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1 Pensar a Educação. Portugal 2015 Texto final 21 Maio 2015 Belmiro Cabrito, Graça Leão Fernandes, Manuela Silva, Margarida Chagas Lopes, Maria Eduarda Ribeiro, Maria do Rosário Carneiro.

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1

Pensar a Educação. Portugal 2015

Texto final

21 Maio 2015

Belmiro Cabrito, Graça Leão Fernandes, Manuela Silva, Margarida Chagas Lopes, Maria

Eduarda Ribeiro, Maria do Rosário Carneiro.

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Índice

1. Enquadramento ....................................................................................................................... 3

1.1. Donde partimos para Pensar a Educação. Portugal 2015 ................................................... 3

1.2. O direito à educação ........................................................................................................... 4

1.3. As sete áreas temáticas seleccionadas …………………………………..……………..…5

1.4. Os nossos pressupostos ……………………..………………………………………….…5

2. As traves mestras de uma nova estratégia de educação ....……………………..………....6

2.1. Um conceito abrangente de educação...………………………………………………….6

2.2. Reconhecimento do papel nuclear dos professores, educadores, auxiliares de acção

educativa e outros técnicos de educação ………………………………………………..7

2.3. Autonomia e gestão democrática das escolas ……………….………………………….10

2.4. O papel do Estado na educação ………………………………………………...…...….12

2.5. Responsabilidade das Autarquias. Papel da Comunidade. ……………………………..18

2.6. Consciencialização da opinião pública acerca da importância de uma educação de

qualidade com igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso ………………..…….…22

3. O desenho da proposta de um novo projecto educativo para as áreas temáticas

selecionadas ……………………………………………………………………………………25

3.1. A educação da infância …………………………………………………………………25

3.2. A educação básica e secundária …………………………………….……………….…31

3.3. A educação de crianças e jovens com necessidades especiais ……………………...….38

3.4. O ensino superior e a investigação …………………………………………………..…46

3.5. A educação da população adulta ………………….……………………………………50

3.6. A formação de professores e educadores ………………………………………………56

3.7. O sistema educativo: Organização, administração e financiamento ……….………......60

4. A educação: um projecto comum de toda a sociedade …………………………….….67

4.1. O lugar central da educação na vida de cada pessoa e na sociedade ………………..…67

4.2. Os nossos pressupostos ……………………………………………………………..….68

4.3. Um conceito abrangente de educação …………………………………………….…….69

4.4. Sobre o papel nuclear de professores, educadores e outros profissionais de educação...70

4.5. Sobre a autonomia e gestão democrática das escolas ………………….………............71

3

1. Enquadramento

1.1 Donde partimos para Pensar a Educação. Portugal 2015

A iniciativa deste projecto nasceu no âmbito do Grupo Economia e Sociedade e é uma

das componentes de um processo mais vasto de reflexão sobre o desenvolvimento

humano sustentável.

Assenta no reconhecimento de quatro vectores principais que continuam a mobilizar-

nos:

- A educação como via de felicidade e realização humana, individual e

comunitária, bem como factor determinante do desenvolvimento, prosperidade,

sustentabilidade ambiental e coesão social;

- O desconforto que existe na sociedade portuguesa acerca das falhas do actual

sistema educativo e o desacerto das políticas públicas que vêm sendo

implementadas, algumas das quais ao arrepio da Lei de Bases do Sistema

Educativo;

- A falta duma estratégia de governação, clara e democraticamente

consensualizada, para a próxima década, relativamente à educação da população

em geral e, em particular, das gerações mais jovens;

- Os novos desafios com que os povos estão confrontados neste primeiro quartel

do século XXI, nomeadamente o avanço no conhecimento científico e a sua

difusão, as tecnologias de informação e comunicação, a globalização das

economias, a mobilidade geográfica e as suas consequências para a cidadania e

para a interculturalidade.

O texto que agora oferecemos ao conhecimento público pretende ser uma proposta que

sirva de guia aos decisores políticos, professores e educadores, alunos e pais e à

população em geral, para a construção de um projecto educativo de qualidade, à altura

dos desafios do mundo contemporâneo, que assegure igualdade de oportunidades para

todos e que sirva de base à definição e implementação das políticas públicas bem

como à sua avaliação enquanto instrumento de aperfeiçoamento permanente do

sistema educativo.

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Trata-se do resultado de um trabalho colectivo que, numa primeira fase, envolveu

cerca de meia centena de pessoas entre investigadores e consultores e, posteriormente,

foi objecto de debate em sete seminários específicos.

Por esta via, foi reunido um acervo de documentação que incluiu diagnósticos de

situação, levantamento dos principais problemas, esboço de propostas de

encaminhamento futuro, para diferentes áreas temáticas, sem esquecer o desenho e a

eficiência do próprio sistema educativo e as questões transversais que lhe estão

associadas.

O presente documento não constitui, porém, uma mera compilação ou síntese

abreviada do vasto conjunto das contribuições recebidas através deste processo.

Tivemos em conta o que fomos reflectindo e aprendendo durante todo o percurso, mas

coube à Comissão Executiva a tarefa de elaborar um documento coerente que pretende

contribuir para a definição de um projecto educativo para Portugal que seja um

referente para uma governação responsável e democraticamente legitimada.

Em nosso entender, um tal projecto tem de contar com a mobilização da sociedade

civil e envolver os seus principais destinatários e actores (famílias e jovens, escolas,

governantes e forças políticas, autarcas e forças vivas locais, intelectuais e jornalistas).

Em especial, há que motivar e envolver todo o corpo docente e os demais profissionais

da educação aos vários níveis, dignificando e valorizando a sua profissão e garantindo

a sua efectiva participação na prossecução de uma educação de qualidade,

designadamente no que respeita ao sistema público.

Temos a consciência da desmesura desta ambição e da modéstia do resultado

alcançado, mas anima-nos a esperança de que, com este passo, está desencadeado na

sociedade portuguesa um processo em que Pensar a Educação não pode ficar à

margem das agendas políticas dos partidos, do Governo e das Autarquias, das

Universidades, dos média e da intelectualidade em geral. Trata-se de uma questão que

a todos diz respeito, ao nosso presente e ao nosso futuro.

1.2 O direito à educação

A educação é uma das componentes fundamentais do bem-estar social de qualquer

comunidade e nação e por isso é considerada como um direito consagrado nas

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Constituições dos Estados democráticos contemporâneos a que corresponde o dever

indeclinável de cada Estado promover as mediações adequadas para dar cumprimento

a tal direito.

Assumimos que a educação se dirige a toda a população em qualquer etapa de vida,

mas enquanto projecto educativo reveste particular relevância no que concerne à

formação das gerações mais novas e no que diz respeito aquele segmento da

população adulta com défice de educação básica.

1.3 As sete áreas temáticas seleccionadas

Tendo como referencial um conceito abrangente de educação, na elaboração desta

proposta identificamos as seguintes áreas temáticas específicas que mereceram a

reflexão por parte de grupos de trabalho ad hoc e foram objecto de debate em

seminários: a educação da infância; a educação básica e secundária; a educação das

crianças e jovens com necessidades especiais; o ensino superior e a investigação; a

educação da população adulta; a formação dos professores e dos educadores; a

organização, administração e financiamento do sistema educativo.

1.4 Os nossos pressupostos

Assumimos que a educação visa reconhecer e potencializar as capacidades de cada

pessoa, contribuindo para o seu desenvolvimento integral e realização pessoal e para a

dotar de ferramentas, a fim de, ao longo da vida, progredir no conhecimento e na

criatividade bem como na participação na actividade económica, na vida cultural e na

vida cívica da sociedade a que pertence.

A educação assim entendida tem de assentar num conjunto de valores,

consensualizados como fundamentais, tendo por matriz a Declaração Universal dos

Direitos Humanos e a Constituição da República.

Ao Estado compete proporcionar, a todos os cidadãos, igualdade de oportunidades de

acesso e sucesso no que diz respeito a uma educação básica, segundo os melhores

padrões de qualidade e garantir a eficiência do sistema educativo, incluindo o seu

aperfeiçoamento contínuo na base da investigação e da avaliação permanentes. Ao

6

Estado cabe, ainda, assegurar a investigação e o ensino de nível superior e criar

condições de igualdade de oportunidades de acesso e sucesso a todos que o desejarem.

A educação deve ser pensada tendo em conta, também, o seu contributo para um

projecto de desenvolvimento para toda a sociedade que contemple a coesão social, a

sustentabilidade ambiental e a prossecução da paz entre os povos. Neste sentido,

afigura-se-nos da maior importância que se estabeleçam os desejáveis relacionamentos

e troca de experiências com outros países e que se cuide devidamente da identidade

cultural do nosso próprio espaço nacional e europeu.

Se ao Estado cabe uma missão primordial e insubstituível na educação, não pode

subestimar-se o papel da família, da sociedade civil, das universidades e academias,

das igrejas e comunidades religiosas e da comunicação social, sem esquecer a

população adulta, em geral.

Entendemos, pois, que a educação é missão de toda a sociedade e que esta deve

aprender a valorizar e a cuidar da educação como seu património imaterial. Ao Estado

competirá, além da sua missão específica, o dever de colaborar com a sociedade civil

para que esta reconheça e exerça a sua participação nesta missão comum.

2. Os pilares de uma nova estratégia de educação

2.1 Um conceito abrangente da educação

Entendemos que a educação, nos seus vários níveis, comporta duas vertentes

nucleares:

- A criação e a transmissão de conhecimento, incluindo a aquisição de ferramentas

para a sua apropriação crítica ao longo da vida e a construção do próprio saber;

- A formação para o desenvolvimento humano integral de cada pessoa e para o

exercício de uma cidadania responsável.

É fundamental que um conceito abrangente de educação mereça o devido

entendimento por parte dos docentes, dos alunos, dos encarregados de educação e de

toda a comunidade envolvente. Esta preocupação é válida para todos os níveis e

modalidades de ensino e deve constituir tema de debate público frequente bem como

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deve ser objecto de consideração e aprofundamento nas diferentes instâncias

institucionais e de governação.

Não é demais sublinhar a relevância do conceito de educação na construção de um

projecto educativo. É que, sem um entendimento minimamente consciencializado e

consensualizado, a nível societal e político, acerca das finalidades últimas da

educação, qualquer projecto educativo estará condenado à intermitência da alternância

político-partidária e, no limite, estará votado ao fracasso.

Por outro lado, o conceito de educação deve ter presente o carácter dinâmico das

sociedades e integrar uma visão prospectiva das transformações que ocorrem, no País

e no Mundo. Mais do que nunca, esta preocupação é relevante, dada a aceleração e a

profundidade das mudanças em curso na economia, nas tecnologias de informação e

comunicação, nos modelos familiares, na organização do trabalho e das empresas, nas

organizações da vida colectiva, em geral. Por isso, a educação tem de ser encarada

também na sua função de promover capacitações pessoais e de cooperação que

facilitem uma adaptação positiva à mudança.

É, igualmente, fundamental que a educação integre uma visão inteligente do passado e

por essa via aprofunde o enraizamento das novas gerações nas tradições e valores

herdados, desde que criticamente assumidos, e que promova a devida identidade e

afiliação.

Por fim, cabe afirmar que a educação deve formar para o cuidado de si e dos outros,

concorrendo para a autonomia do sujeito e para a sua responsabilização por si mesmo,

pelos outros e pelo Planeta.

2.2. Reconhecimento do papel nuclear de professores, educadores,

auxiliares de acção educativa e outros técnicos de educação

Não é possível dissociar a qualidade de um sistema educativo do seu corpo de

profissionais, com destaque para os professores e educadores. Com efeito, são estes

que, no exercício quotidiano das suas actividades docentes e não docentes, dão corpo a

um dado projecto educativo e concorrem para o respectivo sucesso e desenvolvimento.

Por outro lado, é através do corpo docente e não docente de uma dada escola (ou

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agrupamento) que esta se torna visível e reconhecida no meio geográfico e social em

que está inserida e se apresenta como actor social de desenvolvimento local.

Ultrapassado o período de adaptação do sistema educativo às necessidades de pessoal

docente em número suficiente para fazer face à democratização do acesso ao ensino

que se seguiu a Abril de 1974 e em que se adoptaram processos expeditos de

recrutamento e qualificação, sobretudo no caso de professores do ensino básico,

presentemente o sistema dispõe de recursos docentes potenciais devidamente

qualificados para assegurar um ensino de qualidade. O mesmo não pode dizer-se no

que se refere ao pessoal técnico e auxiliar, em relação ao qual, nos últimos anos, se

vem praticando uma política restritiva e acrítica no que respeita ao seu recrutamento;

em muitos casos, tal põe em risco a qualidade do desempenho de certas valências

educativas, como sucede com as necessidades educativas especiais, ou o bom

funcionamento dos estabelecimentos, no que respeita a higiene, segurança e execução

de tarefas auxiliares.

Não basta, porém, que, no conjunto, o sistema de educação disponha de recursos

humanos qualificados suficientes. Importa, igualmente, que estes profissionais estejam

devidamente motivados e preparados para o bom desempenho das suas funções, o que,

presentemente, não acontece de modo satisfatório.

Este constitui um dos pontos fracos do sistema. Com efeito, quer os auxiliares de

acção educativa quer os docentes do ensino básico e secundário acusam um justo

descontentamento face às condições em que têm de exercer a sua profissão, sofrem de

stress devido a sobrecarga de horários e de tarefas e experimentam desmotivação

agravada por não verem boas perspectivas de estabilidade nos seus postos de trabalho

e de carreira em relação ao futuro.

Importa, também, reconhecer que, sobretudo na última década, professores e

educadores foram sujeitos a uma notória desqualificação social, por parte da opinião

pública, nomeadamente por efeito de sucessivas práticas da Administração e das

medidas de política educativa adoptadas pelos últimos governos. A este propósito,

merece relevo o que tem ocorrido nos concursos de admissão e regras de colocação de

pessoal docente, o congelamento da progressão nas carreiras, o desinvestimento em

formação, a imposição de cargas horárias excessivas, um sistema de avaliação sujeito

a arbitrariedades e permissivo à prepotência das direcções e a escassa ou nula

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participação de todos os actores na elaboração de projectos educativos e na gestão dos

agrupamentos, designadamente quando estes últimos se tornaram grandes máquinas de

gestão empresarial.

Por outro lado, presentemente, recai sobre os professores individualmente

considerados uma carga burocrática desmesurada que asfixia a necessária criatividade

e disponibilidade para a função docente propriamente dita e obriga a pesado fardo

sobre a sua vida pessoal e familiar.

Sujeitos como estão, a uma forte concorrência interna para manter os seus postos de

trabalho e conseguir condições de trabalho mais aceitáveis em matéria de horários e

outras, além de que se encontram distribuídos por espaços geográficos diversos e por

vezes muito distanciados dentro de um mesmo agrupamento, os professores e

educadores deparam com condições adversas para o devido fortalecimento de relações

humanas cooperativas e sentido de corpo face a objectivos comuns, como seria

desejável para um bom desempenho da missão educativa.

Há que inverter rapidamente esta situação, no entendimento de que só com recursos

humanos suficientes e devidamente qualificados, motivados e integrados em escolas e

agrupamentos de dimensão humana, se poderá atingir uma educação de qualidade e

um sucesso educativo satisfatório. Com este objectivo propomos:

- A valorização e dignificação da missão do professor junto de pais e educadores e

da opinião pública em geral, pelo que se torna urgente redefinir o estatuto do

professor;

- A definição e a aplicação de regras claras de acesso, avaliação e progressão na

carreira, através de uma revisão adequada da legislação em vigor;

- A criação de condições de estabilidade nos postos de trabalho de todo o pessoal

docente e não docente, repudiando a cultura do descartável e afirmando o valor da

ideia de uma comunidade de trabalho estável e corresponsável;

- A admissão de auxiliares de educação em número suficiente e com qualificação

apropriada e a definição de condições remuneratórias e progressão na carreira

satisfatórias;

- A criação de equipas multidisciplinares de intervenção em áreas como a saúde, o

serviço social, o apoio psicológico, a assistência jurídica, etc., que permita aos

professores e educadores centrarem o seu desempenho no ensino e na educação,

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não se dispersando por múltiplas tarefas burocráticas e inúmeras funções que

outros técnicos podem executar com melhor preparação;

- O investimento na formação permanente do pessoal docente e não-docente, a

cargo da entidade empregadora, estado ou particulares, e integrada nos respectivos

horários de trabalho, como componente intrínseca de um desempenho profissional

de qualidade;

- A atribuição de incentivos à investigação científica, designadamente no domínio

pedagógico.

2.3. Autonomia e gestão democrática das escolas

Qualquer proposta de estratégia de educação para o futuro não pode dissociar-se do

modelo de gestão dos estabelecimentos escolares, incluindo os seus recursos humanos,

físicos e financeiros e a sua saudável articulação com os níveis superiores de decisão

política.

A legislação em vigor sobre a organização do ensino público tem conduzido à

constituição de agrupamentos escolares que vieram secundarizar ou mesmo anular a

figura tradicional da escola enquanto estabelecimento de ensino e comunidade

educativa, desejavelmente dotada de autonomia relativamente à gestão corrente e à

construção de um projecto educativo próprio.

Praticamente, todo o sistema educativo público funciona, hoje, na base de

agrupamentos e mega agrupamentos de diferentes unidades orgânicas, desde a

educação de infância ao ensino secundário. Neste processo de concentração, as

anteriores escolas foram perdendo identidade e, inclusive, o nome por que eram

conhecidas.

Pela sua dimensão que, em muitos casos, atinge mais de 2500 alunos, acompanhada,

não raro, por dispersão entre diferentes espaços geográficos, os agrupamentos

tornaram-se estruturas administrativas complexas, de pendor burocrático,

relacionamento anónimo, distante e frio com a população discente e os seus

encarregados de educação e com o respectivo pessoal.

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Acresce que o processo que, presentemente, conduz à nomeação das direcções dos

agrupamentos enfraquece por completo o controlo democrático das mesmas. Vemos,

assim, pulular formas de gestão autoritária, porta aberta para decisões discricionárias

que não favorecem a criatividade e a responsabilidade de todos os potenciais actores,

designadamente do corpo docente. O actual modelo de gestão tão pouco favorece as

condições de confiança e sentido colaborativo entre todos os intervenientes no

processo educativo, condições indispensáveis à construção de um projecto educativo

participado e devidamente assumido por todas as pessoas que o devem concretizar.

Sem negar algumas das vantagens da criação de agrupamentos em determinadas

circunstâncias concretas, entendemos, todavia, que se impõe uma corajosa avaliação

de carácter independente acerca do que tem sido a experiência da sua criação

generalizada e do modelo de gestão que lhes está associado, defendendo, desde já,

que, para alcançar uma educação pública de qualidade, necessário se torna reforçar a

autonomia das escolas para que estas sejam realmente responsáveis, embora reguladas

e avaliadas. Consideramos que a constituição dos actuais agrupamentos merece ser,

urgentemente, corrigida, por forma a garantir uma gestão de proximidade e de cariz

humano e assegurar uma real democracia interna no seu funcionamento.

Por outro lado, cabe denunciar os inconvenientes de uma centralização excessiva que

conduz ao anonimato e ao reforço da burocracia e, em muitos casos, desenvolve

entropias, difíceis de identificar e corrigir, mas que se traduzem sempre em custos

ocultos que obstam à eficiência e à eficácia do sistema.

Por exemplo, não se compreende por que razão estão os agrupamentos e as escolas

sujeitos ao fornecimento de bens e serviços através de concursos públicos

centralizados, em detrimento do aproveitamento de recursos locais com vantagem para

a dinamização das respectivas economias. Em particular, o fornecimento das cantinas

escolares mereceria uma auditoria independente que avaliasse a qualidade das

refeições servidas, o seu custo e o seu impacto na saúde das nossas crianças.

Em geral, o controlo burocrático exercido através de plataformas informáticas, como

hoje existe, é um sorvedoiro de energias, nomeadamente no que se refere aos docentes,

situação esta que em nada contribui para promover uma educação pública de

qualidade.

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Por último, cabe mencionar que é urgente que sejam revistos os critérios que estão em

uso para a avaliação do desempenho da gestão dos agrupamentos, porquanto os

mesmos frequentemente induzem tomadas de decisão incorrectas quando apreciadas

numa perspectiva de qualidade da educação pública e sua adequação às necessidades

da sociedade e da sustentabilidade do sistema no futuro. Não é aceitável, por exemplo,

que, por razões de mera economia de custos, se suprimam certas disciplinas e cursos,

impondo restrições severas ao leque de opções dos alunos. Não é defensável que se

procure descartar professores mais experientes por razões de redução dos custos ou

meras contingências dos concursos. Analogamente, é reprovável que se multipliquem

os cursos vocacionais e que não se cuide devidamente da qualidade do ensino que

neles é ministrado.

Em suma, há que ultrapassar os critérios de avaliação vigentes que sobrevalorizam (e

absolutizam) preocupações gestionárias de cariz vincadamente competitivo que se

tornam determinantes na afectação de recursos, em favor de avaliações compreensivas

que atentem nas características específicas das populações abrangidas e demais

variáveis definidoras de um dado projecto educativo.

2.4 O Papel do Estado na Educação

A educação é um dos domínios sociais relativamente ao qual mais se discute a

intervenção do Estado, bem como a intensidade e as modalidades que aquela pode e

deve revestir. Em democracia, a discussão tem ainda mais razão de ser, já que há

direitos e deveres a salvaguardar em termos que só ao Estado cabe promover.

A Economia Pública constitui uma das ópticas à luz da qual é interessante abordar o

papel do Estado na Educação.

A noção primordial de bem/serviço público exige que se verifiquem simultaneamente

os princípios da não exclusão e da não rivalidade: não só nenhum indivíduo poderá ser

excluído do acesso e fruição da Educação, como também o acesso por parte de alguém

não pode impedir ou limitar a sua fruição por parte de outros.

Estes dois princípios têm fundamentado, nas sociedades democráticas, os pressupostos

da universalidade de acesso e da igualdade de oportunidades no acesso, progressão e

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resultados, relativamente aos serviços promovidos ou regulados pelo Estado Social,

designadamente a educação. Por tal razão, aqueles princípios vêm normalmente

expressos na Lei fundamental e assim sucede em Portugal, onde a Constituição da

República Portuguesa (CRP) os consagra, entre outros, nos Artigos 73º a 76º do Título

III.

A Economia atribui, ainda, aos bens e serviços públicos, entre outras potencialidades,

a de darem lugar a externalidades, positivas e negativas, das quais decorrem efeitos

não só para os seus beneficiários directos mas, tendencialmente, para toda a sociedade.

A principal externalidade positiva da educação como serviço público reside no seu

contributo para o desenvolvimento económico e social. Como externalidade negativa,

aponta-se, entre outras, um efeito de congestionamento que urge prevenir e regular.

É, precisamente, através da forma como se tem pretendido regular o acesso à educação

– seja pelo estabelecimento de um preço, como a propina, ou pela fixação de limites

quantitativos à entrada, numerus clausus – que a educação se desvia progressivamente

da sua natureza de bem público, passando a admitir a exclusão e restringindo o acesso

a quem detém os recursos necessários. Se assim for, a educação não promove, de

facto, a igualdade de oportunidades nem o direito universal de acesso, antes se

comportando de forma mais próxima de um serviço semi-privado, por conseguinte, ao

contrário do que a Constituição prevê.

Por outro lado, a adopção do preço como regulador da procura tem vindo a

proporcionar oportunidades cada vez maiores para o desenvolvimento dos chamados

mercados educativos e para a acentuação de uma concorrência perversa, mesmo entre

escolas públicas.

Inscreve-se nesta tendência um afastamento progressivo do Estado face aos deveres

que lhe são cometidos – também constitucionalmente – como provedor e regulador da

educação. A leitura dos Artigos 74º ponto 2., 75º e 76º da CRP é elucidativa a este

respeito. Pode dizer-se que esta deriva de desresponsabilização, a que se assiste em

Portugal, acompanha a evolução internacional, especialmente marcante no ensino

superior desde a assinatura da Carta de Bolonha, com o encurtamento dos primeiros

ciclos universitários. Num contexto de grande desvalorização das licenciaturas pelos

mercados de trabalho, obrigam-se as famílias e os estudantes a financiar, a preços por

vezes exorbitantes, os 2ºs e 3ºs ciclos e outras formações complementares.

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De uma forma geral, com as políticas de austeridade apostas à crise não só se tem

vindo a assistir a uma diminuição acentuada do orçamento do Estado dedicado à

educação, como também as famílias se têm visto cada vez mais privadas de recursos

suficientes para compensarem a progressiva retirada do Estado da provisão deste

serviço semi-público. Entre nós, tal tem vindo a traduzir-se num abandono crescente

do ensino superior.

Ao contrário do que vem sucedendo em outras sociedades europeias, onde o

investimento público em educação é igualmente baixo, em Portugal o apoio do Estado

através da acção social tem vindo a regredir significativamente.

Mais abrangente e capaz de análise crítica do que a perspectiva da Economia Pública

é, no entanto, a abordagem do cientista social, ao mesmo tempo cidadão crítico e

agente de intervenção.

Tendo presente que um dos desígnios fundamentais da educação consiste no

desenvolvimento máximo das capacidades individuais e na formação de cidadãos

conscientes e participativos, esta perspectiva mais ampla tem proporcionado o debate

cientificamente fundamentado entre diferentes escolas e linhas de abordagem. Assim

sucede, designadamente, com a crítica às concepções ditas instrumentais ou

funcionalistas da educação, em virtude da quase exclusividade que atribuem ao

objectivo da formação para a empregabilidade.

As críticas do funcionalismo comprometem, antes de mais, o Estado com a

prossecução efectiva dos objectivos da educação inclusiva, da equidade e igualdade de

oportunidades, do desenvolvimento integral da cidadania, em suma, com a

“democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em

quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do país.”

(Artigo 76º CRP).

Em nosso entender, não pode o Estado desobrigar-se de agir de acordo com uma visão

global, ou holística, das necessidades e desígnios da sociedade. Só uma tal visão,

desejavelmente concebida e consensualizada através de um processo de diálogo e de

participação social, conseguirá dar coesão e sustentabilidade às políticas públicas,

evitando que surjam avulsas, descontinuadas, frequentemente mal fundamentadas e

impostas ao arrepio das opiniões expressas pela população e pelos agentes que terão

de as implementar.

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Aceite, e até valorizada, a complementaridade necessária entre sub-sistemas públicos e

privados de educação, o certo é que não poderá, ou não deverá, o Estado delegar em

terceiros - designadamente nos mercados – a regulação global dos processos

educativos. Assim o exigem, entre outros desígnios: a inclusão no sistema de ensino

dos alunos com mais dificuldades; o combate ao abandono; o controlo de qualidade de

processos, como os de formação de professores; a concepção, consensualização e

adopção de uma tão necessária política de recursos humanos em educação; a

promoção de articulações consistentes entre as práticas educativas locais e o modelo

de educação de suporte ao desenvolvimento económico e social.

Também não poderão esperar-se grandes contributos para o desenvolvimento

sustentado de competências e sua endogeneização pelo tecido económico e social se as

políticas públicas não se inscreverem num quadro global e consistente de regulação

que só o Estado pode definir e fazer cumprir. As políticas educativas devem ser

concebidas tendo em conta uma adequada articulação com as políticas de inovação e

de ciência e tecnologia, por exemplo. Se assim não for, o desfecho não poderá ser

senão o desemprego e a emigração dos diplomados, ao mesmo tempo que, nas

organizações produtivas, se mantém o bloqueio à inovação social e organizacional e,

por consequência, o emprego desqualificado e a baixa produtividade.

Do mesmo modo, também só ao Estado pode competir a implementação e regulação

de uma indispensável estratégia nacional de desenvolvimento do conhecimento,

designadamente a criação das infraestruturas necessárias à produção e difusão do

conhecimento, bem como providenciar os adequados recursos financeiros, materiais e

humanos para a sua concretização.

Instrumento fundamental dos processos de provisão e regulação da educação que

obrigam o Estado é o financiamento do sistema educativo, o qual constitui condição

necessária, embora não suficiente, não só para a garantia da igualdade de

oportunidades de acesso e resultados e a promoção da inclusão, como também para a

disponibilização efectiva a toda a sociedade das externalidades positivas da educação.

É preocupante que, nos últimos anos, se tenha assistido em Portugal a um

desinvestimento acentuado no financiamento público na educação, pondo em risco os

objectivos fundamentais de recuperação de um atraso educativo ainda muito

pronunciado.

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A reflexão anterior serve de enquadramento ao enunciado de alguns dos principais

pontos críticos que marcam o dia-a-dia dos processos educativos no nosso País e que

importa corrigir, entre os quais assinalamos os seguintes:

- A oposição entre uma política de ensino tendencialmente gratuito e as

disposições cada vez mais restritivas, como as que visam promover a

implementação do cheque-ensino, sob o argumento do favorecimento da liberdade

de escolha, totalmente indisponível, de facto, para a grande maioria das famílias

portuguesas;

- A concorrência artificial entre ensino público e privado, favorecida por políticas

públicas frequentemente desequilibradas em benefício deste último, com o

argumento de uma pretensa superioridade qualitativa da escola privada;

- A indefinição administrativa do sistema de ensino que, decorrendo de uma

matriz fortemente centralizada e concentrada, pretende agora enveredar por uma

delegação de competências, a nível municipal, de excessiva abrangência e em

domínios que ainda não ganharam suficiente consistência a nível central;

- A inexistência de uma verdadeira política de recursos humanos em educação, a

qual deveria articular coerentemente os conteúdos, as pedagogias e a qualidade da

formação de professores, os processos de recrutamento e admissão ao exercício da

profissão, os critérios de valorização e qualificação das condições de exercício, a

avaliação regular, a progressão na carreira;

- As dificuldades acrescidas em matéria de organização do sistema, incapaz de

promover, na maioria dos casos, o desenvolvimento de verdadeiras comunidades

educativas, já que a forma de abertura e interacção com o meio social envolvente

e, especialmente, com as famílias, hesita entre as dificuldades do diálogo e a

diluição de responsabilidades;

- A inovação desastrosa, também em termos organizacionais e de gestão, dos

agrupamentos e, especialmente, dos mega agrupamentos que a nenhum dos

grupos de interessados parece agradar;

- A insensibilidade social com que estão a ser enquadrados pelas políticas públicas

sectores particularmente críticos do sistema educativo, como os que respeitam às

crianças e adolescentes com necessidades educativas especiais. Carecendo de

atenção particular, a ser suportada por uma política consistente de intervenção de

qualidade, atempada, interdisciplinar, apta a dinamizar a conciliação de forças,

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saberes e empenhamento de diversos tipos de intervenientes sociais, a educação

para este tipo de públicos tem vindo a deparar-se precisamente com o contrário,

nomeadamente atrasos consideráveis nos concursos e colocação de professores e

educadores especializados, cortes e atrasos no financiamento público, redução do

número de técnicos especializados, entre outros problemas;

- A quase destruição dos resultados adquiridos no domínio da educação

permanente, especialmente no que tem a ver com a educação da população adulta,

domínio em que o Estado deveria assumir uma responsabilidade relevante. Com

efeito, os défices de escolarização da população adulta portuguesa são ainda muito

elevados em comparação com a grande maioria dos outros países da União

Europeia e, por conseguinte, o caminho a percorrer para que se realizem as metas

do Horizonte 2020 – que Portugal prontamente subscreveu – é por isso longo e

difícil. Mau grado as críticas, amplamente conhecidas, ao dispositivo pré-existente

de qualificação daquela população e, em particular, ao Programa Novas

Oportunidades, o certo é que os especialistas não deixam de lhe atribuir

contributos positivos. Ao descontinuar-se, pura e simplesmente, aquela política

educativa, sem cuidar de a apreciar criticamente e preservar o que – muito ou

pouco – de positivo ela encerrava, o Estado demitiu-se de promover este

instrumento fundamental de inclusão social com as consequências inevitáveis de

bloqueio e retrocesso em desenvolvimento social e económico;

- A crescente globalização dos processos de ensino e aprendizagem, sobretudo a

nível do Ensino Superior, hoje indispensável, mas cada vez mais associados a

procedimentos “normalizadores”, como os que decorrem de muitos dos processos

de acreditação internacional.

Tendo em conta os pontos críticos atrás enunciados, apresentamos as seguintes

propostas:

- Estabelecimento de critérios de equivalência e pontes de passagem entre

programas que dão lugar a formações afins. Tal não deveria implicar que aqueles

procedimentos de certificação e acreditação viessem a impor, como está a suceder,

uma homogeneização crescente dos programas de estudos, encaminhando-os para

uma uniformização artificial na qual os docentes e os investigadores

frequentemente se não revêem. Tal vem a acontecer por várias razões,

18

designadamente o desenvolvimento de um autêntico mercado de certificação e de

acreditação internacional, com dimensões e capitais assinaláveis;

- A promoção eficaz do livre acesso à educação, independentemente dos

rendimentos e orçamento do indivíduo ou família;

- A implementação efectiva de uma planificação e controlo rigorosos dos recursos

orçamentais, a serem alimentados regularmente e objecto de processos de

contabilidade abertos e transparentes; em vez do ataque que permanentemente é

desferido à escola pública através dos severos cortes orçamentais, instabilidade de

transferências e opacidade dos critérios de elegibilidade para financiamento;

- A regulação e controlo dos actuais mercados existentes em educação e a sua

progressiva substituição por um sistema de oferta pública dos meios de estudo e

recursos educativos, nomeadamente livros e outros materiais escolares;

- A disponibilização de instalações, recursos e equipamento escolar que permitam

providenciar condições mínimas de conforto, como a alimentação e o

aquecimento;

- A concepção e a implementação de uma gestão verdadeiramente democrática.

2.5 Responsabilidade das Autarquias. Papel da comunidade

Sendo a educação um bem público, cabe ao Estado garantir o seu usufruto, em

igualdade de condições de acesso e sucesso, a todos os cidadãos, em particular no que

se refere às crianças e jovens, e, entre estas, as que apresentam necessidades especiais.

Importa ainda realçar que as Autarquias têm que empenhar-se, na sua esfera de

competências próprias, em adequar a provisão deste bem público às necessidades

específicas dos munícipes e dos territórios.

Também as famílias, nomeadamente através das suas associações representativas e as

entidades locais devem ser chamadas a interessar-se pela educação e a tomar parte na

definição, implementação e avaliação dos projectos educativos das escolas e

agrupamentos implantados nos seus territórios. O mesmo é válido para a identificação

das necessidades e dos recursos no domínio da educação no que ao seu território e ao

seu desenvolvimento diz respeito.

19

Neste quadro de referência, não é demais sublinhar o papel de relevo que compete às

próprias escolas e aos seus agrupamentos, pois lhes cabe fazer a ponte entre o sistema

nacional de educação e respectivas regras e as especificidades de nível local definidas

pelas Autarquias com o apoio da comunidade, bem como gerir os recursos postos à

sua disposição e a sua implementação.

Com a recente publicação do Decreto-Lei 30/2015 de 12 de Fevereiro (Diário da

República, 1ª Série, nº 30), foram delegadas nos órgãos dos municípios e das entidades

intermunicipais competências básicas do Estado, nomeadamente no que respeita à

educação (artº 9º), como sejam: a gestão dos processos de matrículas, a definição de

cursos e currículos, a definição das componentes curriculares de base local, a gestão

da orientação escolar, a gestão da acção social escolar, os critérios de gestão corrente

dos estabelecimentos escolares bem como a elaboração de protocolos para a formação

em contexto de trabalho, a gestão orçamental e dos recursos financeiros e, inclusive, as

políticas de gestão e contratação do pessoal não docente e de outro pessoal técnico.

Trata-se, a nosso ver, de um perigoso retrocesso na prossecução de um objectivo de

educação de qualidade com igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, tendo

em atenção as desigualdades que se conhecem entre regiões e municípios e que se

repercutirão, necessariamente, na qualidade das respectivas ofertas educativas e na

disponibilidade dos apoios sociais. Acresce que a intenção e a legitimidade de tais

medidas são tanto mais ambíguas, discutíveis e estranhas, quanto é certo que não

foram acompanhadas por legislação adequada no âmbito da gestão das finanças

públicas ou da autonomia da escola nem no quadro de órgãos intermédios próprios, as

Regiões, constitucionalmente previstas, mas ainda não implementadas.

Portugal é um País de reduzida dimensão populacional e territorial em que as pessoas

têm elevado grau de mobilidade geográfica, por razões de emprego e outras, incluindo

a possibilidade de prosseguimento dos estudos para níveis superiores. Não é aceitável

que, no futuro, os cidadãos e as cidadãs sejam confrontados com diplomas académicos

de valor desigual pelo facto de os mesmos terem sido obtidos em zonas do País em

que as Autarquias não souberam ou não puderam proporcionar uma educação de

qualidade aos seus munícipes, segundo padrões médios nacionais.

Para além de não favorecer a igualdade de oportunidades, uma tal orientação vai

introduzir no sistema educativo um acréscimo de burocratização e, no limite, um

20

agravamento de custos intermédios e não assegura, como seria desejável, a

acumulação de conhecimento decorrente da avaliação contínua do sistema e da sua

comparação com experiências em outros países, pois que tal conhecimento ficará

disperso e sem recursos para adequado tratamento científico.

Relembramos que a experiência da municipalização foi ensaiada em outros países,

com resultados tão negativos que esses países já a abandonaram. A Suécia, por

exemplo, o país com o sistema educativo mais centralizado da Europa até à década de

1990, enveredou por um fortíssimo processo de municipalização mas cujos resultados

levaram a OCDE, em 2014, a afirmar que este país foi aquele que viu o maior declínio

dos resultados do PISA de entre todos os países participantes, o que justifica o actual

processo de “recentralização” da educação. A experiência sueca, bem como o processo

de descentralização da educação básica no Reino Unido, permitem concluir que os

melhores resultados académicos se encontram indissoluvelmente ligados ao

rendimento e à origem social dos estudantes, e que a municipalização não favorece

nem a igualdade de oportunidades nem a diminuição das desigualdades sociais.

Independentemente da natureza mais ou menos centralizadora do Estado, que não

encorajamos, não podemos esquecer que os nossos horizontes no domínio da educação

não se limitam ao nosso local de nascimento; pertencemos a um território mais vasto

pelo que, reconhecida a necessidade de uma educação que atenda ao local, é forçoso

que ela garanta um agir e um conhecimento de âmbito nacional (e até global). Cada

aluno, em cada lugar, deve conhecer, analisar, criticar a sua realidade nacional e as

interdependências com o exterior. À escola cabe, forçosamente, promover a coesão

nacional, desenvolver um sentido de pertença, contribuir para diminuir assimetrias,

assegurar o desenvolvimento harmonioso global.

E é nesta dupla função da escola pública, “local” e “nacional”, que reside o debate

acerca do papel das Autarquias na educação. Que lhes cabe um papel importante, é

indiscutível; mas que papel e qual a sua amplitude?

Uma excessiva centralização da educação acarreta, nomeadamente, a tomada de

decisões que não tenham em conta as especificidades locais nem as características da

população escolar; a impossibilidade de resolver problemas do quotidiano, no

momento; a imposição de procedimentos e normativos construídos do topo para a base

com evidente défice democrático; a normalização e uniformização de

21

comportamentos, currículos, práticas pedagógicas, avaliações; a produção de um

pensamento único, amorfo, obediente, passivo.

Por outro lado, uma excessiva descentralização poderá ser acompanhada de problemas

que impedem à escola pública o cumprimento da sua missão, nomeadamente devido à

dispersão e à fragmentação de objectivos de aprendizagem, de currículos e conteúdos,

de práticas de avaliação, de ofertas educativas, de instabilidade docente, de

pensamentos “pós-modernos” que tudo relativizam e tudo desculpam, como resultado

de decisões tomadas por uma multiplicidade de decisores, uns de dentro, outros de

fora da escola, mas nem todos com igual capacidade de discernimento e de poder de

decisão, sujeitos às pressões das mudanças ideológicas e partidárias locais.

Do exposto se depreende a necessidade de descentralizar a educação mas,

simultaneamente, a necessidade de acautelar o risco de reforço de desigualdades de

oportunidades das crianças e dos jovens e das injustiças sociais decorrentes das

particularidades geográficas, ambientais, económicas e culturais de municípios e de

autarcas a que a excessiva descentralização, poderá conduzir.

Em nosso entender, para chegar a uma solução satisfatória há que ponderar o seguinte:

- É certo afirmar-se que a responsabilidade de garantir a educação cabe, além dos

pais, ao Estado, às Autarquias, à sociedade civil, mas, acima de tudo, compete à

escola, aos funcionários, aos alunos e, principalmente, aos professores e

educadores, devendo, todavia, o Estado assumir o papel de regulador da educação

de molde a promover o reforço da igualdade, da equidade e da justiça social entre

as crianças e jovens e entre regiões;

- Há domínios onde, indiscutivelmente, o Estado deverá ter um papel prevalente: a

definição das grandes linhas orientadoras da educação para o País e do sistema

educativo que as concretiza; a organização da educação (períodos, anos, ciclos); a

definição e implementação de uma estrutura curricular nacional comum; a

elaboração dos programas nacionais dos conteúdos formativos correspondentes

aos vários níveis de ensino e a sua avaliação; a fixação dos critérios no que

respeita à formação de professores e educadores e demais técnicos de educação; a

organização dos concursos de professores e educadores; o estabelecimento das

regras comuns para o exercício da profissão docente; o financiamento do sistema;

22

- Existem outros domínios em que a responsabilidade das Autarquias é relevante,

como sejam: a definição das especificidades dos complementos curriculares

decorrentes das necessidades locais; a implementação das práticas escolares de

ligação da escola à comunidade; o apoio a projectos escola-comunidade e a

projectos inter-escolas, dentro e fora do seu território; a promoção do

conhecimento da cultura, do património, da história ou das actividades

económicas locais; o apoio às associações de pais; o assento nos órgãos

consultivos da escola;

- Em todas as circunstâncias, será indispensável que a sociedade civil, através de

sindicatos, associações de profissionais, associações de pais, associações culturais,

empresariais e outras, exerça o seu papel de apoio à escola para a construção e

desenvolvimento do respectivo projecto educativo, através da respectiva

participação em órgão próprio;

- Deve reconhecer-se que a escola não tem que ser um mero elo de uma cadeia de

transmissão de tudo o que se lhe impõe de fora. Deve reconhecer-se que a escola é

capaz (e disso já deu provas) de se gerir, de trabalhar para o bem público com

independência, de resolver os seus problemas, de promover justiça e equidade. A

escola deve, por conseguinte, poder auto regular-se, associar-se com quem

desejar, envolver-se com quem garantir a continuidade da sua missão, ensinar em

conformidade com os seus públicos, trabalhar com autonomia, sem pressões

centrais e/ou locais, no respeito pelas decisões tomadas democraticamente nos

seus órgãos de gestão, também eles eleitos democraticamente, prestando contas

(pedagógicas, curriculares, disciplinares, financeiras) à comunidade e sujeitando-

se a avaliação externa.

2.6. Consciencialização da opinião pública acerca da importância de

uma educação de qualidade com igualdade de oportunidades de acesso

e de sucesso

Em pouco mais de uma década, assistimos em Portugal a uma alteração significativa

da percepção da sociedade acerca do valor da educação.

Partindo de uma elevada valorização social da educação, expressa designadamente no

grande investimento, em motivação e financiamento, feito pelas famílias com os

23

estudos superiores dos seus filhos, assistimos, agora, a uma certa descrença e relativa

desmotivação. São várias as razões que para tal têm vindo a contribuir.

Por um lado, a ideia inicial muito positiva do valor da educação, especialmente em

termos individuais, traduzia uma expectativa e um comportamento naturais numa

sociedade em que a educação constituiu, durante gerações, um dos poucos veículos de

mobilidade social. Assim sucedia devido à grande escassez de qualificações médias e

superiores na população adulta, neste último caso traduzindo-se num desnível médio

de pelo menos uma geração quando Portugal se comparava com os restantes países

europeus. Por outro lado, a evolução tardia e mais lenta da nossa economia em

direcção aos sectores e actividades mais exigentes em qualificações ia abrindo

mercado para os mais qualificados, evitando estrangulamentos que, posteriormente, se

vieram a fazer sentir.

A transição para o novo milénio veio a coincidir com um aumento significativo do

investimento do Estado em educação, passando de 3,7% do PIB em 1990 para um

valor, infelizmente isolado, de 5,1% em 2002. Este aumento importante do esforço

público com a educação, que também se manifestou em domínios afins, como o da

investigação científica, veio a ter, então, grande expressão no ensino superior.

A este facto não terá sido estranha a influência do pensamento dominante em termos

económicos, veiculado por instâncias internacionais como a OCDE, segundo o qual

seria de incentivar ao máximo o investimento do país em educação e, sobretudo, em

ensino superior, dadas as elevadas taxas de rentabilidade correspondentes. Ou seja, do

ponto de vista macroeconómico, seriam expectáveis elevadas taxas de rentabilidade

social porque mais licenciados significariam salários relativos mais elevados e, em

consequência, uma maior possibilidade de arrecadação de receitas fiscais, a

probabilidade de se processarem menos subsídios de desemprego e, a longo prazo,

menor peso sobre as reformas e a Segurança Social, em geral. Na óptica dos

indivíduos e das famílias, era de admitir elevadas taxas de rentabilidade interna porque

a um licenciado corresponderia um salário melhor e maior estabilidade de emprego.

Contudo, sucessivas críticas foram sendo dirigidas àquela concepção dominante, desde

logo devido ao seu pendor fundamentalmente economicista e instrumental, que não

concebia a educação senão como um veículo para a empregabilidade. Mas também

devido a importantes incorrecções conceptuais, como as que escondiam que o suposto

24

sobre prémio salarial se devia essencialmente a uma desvalorização considerável dos

salários dos não licenciados ou que a realidade ia progressivamente desautorizando o

argumento da maior estabilidade de emprego dos mais qualificados.

Bastante antes da crise actual, já se começava a tornar evidente um progressivo

desfasamento entre a oferta nacional de qualificações e a capacidade de absorção das

mesmas pela estrutura produtiva; mas foi, sobretudo, a crise, com o seu tremendo

impacto no desemprego, mesmo entre as pessoas mais qualificadas, que veio mostrar

que, afinal, aquelas não estavam imunes à falta de empregos.

Em vez de se procurarem as causas mais profundas para o desfasamento entre a oferta

e a procura de recursos humanos qualificados, optou-se pela redução dos

investimentos públicos na educação.

Em paralelo, temos assistido a uma desmotivação crescente por parte da população

relativamente ao valor social da educação. Obrigadas a um esforço crescente de

financiamento, à medida que o Estado se foi demitindo de o fazer, as famílias

depararam com menores recursos para manter os filhos a estudar.

Para além da redução drástica em termos de financiamento, o Estado é culpado por

desvalorizar a educação no conjunto das políticas públicas, subestimando o seu

contributo para o desenvolvimento económico e social e a qualidade de vida dos

cidadãos e por permitir que a educação corra o risco de voltar a ser um privilégio dos

ricos.

Reafirmar a importância da valorização social da educação exige que a reinseramos no

seu domínio conceptual mais amplo que contemple o desenvolvimento integral das

pessoas, dotando-as de ferramentas para o exercício de uma cidadania participativa e

responsável.

É este o pensamento a que presentemente chegam organizações internacionais como a

própria OCDE, que, nos seus documentos de análise e de orientação política mais

recentes, tem vindo a destacar a importância dos efeitos não económicos e sociais, da

educação, mostrando como o aumento do nível de escolaridade no conjunto dos países

da Organização se encontra positivamente associado à percepção individual de

melhorias no estado de saúde e na capacidade de intervenção política efectiva, mas

também ao aumento da actividade de voluntariado e do nível de confiança social.

25

Não deixaremos também de acrescentar que, no caso português, as estatísticas

mostram que, mesmo durante a crise, o desemprego das pessoas academicamente mais

qualificadas se apresenta, em relação às menos qualificadas, comparativamente

inferior, com menor duração e com maiores oportunidades de acesso a novos

empregos

A concluir este tópico, dir-se-á que se tem por relevante o esforço a fazer entre a

população em geral, bem como relativamente aos actores políticos e à comunicação

social, no sentido de uma maior consciencialização do valor da educação como meio

de realização pessoal e de construção de uma sociedade democrática.

3. O desenho da proposta de um novo projecto educativo para as áreas

temáticas seleccionadas

Para cada uma das áreas temáticas seleccionadas, procuramos fazer um breve

diagnóstico de situação, identificar os problemas mais relevantes e apresentar

propostas de melhorias para o futuro.

3.1 A educação da infância1

Na abordagem que segue sobre a educação das crianças dos 0 aos 6 anos, temos

presente o reconhecimento da Convenção dos Direitos da Criança bem como as

orientações que decorrem da Ecologia Social.

1 Para esta reflexão sobre a educação da infância, a Comissão Executiva tomou por base o texto

Pensar a Educação de Infância e os seus contextos, elaborado por Catarina Tomás, Emília

Vilarinho, Luísa Fernandes Homem, Manuel Sarmento e Maria Assunção Folque

(coordenadora), bem como os pareceres das consultoras Maria Conceição Moita e Teresa

Vasconcelos e, ainda, o relato do seminário realizado sobre esta área temática. As ideias

expendidas são, todavia, da responsabilidade da Comissão Executiva.

26

3.1.1 Diagnóstico

A Constituição da República de 1976 reconheceu a obrigação do Estado assegurar o

direito à educação da infância e assim abriu caminho para a criação de um sistema

público de educação de infância, que, até então, não existia.

O sistema de educação de infância foi sendo construído com uma dupla valência: uma

rede de creches para as crianças dos 0 aos 3 anos tuteladas pelo Ministério do

Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social e jardins-de-infância destinados às

crianças dos 3 aos 6 anos, tutelados conjuntamente pelo Ministério do Trabalho, da

Solidariedade e da Segurança Social e pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC)

ou apenas pelo MEC e, hoje, integrados em agrupamentos escolares.

No que respeita à educação dos 0 aos 3 anos, existe uma controvérsia sobre se deve

prevalecer a vertente do cuidado e do acolhimento ou a vertente educativa. Os

argumentos a favor da primeira hipótese pretendem acautelar os riscos decorrentes de

uma escolarização precoce. A preferência pela segunda hipótese tem a ver com o facto

do direito à educação dever concretizar-se logo nos primeiros anos de vida e que um

sistema integrado de educação de infância está geralmente associado a uma maior

qualidade, nomeadamente em termos de profissionalismo e beneficia de políticas

coerentes de acesso, financiamento e currículo. Defendemos que se deve acautelar

uma abordagem que integre educação e cuidados com responsabilidade partilhada pelo

Ministério da Educação e pelo Ministério da Solidariedade Social.

De 1976 em diante, percorreram-se distintas etapas: criação, normalização e expansão

(1977/86); retracção (1986/95); revitalização /1995/97); segunda fase de expansão e

normalização (1999/2005); posteriormente, consolidação do discurso da qualidade e

debate sobre a conveniência de integração das creches numa política de infância.

No que se refere aos resultados alcançados, ao longo dos últimos 40 anos, podem

salientar-se os seguintes:

- Crescimento muito significativo da taxa bruta de frequência no que respeita aos

jardins-de-infância, se bem que ainda não se tenha concretizado a cobertura

integral do grupo etário correspondente;

- Aumento do número de creches e de outras modalidades de atendimento a

crianças dos 0 aos 3 anos, (amas credenciadas e creches familiares) e

correspondente aumento das crianças abrangidas;

27

- Reconhecimento do papel da educação pré- escolar na promoção do sucesso

educativo das crianças e da igualdade de oportunidades;

- Estabelecimento de condições para a liberalização e privatização e para a

emergência de um mercado para este nível educativo;

- Celebração de contratos e protocolos entre o Estado e outras entidades,

Autarquias, IPSS, fundações e cooperativas, de modo a alargar a oferta de creches

e jardins-de-infância e a favorecer a universalização do acesso aos serviços de

educação da infância, ainda que seja de assinalar algum retrocesso nos últimos

anos.

3.1.2 Identificação de problemas

Apesar dos compromissos assumidos em Portugal nestas matérias, tanto a nível

interno como internacional, muitos deles permanecem ainda por cumprir, não porque

os direitos das crianças se assumam como demasiado ambiciosos ou tecnicamente

difíceis de promover, mas apenas porque a agenda política relativa à infância não é

ainda, no início do século XXI, uma prioridade. Daqui resulta uma sociedade em

permanente tensão entre os discursos e as correspondentes práticas.

De entre os problemas do sistema, pesem embora os progressos alcançados, destacam-

se os seguintes:

- Evidência de sinais claros de redução e abandono da procura de jardins-de-

infância e de creches, nos últimos anos, em virtude do aprofundamento da crise

financeira, com consequente aumento das taxas de desemprego e diminuição dos

rendimentos das famílias;

- Rigidez e estandardização quer de horários e condições de frequência, quer do

tipo de organização dos grupos etários que são permitidos;

- Decréscimo da qualidade do serviço prestado provocada pelo aumento do

número de crianças por educador, recentemente estabelecido;

- Deficiente qualificação das amas, agravada pela recente autorização de contratos

de prestação de serviços e respectiva remuneração entre as famílias e as amas;

- Falta de adequada explicitação do que constitui a componente lectiva e a

componente não lectiva do trabalho do educador de infância;

28

- Insuficiente orientação das instituições de educação de infância e dos seus

profissionais para apoiar também as famílias em contexto social e económico

fragilizado;

- Emergência de novas desigualdades no acesso à educação de infância, apesar da

expansão da oferta, pela ausência de mecanismos eficazes de regulação e

monitorização do cumprimento dos protocolos;

- Envelhecimento do conjunto dos educadores de infância e aumento da idade da

reforma, o que não está adequado às exigências e características da profissão;

- Falta de condições dos educadores de infância para assumirem a sua voz e terem

vez dentro do tecido escolar, designadamente nos agrupamentos, marcados por

culturas pedagógicas muito diferenciadas;

- Fragilidades múltiplas na formação de base dos educadores, sendo de destacar:

uma formação marcadamente disciplinar, contrariando o carácter holístico da

aprendizagem; um relativo afastamento entre a formação académica e os

contextos da prática educativa; uma manifesta insuficiência da formação

educacional geral;

- Escassez da investigação em educação de infância, por falta de financiamento, o

que contribui para a diminuição da visibilidade, credibilidade, identidade e

qualidade desta área de conhecimento;

- Inexistência de um organismo de coordenação de uma política de infância,

tutelada ao mais alto nível da governação, o que dificulta a integração das

políticas económicas, sociais e educativas e a promoção de medidas para o bem-

estar de crianças e famílias.

3.1.3 Propostas

Identificados que foram os problemas e tendo especialmente em conta os

desenvolvimentos teóricos recentes, sugerem-se as seguintes medidas:

- A adopção de uma estratégia e política de investimento público para a educação

da infância que se traduza numa política concreta de contraciclo, sabido que este

grupo social é particularmente vulnerável aos efeitos da actual crise e apresenta

indicadores de agravamento da pobreza muito elevados. Com esta preocupação

29

importa que não se quebre o esforço já feito por Portugal para atingir a meta da

UE para 2020 (pré-escolarização de 95% das crianças entre os 4 anos e a idade de

início do 1º ciclo do ensino básico);

- A integração e compaginação das políticas de educação de infância no quadro

das políticas sociais, económicas e culturais, designadamente nas vertentes que

interferem com as famílias e a qualidade de vida. Em particular, entende-se que a

educação da infância deve constituir-se como elo de ligação e articulação entre

organismos, movimentos e estruturas existentes na sociedade portuguesa,

nomeadamente os Conselhos Locais de Acção Social, os Centros de Apoio

Familiar e Aconselhamento Parental, os Conselhos Municipais de Educação, as

Equipas de Intervenção Precoce e as Comissões de Protecção de Crianças e

Jovens;

- O reforço da investigação na área da educação de infância, incluindo o

conhecimento das experiências feitas nas instituições (creches, amas, jardins de

infância) e promovendo uma rede de projectos com vista a um diagnóstico

aprofundado da realidade das condições de vida das crianças portuguesas em todo

o território;

- A avaliação e o correspondente aperfeiçoamento da legislação, de modo a

garantir a gratuidade, a participação familiar, a qualidade dos serviços prestados, a

correcção das assimetrias existentes;

- O aumento da oferta, nomeadamente para as crianças dos 0 aos 3 anos, a

diversidade e a flexibilidade das respostas, garantindo, em simultâneo, a qualidade

do serviço prestado, nomeadamente no que concerne à formação dos profissionais

e à gestão do tempo de permanência da criança na instituição;

- O reforço da educação de infância como espaço de construção da cidadania, pela

participação das crianças, das famílias e dos profissionais na comunidade;

- A criação de serviços de apoio a prestar às famílias, sobretudo nos primeiros

tempos de parentalidade;

- A reorientação da formação dos educadores de infância, inicial e contínua, de

modo a fortalecer a componente de Formação Educacional Geral, promovendo o

melhor conhecimento e a acção dos profissionais da educação sobre os direitos

humanos e da criança, a formação para o trabalho de parcerias com os adultos,

nomeadamente famílias, amas, auxiliares da acção educativa e outros profissionais

de educação, de saúde e de acção social. Por seu lado, a formação na componente

30

das Didáticas Específicas necessita de responder à monodocência, incorporando a

natureza holística e transdisciplinar das aprendizagens nestas idades, resistindo,

assim, a uma excessiva disciplinarização da Pedagogia da Infância;

- A implementação de sistemas de formação profissional (inicial e contínua) para

amas e auxiliares da acção educativa, como requisitos mínimos para o exercício

da profissão e como sistema de apoio/regulação da qualidade da mesma;

- A promoção de dinâmicas de supervisão e investigação-ação no seio das

equipas, que não se limitem apenas à avaliação do desempenho docente mas

integrem uma componente formativa e colaborativa.

A finalizar:

Expressamos o desejo de que se recuse, radicalmente, a escolarização formal e

redutora da educação de infância, garantindo a sua especificidade e os pressupostos

que a sustentam e se ultrapassem os movimentos recentes de restrição de enfoques

face a determinadas temáticas e/ou metodologias, tais como, o direito ao contacto com

a natureza e com a realidade cultural e social envolvente, a educação para a

sustentabilidade e a educação para o risco, a educação para os direitos, a educação

tecnológica, a educação para a saúde e a educação para os valores.

Afirmamos, ainda, o desejo de que, a nível da consciência colectiva e da opinião

pública, se consubstancie uma clara afirmação da voz e da vez das crianças na

sociedade e nos media, capaz de sensibilizar as famílias e as comunidades, bem como

os responsáveis políticos, para os problemas associados à infância, reconhecendo,

como se impõe, que os mesmos afectam não só o presente das crianças mas também o

de todos os cidadãos assim como o futuro de toda a sociedade.

31

3.2 A educação básica e secundária2

O texto que segue incide, essencialmente, sobre a problemática da escolaridade

obrigatória que, actualmente, abrange o primeiro e o segundo ciclo do ensino básico e

o ensino secundário. Optamos, todavia, por um título mais abrangente - a educação

básica e secundária - pois é nossa convicção que é nesta perspectiva mais ampla que

há-de situar-se a escolaridade obrigatória.

3.2.1. Diagnóstico

Em quase 60 anos, passámos de uma escolaridade obrigatória de três anos para as

raparigas e de quatro anos para os rapazes para uma escolaridade obrigatória de doze

anos para todos, dos 6 aos 18 anos, abrangendo os diversos níveis, desde o ensino

básico ao secundário, regular e artístico, e ao ensino profissional e vocacional.

Podemos dizer que este alargamento foi determinado por imperativos de aproximação

do País à Europa, conjugados com a exigência de dinamização do desenvolvimento

económico, mas também impulsionado por uma maior consciência colectiva do direito

à educação, enquanto bem político, social e cultural.

O processo dinamizado por impulsos legislativos tomados ao longo dos anos foi

complementado por medidas de política que foram procurando, sucessivamente,

responder às exigências da universalidade e aos impactos de uma escolarização que se

abriu a todos, ensaiando formas diversificadas. Nem sempre, porém, estas foram

articuladas nem, tão pouco, asseguraram uma sequência harmoniosa entre os distintos

ciclos, de modo a garantir o princípio fundamental do direito à educação para todos.

Apesar do desfasamento entre os ritmos previstos na legislação e a efectiva

universalização nos correspondentes níveis de escolaridade, podemos registar uma

2 Para esta reflexão, a Comissão Executiva tomou por base o texto Escolaridade Obrigatória,

elaborado por Ilídia Cabral, José Maria Azevedo (coordenador), José Matias Alves e Paulo

Melo, bem como os pareceres dos consultores Eduardo Marçal Grilo, Maria do Céu Tostão e

Maria Emília Brederode Santos e, ainda, o relato do seminário realizado sobre esta área

temática. As ideias expendidas são, todavia, da responsabilidade da Comissão Executiva.

32

redução desse desfasamento nos sucessivos processos de alargamento da escolaridade

obrigatória.

Até à eclosão da crise financeira, verificava-se uma célere aproximação aos níveis

médios europeus no que respeita à escolarização das faixas etárias mais jovens, mercê

do investimento feito e de uma assinalável expansão da rede escolar, que

proporcionaram uma progressiva universalização da educação básica e a generalização

da frequência de formações de nível secundário, acompanhadas por uma redução das

disparidades territoriais.

Regista-se também que as diferenças de género nos índices de escolaridade têm vindo

a diminuir, sendo que, actualmente, as raparigas frequentam durante mais tempo a

escola e obtêm melhores resultados do que os rapazes, em particular no que respeita ao

conhecimento da língua materna.

Lembra-se, ainda, que, face à redução da natalidade, se vem verificando uma

progressiva quebra de matrículas nos sucessivos ciclos escolares e que o efeito

conjugado deste facto com os investimentos já realizados e os níveis de escolarização

alcançados permite estimar que o alargamento da escolaridade obrigatória para 12

anos não irá obrigar a uma expansão da rede escolar, sem prejuízo, no entanto, da

necessidade de requalificação de muitos equipamentos degradados ou do aumento

global do número de professores com vista à prossecução de melhorias de qualidade.

Neste processo evolutivo, há que destacar que a generalização da frequência escolar

tem sido acompanhada por problemas graves de insucesso e de retenção, pelo que as

dificuldades principais que hoje é preciso enfrentar dizem respeito ao sucesso

educativo bem como à adequação dos percursos escolares às expectativas dos jovens e

às necessidades da sociedade.

Não se ignora que, a partir dos anos 80, se assistiu a uma sucessão de medidas visando

a redução do insucesso e do abandono escolares, como sucedeu com vários programas:

o Programa Interministerial de Promoção do Sucesso Educativo (PIPSE), lançado em

finais de 1987; o Programa Educação para Todos (PEPT), iniciado em 1991, dando

sequência lógica ao PIPSE; o Programa para os Territórios Educativos de Intervenção

Prioritária (TEIP), iniciado em 1996; ou o Programa Mais Sucesso Escolar, iniciado

em 2008. Todas estas iniciativas enfermam, porém, de descontinuidades perniciosas e

33

pouco têm aproveitado dos resultados de avaliação rigorosa e independente quando

esta se realiza.

A universalização da escolaridade obrigatória representa para a escola um desafio de

integração de situações cada vez mais diversificadas: crianças oriundas de contextos

socio-económicos heterogéneos, com enormes assimetrias e desigualdades, com

pertenças culturais distintas, integradas em situações familiares múltiplas, em muitos

casos com contextos de trabalho adversos.

Não menos relevantes são outras condicionantes de contexto entre as quais cabe

mencionar: a falta de motivação dos alunos para o prosseguimento de estudos,

associada ao aumento da indisciplina e do absentismo; o insuficiente apoio social

escolar dos alunos e das famílias com carências económicas e a ausência de modelos

multissectoriais e multidisciplinares de intervenção prolongada; a insuficiente

capacidade de oferta das escolas para criar oportunidades educativas de qualidade para

todos; os exíguos recursos em matéria de orientação escolar e vocacional e de apoio

especializado a alunos com necessidades educativas especiais; uma relativa

impreparação de parte do corpo docente quanto ao uso das novas tecnologias.

A evolução do ensino profissional, designadamente pela criação dos chamados cursos

vocacionais, foi marcada por uma forte redução da formação geral e científica e por

um aumento do tempo de formação em contexto empresarial (sem que haja sempre

vontade e capacidade de resposta por parte das empresas) e apresenta-se como uma

saída educativa fragilizada e com vias formativas estratificadas e hierarquizadas de

diferente valor escolar e social.

3.2.2. Identificação de problemas

A universalização da escolaridade obrigatória não foi acompanhada pelas necessárias

alterações de fundo a nível do modelo escolar. Com efeito, este persistiu nos processos

pedagógicos e organizacionais uniformes, incapazes de responderem à diversidade, o

que está na origem de graves problemas de insucesso educativo e de abandono escolar

precoce. Por outras palavras, a democratização do acesso não foi acompanhada pela

democratização do sucesso e da qualidade da educação.

34

A este propósito, cabe destacar os seguintes problemas a enfrentar em domínios

fundamentais: retenção e abandono; desenho curricular; necessidades educativas

especiais; avaliação; gestão.

A- Retenção e abandono

- Taxas de retenção muito elevadas nos percursos escolares;

- Saída precoce da escola com valores muito distantes dos 10%, meta

europeia para 2020.

B- Desenho curricular

- Transição abrupta do regime de monodocência assessorada do 1º ciclo

para o regime predominantemente monodisciplinar do 2º ciclo.

- Elevado número de disciplinas no 3º ciclo (11) e necessidade de revisão do

processo de transição do 3º ciclo do ensino básico para o ensino secundário;

- Opções curriculares determinadas por critérios que estreitam as

possibilidades das opções educativas, demasiado centrados na

aquisição/reprodução de conteúdos das diferentes áreas científicas, numa

compartimentação disciplinar que descura a dimensão da relação com o

outro, da reciprocidade, da justiça social, do bem comum, do raciocínio

ético e, ainda, das questões ambientais;

- Não organização do 2º ciclo em áreas interdisciplinares, como previsto na

LBSE;

- Desvalorização do Ensino Profissional e Vocacional, indefinição da idade

e demais características de transição para esta via educativa, insuficiente

mobilidade entre as vias de ensino.

C - Necessidades educativas especiais

- Insuficiência de respostas na integração das crianças com necessidades

educativas especiais;

- Fragilidade nos processos de integração das minorias culturais, étnicas,

religiosas e outras, bem como nos programas de promoção da

interculturalidade;

- Incipiente articulação das escolas com equipas multidisciplinares que

proporcionem formação e/ou acompanhamento integral das crianças;

35

- Débil relacionamento com as famílias, insuficiente definição e articulação

de modelos de intervenção, desatenção à diversidade de situações familiares

e laborais.

D- Avaliação

- Excessiva valorização da avaliação externa das aprendizagens (exames

nacionais) com o consequente efeito de empobrecimento e estreitamento do

currículo, desvalorização das aprendizagens continuadas e reforço da

selecção social, situação especialmente gravosa no ensino básico;

- Sobrevalorização do peso do Português e da Matemática, com redução de

tempos lectivos para outras disciplinas igualmente formativas;

- Desvalorização da integração dos saberes em experiências significativas

para os alunos;

- Desvalorização do Estudo do Meio e das artes e expressões no currículo

real;

- Avaliação externa no ensino secundário determinada pelo acesso ao curso

superior desejado e a desvalorização de outras formas de avaliação.

E – Gestão

- Agrupamentos e mega agrupamentos que, pela sua dimensão,

heterogeneidade social e desenho geográfico, reforçam a burocracia, o

anonimato e obstam a uma participação responsável por parte de toda a

comunidade educativa;

- Riscos inerentes a uma gestão que propicia autoritarismo, nepotismo e

permeabilidade a interesses partidários e outros.

3.2.3. Propostas

A educação é um direito fundamental. Desde que articulada e integrada com outras

intervenções sectoriais, constitui um factor importante na prevenção da reprodução da

pobreza e da exclusão social e na promoção de uma maior igualdade de oportunidades,

determinante na realização de cada pessoa.

36

O desenho e a implementação da obrigatoriedade escolar coloca o insuperável debate

sobre o sistema de valores que lhe está subjacente, para que se possa avaliar e

determinar o que há a preservar ou a mudar. Implica a necessidade de repensar e

debater as finalidades da educação e as funções da escola à luz das mudanças

tecnológicas e sociais. Exige a ponderação de um modelo que coloque, no centro do

seu pensamento e da sua acção, a criança e o jovem, o seu desenvolvimento pleno,

tendo em vista a aquisição de competências de relação, de saber aprender ao longo da

sua vida, de saber fazer, de saber compreender o mundo em que vive, de saber julgar

critica e eticamente, de saber enfrentar o desconhecido, de saber ser autónomo, livre,

responsável e exercer plenamente a sua cidadania.

A obrigatoriedade escolar remete-nos para a questão do lugar social da escola, entre a

reprodução das desigualdades e a promoção da mobilidade social. Não há neutralidade

nas opções em matéria de rede escolar e de carta escolar, de organização pedagógica

do trabalho escolar, de orientação para o sucesso de todos ou da acção social escolar.

Para a definição de uma estratégia e política educativa, há que ter em conta os

seguintes pressupostos:

- Visão sistémica que integre a organização e a pedagogia, as culturas

organizacionais e as profissionais, com vista a gerar e sustentar novos modos de

acção pedagógica;

- Visão política que reconheça às escolas a capacidade de se auto-organizarem e

que, consequentemente, lhes atribua autonomia na resposta adequada aos alunos e

aos demais problemas;

- Novos modelos de organização escolar, tendo em conta a missão específica da

escola, os contextos familiar, social e cultural, a sua inserção numa rede local de

serviços;

- Formação de lideranças fortes e esclarecidas focadas na visão e nos objectivos

da escola, nas estruturas e nos processos académicos e nas pessoas, atentas às

aprendizagens, capazes de gerar dinâmicas de empenhamento e compromisso;

- Gestão democrática empenhada numa permanente avaliação.

Tendo em conta o diagnóstico da situação, os problemas detectados e os pressupostos

atrás explicitados, consideram-se de particular relevância e oportunidade as seguintes

orientações:

37

- Reforço de competências de todos os intervenientes no processo educativo,

tendo em vista a autonomia escolar e o desenho do Projecto Educativo, em

consonância com os objectivos nacionais;

- Alteração do modelo escolar tradicional;

- Introdução de uma gestão inteligente do currículo, que faça uma mediação mais

atenta ao estádio de desenvolvimento dos alunos, uma gestão mais diferenciada

dos tempos e modos de fazer aprender, uma avaliação formadora mais eficaz, um

desenvolvimento curricular mais colaborativo ao nível dos departamentos

curriculares (nomeadamente na construção de bancos de recursos didáticos) e ao

nível dos conselhos de turma (ou conselhos de aprendizagem de determinados

agrupamentos de alunos);

- Reforço da componente da orientação escolar e vocacional ao longo de toda a

escolaridade obrigatória, tendo em vista a valorização do aluno no processo

educativo;

- Valorização do ensino técnico, artístico, tecnológico, experimental e prático no

ensino regular;

- Criação de dispositivos que promovam uma cultura do trabalho, da cooperação,

da investigação-ação, da resolução de problemas, da criatividade, em todos os

níveis e percursos do sistema educativo e formativo;

- Valorização do ensino profissional e vocacional (EPV) no campo escolar,

através da criação de condições para que a procura social do EPV se active

segundo uma lógica positiva e em idade apropriada;

- Adequada territorialização das ofertas educativas do EPV;

- Promoção da alternância entre a escola, centros de formação e empresas,

gerando dinâmicas de interconhecimento, de reconhecimento, de diálogo e de

compreensão mútua;

- Incentivo à realização de programas de formação intensiva e generalizada de

professores, formadores e técnicos que intervêm no EPV, dotando-os de

capacidade e competências pedagógicas adequadas;

- Adopção de um modelo de experiência-piloto de avaliação-correcção para

eventual generalização na introdução de programas de EPV.

Por último, e em síntese, salienta-se que a reforma da educação obrigatória deve

assentar numa avaliação rigorosa da situação diagnosticada e contar com uma

38

participação qualificada do corpo docente e dos órgãos de gestão das escolas e

agrupamentos.

Em particular, têm de ser avaliadas e repensadas as seguintes matérias: a estrutura de

ciclos no ensino básico, a redução do peso excessivo dos exames e das provas

nacionais, os agrupamentos de escolas com uma dimensão e uma abrangência

manifestamente inadequadas ao exercício da missão educativa e social das instituições

escolares, a natureza terminal dos cursos científico-humanísticos do ensino secundário

em torno de um conjunto de competências socialmente consensualizado, libertando-os

deste modo da excessiva dependência em relação ao acesso a formações de nível

superior

3.3 A educação das crianças e jovens com necessidades especiais3

Portugal subscreveu a Declaração de Salamanca (1994) em que se consagra o conceito

de “Escola para Todos “ e se afirma que as escolas devem ajustar-se a todas as

crianças, independentemente das suas condições físicas, sensoriais, linguísticas ou

outras. Neste conceito, terão de incluir-se crianças com necessidades educativas

especiais ou sobredotadas, crianças da rua ou crianças que trabalham, crianças de

populações remotas ou nómadas, crianças de minorias linguísticas, étnicas ou

culturais e crianças de áreas ou grupos desfavorecidos ou marginais.

Reconhecemos que, não obstante existir uma percentagem significativa dos alunos

com necessidades educativas especiais (NEE), estes não estão a receber, informal ou

formalmente, uma educação apropriada às suas características e necessidades.

3 Para esta reflexão, a Comissão Executiva tomou por base o texto A Educação de Crianças e

Adolescentes com Necessidades Educativas, elaborado por Ana Maria Serrano, Ana Pereira do

Vale, José Boavida Fernandes, Luís Miranda Correia (coordenador), Maria de Deus Saiote e

Rosa Maria Soares, bem como o parecer do consultor Vítor da Fonseca e, ainda, o relato do

seminário realizado sobre esta área temática. As ideias expendidas são, todavia, da

responsabilidade da Comissão Executiva.

39

3.3.1. Diagnóstico

No que respeita às crianças e jovens com necessidades especiais, podemos dizer que se

desconhece a situação em toda a sua extensão e complexidade e se desvaloriza a

necessidade de a estudar. A sociedade é insensível a esta problemática e está refém da

ignorância e dos preconceitos.

A situação em que se encontra a educação especial no País é muito insatisfatória, com

severas consequências para os alunos com NEE e para as suas famílias.

Uma estimativa com base nas prevalências internacionais leva a presumir que, em

Portugal, cerca de 147 mil crianças e adolescentes têm NEE. Contudo, e de acordo

com os números fornecidos pelo Ministério da Educação e da Ciência, somente 42%,

isto é, 62 mil, recebem apoio (60 750 na rede pública e 1 344 na rede privada e

solidária), donde se conclui que cerca de 58%, isto é, cerca de 87 mil crianças e

adolescentes não têm o apoio de que carecem e a que têm direito. A persistência do

insucesso educativo não é alheia a este facto, entre outros.

A partir dos finais dos anos 90, há um novo entendimento na política educativa

relativamente à educação dos alunos com NEE, no sentido da sua integração em

classes regulares, mas tal só é benéfico quando existe uma congruência entre as

características e necessidades dos alunos, as expectativas e atitudes dos professores e

os apoios adequados.

Ao contrário do estabelecido na Declaração de Salamanca (todos os alunos têm o

direito de aprender juntos nas escolas das suas residências), a criação dos

agrupamentos e dos mega agrupamentos, bem como das escolas de referência,

conduziu, para além do afastamento da área de residência, ao surgimento de uma

realidade de estruturas educacionais descaracterizadas que não facilitam a inclusão dos

alunos com NEE, verificando-se mesmo um aumento das situações de bullying

relativamente a estes alunos.

A igualdade de direitos e de oportunidades educativas tem de ser vista à luz das

capacidades e necessidades de cada criança e adolescente e respeitando sempre as

diferenças significativas que alguns deles possuem. O reconhecimento da diversidade

exige um modelo de intervenção que proporcione um ensino eficaz aos alunos que

tenham problemas nas suas aprendizagens desde o início do seu percurso escolar.

Contudo, a falta de recursos humanos, a ausência de formação geral neste domínio e a

40

debilidade da formação especializada e continuada tornam impossível uma

optimização de serviços e apoios aos alunos com NEE, para além das graves

consequências dos procedimentos desajustados à sua inclusão, nomeadamente nas

salas de aulas regulares.

De destacar, ainda, as consequências negativas da mobilidade docente,

particularmente grave no atendimento de alunos com NEE. A frequente alteração de

professores relacionados com um mesmo aluno obriga a uma repetição anual do

processo de ajustamento da criança, da família e dos profissionais envolvidos, com

consequências severas no processo de aprendizagem da criança ou do adolescente.

No que concerne às relações escola/família, a prática da escola, em muitos casos, não

tem sido no sentido de promover a participação activa dos pais no processo educativo

dos seus filhos, nem de proporcionar as respostas adequadas sempre que há

discordância das medidas adoptadas. Aliás, e apesar do Decreto-Lei 3/2008 apelar à

participação activa dos pais na elaboração do Programa Educativo Individual (PEI),

aqueles, na prática, limitam-se a assinar o que foi elaborado exclusivamente por

profissionais, sem grande margem para discussão.

A preparação para a vida activa/pós escolar não é perspectivada no sentido de garantir

a integração, sempre que possível, autónoma e cidadã, das crianças e adolescentes com

NEE. O prolongamento da escolaridade obrigatória até aos 18 anos apresenta-se como

um adiamento do problema e um agravamento severo da situação de impreparação

com que estes alunos vão enfrentar a sua integração na sociedade.

Por último, há que assinalar que, para além da exiguidade dos recursos financeiros

atribuídos, se verifica um desequilíbrio entre as verbas atribuídas à rede pública e às

redes solidária e privada, podendo afirmar que cada aluno da rede pública recebe 1/8

do que recebe um aluno da rede solidária e privada.

3.3.2. Identificação de problemas

A situação anteriormente descrita conduz à identificação de um conjunto de problemas

com destaque para os seguintes:

41

- A inexistência de estudos que permitam recolher e tratar informação sobre o

efectivo cumprimento dos princípios que regem o movimento da inclusão e as

barreiras com que se confronta a designada “Escola para Todos”.

- A inadequação da legislação em vigor, nomeadamente o Decreto-Lei 3/2008,

relativamente à qual se assinalam como principais deficiências a colmatar:

*Falta de garantia da existência e de eficácia dos serviços de educação

especial para todos os alunos com NEE permanentes que deles

necessitem, com o consequente provisionamento dos meios financeiros

necessários ao seu bom funcionamento e fixação de um conjunto de

procedimentos administrativos adequados aos vários níveis;

*Falta de entendimento sobre conceitos básicos como inclusão, educação

especial, necessidades educativas especiais, o que origina interpretações

variadas e dificulta a respectiva operacionalização;

*Aplicação restritiva das medidas de educação especial, o que afasta das

mesmas a esmagadora maioria dos alunos com necessidades educativas

permanentes, das quais destacamos os alunos com dificuldades de

aprendizagem;

*Número excessivo de alunos com NEE nas salas de aula regulares;

*Ausência de programas de transição escola/vida activa;

*Uso da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e

Saúde (CIF), da Organização Mundial de Saúde, para determinar a

elegibilidade do aluno com NEE para os serviços de educação especial,

contrariando a posição da esmagadora maioria da comunidade científica

nesta área que discorda do uso da CIF em educação;

*Atribuição indevida da coordenação do programa educativo individual

(PEI) ao educador de infância, professor de 1º ciclo ou director de turma,

conforme as circunstâncias. Sabe-se que, para além da impreparação

científica para o efeito, a maior parte dos docentes é hostil ao

acolhimento de alunos com NEE nas suas salas de aula;

*Inexistência de um modelo de atendimento que permita estabelecer um

processo que vise dar respostas eficazes para os alunos com NEE;

*Ausência de critérios bem definidos que permitam aos agrupamentos e

escolas munir-se de - ou ter acesso a - um corpo imprescindível de

42

especialistas que assegurem o devido acompanhamento dentro e fora da

sala de aula.

- Insuficiente formação inicial e continuada de professores, por parte das

instituições de ensino superior e outras entidades acreditadas na medida em que

aquela não reflecte os pressupostos fundamentais para o sucesso dos alunos com

NEE e a consequente impreparação dos professores do ensino regular para

trabalharem com alunos com NEE;

- Desajustamento entre o tipo de especializações dos professores de educação

especial e a desejável (mas inexistente) formação especializada orientada para as

crianças e adolescentes que se inserem nos grupos mais prevalentes de NEE

(cerca de metade do número total destes alunos).

Por último, há que chamar a atenção para a intenção das actuais políticas de educação

especial relegarem a identificação e o consequente diagnóstico das crianças e

adolescentes com NEE para os serviços de saúde.

3.3.3 Propostas

Sugerir alterações que impliquem mudanças num sistema que se tem revelado

ineficaz, no que se refere aos alunos com NEE, exige, em primeiro lugar, que a

sociedade no seu conjunto (pais, educadores e cidadãos) conheça o problema na sua

extensão e complexidade. Exige que a sociedade seja capaz de se reconhecer na sua

diferença inata, na atribuição de visibilidade aos que são diferentes e,

consequentemente, na sua aceitação e inclusão.

Face à escassez de literatura nesta área, devem ser realizados estudos, a nível nacional,

que proporcionem conhecimento relativamente às percepções da sociedade em geral

no que se refere aos problemas das crianças e adolescentes com NEE e ao imperativo

da sua inclusão, mas também acerca das atitudes e comportamentos dos pais e dos

profissionais de educação, professores e educadores.

No caso concreto das crianças e adolescentes com NEE, requer-se que o sistema tenha

a preocupação de criar situações educacionais que proporcionem uma igualdade de

oportunidades para esses alunos e que favoreçam o seu desenvolvimento, de modo a

que seja implementado em todas as escolas um modelo adequado que reflicta os

conhecimentos actuais decorrentes da experiência e da investigação mais recente.

43

Para além da fundamental clarificação de conceitos, como os de Escola para todos e

Escola inclusiva, há que repensar o processo de atendimento aos alunos com NEE para

que estes possam ter acesso a respostas educativas eficazes e a serviços e apoios

sempre que deles necessitem, assentes na diversidade e na diferenciação. Tal implica

que todos os agrupamentos e escolas tenham acesso aos recursos humanos

especializados necessários a uma adequada distribuição dos alunos com NEE pelas

salas de aula regulares. Só assim será possível a promoção da sua educação num

contexto o mais inclusivo possível e o acesso a programas educativos diversificados e

devidamente certificados quer eles sejam académicos, funcionais e/ou de transição

para a vida activa.

Neste entendimento, considera-se fundamental o redesenho dos planos de formação

inicial e de formação contínua dos docentes, bem como a avaliação da maioria dos

cursos de especialização em educação especial, adequando-os às prevalências de

alunos com NEE.

Sendo os pais os elementos chave na educação dos seus filhos, quer pela informação

que proporcionam relativamente à criança ou ao adolescente, quer pela identificação,

conjunta com a restante equipa multidisciplinar, dos objectivos a serem atingidos pelo

aluno, há que promover o efectivo reconhecimento do seu papel bem como ter em

atenção a consciencialização de problemas recorrentes nas interacções entre as

famílias e os profissionais, de molde a encontrar o modelo de intervenção ajustado e

uma comunicação eficaz no trabalho com as famílias.

O actual enquadramento legislativo da educação especial, nomeadamente o previsto na

segunda alteração da LBSE (artigos 19.º, 20.º e 21.º) e numa parte substancial do

Decreto-Lei 3/2008, carece de revisão no sentido de garantir efectivamente os direitos

dos alunos com NEE e os das suas famílias.

Não basta a subscrição de documentos internacionais que pugnam pela inclusão, o

País tem que optar por uma política de intervenção junto dos alunos com NEE, tendo

por referência a defesa dos seus direitos desde a nascença, que privilegie a

interdisciplinaridade e a individualização da intervenção, promova a competência

pedagógica e científica dos professores do ensino regular, da educação especial e dos

demais profissionais de educação, intensifique a articulação com as famílias, apoiada

44

na investigação e na correcta afectação de recursos. Com este objectivo, formulam-se

as seguintes recomendações:

-Resposta gradual do sistema educativo às necessidades de todos os alunos com

NE, designadamente dos alunos com NEE, nas escolas da área das suas

residências ou locais de trabalho dos pais;

-Consensualização dos conceitos, de forma a que a articulação

escola/pais/serviços seja homogénea e esclarecida;

-Adopção de um modelo de atendimento que uniformize, a nível nacional, a

prestação de serviços para os alunos com NE, nomeadamente para os alunos com

NEE;

-Adopção de um processo multinível que possibilite dar respostas adequadas às

necessidades dos alunos com problemas ligeiros de aprendizagem, em risco

educacional, com necessidades educativas especiais e sobredotados;

-Responsabilização dos agrupamentos e das escolas pela educação de todos os

alunos, designadamente dos alunos com NEE;

-Adopção imperiosa de programas de transição para a vida activa devidamente

certificados;

-Criação de redes de recursos, constituídas por psicólogos, terapeutas e técnicos

de serviço social, em zonas geográficas específicas, preferencialmente nos

agrupamentos, sempre que estes ofereçam condições físicas que permitam aí a sua

localização. Nestas redes deve ser considerada a inserção de docentes

especializados em problemas motores, deficiência visual, deficiência auditiva e

multideficiência;

-Ampliação dos quadros de educação especial tendo por base as especializações

dos docentes e criação de quadros para os outros serviços especializados,

designadamente para os serviços de psicologia e terapêuticos;

-Reformulação da formação inicial e especializada e promoção da formação em

contexto, de professores e educadores, tendo em conta os princípios que regem o

movimento da inclusão e as prevalências dos alunos com NEE;

-Uniformização legislativa, orientadora da intervenção educativa para os alunos

com NE, particularmente para os alunos com NEE, introduzindo a necessária

alteração do articulado da Lei de Bases e modificando significativamente ou

45

revogando o Decreto-Lei 3/2008, de 7 de Janeiro (nomeadamente a anulação da

aplicação da CIF e a clarificação de conceitos e conteúdos operacionais);

-Ajustamento do financiamento às reais necessidades do sistema educativo;

-Criação de um Gabinete de Educação Especial, com o objectivo de reorganizar os

serviços de educação especial no âmbito do Ministério da Educação, bem como

dirigir, orientar e coordenar esses mesmos serviços;

-Criação de um Conselho Consultivo para a Educação Especial, constituído por

peritos de inegável qualidade científica e competência nesta área;

-Criação de uma Comissão Interministerial para a Educação Especial, destinada a

propor as acções e estratégias adequadas e a assegurar a coordenação e

cooperação entre o Ministério da Educação e os demais Ministérios ligados à

prestação de serviços para os alunos com NEE.

A finalizar, e à maneira de síntese, podemos afirmar que é nossa convicção que só

uma reestruturação urgente dos serviços de educação especial, tendo por base muitas

das preocupações descritas acima, poderá pôr cobro a situações de negligência e de

exclusão experimentadas por um número considerável de crianças e adolescentes com

necessidades educativas especiais, cujo direito a uma educação igual e de qualidade

lhes é garantido nos artigos 71º e 74º da Constituição da República Portuguesa.

Portugal pode continuar a subscrever documentos internacionais defensores do

movimento da inclusão, como tem feito; contudo, sem uma política de intervenção

junto dos alunos com NEE que comece logo à nascença, privilegie a

interdisciplinaridade e a individualização, promova a competência pedagógica e

cientifica dos professores do ensino regular, de educação especial e dos demais

profissionais de educação e estreite a articulação com as famílias, corremos o risco de

ficar apenas com palavras, feitas páginas mortas nos Diários da República e noutros

documentos oficiais, que em nada contribuem para o sucesso dos alunos com NEE.

46

3.4 Ensino superior e investigação4

O ensino superior e a investigação científica que lhe está, necessariamente, associada

constituem uma trave mestra de um projecto educativo, tanto pelas suas implicações

na formação e qualificação da população de um País como pelo seu impacto no

desenvolvimento da economia, no progresso do conhecimento científico e no bem-

estar social.

Entendemos que o ensino superior deve cuidar não só da criação e transmissão do

conhecimento, como também da sua difusão ao serviço da sociedade e da transmissão

de valores e referenciais éticos às novas gerações.

3.4.1 Diagnóstico

Apesar de ainda nos encontrarmos longe da maior parte dos nossos parceiros da União

Europeia, é indesmentível o esforço feito no sentido de apanharmos o passo educativo

da Europa desenvolvida. No quadro educativo em geral, o ensino superior público e a

investigação é, aliás, um dos segmentos educativos que conheceu maiores mudanças

nas últimas décadas. Destacamos apenas algumas dessas alterações mais relevantes no

contexto político de democratização necessária e expectável após a Revolução

Democrática de 1974:

- O crescimento explosivo da procura de ensino superior e a resposta positiva por

parte do sistema público com destaque para as iniciativas de apoio social

conducentes à fruição universal deste nível de ensino;

- A cobertura nacional por parte da rede pública de ensino superior acompanhada

da diversificação das instituições de ensino superior (universidades e institutos

politécnicos) e da oferta científica;

4 Para esta reflexão, a Comissão Executiva tomou por base o texto Pensar o Ensino Superior.

Que futuro? elaborado por António Branco, Belmiro Cabrito, Margarida Mano, Maria Luísa

Cerdeira (coordenadora), Mariana Gaio Alves, Rosário Gamboa e Tomás Patrocínio, bem como

os pareceres dos consultores Adriano Moreira, António Sampaio da Nóvoa, João Lobo Antunes,

e, ainda, o relato do seminário realizado sobre esta área temática. As ideias expendidas são,

todavia, da responsabilidade da Comissão Executiva.

47

- A consagração da tríplice missão do ensino superior: ensino, investigação,

extensão/transmissão e partilha de conhecimento;

- A gestão democrática das instituições e a conquista da autonomia universitária

(científica, financeira, administrativa, de gestão);

- O crescimento significativo do número de diplomados (licenciados, mestres e

doutores), tendo-se operado, nomeadamente no domínio dos estudos avançados,

uma verdadeira revolução, com o número de mestres e doutores a aumentar

exponencialmente;

- A progressiva qualificação profissional dos docentes e a dignificação da

respectiva carreira profissional;

- O volume e a qualidade da investigação científica produzida.

Os caminhos trilhados pelo nosso ensino superior nas décadas posteriores a 1974

foram, assim, caminhos no sentido da universalização do acesso à educação superior e

da liberdade das instituições em desenvolverem a sua actividade no sentido do

cumprimento da sua missão, no quadro da construção de uma nova ideia sobre o

desígnio do país: um país mais justo que celebre a democracia e valores tão

importantes como o da igualdade, da equidade, da justiça social, do direito à educação

e à liberdade de expressão.

3.4.2. Identificação de Problemas

Nos últimos anos assiste-se à paragem do processo de democratização do acesso e da

fruição da educação superior, em consequência de progressivas e, por vezes, subtis

alterações de intenções por parte da tutela, que acompanharam a mudança de um Estado

que privilegiava medidas de política criadoras de igualdade e de equidade, para um

Estado que deixa essa “regulação social” ao mercado. Assim, paulatinamente, o ensino

superior público e a investigação científica, seguem o caminho trilhado pela política

nacional subordinada ao ideário neoliberal e que, no caso específico do ensino superior,

conduziu a inúmeros problemas. Enunciam-se, de seguida e de forma não exaustiva,

alguns que nos parecem mais relevantes:

- Estabelecimento de propinas elevadas para frequência do ensino superior

público, designadamente no segundo e terceiro ciclos;

48

- Cortes sucessivos do financiamento proveniente do Orçamento de Estado,

obrigando a procura de financiamentos externos seja para o ensino seja para a

investigação científica;

- Progressiva mercantilização da educação e da investigação, cada vez mais

apostadas em responder às necessidades do mercado como forma de substituir o

défice de financiamento público;

- Concorrência intensiva entre instituições, por alunos e por financiamentos

externos, contrariando, aliás, o sentido social da cooperação, partilha e

disseminação do conhecimento inerentes à missão do ensino superior;

- Concorrência e competição entre universidades e institutos politécnicos;

- Sistemas de governança assentes em princípios gestionários empresariais e em

órgãos de direcção unipessoal e de cooptação;

- Desresponsabilização do Estado relativamente aos 2º e 3º ciclos, após a

assinatura da Carta de Bolonha, remetendo para os estudantes e famílias os

respectivos encargos;

- Quebra no acesso e na procura de ensino superior público em virtude de

dificuldades financeiras dos alunos e das famílias;

- Endividamento dos estudantes e famílias, situação que, não sendo ainda

numericamente muito significativa, não deixa de constituir um problema sério

para os futuros diplomados dadas as dificuldades com que estes se deparam na

inserção no mercado de trabalho e no circuito do rendimento;

- Políticas públicas de apoio social ao ensino superior público extremamente

restritivas, testemunhando a retracção do apoio do Estado, seja directamente,

através da quebra drástica do número de bolsas concedidas, seja indirectamente,

devido à redução de apoios a cantinas, residências, entre outros;

- Políticas de apoio à investigação por vezes discriminatórias, em termos

científicos e que se traduzem hoje numa distribuição de doutorados que privilegia

as ciências exactas e de engenharia em detrimento das ciências sociais e humanas;

- Processos de avaliação de projectos e de centros de investigação pouco

transparentes, conciliáveis com políticas gestionárias de minimização de custos e

maximização de proveitos;

- Défice nos apoios à formação e qualificação docente e depreciação da dignidade

social da carreira docente;

49

- Estrutura do pessoal docente muito envelhecida, em virtude de restrições à

contratação de novos docentes, a par de outros constrangimentos à autonomia

efectiva;

- Governação pouco transparente e pouco democrática, com perda progressiva e

acentuada da autonomia universitária;

- Risco acrescido de transformação do ensino superior público num ensino para as

elites;

- “Fuga de cérebros” com o consequente empobrecimento intelectual do País e

financiamento indirecto dos países recebedores;

- Perda do sentido social da missão do ensino superior;

- Retração da regulação da tutela em assuntos maiores da sua competência como a

organização da rede e a distinção sobre o espaço formativo tradicional entre os

dois subsistemas: universidade e politécnico.

3.4.3. Propostas

Neste breve retrato sobre a situação do ensino superior e investigação científica em

Portugal foram identificados alguns dos problemas que definem bem o processo de

inversão da tendência democratizante iniciada após a Revolução de Abril e que servem

de base a um enunciado, também ele breve, de algumas propostas que poderão

contribuir para a reinvenção democrática da educação superior e da investigação, no

País.

Nesse sentido, recomendamos:

- A redefinição da gestão das instituições no sentido de uma maior participação de

alunos, docentes e não docentes nos diversos órgãos de gestão;

- A garantia por parte do Estado de um financiamento base que permita o

funcionamento corrente das instituições e um financiamento complementar

assente em contratos-programa que viabilizem e premeiem a qualidade;

- O alargamento da base social de recrutamento que contrarie a elitização

progressiva que o ensino superior tem vindo a assumir desde há alguns anos;

- A redefinição da rede pública de ensino superior de modo a permitir e fomentar

a colaboração das várias instituições (universidades e institutos politécnicos),

nomeadamente no que respeita a partilha de equipamentos, a mobilidade de

50

estudantes, docentes e investigadores, a diversificação da oferta, a não duplicação

de ofertas semelhantes, bem como o concurso a projectos de investigação.

Em suma, consideramos fundamental repensar a missão da educação superior no País,

sendo que essa missão passa pelo ensino, investigação, produção e partilha do

conhecimento, universalização da sua fruição e construção da cidadania e constitui um

pilar da liberdade e do pensamento crítico e independente, um espaço de debate

público, de construção de novas visões do mundo, de novos modelos económicos e

sociais, em suma, de construção de um novo País.

3.5 A educação da população adulta5

A educação da população adulta deve ser vista à luz de uma perspectiva abrangente e

multidimensional que inclua as seguintes componentes: a alfabetização e a literacia

básica, as diversas modalidades de educação (formal, não formal e informal), a

formação profissional e as dinâmicas sociais e culturais que tenham por objectivo

promover, ao nível da sociedade, a superação das desigualdades económicas, sociais e

culturais e assegurar o direito à igualdade de oportunidades. A nível individual, a

Educação de Adultos (EA) deve visar o desenvolvimento pessoal e social, incluindo a

capacidade de interpretar a realidade e agir sobre o mundo, contribuindo, assim, para a

construção da cidadania.6

É a esta luz que aqui se analisa a evolução das políticas públicas para a EA, se faz um

diagnóstico da situação actual e se preconizam medidas de acção que possam

contribuir para a correcção dos problemas existentes e para promover as boas práticas

no que à EA diz respeito.

5 Para esta reflexão, a Comissão Executiva tomou por base o texto Educação da População

Adulta, elaborado por Alberto de Melo, António Fragoso, Carmen Cavaco, Natália Alves

(coordenadora), Paula Guimarães e Rui Canário, bem como o parecer do consultor Roberto

Carneiro e, ainda, o relato do seminário realizado sobre esta área temática. As ideias expendidas

são, todavia, da responsabilidade da Comissão Executiva.

6 Neste capítulo não consideramos a problemática respeitante ao acesso da população adulta aos

diferentes níveis de ensino como segunda oportunidade de formação, nomeadamente na versão

de cursos em horário pós laboral, inseridos no ensino formal. É assunto a ser considerado no

âmbito de cada um dos diferentes níveis de ensino.

51

3.5.1 Diagnóstico

No período analisado (1974-2015), as políticas públicas de EA caracterizaram-se,

sobretudo, pela intermitência, fragmentação e dependência dos ciclos políticos.

No período pós 25 Abril de 1974, as políticas de EA acompanharam a explosão do

movimento social e assentaram em dois objectivos principais: responder às

solicitações dos grupos sociais culturalmente mais fragilizados e despertar a vontade

de desenvolvimento e mudança colectiva. Adoptando o conceito de educação

permanente, tais políticas tinham por objectivo a promoção da democracia, do

desenvolvimento, da liberdade e da igualdade de oportunidades. Procurava-se partir

dos saberes e capacitações que os adultos possuíam, para os articular com a escola e o

trabalho, através de iniciativas de formação profissional e de educação popular.

Depois de 1976, já no âmbito do processo de normalização política, registou-se uma

inflexão das orientações políticas anteriores e a sua substituição por acções de

escolarização de segunda oportunidade.

A Lei de Bases do Sistema Educativo, aprovada em 1986, veio restringir o campo da

educação de adultos, dando ênfase a uma concepção baseada na transmissão de

conhecimentos de cariz disciplinar e de saberes adquiridos em contexto de sala de

aula.

Em meados da década de 1990, a educação de adultos parecia ter assumido um lugar

de destaque nos debates políticos sobre a educação, traduzindo-se numa revalorização

da relação entre educação e cidadania. É neste quadro que surge um conjunto de

ofertas educativas e formativas que alargam a participação de adultos e reforçam as

dimensões económicas, sociais e políticas da sua participação na sociedade,

valorizando os saberes adquiridos pela experiência ao longo da vida.

O reconhecimento dos baixos níveis educativos da população adulta e, sobretudo, da

população activa, quando comparados com os restantes países da U.E., conjugado com

a necessidade de trabalhadores detentores de conhecimentos e competências mais

complexos (maior capacidade de adaptação à modernização da economia, aumento de

competitividade e omnipresença das novas tecnologias) criou, entre 1995-2002, um

52

ambiente favorável a uma tentativa de relançamento da educação de adultos numa

perspectiva novamente próxima do conceito de Educação Permanente.

Seguindo a tendência dos sistemas educativos da U.E., no sentido da implementação e

difusão de sistemas de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências

(RVCC), surgem, em 2005, os Centros de Novas Oportunidades (CNO) como

alternativa à formação qualificante e de curta duração, registando-se, no período 2005-

2010, um forte investimento político neste domínio que importa assinalar. Os CNO

assumiram-se como promotores da aprendizagem ao longo da vida e do gosto pela

educação. Estas novas práticas enquadram-se num paradigma de educação\formação

ao longo da vida, que valoriza as aprendizagens formais, não formais e informais que

os adultos realizam ao longo das suas trajectórias pessoais, sociais e profissionais.

Os saberes adquiridos à margem dos sistemas formais de educação\formação têm

inegável valor pessoal, formativo, profissional, social e económico, desenvolvem-se

numa multiplicidade de situações e contextos de vida e obedecem a uma lógica de

construção e difusão (recomposição) distinta da lógica dominante

(disciplinar\transmissiva\cumulativa\aditiva). A experiência, elemento- chave no

processo de aprendizagem, constitui a base para a reflexão, problematização e

formação de conceitos e contribui para a transformação das pessoas, promovendo a

sua emancipação. Adopta-se, deste modo, uma perspectiva holística que tem em conta

a globalidade do processo de desenvolvimento da pessoa, na sua relação com o meio,

com os outros e consigo própria. O saber de experiência feito ganha, então, novo

estatuto face ao saber científico o que representa uma importante mudança

paradigmática.

O RVCC associado aos CNOs pretendeu contribuir para a diminuição da exclusão

social, facilitando a (re)inserção escolar\formativa\profissional de pessoas dos grupos

mais desfavorecidos, o que é particularmente relevante num contexto de precarização

do emprego, de aumento do desemprego, de crise económica e social, como

presentemente sucede. O RVCC constituiu também um novo campo de práticas

educativas que põe em destaque a necessidade de conceber e desenvolver sistemas de

RVCC em diferentes níveis de qualificação, incrementar a formação de formadores e

estimular a produção de conhecimento científico sobre esta problemática.

53

Não obstante os seus aspectos positivos, a experiência dos CNOs revelou fragilidades

várias, incluindo abusos graves na utilização das avultadas verbas que lhes foram

atribuídas.

A partir de 2011, este percurso foi, de novo, interrompido e o conceito de educação

permanente foi progressivamente sendo substituído pelo conceito de aprendizagem ao

longo da vida assente numa visão da educação de adultos como instrumento de

formação profissional e desenvolvimento de recursos humanos ao serviço da

competitividade económica e de combate ao desemprego. Esta última fase é

caracterizada pelo desenvolvimento de um modelo de Gestão de Recursos Humanos

que considera a educação de adultos numa lógica de certificação de competências

associada à empregabilidade e que pretende responsabilizar os adultos pelo seu

próprio insucesso.

3.5.2 Identificação de Problemas

A Educação de Adultos apresenta, hoje, desafios sérios, entre os quais destacamos os

seguintes:

- A persistente taxa de analfabetismo de adultos, que, apesar da sua redução

significativa, é, ainda, segundo o censo de 2011, de 5,2%, não existindo

programas delineados para a sua eliminação;

- A falta de cumprimento do direito à formação profissional, consignada no

Código de Trabalho (a partir de 2004, direito a 35 horas anuais de formação

certificada por parte dos trabalhadores efectivos) e notórias assimetrias no

cumprimento do mesmo (taxas de acesso razoáveis nas grandes empresas mas que

baixam significativamente para as pequenas empresas e são, certamente, quase

inexistentes para as micro empresas);

- O elevado número de adultos sem o ensino secundário, por comparação a outros

países da UE;

- O retrocesso na qualificação dos trabalhadores, devido sobretudo à

interrupção/abandono dos programas RVCC e dos cursos de educação e formação

de adultos (EFA), apesar destes terem contribuído entre 2000 e 2011 para uma

alteração da estrutura da qualificação formal da população adulta;

54

- O manifesto insucesso das políticas de educação de adultos no que se refere à

captação do respectivo público-alvo;

- A inexistência actual de uma verdadeira política de educação de adultos, com

objectivos bem definidos e consensualizados entre as partes interessadas, com a

dotação adequada de recursos humanos e financeiros e com critérios rigorosos de

avaliação de resultados quantitativos e qualitativos.

3.5.3 Propostas

Face ao diagnóstico feito e aos problemas detectados, afigura-se ser necessário que se

avaliem criteriosamente as políticas anteriormente adoptadas e se dê a devida

prioridade à conceptualização e à implementação de uma política pública, integrada,

coerente e global, que corrija a deriva instrumental e restitua à educação de adultos a

sua dimensão humanista, crítica e emancipatória. Defendemos, também, uma política

que considere a educação de adultos como uma mediação efectiva para a redução

sustentada da pobreza, para o desenvolvimento do País e para a coesão social

associada aos direitos de cidadania.

Esta concepção ampla da educação de adultos e, por conseguinte, as propostas a ela

associadas, devem traduzir-se em três vertentes distintas, mas interdependentes: as

políticas públicas, as práticas sociais e a investigação científica.

Neste entendimento, recomendamos:

- A adopção de políticas públicas que tenham como prioridade a criação de

condições para uma participação cívica e política efectiva de toda a população,

através de uma oferta de acções de educação\formação diversificada e com

capacidade de atracção de pessoas em diferentes fases de vida e distintos níveis de

literacia;

- A criação de um modelo flexível de transição entre as várias formas de

educação (formal, profissional e informal) e de trabalho e emprego ao longo da

vida, em horários compatíveis com a vida profissional e familiar dos formandos;

- A definição e implementação de uma estrutura educativa da população adulta

que permita superar o défice de formação e qualificação, através de medidas

55

centradas na qualificação contínua e na certificação de competências, o

incremento da eficiência do sistema baseado numa avaliação objectiva da

aquisição efectiva de conhecimentos;

- A avaliação da eficiência das políticas públicas em matéria de EA e que esta

tenha em consideração os seus efeitos na auto-estima, na autonomia, na promoção

da literacia e não apenas na produtividade e na empregabilidade;

- O adequado financiamento e sua distribuição equitativa pelos programas de EA

bem como o controlo efetivo dos montantes investidos;

- A promoção da diversidade de práticas de intervenção educativa e pedagógica,

que incluam acções associadas ao desenvolvimento local e à animação sócio

cultural que facilite a integração destas práticas noutros projectos de âmbito

social, económico, cultural, político e cívico. A diversidade e criatividade das

práticas sociais associadas à EA tem potenciado o desenvolvimento de projectos

inovadores de economia social e solidária (bancos do tempo, hortas urbanas,

cooperativas e associações de produtores e distribuidores locais, etc.) cuja

relevância merece ser assinalada.

No campo científico, são importantes medidas que se traduzam numa crescente

participação das instituições de ensino superior – Escolas Superiores de Educação,

Institutos de Educação, Faculdades de Psicologia e Ciências da Educação – na

reflexão, desenho, implementação e avaliação de novas propostas de intervenção no

âmbito da educação de adultos. O contributo da academia para o conhecimento e a

problematização da EA é essencial e deverá ser levado a cabo com o rigor e a

objectividade que merece, sendo de desejar o recurso a contratos-programa estáveis

devidamente financiados.

Sem prejuízo da função primordial do Estado na prossecução de políticas de educação

de adultos e na afectação de recursos humanos e financeiros à sua implementação, há

que considerar também o valioso contributo das Autarquias na aproximação aos

problemas das pessoas e na motivação das mesmas para aderir aos programas de

educação de adultos. Não devem, igualmente, ser esquecidas inúmeras organizações

da sociedade civil com as quais o Estado pode desenvolver parcerias, bem como,

numerosas fundações espalhadas pelo mundo com mecanismos não tradicionais de

financiamento de projectos sociais onde se incluem os de educação de adultos.

56

Por último, não queremos deixar de assinalar que, para além da vertente da

qualificação, as políticas acima referidas devem ter também fortes e positivos

impactos qualitativos, dificilmente mensuráveis, ao nível da auto-estima, na promoção

da emancipação das mulheres, na promoção da literacia de pais e filhos com efeitos no

sucesso escolar, na produtividade e na empregabilidade, na medida em que a

certificação facilita a identificação das competências próprias de cada indivíduo e a

procura de mais educação e formação por parte dos cidadãos em geral.

3.6 A formação de professores e educadores7

A formação de professores e educadores é um dos vectores fundamentais da

concepção, organização e desenvolvimento do sistema educativo e não é possível

compreendê-la, discuti-la ou perspectivar o seu futuro fora de um quadro de valores

que, em cada momento histórico, inspiram a sociedade e a acção política.

Não é defensável a visão de que a formação de professores se deva circunscrever aos

seus aspectos mais técnicos ou instrumentais, uma vez que o desempenho docente

deve ser, predominantemente, considerado como desempenho de um profissional,

mais do que o de um técnico e de um funcionário, o que torna necessária uma atitude

investigativa a adquirir no período de formação inicial e a aprofundar ao longo da vida

profissional.

3.6.1 Diagnóstico

Desde há mais de duas décadas que está ultrapassado o problema da falta de

professores e educadores com formação académica e profissional adequada, realizada

7 Para esta reflexão, a Comissão Executiva tomou por base o texto Formação de Professores

elaborado por Ana Carita, Ângela Rodrigues, Lurdes Silva e Manuela Esteves (coordenadora),

bem como os pareceres dos consultores Bártolo Campos e Cândido Pereira e, ainda, o relato do

seminário realizado sobre esta área temática. As ideias expendidas são, todavia, da

responsabilidade da Comissão Executiva.

57

em universidades ou institutos politécnicos, sendo de destacar o número crescente de

docentes com pós graduações, mestrados e doutoramentos.

No entanto, importa reconhecer que a actual formação dos professores não os prepara

devidamente para enfrentarem o insucesso escolar e que é insuficiente o número de

professores especializados para cuidar de crianças e jovens com necessidades

educativas especiais.

Reconhecem-se também lacunas de formação para o desempenho de certas funções

específicas: coordenação pedagógica, direcção executiva, conselho pedagógico,

departamento curricular ou de disciplina, formador e/ou avaliador de professores, entre

outras. A formação académica e profissional, actualmente de nível de mestrado, não

prepara para o desempenho destas funções, devendo ser adquirida através de cursos de

especialização, de pós-graduação, da responsabilidade das instituições de ensino

superior.

Existe, por outro lado, uma grande proliferação de entidades formadoras dedicadas à

formação contínua de professores que carecem de acreditação rigorosa e supervisão

dos programas de formação que oferecem, de modo a garantir a sua melhor adequação

às necessidades das escolas e dos professores e educadores. Embora seja reconhecido

o direito dos docentes à formação contínua, as condições que o sistema,

presentemente, oferece não são satisfatórias.

Há que salientar, ainda, a ausência de preparação específica para a docência no ensino

superior.

3.6.2 Identificação de Problemas

Como anteriormente se referiu, a questão mais relevante deixou de ser a da quantidade

de professores a formar para satisfazer a procura mas a da qualidade dessa formação,

ainda que, à semelhança de todos os outros cursos, também os de formação de

professores, oferecidos por universidades e institutos politécnicos, públicos e privados,

estejam sujeitos a mecanismos de garantia da qualidade.

Embora não exista nenhum trabalho de síntese de avaliação dos resultados destes

processos nem das indicações que eles possam dar para as políticas de formação de

58

professores, alguns dados já conhecidos permitem identificar um conjunto de pontos

críticos a aprofundar, dos quais se destacam os seguintes:

- Prospecção inadequada do número de novos educadores e professores de que o

País necessitará, no médio e no longo prazo, para assegurar uma educação de

qualidade;

- Diminuição sensível do número de estudantes que, nas universidades e institutos

politécnicos, se candidatam aos cursos de licenciatura em educação básica e aos

mestrados em educação e em ensino, o que poderá ter consequências negativas no

futuro;

- Exiguidade do investimento na qualificação especializada dos docentes de

ensino superior que formam professores, bem como dos orientadores cooperantes

da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário;

- Insuficiência, durante a formação, da preparação para a prática de

relacionamento com os alunos;

- Introdução, não devidamente avaliada nos seus efeitos, de inovações

metodológicas na formação oferecida;

- Insuficiente avaliação da formação, em especial da formação contínua.

3.6.3 Propostas

A formação de professores necessita de rever e melhorar diversos aspectos, assim

como de se pautar por critérios mais elevados de exigência. A selecção e o

recrutamento de novos professores merecem, igualmente, ponderação e uma avaliação

aprofundada. Do mesmo modo, deverá ser debatida a necessidade de existirem provas

específicas que atestem competências mínimas de ordem comunicacional, humana e

relacional, para encetar um percurso académico cujo destino final é muito

provavelmente a docência.

Tendo em conta o diagnóstico feito e os problemas identificados, apontamos as

seguintes orientações para futuro:

- A não hierarquização na formação dos professores dos diferentes tipos de

saberes: teoria e prática; conhecimento das matérias e conhecimento pedagógico;

59

- A reconceptualização dos modelos e das práticas de formação, com vista à

obtenção de uma prática docente de elevada qualidade, em torno da qual gravitam

as restantes componentes;

- O alargamento do âmbito da qualificação, para além dos conteúdos das

disciplinas a ensinar;

- A manutenção de um modelo sequencial de formação e a exigência de formação

avançada dos professores formadores, em articulação com os avanços da

investigação;

- O acompanhamento efectivo da qualidade do contributo das escolas cooperantes

e dos orientadores cooperantes na formação dos professores e educadores;

- O incentivo ao desenvolvimento da investigação científica sobre formação de

professores, a nível nacional e institucional, e a devida consideração dos seus

resultados nas decisões a tomar;

- O reforço da autonomia por parte das instituições do ensino superior na

definição dos seus programas de formação de professores;

- O apoio ao desenvolvimento profissional dos professores, através de uma

formação contínua assente nas necessidades da escola e do projecto educativo que

esta tem para melhorar o sucesso educativo e escolar dos seus alunos;

- O aprofundamento da formação especializada dos formadores de professores,

nomeadamente pela associação da investigação à acção profissional que

desenvolvem;

- A promoção da internacionalização, mediante a participação em redes e

projectos internacionais de investigação e o incentivo à mobilidade de docentes e

de estudantes.

Por último, queremos assinalar que a valorização da função docente não se opera

apenas em função de uma formação mais esclarecida, aprofundada e especializada dos

professores. A formação deve ser um instrumento de realização pessoal, um convite ao

exercício da cidadania, um ponto de passagem para a construção de uma ética

profissional, um factor de elevação da auto-estima individual e do grupo profissional,

para além de, obviamente, preparar para uma intervenção pedagógica cada vez mais

competente.

60

3.7. O sistema educativo: Organização, administração e financiamento 8

3.7.1. Diagnóstico

A partir da Constituição da República Portuguesa, os portugueses viram consagrado

um importante conjunto de direitos. De entre eles, o direito à educação. Mas esse

direito não tem sido gozado plenamente e sem perturbações até aos dias de hoje.

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, muitas foram as medidas avulsas de política

educativa. Foi unificada a educação básica; desapareceram os “liceus” e foram criadas

as “escolas secundárias”; foram introduzidas e retiradas disciplinas e áreas curriculares

no ensino básico e secundário; foi criado o ensino superior politécnico; foram

mudando os critérios de acesso ao ensino superior; sucederam-se reorganizações no

Ministério da Educação e seus órgãos desconcentrados.

A Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) de 1986 (Lei nº 49/86, de 14 de

Outubro) teve o mérito de traçar um quadro legislativo de referência que ainda se

mantem em vigor, embora com sucessivas actualizações (Lei nº 115/97, de 19 de

Setembro, que altera o regime de acesso ao ensino superior, o sistema de graus e o

sistema de formação de professores para o ensino básico; a Lei nº 49/2005, de 30 de

Agosto, que adequa o ensino superior ao exigido pela Declaração de Bolonha, define

novas condições de acesso e estabelece a fixação do valor da propina para frequência

do ensino superior; a Lei nº 85/2009, de 27 de Agosto, que altera a duração da

escolaridade obrigatória e o regime de universalidade, obrigatoriedade e gratuitidade

na organização geral do sistema educativo).

Em nosso entender, a LBSE precisa, hoje, de nova revisão. Surgiu como a âncora de

novas medidas educativas, então tomadas (os currículos nacionais, a escolaridade

obrigatória até ao 9º ano e/ou até aos jovens atingirem a idade de 15 anos e uma nova

forma de pensar a educação de adultos e o ensino vocacional), mas em alguns aspectos

8 Para esta reflexão, a Comissão Executiva tomou por base o texto Organização, Administração

e Financiamento da Educação elaborado por Belmiro Cabrito, João Pinhal, Jorge Martins,

Maria José Rau (coordenadora), Mariana Dias e Natércio Afonso, bem como o parecer dos

consultores Licínio Lima e Paulo Guinote e, ainda, o relato do seminário realizado sobre esta

área temática. As ideias expendidas são, todavia, da responsabilidade da Comissão Executiva.

61

está desajustada aos desafios da situação actual e, noutros, encontra-se desfigurada por

medidas avulsas entretanto tomadas.

No início da década de 1990, estavam de pé novas modalidades de educação de

adultos, o ensino recorrente e de formação vocacional, o sistema de aprendizagem e as

escolas profissionais. Na continuação deste processo evolutivo, assistiu-se à

reorganização do sistema educativo, seja na estrutura interna do Ministério da

Educação e nos órgãos desconcentrados de apoio, seja na formação de professores, na

educação de adultos, nos concursos para a docência, no sistema de avaliação dos

alunos e, conquista importante, nas questões da autonomia da escola.

Nesta evolução, são de salientar os primeiros passos dados para um processo que

elegia a escola como o locus da tomada de decisão sobre a sua gestão, assente numa

administração colegial e assistida por um importante órgão de natureza pedagógica.

Por outro lado, as associações de pais e de encarregados de educação tornam-se

parceiros da escola democrática. Gradualmente, ultrapassavam-se as sequelas do

regime anterior e procurava dar-se ao País uma população mais instruída numa escola

inclusiva e democrática. A escola foi ganhando a sua autonomia, sendo-lhe afectas

competências de gestão organizacional, pedagógica e curricular. Ainda que

gradualmente, a escola foi-se abrindo ao exterior, aproximando-se mais do contexto

social e geográfico em que se insere, com órgãos de gestão onde tomavam assento os

representantes das entidades locais. As Autarquias foram adquirindo a atribuição

sucessiva de competências, nomeadamente no domínio financeiro. Sem se cair num

municipalismo fundamentalista, a escola na concepção da LBSE foi chamada a

colaborar com o seu contexto sócio-geográfico, partilhando competências e projectos.

Presentemente, o funcionamento da escola está, contudo, cada vez mais ameaçado

pela ausência de uma visão de futuro, de uma perspectiva ampla e consensualizada

sobre a educação e o seu papel no desenvolvimento de uma sociedade democrática. O

bem comum é subalternizado por burocracias que dificultam o trabalho de docentes e

não docentes e por um financiamento progressivamente mais escasso que coloca a

escola na dependência financeira do exterior. Vemos com preocupação que,

actualmente, pesam sérias ameaças sobre a escola pública e a qualidade do ensino que

nela se assegura.

62

Não obstante os retrocessos havidos e as indefinições detectadas, a escola pública

persiste em ser uma escola para todos, um esteio cultural que, em tantos lugares,

procura trilhar, mesmo que por vezes debilmente, os caminhos da equidade e da

justiça social.

3.7.2 Identificação de Problemas

Muitos são os problemas que o sistema de educação em Portugal tem vivenciado nos

últimos anos. De seguida enunciamos, sem ordem de importância nem preocupação de

o fazer exaustivamente, alguns deles:

A) - No que respeita aos alunos, há que salientar:

- A indefinição do que se espera dos alunos, após sucessivas mudanças operadas

nos objectivos, nos currículos, na avaliação, e que conduzem às actuais metas

curriculares passíveis de fortes críticas;

- Uma avaliação demasiadamente dependente do cumprimento estrito do

programa, subordinada aos critérios dos rankings e que pode justificar a morte

progressiva da escola pública;

- Uma política acrítica de não retenção que, permitindo a poupança nos gastos

públicos e contribuindo para melhorar estatisticamente o desempenho do sistema

educativo, esquece, todavia, as dificuldades de aprendizagem de alguns e as suas

reais necessidades;

- O encerramento de jardins-de-infância e de escolas do ensino básico de

proximidade, em nome de critérios de eficiência e eficácia, mas, em alguns casos,

com evidentes prejuízos, designadamente para crianças obrigadas a enfrentar

precocemente ambientes que lhes não são familiares e sujeitas a transportes

longos e, por vezes, arriscados;

- A falta de apoio psicológico e de orientação profissional bem como as

deficientes condições de inclusão dos indivíduos com necessidades especiais;

- A dualização da oferta – o ensino regular e “o outro” - obrigando as crianças a

fazerem escolhas precoces, que ainda não perspectivaram nem amadureceram, ou

deixando aos pais a decisão da via a seguir pelos seus filhos, decisão em muito

dependente do capital cultural da família, mais do que das reais possibilidades e

63

interesse da própria criança, reforçando-se, assim, a reprodução social das

desigualdades;

- A desigualdade de condições de acesso e permanência no ensino superior em

função da escola secundária que se frequentou, do capital cultural de que se é

portador e dos recursos disponíveis para fazer face aos custos directos e

indirectos.

B)- No que se refere aos docentes, cabe destacar:

- A complexidade e as potenciais situações discriminatórias dos concursos de

colocação de professores e da avaliação dos professores bem como os exames ad

hoc requeridos para o desempenho da profissão, não por se negar a sua

importância, mas pelo facto de não se constituírem num instrumento formativo e

por abrangerem docentes com vários anos de exercício da profissão;

- A precariedade da profissão e a degradação da carreira docente por parte da

tutela e sua repercussão na atitude e no comportamento dos estudantes e das

famílias;

- A proliferação de circulares, avisos e outros normativos que alteram currículos e

objectivos e obrigam a esforços inauditos de reprogramação, muitas vezes ao

longo de um mesmo ano escolar, assim como a excessiva carga burocrática a que

os docentes estão sujeitos;

- O desigual estatuto social da escola pública e da escola privada.

C)- No que concerne à direcção e gestão das escolas e agrupamentos, importa

mencionar:

- A actual modalidade de gestão unipessoal, potencialmente discricionária e uma

pretensa descentralização que na prática não se verifica, dado o conjunto

exagerado de normas e regras emanadas da administração central;

- O anonimato de cada actor (professor, aluno, funcionário), reduzido a um

número na imensidão e híper burocratização da gestão dos agrupamentos;

- A perda de identidade das escolas absorvidas e assimiladas pelos valores

uniformizadores e pelos critérios de pretensa racionalidade económica e financeira

dos mega agrupamentos;

64

- As novas competências educativas atribuídas aos municípios porque assentes em

contratos que permitem conceber e implementar até 25% dos currículos nacionais

e privilegiam ganhos financeiros, negociados fora da escola e sem o concurso dos

respectivos actores educativos;

- A perda de autonomia das escolas e agrupamentos, que poderá ser transferida

para comissões intermunicipais sem que se perceba a legitimidade social e política

destas entidades, num processo de municipalização da educação onde o que conta

é o número (seja a unidade orgânica, o aluno, o professor ou o euro) e se abre a

porta à discricionariedade, ao caciquismos e a outras situações ética e moralmente

condenáveis;

- A concorrência desleal que o ensino privado, em certos casos, faz á escola

pública, tantas vezes tendo por base financiamentos injustificadas por parte do

Estado.

D)- Relativamente aos encarregados de educação, são de assinalar:

- As dificuldades acrescidas em compreender a escola, face às sucessivas

mudanças curriculares, à indefinição do processo de avaliação, à instabilidade

profissional dos docentes, às tomadas de decisão operadas fora da

escola/agrupamento;

- A perturbação decorrente da situação concentracionária vivida nos mega

agrupamentos e do encerramento de escolas de pequena dimensão e de

proximidade;

- A constatação de que a escola pode ser um factor que potencia e fomenta as

diferenças sociais, em vez de as superar.

E)- No que concerne à região e ao País, merece particular atenção:

- A desertificação continuada de algumas regiões do interior do País que vêem

encerradas as escolas locais de pequena dimensão e o afastamento das crianças e

jovens dos seus territórios e consequente intensificação de tensões entre regiões

(litoral/interior; norte/sul; urbana/rural, rica/pobre);

65

- A centralização de inúmeras decisões, mesmo que o centro seja a autarquia,

impedindo a escola/agrupamento de operar em favor do desenvolvimento do

território;

- A produção de uma educação uniformizada, massificada e submetida ao número,

ou à posição no ranking;

- O recrudescimento de conflitos e tensões sociais decorrente de encerramento de

escolas, abertura e fecho de cursos e vias educativas e da competição entre escolas

e agrupamentos, para ganhar alunos, patrocinadores e financiamentos.

3.7.3 Propostas

Os problemas acima destacados, e tantos outros que não enunciámos, retratam bem a

democratização às avessas que vivemos nos últimos anos a que não ficou alheia a

escola pública. É esta uma realidade que urge inverter para alcançar uma educação

básica de qualidade para todos. Nesse sentido apontam-se algumas propostas cuja

definição e implementação consideramos da maior urgência. Entendemos que as

mesmas não devem ser medidas avulsas, mas integradas numa visão prospectiva que,

tendo em conta a realidade presente, corrija as disfuncionalidades encontradas e

aponte uma orientação clara na construção de um projecto educativo que assegure a

todas as pessoas igualdade de oportunidades de uma educação de qualidade.

Assim sendo, sublinhamos os seguintes traços de uma necessária reforma do sistema

educativo no que respeita à sua organização, administração e financiamento:

- Garantir uma escola para todos, uma escola inclusiva que apoie psicológica,

pedagógica e financeiramente todos os estudantes na medida das suas

necessidades;

- Definir um sistema educativo nacional, com currículos nacionais, susceptíveis de

serem localmente adaptados;

- Criar condições para uma gestão democrática das escolas que seja promotora de

processos de negociação e de compromisso com os órgãos de poder local;

- Assegurar por parte do Estado um financiamento base que permita o

funcionamento corrente digno de cada escola e agrupamento e que possibilite e

premeie a qualidade;

66

- Promover uma avaliação urgente dos efeitos da criação dos agrupamentos sobre

a qualidade da educação e impactos colaterais nos territórios e nas condições de

trabalho e dignificação do pessoal docente e não docente;

- Incentivar a associação voluntária de escolas (horizontal e/ou vertical) em torno

de projectos de educação e de intervenção articulados com a comunidade, tendo

em conta os seus problemas e potencialidades;

- Proceder à redefinição da rede pública de ensino básico e secundário que permita

e fomente a colaboração das várias instituições sem o freio de um agrupamento

obrigatório;

- Assumir, claramente, a responsabilização do Estado pela educação, ainda que se

entenda o nível municipal como contexto privilegiado de articulação entre as

políticas educativas nacionais e os objectivos e políticas de desenvolvimento

humano e social locais;

- Promover a cooperação e negociação entre o governo central e os municípios,

mas sem cair na tentação da municipalização do ensino;

- Clarificar o estatuto da escola pública, actualmente espartilhada entre o

centralismo estatal e uma tendência para uma municipalização fundamentalista e

acrítica da educação;

- Repensar as actuais políticas de gestão, de modo a prevenir e a combater a

crescente despersonalização das pessoas e da entidade escolar;

- Reforçar a autonomia pedagógica da escola, clarificando e valorizando o papel

dos professores e educadores, encarregados de educação, funcionários e direcção,

e colocando a escola ao serviço do bem comum;

- Adoptar modelos de formação inicial e contínua de professores e educadores que

avaliem, além dos conhecimentos em áreas específicas, as capacidades para o

exercício da docência e para o desempenho das demais funções educativas e de

relacionamento com a comunidade;

- Rever os currículos e cursos das Escolas Superiores de Educação, de modo a

assegurar uma formação científica e pedagógica de qualidade;

- Promover processos de prestação de contas mediadas pelo sentido social da

educação e, em geral, aperfeiçoar o sistema de avaliação de desempenho,

designadamente analisando os resultados académicos à luz do respectivo contexto

local, social, económico e cultural.

67

Nas propostas que enunciamos subentendemos que se mantem vigente a Lei de Bases

do Sistema Educativo, mas defendemos que aquela merece ser objecto de actualização

em sede parlamentar com base num consenso político alargado que obrigue os

governos na respectiva implementação e dê aos diferentes actores e aos cidadãos em

geral um quadro de referência estável, capaz de trazer segurança ao sistema e

suficiente flexibilidade para uma criatividade responsável.

4. A educação: um projecto comum de toda a sociedade

Depois da reflexão feita sobre diferentes áreas temáticas e seus contornos específicos

(diagnóstico, identificação de problemas, apresentação de propostas), convém retomar

uma visão de síntese e fixar a atenção sobre as coordenadas axiais de um projecto de

educação para Portugal.

Consideramos que tal projecto, devidamente consensualizado, deve servir de

orientação da política educativa pública para os próximos anos, bem como constituir

um guia para o enquadramento da participação da sociedade na tarefa comum de

promover mais e melhor educação, designadamente no caso das crianças e dos jovens

e das pessoas com défice de literacia e qualificação básica.

Como seria inevitável, retomamos neste capítulo final as ideias principais já

explanadas em capítulos anteriores deste documento.

4.1 O lugar central da educação na vida de cada pessoa e na sociedade

Reconhecemos que a educação é um factor nuclear da construção da felicidade e da

realização humana, no plano individual e societal, bem como um requisito

determinante do desenvolvimento cultural, científico e sócio-económico de um país,

da prosperidade colectiva, da sustentabilidade ambiental e da coesão social.

Assim sendo, a educação deve merecer lugar de destaque nas políticas públicas, na sua

definição, implementação e avaliação, tendo por referência os objectivos

constitucionalmente consagrados sobre o direito à educação e, consequentemente, as

políticas públicas devem ser devidamente escrutinadas à luz deste critério.

68

Mas não só os governos assumem responsabilidade no domínio da educação; também

a sociedade civil é chamada a dar o seu contributo na prossecução do objectivo

comum de proporcionar mais e melhor educação e cuidar desta como de um

património colectivo que a todos beneficia, um verdadeiro tesouro, como já foi

designada (Jaques Delors e outros, 1996)9.

Este desígnio é uma exigência imposta também pelos novos desafios com que todos os

povos estão confrontados neste primeiro quartel do século XXI, nomeadamente o

avanço no conhecimento científico e a sua difusão, as tecnologias de informação e

comunicação, a mundialização das economias, a mobilidade geográfica e suas

consequências para a cidadania, a interculturalidade. Estas mudanças estão em curso e

em processo de forte aceleração o que, só por si, implica novos paradigmas no

domínio da concretização do direito à educação.

A educação dirige-se a toda a população em qualquer etapa de vida, mas enquanto

projecto educativo reveste particular relevância no que concerne à formação das

gerações mais novas e no que diz respeito àquele segmento da população adulta com

défice de educação básica.

Em nosso entender: Pensar a Educação não pode ficar à margem das agendas

políticas dos partidos e suas propostas de programa, da Assembleia da República,

do Governo, das Autarquias, das universidades, dos media, da intelectualidade e

dos cidadãos em geral. Trata-se de uma questão que a todos diz respeito, ao nosso

presente e ao nosso futuro.

4.2 Os nossos pressupostos

A construção de um projecto educativo tem de assentar num conjunto de pressupostos

relativamente aos objectivos visados, aos valores que os informam, aos actores que os

concretizam e à delimitação de responsabilidades.

Para que uma reflexão colectiva seja frutuosa, é indispensável que tais pressupostos

sejam explicitados. É o que procuraremos fazer nos considerandos que seguem:

9 Delors, J. e outros (1996). Educação um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da

Comissão Internacional sobre a educação para o século XXI. Alfragide: edições ASA.

69

- A educação visa, em primeiro lugar, reconhecer e potencializar as

capacidades de cada pessoa, contribuindo para o seu desenvolvimento integral e

para a sua realização pessoal, dotando-a de ferramentas para, ao longo da vida,

progredir no conhecimento e na criatividade, na participação na actividade

económica e na vida cultural e cívica da sociedade a que pertence;

- A educação deve ter por matriz os Direitos Humanos Universais e a

Constituição da República, assentando num conjunto de valores

consensualizados como fundamentais;

- Ao Estado compete proporcionar a todos os cidadãos e cidadãs igualdade de

acesso e sucesso no que diz respeito a uma educação básica, segundo os melhores

padrões de qualidade e garantir a eficiência do sistema educativo, incluindo o seu

aperfeiçoamento contínuo na base da investigação e da avaliação permanentes. Ao

Estado cabe, ainda, assegurar a investigação e o ensino de nível superior e criar

condições de igualdade de oportunidades de acesso e sucesso a este nível de

ensino e investigação;

- A educação deve ser pensada tendo em conta o seu contributo para um

projecto de desenvolvimento para toda a colectividade que, além do

crescimento económico, contemple a coesão social, a sustentabilidade ambiental e

a prossecução da paz entre os povos;

- A educação é missão de toda a sociedade que deve aprender a valorizá-la e a

cuidá-la como seu património imaterial, cabendo ao Estado, além da sua missão

específica, o dever de colaborar com a sociedade civil para que esta reconheça e

exerça a sua participação nesta missão comum.

4.3 Um conceito abrangente da educação

Como já anteriormente referimos, entendemos que a educação, nos seus vários níveis,

comporta duas vertentes nucleares:

- A criação e a transmissão de conhecimento, incluindo a aquisição de ferramentas

para a sua apropriação crítica ao longo da vida e a construção do próprio saber;

- A formação para o desenvolvimento humano integral de cada pessoa e para o

exercício de uma cidadania responsável.

Numa perspectiva abrangente, o conceito de educação deve preencher os seguintes

requisitos:

70

-Ter presente o carácter dinâmico das sociedades e integrar uma visão prospectiva

das transformações que ocorrem, no País e no Mundo;

- Integrar uma visão crítica do passado e, por essa via, aprofundar o enraizamento

das novas gerações nas tradições e valores herdados, desde que criticamente

assumidos, e promover a identidade e a afiliação das diferentes gerações;

- Formar para o cuidado de si e dos outros, concorrendo para a autonomia do

sujeito e para a sua responsabilização por si mesmo, pelos outros e pelo Planeta;

- Assumir, explicitamente, a dimensão ética da vida e os valores universais e

constitucionais de referência do comportamento humano individual e colectivo.

A nosso ver, é fundamental que um conceito abrangente de educação mereça o devido

entendimento e atenção por parte dos docentes, dos alunos, dos encarregados de

educação e de toda a comunidade envolvente e que o mesmo sirva de referência

permanente na elaboração, concretização e avaliação de todos os projectos educativos.

4.4 Sobre o papel nuclear de professores, educadores e outros

profissionais de educação

Não é possível dissociar a qualidade de um sistema educativo do seu corpo de

profissionais, com destaque para os professores e educadores, mas sem esquecer

outros técnicos, administrativos e pessoal auxiliar. São todos estes profissionais que,

no exercício quotidiano das suas actividades, dão corpo a um dado projecto educativo

e concorrem para o seu respectivo sucesso e desenvolvimento. Importa, pois, que

todos os profissionais estejam devidamente esclarecidos sobre o projecto educativo e

motivados para o bom desempenho das suas funções, tenham adquirido a devida

competência para o exercício das mesmas, vejam assegurada a desejada estabilidade

no seu posto de trabalho e na sua carreira profissional. Consideramos que estas

condições são essenciais para assegurar um ensino e uma educação de qualidade.

No que se refere aos docentes, há que reconhecer que, presentemente, recai sobre eles,

uma carga burocrática desmesurada que asfixia a necessária criatividade e a

disponibilidade para a função docente propriamente dita e obriga a pesado fardo sobre

a sua vida pessoal e familiar, a que acresce uma significativa e inaceitável

desvalorização social da profissão, que origina desinteresse e frustração. Há que

71

reverter, com urgência, esta situação, pelo que importa alterar as condições que

subjazem ao desempenho da actividade docente.

Assim sendo, propomos:

- Uma acção de valorização e dignificação da missão do professor junto de pais

e educadores e da opinião pública em geral e a urgente redefinição do estatuto do

professor com restabelecimento da sua autoridade;

- A definição e aplicação de regras claras de acesso, avaliação e progressão na

carreira, através de uma revisão adequada da legislação em vigor;

- A criação de condições de estabilidade nos postos de trabalho de todo o

pessoal docente e não docente, repudiando a cultura do descartável e afirmando a

ideia de uma comunidade de trabalho estável e corresponsável;

- A criação de equipas multidisciplinares de intervenção em áreas como a

saúde, o serviço social, o apoio psicológico, a assistência jurídica, entre outras, de

modo a libertar os docentes destas tarefas, ainda que sem os dissociar inteiramente

das mesmas;

- O investimento na formação permanente do pessoal docente e não-docente,

a cargo da entidade empregadora, Estado ou particulares, e obrigatoriamente

integrada nos respectivos horários de trabalho, como componente intrínseca de

um desempenho de qualidade;

- A atribuição de incentivos à investigação em domínios científicos e

pedagógicos relacionados com a sua actividade docente e sua difusão nas

comunidades educativas.

4.5 Sobre a autonomia e gestão democrática das escolas

Qualquer proposta de estratégia de educação para o futuro não pode dissociar-se do

modelo de gestão dos estabelecimentos escolares, incluindo os seus recursos humanos,

físicos e financeiros e a sua saudável articulação com os níveis superiores de decisão

política.

A legislação em vigor sobre a organização do ensino público tem conduzido à

constituição de agrupamentos escolares que vieram secundarizar, ou mesmo anular, a

figura tradicional de escola enquanto estabelecimento de ensino e comunidade

educativa desejavelmente dotada de autonomia relativamente à gestão corrente e à

72

construção de um projecto educativo próprio, ainda que sempre enquadrado no plano

educativo nacional.

O actual modelo de gestão não favorece as condições de confiança e sentido

colaborativo entre todos os intervenientes no processo educativo, condições

indispensáveis à construção de um projecto educativo participado e devidamente

assumido por todas as pessoas que o devem concretizar.

Assim sendo, propomos que sejam tomadas, entre outras, as seguintes medidas:

- Avaliação e revisão urgentes da constituição dos actuais agrupamentos, por

forma a garantir uma gestão de proximidade e de cariz humano e a assegurar a

democracia interna no seu funcionamento;

- Legislação e prática administrativa que ponham termo a uma centralização

excessiva que conduz ao anonimato e ao reforço da burocracia e, em muitos

casos, desenvolve entropias difíceis de identificar e corrigir, mas que se traduzem

sempre em custos ocultos que obstam à eficiência e à eficácia do sistema. O

controlo burocrático exercido através de plataformas informáticas, como hoje

existe, tem-se revelado um sorvedoiro de energias, nomeadamente no que se

refere ao tempo profissional e pessoal dos docentes, situação esta que em nada

contribui para promover uma educação pública de qualidade;

- Revisão urgente dos critérios que estão em uso para a avaliação do

desempenho da gestão dos agrupamentos, porquanto os mesmos

frequentemente induzem tomadas de decisão incorrectas quando apreciadas numa

perspectiva de qualidade da educação pública e sua adequação às necessidades da

sociedade e da sustentabilidade do sistema no futuro. Não é aceitável, por

exemplo, que, por razões de mera economia de custos, se suprimam certas

disciplinas e cursos, impondo restrições severas ao leque de opções dos alunos.

Não é defensável que se procure descartar professores mais experientes por razões

de redução dos custos;

- Temos assistido nos últimos anos a uma desvalorização sucessiva da LBSE de

1986, por parte da tutela da educação, embora a mesma se mantenha em vigor,

com sucessivas alterações. Consideramos que a LBSE não deve ser ignorada ou

subestimada mas carece de revisão e actualização, através de uma participação

alargada dos vários actores e forças políticas, de modo a construir um amplo

73

consenso político em torno do desenho do sistema educativo para os próximos 10-

15 anos.

Concluímos afirmando a nossa convicção de que pensar a educação é uma tarefa

comum e inadiável.

Quisemos dar o nosso contributo e neste projecto desafiámos e comprometemos mais de

uma centena de pessoas entre relatores e membros dos grupos de reflexão, consultores,

moderadores e participantes dos seminários nas diferentes áreas temáticas.

A todas e a todos, queremos expressar o nosso reconhecimento pela sua generosidade e

pelo valor dos respectivos contributos, com os quais muito beneficiámos na redacção

deste texto. Salientamos, porém, como anteriormente já temos referido, que ele é da

inteira responsabilidade da Comissão Executiva e que esta não teve a pretensão de

apresentar um produto fechado, mas tão somente procurar trazer a debate algumas das

principais pistas de reflexão em torno de uma temática vasta, complexa e com múltiplas

implicações para o nosso presente e para o nosso futuro colectivo.

Desejamos que a realização desta Conferência sirva de impulso para que se inicie um

processo de reforma do sistema de educação que, aproveitando do muito que foi

construído nas últimas décadas, seja célere na correcção dos erros detectados e

audaciosa no enfrentar dos novos desafios que no horizonte se perfilam.