pensar a educação depois de foucault

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Educação, doutrinação dos corpos a partir de Foucault

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  • Pensar a educao depois de Foucault

    TAGS: dossi

    A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle permite entender as

    atuais mudanas da instituio escolar

    Maria Rita de Assis Csar

    Depois das anlises de Michel Foucault, a escola nunca mais foi a mesma. A partir da

    histria genealgica, a educao na sua modalidade escolarizada passou a ser

    considerada maquinaria destinada a disciplinar corpos em ao. Em Vigiar e punir,

    Foucault descreveu vrios processos de disciplinarizao dos corpos em diferentes

    instituies, como colgios, fbricas, oficinas, conventos e quartis, demonstrando que a

    principal caracterstica de tais instituies a disciplina corporal. Dentre todas as

    instituies disciplinares, a escola possui a maior abrangncia, pois nela que os

    indivduos passam a maior parte da sua formao, at que estejam prontos para a vida

    adulta. Por sua vez, a disciplina no interior da instituio educacional no se restringe ao

    corpo, pois ali tambm ocorre a submisso dos conhecimentos disciplina institucional,

    isto , a escolarizao dos saberes. Ela consistiu numa operao histrica de

    organizao, classificao, depurao e censura dos conhecimentos, de modo que a

    operao moralizadora no atingiu s os corpos, mas tambm os prprios

    conhecimentos a serem ensinados. A escola disciplinar no distingue entre corpo e

    conhecimento, praticando a moralizao de ambos na medida em que seu objetivo a

    produo do sujeito sujeitado.

    O processo de disciplinarizao dos corpos de crianas e jovens se encontra no centro

    das preocupaes de Vigiar e punir. Ela ocorreu em locais arquitetonicamente

    preparados para aquele fim, isto , locais cercados, quadriculados, com uma disposio

    espacial estudada e um mobilirio especialmente desenhado, sem falar na presena de

    especialistas preparados para a aplicao de exerccios para a mente e para o corpo. O

    nascimento da chamada escola disciplinar se deu em um perodo de intensas

    modificaes nas estruturas de poder, as quais deram origem ao aparato social e poltico

    que Foucault denominou sociedade disciplinar. Em uma palavra, a genealogia foucaultiana nos ofereceu um importante modelo terico para entender o surgimento

    no apenas da escola moderna, mas tambm da priso, do hospital, do hospital

    psiquitrico e da fbrica, instituies por excelncia da modernidade.

    Em um conjunto de conferncias proferidas no Rio de Janeiro em 1973, posteriormente

    publicadas com o ttulo de As verdades e as formas jurdicas, Foucault empreendeu

    uma abordagem muito particular sobre o poder, tema sobre o qual vinha desenvolvendo

    investigaes desde sua aula inaugural no Collge de France, em 1970. Nestas

    conferncias, Foucault demonstrou as transformaes das relaes de poder que deram

    origem a um tipo que se desenvolveu a partir do sculo 18, o poder disciplinar. Para

    Foucault, o poder disciplinar fruto de transformaes da sociedade europeia, mais

    precisamente, do deslocamento de um poder que estava concentrado nas mos do Rei,

    para um corpo burocrtico e institucional disseminado ao longo do tecido social.

    Segundo o autor, a partir de ento, o poder se exerceria, preferencialmente, de maneira

    mais fluida, na forma de micropoderes ou de uma micropoltica. O poder disciplinar se

  • exerce sobre os corpos individuais por meio de exerccios especialmente desenhados

    para a ampliao de suas foras. A despeito dos exerccios de adestramento dos corpos

    ocorrerem em espaos isolados e de maneira desordenada, gradativamente surgiu o

    conjunto das instituies disciplinares, cuja funo foi a produo de corpos teis e

    dceis.

    Normal e anormal

    O processo de disciplinarizao corresponde aos mecanismos de normatizao, isto ,

    aos processos de nominao e separao entre o indivduo normal e o anormal. Esse processo de separao fundamental em se tratando da produo do sujeito moderno, o

    sujeito normalizado. Todos os procedimentos disciplinares presentes no interior da

    instituio escolar, da arquitetura aos cadernos de classe, dos exerccios fsicos aos

    exames, concorrem para a produo do sujeito normalizado. Para Foucault, a instituio

    escolar foi o lugar privilegiado das medidas higinicas e alimentares destinadas a

    garantir a sade fsica e moral de jovens e crianas. Instituio disciplinar, a escola se

    constituiu como local privilegiado da realizao exaustiva de exerccios, exames,

    punies e recompensas centradas no corpo infantil.

    As leis de obrigatoriedade escolar na Europa das ltimas dcadas do sculo 18 e

    primeiras do 19 tinham como objetivo capturar as crianas das ruas e coloc-las em um

    ambiente cerrado, aplicando-lhes exerccios disciplinares que visavam governar seus

    corpos e almas. A contrapartida dessa ao foi a imediata definio das crianas que

    escapavam quela rede como potenciais causadoras da desordem social. Assim se

    estabeleceu por completo a configurao da escola primria como a forma de captura e

    governo da infncia, a qual, por sua vez, repartia a infncia entre normal e anormal, na

    justa medida em que os corpos e almas das crianas eram capturados e governados no

    interior das redes de escolarizao ou dela escapavam. A educao, ao se transformar

    em uma forma de razo de Estado, acabou por configurar o Estado como um ente

    educador. A aliana entre Estado, pedagogia e medicina colocou todos os aspectos da

    vida das crianas em evidncia no interior da escola e suas mnimas manifestaes

    foram cuidadosamente escrutinadas: alm das aulas, as brincadeiras de ptio, a merenda,

    as vacinas, os exerccios fsicos, a higiene corporal, tudo foi tomado como campo de

    interveno e produo de verdades sobre a infncia, formando-se um sistema

    disciplinar no qual os exames corporais compuseram medidas centrais no processo de

    educao escolarizada. No contexto disciplinar, a higiene e a sade destinavam-se

    construo de uma populao saudvel; o civismo, formao de uma populao

    amante dos valores nacionais; ao passo em que o letramento destinava-se produo de

    uma populao de trabalhadores esclarecidos. Assim se configuraram os valores

    absolutos de todos os projetos nacionais de educao, os quais tomaram a infncia como

    objeto de suas prticas de conformao visando produo de uma populao adulta

    vivel, previamente preparada para as formas de governamento centradas na gesto do

    trabalho, da famlia e da sade.

    Fim da disciplina na escola?

    Quando hoje se acena para o fim dos sujeitos escolares, isto , para o fim da infncia e

    para a morte da adolescncia, o foco do argumento que as prticas e os discursos que

    constituram tais sujeitos no mbito dos processos da escolarizao disciplinadora da

    modernidade entraram em crise e deixaram de produzir tais sujeitos. O prprio Foucault

  • j observara os limites histricos da sociedade disciplinar nos ltimos anos da dcada de

    1970. Os prprios conceitos de biopoltica e de governamentalidade neoliberal, fruto de

    suas pesquisas no final da dcada de setenta, j apontavam que as transformaes pelas

    quais o Estado comeava a passar em funo da crescente autonomizao do mercado

    econmico acabariam por levar produo de novos sujeitos.

    Seguindo as pegadas de Foucault, Gilles Deleuze compreendeu a crise da sociedade

    disciplinar como uma crise dos modos de confinamento centrados na priso, no

    hospital, na fbrica, na escola e na famlia. Para Deleuze, se os confinamentos da

    disciplina eram moldes produtores de subjetividades, os novos controles so uma

    modulao, isto , uma moldagem que pode ser transformada continuamente de maneira

    a produzir a subjetividade flexvel como chave do controle. As antigas instituies se

    transformaram em empresas, modificando a gramtica que havia sido produzida pela

    velha sintaxe disciplinar.

    A passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle permite entender as

    mudanas pelas quais a instituio escolar vem passando desde a ltima dcada a fim de

    tornar-se a instncia de produo do novo sujeito moral, o sujeito flexvel, tolerante e

    supostamente autnomo, requerido pelas novas modulaes do controle que gravitam

    entre o Estado e o mercado neoliberal. Nesse processo, tornaram-se decisivas novas

    tecnologias informacionais, nutricionais, educativas e fsicas, as quais se destinam a

    ampliar as capacidades corporais e cognitivas dos indivduos, que devem se tornar

    empreendedores de si mesmos. Como nos mostram as anlises de Nascimento da

    biopoltica, de 1979, o novo sujeito que est a ponto de substituir o sujeito disciplinado

    da modernidade ser o produto de novas tcnicas de controle e governamento

    neoliberal. Trata-se agora de produzir um sujeito capaz de responder s demandas

    flexveis do mercado, objetivo que orienta obsessivamente os investimentos familiares e

    as intervenes governamentais do Estado sobre o campo da sade e do corpo das

    populaes, todas elas visando fomentar a atitude autoempreendedora capaz de produzir

    o capital humano exigido pelos tempos que correm