographiable"l

Em um artigo sobre Christian Vogt, Jean-Claude Lemagny distingue "duas ten-dências irredutíveis" na fotografia. De um lado, a "fotografia direta", como areportagem, o retrato e a paisagem: ela explora a realidade que se apresenta aofotógrafo.De outro lado, a "fotografia encenada", como a de Duane Michals, LesKrims ou Ralph Eugene Meatyard, "fotografia subjetiva, manipulada, autôno-ma, que, ela própria, é exploração de uma realidade: realidade do próprio meiofotográfico".2Essa distinção é interessante. Por um lado, indica os dois palas, ouseja, o objeto e o sujeito, entre os quais hesitam, se orientam e oscilam as fotos_ a "fotografia direta" deixaria a escrita para o objeto luminoso, e a "fotografiaencenada" seria escrita por um sujeito esclarecido, como o déspota. Por outrolado, ela nos obriga a reconhecer uma abordagem conceitual nesta "fotografiasubjetiva manipulada" que se indaga sobre sua própria essência. Mas será tãosimples assim? Será que o retrato, por exemplo, não pode resultar também dafotografia encenada? A questão é importante: será que no retrato, o objeto aser fotografado é atingido ou, como na reportagem, é inapreensível? A obra deCameron deve nos ajudar a aprofundar esse problema e suas implicações ..Po-deremos então não só escolher entre a teoria do "isto existiu", importante paraBarthes," e a do "isto foi encenado", que faz apelo a uma estética do "isto foi en-cenado", mas sobretudo poderemos nos perguntar se a fotografia em geral nãoé da ordem do "isto foi encenado".

A encenação do objeto do retrato(Julia Margaret Cameron)Será que o retrato é um gênero que dá o objeto - um (ou vários) serres)humano(s) - a ser fotografado ou uma prática que produz uma aparência foto-

---IC. Maillard, " ... Sur I'imphotographiable: le déroulernent", em Photocouleur critique üa Tremblade: Photolanga-ges, 1985), p, 14.cr Zoam, no 30, p. 36.Roland Barthes, La chambre claire, Coleção Les Cahiers du Cinéma (Paris: Gallimard/Seuil, 1980).

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66 Primeiro momento I Do real à fotograficidade

gráfica de um fenômeno visível? Esse problema tem raízes na própria tradiçãodo retrato em pintura, aquela, por exemplo, expressa por Dom Perriety em seuDictionnaire portatif de peinture, de sculpture et de grauure, de 1756: para fazer umretrato, é preciso

expressar bem o verdadeiro temperamento, o caráter distintivo, o ar e a fisionomia das pes-soas, de maneira que se leia aí o que se lê no próprio rosto da pessoa viva. [...] É precisosempre captar o momento, a posição mais favorável para a pessoa. [...] Mas essa indulgêncianão deve ser levada ao extremo, pois seria um quadro e não um retrato. 4

o retrato fotográfico é pleno de tensões e contradições próximas: será que ele sedistingue, de fato, de uma fotografia, que seria, como O quadro, da competênciada arte? 'Talvez seja apenas uma simples constatação? Uma análise poiética dotrabalho de Cameron poderá nos ajudar a compreender melhor o problema doretrato fotográfico e de suas relações com o ser a ser fotografado.

A teatralização fotográfica

Por que, do ponto de vista de muitos historiadores da fotografia, Cameron conti-nua sendo uma retratista, se ela é, antes de tudo, uma encenadora fotográfica?Na verdade, uma grande parte de suas fotos representa uma situação histórica,mitológica ou literária encenada muito frequentemente por desconhecidos. SeThe Christ Kind: ainda nos impressiona, será porque seu modelo é MargerieThackeray ou porque "Little Margie" encarna o Menino Jesus, meio Deus, meioMenino, anjinho?

Podemos identificar quatro objetos da encenação na obra de Cameron: ocotidiano, a cultura religiosa, a história e a literatura. Lady with a Crucifix é umexemplo dessa teatralização do cotidiano: Mary Ann Hillier, empregada domés-tica contratada em 1861 pelos Cameron, vai, em 1865, representar nessa foto amulher que reza. Cameron dispôs todos os elementos significativos da cena: umcrucifixó branco sobre uma grande cruz negra e flores em torno da cruz. Ondeestamos? Num cemitério? Numa igreja? Numa casa? Cameron deixou a respostaindeterminada e, desse modo, torna possíveis diferentes interpretações, comoum encenador que não nos impõe sua única leitura do texto e que, por isso

-4 Dom Pernety, verbete "Portrait", em Dictionnaire portatif de peinture, de sculpture et de gravure (Paris: Bauche,

1757).

As fotos de que falamos foram extraídas do livro de Jean-Marie Bruson, Hommage de J. M. Cameron à VictorHugo (Paris: Les Presses Artistiques/Maison de Victor Hugo, 1980). Os títulos são de Cameron.

DO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" 67

o nOS permite sonhar e imaginar. A mulher olha ao longe: dá uma aber-mesm , c I' di . denunci c I. finita para a lato. A em ISSO, essa Imagem enuncia-se como lato pe atura Jll

l'lumina seu rosto, pois de onde vem essa luz? A fotografia não depende

[uz que -re da exterioridade? Os cabelos estao soltos e caem sobre os ombros: bele-semp odernidade dessa mulher colocada ali por uma outra mulher que se querza e rn'. Depois de repente, percebemos que a mão esquerda da mulher segura a[jvre. '

. esse contato sensual mostra-nos que a prece não existe mais, talvez nemcruZ.tenha existido, talvez nem venha a existir. O fundo muito escuro destaca a per-sonagem e a cruz, isolando-as do mundo: só há elas; ele afirma a solidão dessamulher sonhadora: não há nada atrás, como se fosse um cenário vazio no teatro.1àmbém sonhamos nós a partir dessa foto, como sonhamos graças às frases fo-tográficas de Pierre-Paul1temblay. Nosso sonho é ainda mais vivo e pertinenteà medida que a foto se afirma como encenação, ao passo que, diante do real oudo real encenado, somos escravos do sentido a encontrar.

A teatralização é, portanto, ao mesmo tempo incontornável e discreta. Umfotógrafo pode ser tentado por duas direções: a da publicidade, que constitui uminstante eternizado de uma peça de teatro engajada em proveito de uma produ-ção e de um consumo determinados, e a da obra de arte. Neste último caso, oobjeto fotográfico é desviado de seu sentido mundano para adquirir um sentidofotográfico, e, correlativamente, o sujeito que fotografa se designa e assina suacomposição. Na verdade, se para a fotografia direta a recusa de Arnaud Claass"do termo I/composição" em favor do termo "enquadramento" é operatória, poroutro lado, para a encenação, deve-se falar de composição. Evidentemente, todaarte é específica, mas nem por isso é totalmente autônoma: é preciso articularas histórias das artes com as geografias das artes. Sejamos então cartógrafos.

Fotografar pode gerar vários tipos de comportamento: ou ver com a discri-ção aparente do voyeur, ou mostrar-se com a exuberância do exibicionista. Emtodos esses casos, é sempre constituir um teatro do qual se é o diretor, do qualse é, por certo tempo, o Deus ordenador: dão-se ordens, chama-se à ordem,introduz-se ordem no real que se quer fotografar. A preordenação divina - a pre-visão absoluta de todas as coisas - é o sonho de certos fotógrafos: Duane Michalsdeclara prever nove décimos de suas fotos. Deus per machinam: o fotógrafo é,então, ouvido e obedecido; poder decorrente da máquina que detém o tempo e~arece captar o ser, ou, pelo menos, uma das formas instantâneas do ser. O dese-JO de Cameron oscila sempre entre esse Deus leibniziano e esse Deus do Teatro.

----fi

Arnaud Claass, "Un art sans matériau", em tes Cahiers de Ia Photographie, no 1, Paris, 1981, p. 24.

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68 Primeiro momento I Do real à fotograficidadeDO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" 69

Ser o Deus do cotidiano: através desse desejo de criação, Cameron colo-ca-se como artista. Mas o cotidiano não é seu único objeto. Ela quer tambémreapropriar-se fotograficamente das grandes mitologias e das grandes religiões,e reativar o poder "eterno" delas, modernizando-as graças a uma técnica nova,exatamente como os pintores do Quattrocento pintavam as cenas bíblicas: essafotografia religiosa notável, na qual Cameron brilhou, foi muito esquecida. MaryMother é um exemplo impressionante desse trabalho verdadeiramente herme-nêutico: é uma reinterpretação da maternidade divina no século XIX graças àmáquina fotográfica. Mary Ann Hillier vai representar inúmeras vezes a perso-nagem da Virgem, tornando-se sucessivamente a Madana aspettante, a Madonavigilante, a Madona aâolorata ... O título da foto estudada introduz um equívoco:Mary Mother. Será Mary Ann Hillier ou a Virgem Maria? Esse equívoco, naverdade, reforça a trans-historicidade do tema, correlato implícito da trans-his-toricidade da fotografia. Mary parece olhar a criança, e através desse olhar paraa criança ausente da foto revela-se sua maternidade. Como sabemos que é parauma criança que ela está olhando? Por causa do título? Aqui o texto dá sentidoà foto, mas a distância - produtora de sentido - entre o texto e a imagem não éem nada comparável ao que se pode encontrar, por exemplo, em Magritte. Essafoto é maciçamente teatro de um instante; nisso ela se distingue da pintura, emrelação à imediação de toda tomada fotográfica. Como escreveu Roger Fry:

Aqui o artista mostrou-se capaz de controlar tudo, a mise en page, a disposição dos tecidos

e a iluminação; e o resultado é quase perfeito .. Nenhum [pintor] pocena ultrapassar a be-

leza do modelado do lado esquerdo do rosto ou a excelente perfeição do contorno do ladodireito?

ada passar por uma fotografia de reportagem. Ilusão superior da arte aindacen. t: rte porque Pinkie Ritchie usa uma roupa que só evoca o século XVI demais 10 .'

muito aproxImatIVa.forma

A teatralização é elevada ao quadrado quando Cameron fotografa os Cenci:reendamos que agora a arte fotográfica toma como objeto uma obra de

comp de riartid (I, l é ,.. d dH Qual é seu ponto e parti a? '-Zua e a materia-prima e sua pro uçãoarte. ibilid d histé 1 d C . Nartística? Primeira pOSSI inua e: a IStOna rea os erici. esse caso, estamosdiante da mesma problemática referente a Mary Stuart: que relação existe entrea orgulhosa Beatriz que viveu entre 1577 e 1599 e Mary Prinsep, que a encarnaem 1866 diante de nossos' olhos? Existe uma segunda possibilidade: a tragédiade Shelley, The Cenci, que fazia grande sucesso em 1866 junto a todo vitoria-no erudito. Mas então, por que não fotografar os atores da peça representadaem Londres? Talvez porque Cameron quisesse recriar fotograficamente parasi mesma e por si mesma a tragédia de Shelley: a obra de arte pode ser a fontede uma outra obra de arte. O quadro de Guido Reni (da coleção Barberini), deque fala Stendhal em Promenades dans Rome, considerado como a terceira fontepossível da fotografia de Cameron, só reforça nossa tese: a imagem de Reni dáorigem a uma outra imagem (a de Cameron), imagem específica, pois imagemde uma encenação de um hic et nunc extratemporal dos Cenci. Mais do que isso,A study af Cenci designa uma pluralidade potencial de imagens possíveis: KateKeown, dois anos depois, substituiu Mary Prinsep; essa substituição indica equestiona por isso mesmo a eternidade e a universalidade do drama dos Cenci.Com Cameron, a fotografia se afirma como arte e revela a natureza própria dofotográfico. Lembremos que, na mesma época, Duchenne de Boulogne querfazer com que pacientes - que ele fotografa - representem os sentimentos daspersonagens de Shakespeare.

A fotografia como arte elevada ao quadrado assume uma nova característicacom o trabalho que Cameron realizou a partir dos poemas de Alfred Tenny-son: passamos de fato da encenação à reescrita; a fotografia reescreve com aluz a escrita do poeta. Como nos lembra Ritz,9 Tennyson é "a figura maior dapoesia vitoriana"; de 1850 a 1892, ele mantém o título de "poeta laureado". Ora,"o precursor de nossos mestres Yeats, Joyce, Huxley, Eliot" confia a Cameron,em 1874, a tarefa de ilustrar sua obra mais famosa, Idylls of the King. Ela nãod traduzirá Com imagens, mas recriará uma obra de arte a partir da literatura

e Tennyson. The Kiss of Peace é uma foto feita a partir do poema "Saint Agnes

O problema da teatralização se coloca de maneira ainda mais intensa quan-do Cameron decide fotografar uma personagem histórica que existiu outrorae da qual há representações pictóricas. Por que, na verdade, fotografar umamulher que representa Mary Stuart? De fato, em Mary, Queen of Scots, Carne-ron permite a reencarnação de Mary Stuart graças a sua arte e a sua técnicamodernas. Ela aposta que a fotografia artística da representação dessa mulher,que viveu numa época em que não existia a fotografia, pode desempenhar, paraquem olha a foto, o mesmo papel que a foto verdadeira da rainha. Se ela man-tém essa aposta, é graças à força de sua arte, que pode fazer uma fotografia en-

-7 Roger Fry, "Introduction", em Julia Margareth Cameron, Victorian Photographs of Famous Men and Fsit Women,

introd. Virginia Woof e Roger Fry (Londres: Hogarth, 1926), pp. 26-27. Fry escreveu "mise en page" em francês emseu texto inglês.

:---9 ~~r a noção de "arte elevada ao quadrado" no último capítulo deste livro.

. EncYClopaedia universalis, tomo 15 (Paris: Éditions de l'Encyclopaedia Universalis, 1979), p, 933.

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70 Primeiro momento I Do real à fotograficidadeDo objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" 71

Eve": uma mulher bela e misteriosa beija a testa de uma adolescente; ambas pa-recem mergulhadas em pensamentos melancólicos _ tristes, mas sem angústia=, evocando tanto o poema de Thnnyson quanto a pintura pré-rafaelita. Quemolha a foto encontra os sonhos de "Saint Agnes Eve", mas também se encontraalhures, pois a imagem não funciona em seu imaginário como as palavras.

The Rosebud Garden of Girls mostra-nos bem o procedimento de Cameronpara compor uma foto. O poema "Maud", de Thnnyson, inspira a fotógrafa, que"isola uma palavra ou um grupo de palavras'"? e lhes dá uma interpretação to-talmente pessoal, "distante de seu contexto, guiada pelas sonoridades ou pelasvisões que as palavras evocam":

Rosa, rainha do jardim florido de jovens,Venha, as danças terminaram

No brilho do cetim e na luminosidade das pérolas,Rainha dos lírios e das rosas ao mesmo tempo. 11

. ta reinterpretava sua própria foto, tal como Moliêre, que fazia representara arOs

Ocom outra encenação, uma de suas próprias peças de teatro.

de nOV ,Aliás, Cameron às vezes dá várias interpretações fotográficas de um mesmo

a É o caso de "The angel at the tornb": a cada vez, encontramos a mesmapoem . nnn D ' . I' de i. fiotográfica- Mary Ann I ler. uas senes corre ativas e interpretaçõesatflZ_ postas em prática: de um lado, as diferentes interpretações teatrais quesaoMary Ann Hillier deu ao papel do anjo - da mesma forma que uma atriz inter-preta várias vezes e de maneiras diferentes uma ~esma peç~ de teatro, a cadarepresentação -, e, de o~tro lado, as diferentes mterpretaçoes do poema porCameron - da mesma forma que um tradutor pode interpretar de maneiras dife-rentes um mesmo poema ou, talvez, como um psicanalista interpreta indefini-damente o mesmo sonho: ponto central da fotografia, imagem do ponto centralda interpretação dos sonhos estudada por Freud, imagem também do ponto cen-tral das cópias que, a cada vez, são sempre as mesmas e sempre são diferentes."

As quatro irmãs Fraser 1Ytler representam as jovens que Thnnyson evocava;o jardim, as rosas e os lírios formam o cenário; a atmosfera é recriada _ e nãoencontrada, como em certos trabalhos medíocres com pretensões realistas.

Essa teatralização fotográfica também pode ser elaborada seguindo um ou-tro processo. Em 1869, Cameron fotografara Mary Ann Hillier desempenhandoo papel de uma heroína patética e estranha; ora, cinco anos depois, essa fotoevocou para Cameron o poema "The Lady ofthe Lake":

Rumo a uma estética do retrato e da encenação

Ejunto a ele estava a Dama do Lago

Que conhece encantos mais sutis do que os seusVestida de brocado branco, misteriosa, maravilhosa. 12

Será que a teatralização fotográfica é específica de um determinado tipo de re-trato ou de todos os retratos? Para responder, vejamos os de Hattie Campbell.Que retrato nos revela melhor a identidade da moça? Será que é quando elarepresenta a Vestal ou quando Carneron faz dela um retrato "verdadeiro", fo-tografando a própria Hattie, e não Hattie encarnando uma personagem? Seráque a verdade de uma identidade é encontrada graças à apreensão natural deuma natureza, ou graças à apreensão cultural de uma cultura? De fato, no re-trato "verdadeiro" de Hattie, a moça já está representando. Ela "posa" nos doissentidos da palavra: pose fotográfica e afetação mundana, cultural e social. Nãotemos diante dos olhos a pessoa de Hattie, mas sua personagem, ou seja, umar, um jogo e uma imagem que ela dá de si mesma aos outros e talvez a si pró-pria. "O homem não passa de disfarce, mentira e hipocrisia. [...] não fazemosoutra coisa senão nos enganarmos e adularmos mutuamente", escreve Pascal.I4

Além disso, essa pose é obrigatória por razões técnicas da época: a exposiçãoda placa devia durar de cinco a sete minutos. Permanecer imóvel durante umtempo bastante longo a fim de deixar para a eternidade a imagem de seu eu!...

O poema já estava ilustrado. Só restava à fotógrafa realizar, uma segundavez, ato de artista: desviar a foto de seu primeiro sentido e articulá-Ia à obra deThnnyson, dando-lhe o título tão famoso do poema. Ainda aqui, não só Cameronfazia urna obra de arte, mas, além disso, desvendava o status paradoxal da foto-grafia: obra cujo sentido muda em função do título que lhe é dado. Na verdade,

-10 Jean-Marie Bruson, Hammage de J. M. Cameron à victor Huga, cít., p. 17.11 Alfred Tennyson, "Maud", em Maud and Other Paems (Londres: Moxon, S/d).12 Alfred Tennyson, "The lady of the lake", em Idylls ot the King (Londres: Penguin Classics, 1983).

•••••••••1314 Ver capítulo 4.

Pascal, PenSées, no 100, org. Brunschvicg (Paris: Garnier, s/d). [O trecho aqui citado é da edição brasileira pen-samentos, no 100, org. Brunschvicg, trad. Sérgio Milliet, Coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1973),P.70.1

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Mas o que é o eu? Na verdade, será que ele não é mais facilmente perceptívelnas fotos claramente teatrais? Em todo caso, considerando a pluralidade destas,o eu não é afirmado nem como elemento fixo nem como elemento natural; aoposição verdade/representação, correlata da oposição natureza/cultura, é aquirecusada, assim como as distinções fotografia diretalfotografia encenada e en,quadramento/ composição. A identidade de Hattie é plural: Hattie é, tambémem sua própria vida, Vestal, anjo da guarda ou Eco; para a última foto _ TheEcho -, Bruson fala até, com uma exatidão paradoxal, da "espontaneidade domovimento", que parece "natural e não posado". 15 A pose mundana e social dáa impressão de desaparecer quando é estabelecida a pose teatral e artística: aidentidade nasce da ilusão afirmada.

72 Primeiro momento I Do real à fotograficidade Do objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" 73

Acting Grand-Mama reforça nossa tese. Nessa foto, a ilusão é ao mesmo tempoposta em prática e denunciada duplamente: através do título e através das rou-pas convencionais usadas nas brincadeiras infantis e nos teatros amadores doséculo XIX. Mary Prinsep, moça de uns 20 anos, representa a avó; dessa forma,nós a descobrimos em Sua pluralidade identitária: a moça, a atriz, a mulher queserá avó ... Ora, entre essas três personagens, estabelecem-se e tensionam-serelações que permitem uma leitura fenomenológica do eu, portanto, uma lei-tura a ser sempre retomada, mas, de qualquer modo, produtora de um sentidoinfinito.

mbra e a luz em claro-escuro [...]. Quero fazer milagres". É possível entãotre a SO -

tética da encenaçao.uma es11

se considera uma pintora ou uma encenadora? Rembrandt" parececamero , ' .. . ialmente indicar que o modelo da fotografa e o pintor: ela quer fotografarIn1C b d ., d M ' , . fi. Ilenry Taylor como Rem ran t o tena pinta o. as sera que e preciso carSI;sse primeiro nível de análise? Na verdade, ela quer fotografar com a mesma~ualidade artística com que o maior pi,nto~ teria pintado o,u o maior diretor deteatro teria feito representar. Sua referência a Rembrandt e a marca de sua eXI-gência artística e de sua-assinatura pessoal de artista, não a marca da mimesis

da pintura.Tclmbém ela será aconselhada, para suas fotos, por artistas de horizontes dife-rentes: pintores, é claro, mas também poetas, dramaturgos, músicos, diretoresde teatro. Se Watts, por exemplo, colabora às vezes na preparação dessas fotos,durante os 23 anos que mora com os Cameron, é antes de tudo como artista.Aliás, suas pinturas históricas eram verdadeiras encenações, assim como seusafrescos monumentais que evocam a evolução da humanidade - por exemplo,tlamour et Ia mort - ou seus retratos de Swinburne ou de Thomas Carlyle. Oproblema da teatralização em pintura era exportado para o campo da fotografia.Evidentemente era modificado, mas não totalmente transformado.

Cameron levou esse problema a sério, trabalhando-o e tratando-o com sua per-sonalidade e suas próprias escolhas artísticas, técnicas e ideológicas. Recusan-do-se a adotar uma teatralização fotográfica realista, ela vai se chocar - e issoserá sua força e sua riqueza - com a crítica fotográfica tradicional. Em 1864,um crítico considera suas fotos "admiráveis, cheias de expressão e de vigor, masterrivelmente contrárias às convenções e aos usos fotográficos"." Uma críticade 1865 que talvez parecesse, na época, depreciativa revela-se, de fato, extrema-mente valorizadora: as fotos de Cameron, "embora muito medíocres como fo-tografias, são a obra de uma verdadeira artista"." Fotógrafa, encenadora, artistasimplesmente, são estes os qualificativos que podem ser atribuídos a Cameron.Ela própria faz duas observações interessantes sobre a definição da imagem esobre as manchas:

Todo retrato é uma representação: o retrato da mulher desconhecida com umturbante nos designa não mais uma determinada mulher, mas um tipo de mu-lher representado; passamos do individual ao típico e ao universal. E, quandoCameron fotografa Tennyson, podemos reafirmar o que dissemos. Temos aomesmo tempo a foto do poeta "em carne e osso" e a foto do poeta fazendo-sefotografar; como diria Barthes, o sujeito tornando-se objeto. E que objeto! Carne-ron queria "imortalizar os grandes homens": já imortalizados pelas práticas e osdiscursos da sociedade - Tennyson é o poeta laureado durante cerca de meioséculo - a ponto de se terem tornado quase que super-homens, esses homenssão duplamente eternizados e universalizados: pela técnica fotográfica e pelaarte fotográfica. Não é mais o retrato de Alfred Tennyson que temos diantedos olhos, mas a imagem atemporal de Tennyson e até a imagem do conceitode grande homem. A fotografia, que parecia ser uma técnica que reproduzia ofenômeno, coloca-se como uma arte que resulta no conceito; ela parece ter amesma pretensão que a pintura de Leonardo da Vinci: ser "a ciência suprema".Como Leonardo, Cameron poderia ter dito: "Aciência perfeita é a distinção en-

o que é a definição da imagem e quem tem o direito de dizer qual é o grau exato de de-finição? [,..] Quando eu estava definindo a imagem e quando chegava a alguma coisa que,

--15 Jean-Marie Bruson, Hommage de 1.M. Cameron à victor Hugo, cit., p, 17.

16

17

18

Foto publicada na p. 64 deste livro.

The Phatagraphic Jaurnal, vaI. 9, Londres, 1864, P, 171.Ibid" 1865, p, 117,

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para mim, era muito bonito, eu então parava em vez de girar a objetiva até uma definiçãoperfeita, o que todos os outros fotógrafos insistem absolutamente em fazer [...]. Quanto às

manchas, penso que é preciso deixá-Ias. Poderia retocá-Ias, mas sou o único fotógrafo que

só apresenta fotografias não retocadas, e os artistas, por esse motivo, entre outros, valorizamminhas fotografias 19

Dessa forma, Cameron mostra que ser artista é escolher, e que o mais importan-te não é o objeto a ser fotografado, mas sim a maneira fotográfica de gravar suasaparências visuais para produzir o fotográfico.

"Nunca ninguém captou nem utilizou o sol como VOCê",20 dizia Victor Hugo aJulia Margaret Cameron. Talvez pelo fato de ela ter sabido ultrapassar a fotogra-fia aparentemente objetiva e realista para atingir o teatro: teatro da vida? Teatroda arte? Teatro fotográfico, em todo caso, graças a essa Aufhebung21 hegeliana deuma técnica. Cameron pôde também ultrapassar o simples projeto de retrato deum ser a fotografar para chegar à fotografia como obra, deixando no mistério aidentidade do ser. Ela abandonou a busca do "isto existiu" para escolher o "istofoi encenado". O objeto a ser fotografado não é mais do que uma oportunidadede encenação. A estética do retrato articula-se então com a da encenação nointerior de uma estética do "isto foi encenado".

Rumo a uma estética geral do"isto foi encenadoll

o jogo da fotografia

Pode-se então pensar que toda foto é teatralizante e que para a fotografia emgeral é preciso dizer: "isto foi encenado"? Retomemos o problema do ponto departida.

Pode-se fotografar o eu de uma pessoa? Para tal, seria preciso que o eu exis-tisse de maneira permanente e idêntica. "O que é o eu?", pergunta Pascal:"todas as tentativas de respostas que ele apresenta - o corpo, a beleza, o julga-mento, etc. - fracassam: "Onde está portanto esse eu, se não está nem no corpo-19 Cf. Jean-Marie Bruson, Hommage de 1.M. Cameron à vtctor Hugo, cit., pp 9,12,18.

Ibid., p. 5.Ultrapassagem dialética.Pascal, Pensées, nO688, org, Louis Lafuma (Paris: seuil, s/d.).

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Do objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" 75

na alma?" Não será ele unicamente uma das três personagens do segundonem - '1 d·e, íco de Freud? Consequentemente, nao sera e e sempre mutante e irerente?toP~;1tado eu, devemos fotografar o próprio aparelho psíquico? O que significa,Nasse caso. a expressão "fotografar o psíquico"? Não se estará sempre diante dene orpo ou em todo caso, diante de uma matéria? Mas esse corpo é o sinto-um c , '

a o vestígio ou o índice de quê? Do eu? Mas então de qual eu? Do aparelhorn-' Ul'CO? Mas será isso de modo geral ou num dado instante? Seria melhor dizerpsiq . .. .ue a fotografia nos põ~ diante do id do outro. Esse iâ afirma-se como deslocado

~m relação ao eu permanente impossível. Esse id é representado por si mesmoe por sua posição dialética no interior do aparelho psíquico. Cada foto nos indicaque o id foi representado, pois, diante de um fotógrafo, representamos e somosrepresentados. O livre-arbítrio não é aceito em fotografia: é preciso que sejasubstituído pelo jogo da necessidade, a necessidade das relações de teatro queconstituem a vida.

"Isto foi encenado": isso é verdadeiro não só para o id do fotografado, mastambém para o id daquele que fotografa. Com efeito, toda foto é trabalhada poraquilo que escapa àquele que fotografa e, portanto, o domina, a saber, entre outras coisas, pelo id daquele que fotografa. A relação fotografado que fotografanão é neutra. Mais do que isso, ela não é controlável, porque o mais importanteacontece no nível inconsciente." Uma foto é antes de tudo o resultado de re-lações entre ids, entre pulsões. O id do que fotografa desempenha um papel,mas, além disso, um papel é desempenhado pelo id do outro e pelo próprioaparelho psíquico. Para todo fotógrafo ocorre um jogo dialético, na maioria dasvezes inconsciente, entre seu ego, que visa a dominar e a prever, seu id, queexprime maciçamente suas pulsões e suas tendências para com a exterioridade(e portanto para com o fotografado e a fotografia), e seu superego, que é habi-tado pela identificação problemática do fotógrafo com "grandes" fotógrafos, eportanto com regras e modelos estéticos, estilísticos ou técnicos; todo fotógrafoé encenado e dirigido, atraído e paralisado por esses modelos, mesmo - e sobre-tudo - se quiser se distanciar deles.

"Isto foi encenado": todo mundo se engana ou pode ser enganado em foto-grafia - o fotografado, o fotógrafo e aquele que olha a fotografia. Este pode acharq~e a fotografia é a prova do real, enquanto ela é apenas o índice de um jogo.Diante de qualquer foto, somos enganados. Isto foi encenado, porque isto ocor-reu e po .rque isto ocorre num lugar diferente daquele que se acredita. Como noteatro, em fotografia o referente não está onde se pensa, nem onde se está, nem

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FranÇOiSSOulages et ai., Photographie et inconscient (Paris: osírís. 1986).

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F J 6""'Prrmelro=tt10mentO I Do-rnalTmtografiClClaae"

onde se acredita que esteja. Talvez a fotografia não se refira senão a ela mesma:é, aliás, a única condição de possibilidade de sua autonomia.

As teses que apresentamos para a obra de Cameron poderiam ser retoma-das em relação a qualquer retrato fotográfico: a pessoa fotografada representauma personagem. Demonstraremos isso, por exemplo, com Diane Arbus," paraquem cada foto é, conscientemente ou não, uma encenação, ou a foto de umaencenação: [eune homme avec bigoudis chez lui, Les champions du [unior InterstateDance, Dame à un bal masque avec deux roses sur sa robe, etc. Todas as fotos deArbus poderiam ser citadas.

Essas teses são pertinentes não só para as fotos das pessoas que sabem queestão sendo fotografadas, mas também para as de pessoas anônimas tiradas àsescondidas. Na verdade, há sempre uma encenação do fotógrafo: poderíamostomar como exemplo as fotos de William Klein. Talvez seja - poder-se-ia dizernuma perspectiva humanista - a especificidade da encenação que manifesta oestilo do autor. Diante da foto de um anônimo, nunca podemos saber se essafoto é realmente de um anônimo espionado ou a de uma pessoa prevenida (que,portanto, representa): o "isto existiu" é impossível de dizer porque o "isto foiencenado" foi pronunciado uma vez. Assim como Descartes foi enganado umavez, devemos, diante de qualquer foto, praticar uma dúvida metódica e hiper-bólica em relação à existência particularizada do referente: a fotografia semprepode ser vítima do Gênio Maligno, de "algum não sei qual enganador"." As pre-tensas fotos espontâneas de Doisneau são frequentemente fotos de encenação.

Ora, essa encenação não se refere só às fotos de homens ou de mulheres,mas também às de paisagens, de máquinas, de qualquer objeto do real. Na ver-dade, qualquer foto pode ser a foto de uma encenação, como, por exemplo,essas paisagens falsas cujo status não deixa de evocar o dos cenários de teatrobarroco, como em Lillusion comique, de Corneille, ou A vida é sonho, de Calde-rón. Além disso, qualquer foto pode ser manipulada na revelação, como as fotosde publicidade. Enfim, ela é sempre feita por um homem que é ele próprio tra-balhado e dominado inconscientemente por modelos a serem reproduzidos oua serem evitados, por pulsões e desejos. Todo fotógrafo é, portanto, quer queiraquer não, um encenador, o Deus de um instante. Toda fotografia é teatralizante.

-24 Ver capítulo 7.25 Descartes, Méditations métaphysiques (Paris: PUF,1966), 11, 4. [O trecho aqui citado é da edição brasileira Me-

ditações, 11, 4, trad. J.Guinsburg e Bento Prado Júnior, coleção Os Pensadores (São Paulo: Abril Cultural, 1973),p.100.]

Do objeto do retrato ao objeto da rorograna em geral: "ISto TOIencenaao 7

Mais uma vez o real nos escapou, talvez simplesmente porque é impossívelostrá-lo. Os homens parecem ter necessidade de crer, e talvez seja por isso

mIes se apeguem à aparência. Não podendo dizer e assumir o "isto foi ence-que eado" diante de uma foto, eles apostam na fotografia como prova do real. Essa:atisfação com a ilusão vem de outro lugar, ela não é específica da fotografia,mas deve ser denunciada para que a fotografia possa chegar a um papel dife-rente daquele de, pobre testemunha de um real impossível. A fotografia deveser comparada com o teatro e ser pensada como trabalhada por um jogo: o jogodos homens e das coisas. Por ser habitada por esse jogo do mundo, por sermosrepresentados diante dela, por sermos enganados por ela é que a fotografia podeentrar no mundo das artes. A fotografia está do lado do artificial e não do real.

O objeto a ser fotografado pode menos ainda ser reproduzido em sua in-tegralidade pela fotografia, à medida que ela está sempre na dependência doponto de vista de um sujeito: dessa forma, o "eu" do fotógrafo é posto em pri-meiro plano. Que consequências se pode tirar disso? Em que a arte fotográfica émodificada por isso? As obras de Gelpke e de Thrner, de Michals e de Klein vãopermitir-nos elaborar respostas para essas questões.

o jogo da realidade(André Gelpke e Pete Turner)A fotografia não dá a realidade. Em contrapartida, ela pode questioná-Ia. Aesse respeito, o trabalho de André Gelpke é exemplar: suas fotos se apresen-tam como fotos realistas, mas não o são. Quando o receptor toma consciênciadisso, não pode fazer outra coisa a não ser questionar a fotografia, a pretensarealidade e a relação que ele mantém com ela. "A 'pseudo-aparência' de meus'clichés realistas' põe em questão a própria realidade", afirma o fotógrafo.26 Suasfotos constituem, na verdade, um jogo com as aparências e a realidade, como fotografado e o simulacro, com a foto e o infotografável. "A realidade, condi-cionada pelo afastamento do acontecimento, pela avalanche dessas imagensde crueldade, torna-se uma ficção"," diz Gelpke. De um lado, a realidade temaparências de sonho e até de pesadelo. De outro lado, essa angustiante estra-nheza é reforçada pela própria natureza da foto, que descontextualiza o fenô-meno visível fotografado. Por essa separação de seu tempo, de seu espaço e deseu ponto de vista de origem, a foto pode então parecer vazia de sentido, seja

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27 Release da exposição do Centro Georges pompidou, 1984.Ibidem.

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otograficidade

porque nada nela é reconhecível nem identificável, seja simplesmente porqueo que se pensa reconhecer está separado do Conjunto que lhe dá sentido. A fotoestá sempre rodeada por um irremediável extracampo visual inacessível, en-quanto no cinema o extracampo é sempre potencialmente conhecível e doadorde sentido. "Logo depois de tirada, a foto começa a se esvaziar de seu sentidoligado à atualidade representada para começar a ficar carregada de sentidosintencionais, isto é, aqueles estabelecidos por seu modo de divulgação", escreveAndo Gilardi.> Como a foto, em SUa própria essência, é esvaziada do sentidoque a realidade poderia ter, o receptor, uma vez passado o tempo da confusão,pode investi-Ia de novos sentidos ligados a Sua subjetividade e a seu imaginário:uma foto de alguma coisa permite sempre imaginar outra coisa. A fotografia éa arte do imaginário por excelência, bem mais do que o cinema, talvez porqueseja muda, sem movimento e sem futuro, puro fragmento de nonsense que pedeuma construção de sentido imaginária por parte do receptor. Essa é uma dasrazões de sua possível passagem do sem-arte à arte. Também Gelpke pode emsua obra tentar "tornar perceptível, pelos meios puramente fotográficos, essa'contra-realidade'''.29 A fotografia permite não captar a realidade, mas chegar àcontrarrealidade que, por contragolpe, critica a realidade do mundo: a ficção tal-vez seja o melhor meio de se compreender a realidade. "A máquina fotográficarepresenta uma maneira de ir, de uma matéria fluida e mutante, ao encontro deuma outra realidade ", diz Jerry Uelsmann.e'

o trabalho de Pete Thrner é um outro modo de questionar a realidade: "Querouma outra realidade em minhas imagens, mais realidade", escreve ele." Enten-demos "mais realidade" como sendo ao mesmo tempo uma realidade diferente,uma realidade mais solicitadora para quem olha, e uma realidade de naturezafotográfica. Com esses dois fotógrafos, encontramos questionamentos com osquais já nos deparamos a respeito da esquizofrenia.32 Não que uma tendênciaou tentação esquizofrênica perpasse a obra deles, mas vemos em suas fotos ecompreendemos em Suas afirmações uma decepção e até um mal-estar quantoà realidade externa, assim como uma vontade ou de criticar essa realidade ou desubstituí-Ia por outra. A fotografia lhes dá esperança de que essa vontade podechegar a um fim porque, como diz Ernest Haas, ela "decorre da transformação

-28 Ando Gilardi, Storia sociale della fotografia (Milão: Feltrinelli, 1976), p. 251.29 Release da exposição do Centro Georges Pompidou, cit.

30 Jerry Uelsmann, soua J.Lizé, Fixer-révéler ou tentative de délimitation tiu champ esthétique de Ia photographie,1981, o, 15, não publicado.

31 Photo, Pete Tumer, Coleção Les Grands Maltres de Ia Photo, no 7 (Paris: Photo, 1983), p. 7.32 Ver François Soulages et ai., Photographie et inconscient, cit.

Do objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" 79

_ da reprodução"33 Pete Turrier extrai disso uma consequência que o colocae naoma artista: "Fico constantemente surpreso de ver a quantidade de fotógrafosC~e se recusam a manipular a realidade, como se isso fosse um mal. Mudem; realidade! Se vocês não a encontram, inventem-na'." A fotografia deve sernão só encenação e jogo, mas deve ser invenção; nisso o fotógrafo é criador.pete -rurrier experimenta, por conseguinte, todos os parâmetros constitutivosda fotografia; nota-se, aliás, essa liberdade exploradora e criadora entre os fotó-grafos desde o início da fotografia. "Não mudo as cores simplesmente para fazerexperimentos, faço o que posso para que elas trabalhem a meu favor", escreve'Illrner.35 Seu interesse não é a realidade externa, mas a realidade de Sua obra.'Itabalha com a cor com a mesma lógica do fotógrafo que usa o preto e branco.É por razões de coerência interna da foto e de distinção para com a realidadeque determinada cor é usada. Ele se opõe totalmente a Herman Podesta, queafirma: "Não faço fotos coloridas, pois a cor induz uma referência imediata aoreal"." Os dois fotógrafos constatam a mesma coisa, mas tiram disso consequ-ências prático-estéticas opostas. É preciso então distinguir as cores do objeto aser fotografado e as da foto. Thrner cria seu mundo na fotografia: esse mundo éautônomo e rico.

o jogo e o eu do fotógrafo(Duane Michals e William Klein)

É por essa razão que esses fotógrafos se opõem explicitamente à estética deCartier-Bresson: é contra sua doutrina do instante decisivo e de uma possívelcaptação do objeto a ser fotografado que esses fotógrafos constroem sua obra.

"Em vez de fotografar o momento decisivo, sou levado a fotografar o mo-mento que precedia e o momento que seguia", escreve Duane Michals." A fo-tografia não é mais citação da realidade, mas história encenada. O autor nãoquer captar um acontecimento que ocorreu num dado instante, mas contar umaaventura que se desenvolve durante um certo tempo. Estabelece então uma se-quência de várias fotos, às vezes acompanhada de um texto. Dessa maneira, elese abre para a narração e para a ficção: por vezes aparece um anjo na foto, em

---3334 Ernest Haas, apud tes grands photographes (Barcelona: Time Life, 1979), p, 234.35 Photo Pete Turner, cit.. p. 8.36 Ibidem.37 Herman Podesta, apud Photographiques, nO101, Paris, novembro de 1983, p. 17.

Entrevista concedida à rádio France Culture, novembro de 1980, não publicada.

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80 Primeiro momento I Do real à fotograficidade

decorrência das necessidades da história e, ao mesmo tempo, para nos mostrarque a fotografia capta as aparências às vezes invisíveis para o olho humano enão a simples realidade. O artista, portanto, apela mais para nossa imaginaçãodo que para nossa visão: ''A única realidade que conheço de modo seguro é aque acontece em mim, são minhas emoções", escreve ele." A realidade dasfotos não é a do mundo no qual se vive, apesar do hábito cultural _ do "istoexistiu" de Barthes à arché de Schaefferê? ''As pessoas acreditam na realidade dasfotografias, mas não na realidade das pinturas. Isso dá uma vantagem para osfotógrafos. O problema é que os fotógrafos também acreditam na realidade dasfotografias", observa Duane Michals." Os fotógrafos devem se situar no mesmoplano que os pintores para abordar a questão da realidade; é uma das condiçõesda possibilidade de que eles façam arte. "Eu não 'vi' o que fotografei, eu 'fiz"',afirma esse fotógrafo. ''A fotografia é um ato poético, no sentido em que poieinquer dizer 'fabricar' em grego. Tenho horror do pitoresco; minhas imagens sãoantes de tudo mentais: seus limites são os de meu espírito. "41 O fotógrafo nãotira fotos, ele as faz, evidentemente a partir dos fenômenos visíveis _ sem comisso procurar ter deles uma restituição realista -, mas sobretudo a partir dasimagens psíquicas que ele inventa em si mesmo. Encontramos aqui, ao mesmotempo, as afirmações de Marc Pataur" e a concepção poiética da arte que é im-portante para Paul Valéry e René Passeron.? o sujeito criador volta a se tornar ocentro da fotografia, seu responsável.

"Eu ia em direção oposta [a Cartier-Bresson], deixando de lado o mito daobjetivida.de",44 escreve William Klein para explicar seu procedimento. Tambémrejeita o instante decisivo, que ele substitui pelo sujeito que decide: cabe aoartista e não ao tempo decretar o que será uma foto e decidir sobre isso, sendoo fotógrafo, nesse caso, apenas um caçador de imagens. "Todos os momentossão decisivos";" afirma corretamente esse criador. A liberdade do poiein é entãoinfinita. Ele experimenta tudo o que é tecnicamente possível:

-38 Ibidem.

39 J-M. Schaeffer, L'image précaire: Ou dispositif photographique, Coleção Poétique (Paris: Seuil, 1987).40 Cf. Duane Michals & Michel Foucault, Ouane Michals: Photographies de1958 à 1982 (Paris: Paris Audiovisual/

Museu d'Art Moderne de Ia Ville de Paris, 1982), p. 111.

41 Cf.Zoom, no40, Paris, outubro de 1976, o, 25.42 Ver capítulo 5.

43 René Passeron, Pou: une philosophie de Ia création (Paris: Klincksieck, 1989), e Création et répétition, ColeçãoRecherches POlétiques (Paris: Clancier-Guénaud, 1982).

44 Cf. William Klein, Coleção Les Grands Maitres de Ia Photographie, nO6 (Paris: Photo, 1983), p 60.45 CI. Camera International, no4, Paris, 1985, p 107.

DO objeto do retrato ao objeto da fotografia em geral: "Isto foi encenado" 81

FOtoSautomáticas, paparazzo, tabloide, pastiche, arte bruta, antifoto, para começar. Eu não

estava limitado por um formato fotográfico ou por tabus; experimentava tudo. Granulado,

desfocado, não enquadramento, deformação, acidentes. Batia fotos ao acaso [...l. fazendo

esse procedimento render o máximo. Mergulhava de cabeça em tudo o que não se devia

fazer em fotografia [. .] Tinha a impressão de que os pintores tinham-se libertado das regras:

por que não os rotógraíos?"

Encontramos na aventura deliberada de Klein o trajeto de Pataut com as crian-ças do hospital-dia: não há nenhum limite, nenhum superego técnico nem es-tético domina; a experimentação é total, e as fotos são notáveis; só existe ummodelo: a liberdade total dos pintores. O artista estuda todas as possibilidadesda fotografia, voltando incessantemente a seu trabalho, retomando o que lheparece não canônico, "perseguindo os negativos disperses"." Foi porque ousoutrabalhar o que alguns teriam deixado nas latas de lixo da história e porque seapropriou disso para construir um conjunto coerente, assinado e significativoque ele pôde produzir uma obra original e rica, que é a sua, e dessa maneirapôde renovar a estética da fotografia. Foi confrontando-se com o temporáriosem arte que ele entrou na arte: fotos automáticas, arte bruta e antifoto torna-ram sua fotografia possível e poderosa.

O fotógrafo não é um caçador de imagens, é um perseguidor de negativos,um homo faba. Não se tira uma foto, ela é feita.

Dessa forma, a fotografia dos seres humanos não deve fazer crer que elapode fotografar o ser a fotografar: ela sempre o perde, fotografando apenas umaaparência visual que depende do ponto de vista de um sujeito e de uma apa-relhagem técnica. "Nós vemos, mas não sabemos nada", escreve Lemagny." Éjustamente esse ver sem saber, que substitui o saber de eu vejo/eu sei, o que oartista explora para nos fazer ver outra coisa de maneira diferente e talvez, as-sim, nos abrir para um outro saber. Saber do objeto? Talvez, mas não se trata so-bretudo de um mistério? Em resumo, a fotografia nos persegue ainda com seusproblemas radicais: o que é o objeto a ser fotografado? O que é o real? Como sePode fazer uma obra a partir dessas não evidências?

---4647 Cf. Wil/iam Klein, cit.48 Ibid., p. 59.

Texto de introdução de Cahiers de Ia Photographie, nO1, Paris, 1981, p. 2.