pensar 07 04 2012

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VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE ABRIL DE 2012 www.agazeta.com.br Pensar O mistério de Jesus Livros GILBERT CHAUDANNE ANALISA O ÓBITO DE PARIS EM ILUSÕES PERDIDAS”, DE BALZAC. Página 4 Música LUIZ SÉRGIO QUARTO DESCREVE O CANTO APAIXONADO DE NORA NEY. Página 5 Perfil UMA CONVERSA SOBRE JAZZ E BOSSA NOVA COM O MESTRE LUIZ PAIXÃO . Páginas 10 e 11 Memória MILSON HENRIQUES CONTA COMO MILLÔR FERNANDES INFLUENCIOU TODA UMA GERAÇÃO. Página 12 ESPECIALISTA DESTACA ASPECTO HUMANO DO PERSONAGEM QUE MUDOU A HISTÓRIA Páginas 6 e 7 REPRODUÇÃO O Sermão da Montanha”, de Carl Heinrich Bloch (1834-1890), é um dos mais conhecidos retratos artísticos da figura central do cristianismo

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Page 1: Pensar 07 04 2012

VITÓRIA, SÁBADO, 7 DE ABRIL DE 2012www.agazeta.com.brPensar

O mistério de Jesus

LivrosGILBERTCHAUDANNEANALISA OÓBITO DE PARISEM “ILUSÕESPERDIDAS”, DEBALZAC.Página 4

MúsicaLUIZ SÉRGIOQUARTODESCREVEO CANTOAPAIXONADO DENORA NEY.Página 5

PerfilUMA CONVERSASOBRE JAZZ EBOSSA NOVACOM O MESTRELUIZ PAIXÃO.Páginas 10 e 11

MemóriaMILSONHENRIQUESCONTA COMOMILLÔRFERNANDESINFLUENCIOUTODA UMAGERAÇÃO.Página 12

ESPECIALISTA DESTACA ASPECTO HUMANO DOPERSONAGEM QUE MUDOU A HISTÓRIA Páginas 6 e 7

REPRODUÇÃO

“O Sermão da Montanha”, de Carl Heinrich Bloch (1834-1890), é um dos mais conhecidos retratos artísticos da figura central do cristianismo

Documento:AG07CP001;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Apr de 2012 19:50:47

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2PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE ABRILDE 2012

marque na agenda prateleiraquempensa

Ester Abreu Vieira de OliveiraépresidentedaAcademiaFemininaEspí[email protected]

GilbertChaudanneéescritorepintor.Publicouos livros“Amoçanajanela”e“AbuscadoSantoGraal”,entreoutros.

LuizSérgioQuartoéprofessorepesquisadormusical.

HelderSalvadorépadrereitordoSeminárioMaiordadiocesedeCachoeiroeprofessordeFilosofiaeTeologia.

CaêGuimarãeséjornalista,poetaeescritor.Publicouquatrolivroseescrevenositewww.caeguimaraes.com.br

SergioDamiãoémédicoemembrodaAcademiaCachoeirensedeLetras.estudos@santacasacachoeiro.org.br

AngelaTogeiroéescritorae2ªvice-presidentedaAcademiaFemininaMineiradeLetras.angelatogeiro@task.com.br

ManuelaLopesSantosNevesé jornalistaemestreemCiênciadaInformaçã[email protected]

Uma Breve Históriado CristianismoGeoffrey BlaineyO historiador australianoanalisa de forma imparcialos primeiros passos docristianismo, investiga oseventos que possibilitaram

a evolução da religião mais professada domundo e conta por que a doutrina cristãpermanece tão viva nos dias de hojequanto nos seus primórdios.

328 páginas. Fundamento. R$ 29,50

MayaJostein GaarderNeste romance, estranhascriaturas começam aperturbar os estudos de umpaleontólogo que fazpesquisas no arquipélago deFiji, na Oceania. O cientista

começa a duvidar da lógica das coisas eacaba se convencendo de que a relatividadedo tempo é uma teoria muito esquisita.

384 páginas. Companhia das Letras. R$ 26,50

Olhares Sobreo ModernoItalo CampofioritoO primeiro título da ColeçãoModernismo + 90, sobre os90 anos da Semana de ArteModerna de 1922, destaca a

trajetória de Italo Campofiorito, fielescudeiro de Oscar Niemeyer e LucioCosta na construção de Brasília e símboloda arquitetura moderna brasileira.

160 páginas. Casa da Palavra. R$ 34,90

A Corporação queMudou o MundoNick RobinsO historiador faz umaanálise minuciosa daCompanhia das ÍndiasOrientais, fundada em1600 e considerada a

precursora da multinacional moderna.

304 páginas. Difel. R$ 49

LiteraturaNeruda é tema de palestra na BibliotecaNa próxima terça-feira, às 16h, a escritora Ana Quirinoapresenta a palestra “O homem americano no canto geralde Pablo Neruda”, na Biblioteca Pública Estadual.

CampusFonoaudiologia oferece curso de oratóriaEstão abertas as inscrições para o curso de aprimoramento detécnicas de oratória e competência comunicativa, destinado aosestudantes de graduação e pós-graduação da Ufes. Trata-se deum projeto de extensão do curso de Fonoaudiologia da Ufes.Mais informações: (027) 3335-7548 ou www.fono.ufes.br.

10de abrilCafé Literáriocom MariaSanz MartinsA autora fala sobre o livro“A Vida Secreta da Gente” eo gênero crônica napróxima terça-feira, a partirdas 19h, no Centro CulturalMajestic (Rua DionísioRosendo, 91, Centro deVitória). A mediação seráde Rita de Cássia Maia. “AVida Secreta da Gente” trazpara o leitor as impressõesde uma observadora docotidiano.

15de maioExpectativa para a Bienal Rubem BragaA 4ª Bienal Rubem Braga será realizada entre 15 e 20 de maio,na Praça Jerônimo Monteiro, em Cachoeiro de Itapemirim. Apartir do dia 17 deste mês, educadores poderão inscrever turmasde alunos em oficinas e apresentações de teatro de bonecos,entre outras atividades, na Secretaria Municipal de Cultura.

José Roberto Santos Nevesé editor doCaderno Pensar, espaço para adiscussão e reflexão cultural que circulasemanalmente, aos sábados.

[email protected], ALEGRIA DOS HOMENS

Durante a Quaresma é grande o volume de publicaçõessobre o cristianismo e o mistério da existência de Jesus Cristo.Uma delas nos chamou especialmente a atenção: a biografia“Jesus”, de Christiane Rancé. Para avaliar a qualidade dessetrabalho, convidamos o padre reitor do Seminário Maior daDiocese de Cachoeiro de Itapemirim, Helder Salvador. Es-tudioso do tema, além de professor de Filosofia e Teologia,padre Helder relata aos leitores o conteúdo da obra nas páginas6 e 7. Na sua visão, um dos méritos da autora é a utilização depesquisa fundamentada para “apresentar Jesus como homem

entre os homens, um personagem histórico que fundou umnovo modo de pensar e viver, que mudou para sempre a ordemdo mundo ocidental”. Uma reflexão relevante para todos osmomentos e, especialmente, para a Semana Santa.

OPensarcompletanopróximodia9umanodecirculação.Esse primeiro ciclo só se tornou possível graças à par-ticipação dos leitores, autores, acadêmicos, represen-tantes culturais e de todos aqueles que incentivam esteespaço único na imprensa capixaba. Parabéns a todos!

Pensar na webGaleria deobrasdearte inspiradas emJesusCristo, vídeosdeNoraNey, trechosdeentrevistas deMillôr Fernandes edelivros comentadosnesta edição,nowww.agazeta.com.br

PensarEditor: José Roberto Santos Neves;EditordeArte:Paulo Nascimento;Textos:Colaboradores;Diagramação:Dirceu Gilberto Sarcinelli;Fotos:Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações:Editoria de Arte;Correspondência: Jornal

A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493

MilsonHenriquesécartunista, dramaturgoeator, não teme-mail enãousacelular.

Documento:AG07CP002;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Apr de 2012 20:29:01

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3PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE ABRILDE 2012

entrelinhaspor ESTER ABREU VIEIRA DE OLIVEIRA

ESPAÇO, TEMPO E MEMÓRIAENTRE A FICÇÃO E O REAL

ESTER ABREU/DIVULGAÇÃO

AS MONTANHAS DA LUASamuel Duarte. Gracal Gráficae Editora. 286 páginas(Volume 1) e 292 páginas(Volume 2). Quanto: R$ 35,em média, cada um

TRECHO“Podem me chamar de Ariel;tempos atrás eu acrescentaria:“sem medo de errar”. Se hojenão acrescento é porque já nãotenho certeza de mais nada.Nem mesmo por mais absurdoque isso possa parecer, do meupróprio nome.Devem ser por volta das nove danoite e estou sozinho, sentado àporta da cabocla Delaura, a unsescassos vinte quilômetros de umacidadezinha chamada São Felipe.Há um temporal se formando noquadrante sul. Eu o espero comuma certa impaciência, porque seique com a sua chegada, ireiembora. Para aonde? Eis algo quenão sei. Porém desconfio que sejapara essa terra sem retorno a quechama de Morte.”Volume 1, p. 18

Em “As Montanhas da Lua”, Samuel Duarte percorre 400 anos de história para descrever os caminhos do personagem Ariel

Samuel Duarte, nos 60 ca-pítulos distribuídos em doisvolumes de “As Montanhasda Lua” (1982), engendra opersonagem Ariel, idealista,imaginativo, íntegro, cora-

joso, grande leitor, que procura descobrirum enigma de sua existência. Nessabusca, esse ser vai captar a sua históriaancestral ao mesmo tempo em que am-plia, mediante o enigma do tempo, ahistória da humanidade, do Brasil e,principalmente do Sul do Estado doEspírito Santo. Contudo, sua inquietaçãonão se limita à questão do tempo prous-tiano da memória pessoal; ao contrário,ele amplia o horizonte para o enigma dotempo coletivo, do tempo que gira paraolhar o passado, para captar o mistériode sua própria história. Na busca daorigem de Ariel, um dos traços do ho-mem e na construção da saga dessepersonagem, para fazê-la verossímil, Sa-muel toma como base a historicidade e otempo, caminhando do século XV ao XX,pois a vida do homem tem início muitoantes dele, conforme esclarece Foucaultem “As palavras e as coisas”: “É sempreem relação a um fundo já começado queo homem pode pensar aquilo que valepara ele como origem”.Samuel desenvolve a história de uma

família portuguesa, os Ignez, que imi-graram para o Espírito Santo no séculoXIX. Mas, entre a história e a ficção, emum tempo fantástico que retrocede eantecipa, vai desenvolvendo, degeraçãoageração, 400 anos de história, o que nosfaz lembrar a saga dos Buendías de “Cemanos de solidão”, de García Márquez.A vida de Ariel, viajante do tempo,

pode ficar inserida na temática da “Ora-ção do tempo” de Caetano Veloso, trilhasonora danovela “Vida daGente” (“tem-po, tempo, tempo, tempo/compositorde destinos/[...] tempo, tempo, tempo,tempo/Por seres tão inventivo/ E pa-receres contínuo/ Tempo, tempo, tem-po, tempo/És dos deuses, mais lindo”),porque entre o historiográfico e a ficção,o real e o fantástico, ou maravilhoso,dentro de um tempo verossímil, SamuelDuarte, magnificamente, como Cromo,absorve o tempo, rompe com ele e oespaço num romance épico-poético, on-de o leitor acompanha a angústia de umser solitário e percebe o grande leitorque é o criador da obra.Samuel, por meio das dúvidas, tris-

tezas e anseios de uma vida, rememora ascrises mundiais (econômica, política esocial), dá ênfase ao crescimento de Ca-choeiro de Itapemirim e lugares circun-dantes e mostra que a humanidade nãoaniquila nem sufoca a obra humana, mas

a acompanha, pois a vida é uma maréconstante entre o existir e a memória.Em cada capítulo, uma surpresa, um

avançar e um retroceder no tempo e noespaço de Ariel, cujo nome decorre deuma leitura de sua mãe da obra “ATempestade”, de Shakespeare. Essa si-tuação climática envolverá a vida deAriel, no mar ou na terra.

CitaçõesNas citações de obras e nas inter-

textualidades, Samuel se vale da boca deseus personagens para demonstrar aforça do passar do tempo. Com essesrecursos, o leitor percebe o caudal deleituras do autor. Assim, se o nome dopersonagem principal provém de umaobra, o mesmo acontece com o título daobra, que foi inspirado no poema “ElDorado”, de Edgar Allan Poe, que o leitorencontra citado, na p. 81, do 2º volume,na lembrança um pouco destorcida deAriel, também um grande leitor e pos-suidor de uma memória fabulosa.Tanto “A Tempestade” como “El Do-

rado” serão suportes para o desenvol-vimentodo teormaravilhoso temporalque

percorre o livro, na metáfora do tempo,seja nos ciclones atmosféricos e pessoaisque o personagem enfrenta, seja na buscade sonhos, que as palavras de Próspero,em “A Tempestade”, refletem: “[...] somosfeitos de mesmo material que os sonhos enossa curta vida acaba num sono”.Na maioria dos capítulos predomina

a primeira pessoa, onde o leitor vaiencontrar as experiências diretas e asbuscas de Ariel.O romancista consegue criar para o

leitor um mundo fictício nummundo reale os limites entre eles não são firmes, masdiáfanos, proporcionando ummundo realcompleto e consistente, enquanto osmun-dos fictícios são incompletos, inconsis-tentes, duvidosos. Não há delimitação defronteiras entre fictício e não fictício que sedesenvolvem ao longo dos variados tem-pos e se fazem presente na existência doser Ariel. Em “Confissão”, XI, 15, 20,Agostinho explica que os tempos, sucessãocontínua de instantes individuais, são três:o presente dos fatos passado (memória), opresente dos fatos presentes (visão) e opresente dos fatos futuros (a espera) queexiste na alma, logo memória e es-paço estão dentro do tempo.

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4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE ABRILDE 2012

Para articulista, escritor desnuda a superficialidade de Paris e registra o óbito da cidade comocapital cultural no romance “Ilusões Perdidas”, publicado originalmente entre 1837 e 1843

livrospor GILBERT CHAUDANNE

BALZAC, O TABELIÃODA CONSCIÊNCIA

DIVULGAÇÃO

ILUSÕES PERDIDASHonoré de Balzac. Tradução:Rosa Freire d'Aguiar.Penguin/Companhia dasLetras. 792 páginas.Quanto: R$ 38

+ sobre Balzac

NascimentoNasceu em Tours, França, em 1799, filho de umfuncionário público. Passou quase seis anosinterno em um colégio de Vendôme, depois sefixou em Paris, onde exerceu a função deestagiário em um escritório de advocacia.

Romances e contosEntre 1820 e 1824, adotando diversospseudônimos, escreveu alguns romances e aseguir tentou a sorte na atividade de editor,

impressor e tipógrafo. Aos 30 anos, muitoendividado, retomou a literatura com grandeempenho e publicou o primeiro romance assinadocom seu próprio nome. Nos 20 anos seguintes,escreveu cerca de 90 romances e contos, quereceberam o nome de “A comédia humana”.

MorteMorreu em 1850, poucos meses depois de secasar com Evelina Hanska, a condessa polonesacom quem manteve relações durante 18 anos.

Balzac mostra uma Paris repleta de máscaras onde se escondem trocas de favores

Arealidade social, nuae crua,vai se encarregar de matarsuas fadas com suas facas.No livro “Ilusões Perdidas”,de Balzac, a equação é clás-sica: um jovem da provín-

cia francesa, bonito e poeta, sonha “con-quistar” Paris, depois de ter engolido ossapos da província francesa (do sec. XIX).Assim ele vai enfrentar Paris, mas jánaquela época a poesia não interessava aninguém, mas, com seu rosto bonitinho,Lucien, “nosso herói”, abre as portas e atéas pernas de senhoras da nobreza, jámaduras, porém sedentas de carne fresca:é a devoração ritual dos jovens talentos,rito parisiense. E se “Paris é uma festa”, ésó para um cowboy bobo (porém sim-pático) comoHemingway.Abela capital é,na verdade, um elegante matadouro, on-de são sacrificados no altar do cinismo eda busca desenfreada do poder os cor-deirospoéticosquechegamdeslumbradosde Angoulême, Besançon ou Vitória.Nosso poeta das mãos brancas vai

fazer, ao mesmo tempo, sua educaçãosentimental e político-cultural: aliás,uma antieducação, porque, rapidamen-te, tem de aprender que a lei que rege obelo mundo parisiense é a lei do cão.Baudelaire via Paris como um imensobordel regido pelo diabo. Mas Paris éfamosa pela sua cultura, sua elegância,sua arte de viver, porém Balzac nosmostra que tudo isso são máscaras atrásdas quais se escondem trocas de favores:é um sistemade elevadores que constituio que chamamos de ascensão social:subir na sociedade e (ou é) descer naética: fabricar o homem cínico que nãoacredita em mais nada, a não ser emdinheiro, sexo e poder: é o bairro chiquedo “Faubourg Saint Germain.”É o caso sintomático de um jovem

bonito que vai “atender” sexualmente aumamulher trintona ouquarentona.Nin-guém vai dizer que é um gigolô (porquena França nunca se diz que um gato é umgato) e porque o amor é romântico,sobretudo quando é regalado com di-nheiro debaixo da mesa e protegido pelonome (nobreza): quem é poderoso nãocomete pecados, só procura ajudar opróximo. . . Como escrevia, já no séculoXVII, o grandeMolière: “Ahipocrisia é umvício que está na moda”.Lucien “aprende” Paris e aprende que

não é a qualidade do poema que vai fazer

com que seja publicado. Aprende quenesse belo mundo parisiense, que hesitaentre o veludo e o estilete, há umaentidade que orquestra essa grandemissanegra: o cão – é a lei do cão, impiedosa,nummundo onde terá que andar armado

(não de faca ou revólver, o que é de maugosto), mas de palavras-alfinetes e doblack-out dos que são sinceros demais.Nesse contexto, se você não temnome,

tem que ter outro poder: a beleza ou ... ojornalismo. A beleza é o caminho das

mulheres – mas no caso de Lucien, há operigo do efeito “gigolô descartável”. Enosso ambicioso tem que ter outro poderna mão para durar. Vimos que a poesianão tem poder nenhum e já era con-siderada, mais ou menos como hoje,como atividade de débil mental. Mas,além da poesia, há um parâmetro novoqueestáexplodindoas estruturasdo salãodas madames: é o jornalismo. Assim, opoeta Lucien de Rubempré se torna jor-nalista e adquire finalmente (um)poder, éassim temido, respeitado.Oqueénormal,já que em qualquer atividade humana orespeito não vem do valor espiritual,moral, profissional e intelectual da pes-soa, mas do poder que ela tem.O jornalista é um espadachim temido

e, pois, respeitado. O valor intrínseco dapessoa e da sua obra é absolutamentedescartado e assim se fabricam homensbonecos, andróides dos poderes cons-tituídos ou paralelos, e assim se instalauma sociedade parisiense cheia de di-nheiro e títulos de nobreza, do brilho defora, e do vazio de dentro. “L’ homme dumonde” é um boneco oco que conseguese promover justamente porque é oco.Assim, a “ideologia” da alta sociedadecoloca nele o que ela quer. O resultado éo “homo parisiensis”, cuja cultura é umacultura do parecer e não do ser, o queexplica que a “intelligentsia” da capitalpassou ao lado de Rimbaud, Van Gogh,sem perceber suas presenças.Paris éuma festa?Não,Paris éumapele

– e o que quer dizer que Paris é uma pele?Quer dizer que Paris vive na sua su-perficialidade:o famoso “parisianismo”. E,se o filósofoMerleau-Ponty escreve que “apele é profunda”, está falando da pele dohomem(achoqueapeledamulher émaisprofunda ainda...) e não da pele de Paris.Paris é uma cidade escorchada, esfolada,mas vestida de cetim e de seda (não é poracaso que é a capital damoda), o que dá ailusão de uma pele macia. A culturafrancesa fabrica um homem comedido: o“honnête homme”, aparentemente edu-cado, mas que na verdade é um homemressecadoe cheiode si. Assim,Balzac fazolevantamento cartorial desses tipos. Ele éum tabelião, mas não é míope, seu olharimpiedoso é de cristal, o cristal trans-parente e absoluto da consciência. É ocartório da consciência onde se registra oóbito de Paris como capitalcultural.

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5PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE ABRILDE 2012

falando de músicapor LUIZ SÉRGIO QUARTO

A VOZ E O LAMENTO DAPERSONALÍSSIMA NORA NEY

REPRODUÇÃO DA REVISTA HISTÓRIA DO SAMBA

A cantora romântica em cena do filme “Carnaval em Caxias” (1953), de Jorge Ileli

uerida por um grande pú-blico frequentador do au-ditório da Rádio Nacional,onde imperavam os maisentusiastas fãs-clubes doBrasil, Nora Ney foi taxa-tiva: só aceitava a fundação

do seu fã-clube se suas fãs dele par-ticipassem se alfabetizando, aprendendocertas habilidades sociais e manuais. Acantora não queria ser idolatrada, e simamada, porém útil ao seu fiel público.Conde Aguiar (2007, p. 53) informa que“Nora Ney era uma pessoa politicamenteengajada, tendo militado durante muitosanos no Partido Comunista Brasileiro”.Acontece que a contadora Iracema deSouza Ferreira, uma carioca nascida noano de 1922, jamais poderia imaginar quese tornaria Nora Ney: uma cantora desucesso reconhecida nacionalmente.Seagrande intérpretede “Ninguémme

ama” via a ideia do fã-clube como umavisão política de caráter social; foi comointegrantedo “fã-clubeFrankSinatra-DickFarney” que Iracema passou a convivercom o mundo musical, onde se reuniamastros iniciantes como os compositoresJohnny Alf, João Donato, Armando Ca-valcanti, Klecius Caldas; os músicos PauloMoura, Fafá Lemos e Raul Mascarenhas ecantores como Dóris Monteiro e MirzoBarroso– como informaTárik deSouzanoencarte do CD “Mestres da MPB”, fo-calizando os sucessos de Nora Ney pelaContinental (remasterizado em digital),produzido pela Warner Music Brasil, em1994. Tárik revela que esse encontrodesses ilustres fãsdeSinatraeDick sedavano porão de uma casa na Rua Dr. MouraBrito, na Tijuca.Por admirarSinatra eDick, a cantora foi

bastante influenciada pela música estran-geira. Talvez seja por isso que foi escaladapela Nacional para cantar ao vivo, pelaprimeira vez no Brasil, “Rock arround theclock”, que acabou virando hino do ro-ck’n’roll. O adolescente Caetano Velosoestava lá no auditório e comenta em seulivro “Verdade Tropical” (1997, p. 38):“Tive sorte de ouvir”. Mas foi na RádioTupi, com o pseudônimo de Nora Ney,levada por Farney, que iniciou sua carreirade cantora, interpretando sucessos in-ternacionais. Em seu livro “Almanaque daRádio Nacional”, o pesquisador CondeAguiar (2007, p. 53) informa que foi porconvite de Haroldo Barbosa que a cantorafoi convencida a abandonar o repertórioestrangeiro ao substituir Aracy deAlmeidano quadro “Viva o Samba”, do programaRádio Sequência G-3.E foi ao lado de Dóris Monteiro e

Jorge Goulart – com quem se casaria –

que Nora Ney, contratada pela Na-cional, participou do programa “Rit-mos da Panair”, transmitido direta-mente da boate Midnight do Copa-cabana Palace por um período de qua-tro anos. Cantando para um públicoexigente da Zona Sul, Nora Ney fez doseu repertório um cancioneiro român-tico e popular, atingindo as massas.Sua forma de cantar – diferente detodas as outras cantoras, como se es-tivesse soletrando as palavras e sol-tando-as com expressão clara, indo atéo fundo da alma – fez com que fosseaclamada como “a personalíssima No-ra Ney”, apesar de a rainha do rádio

paulista, Isaurinha Garcia, ser assimtambém chamada pelas emissoras daterra da garoa.Mas o título nacional ficoumesmo com

Nora Ney que, em 1952, gravou o pri-meiro disco e alcançou grande sucessocom “Menino grande”, de Antonio Maria,que nomesmo ano deu a ela, juntamentecom Fernando Lobo, o seumaismarcantesucesso: “Ninguém me ama”, um ver-dadeiro hino de desolação, abandono eangústia, com esses versos iniciais: “Nin-guém me ama/ ninguém me quer/nin-guém me chama de meu amor”.Todos esses elementos contidos nessa

canção de dois minutos e 36 segundos

fizeram de “Ninguém me ama” a maisautêntica crônica do boêmio rejeitado edoamantedesiludido.NoraNey, semterovozeirão de Angela Maria e Dalva deOliveira, emocionou os apaixonados e osfracassados do amor com tanta drama-ticidade, ganhando espaço e sucessivossucessos que viriam nos anos compre-endidos entre 1953 e 1957.Com sua voz marcante em “Ninguém

me ama”, a personalíssima cantora ga-nhou o Disco de Ouro e fez a escola dafossa em uma época de “dor de co-tovelo”, de onde saíram outras vozesmarcantes à la Nora Ney, como Maysa,Waleska e Angela Rô Rô.

Versos doloridosA sua voz personalizada –marcadapela

tonalidadedramática,declamadasemper-der a musicalidade e a essência dos versosapaixonados e doloridos – não deixou decausar o mesmo impacto no samba deDorival Caymmi: “Saudade da Bahia”.Como ninguém, Nora Ney sensibiliza oouvinte quede alguma forma – aodeixar asua terra – por ela se comove e confessa:“Esta saudade dentro do seu peito”.“Preconceito”, de Antonio Maria e

Haroldo Lobo (1953), é outra joiamusical na carreira dessa grande in-térprete que dominou boa parte dochamado cancioneiro romântico dosanos 50. Mas é em “De cigarro emcigarro”, de Luis Bonfá (1953), que elafaz de seus versos curtos o símbolo daespera da mulher apaixonada pelo seucompanheiro: “Olhando a fumaça/noar se perder” depois de “ver o tempopassar/o inverno chegar...” para quem“vive pobre de amor/ à espera dealguém”. Paixão pura de um eternoamor marca mais essa crônica sen-timental na voz de Nora Ney.E foi nesse tom apaixonado da época,

comapelosdramáticos, que surgiuMaysacom o “Meu mundo caiu”. E se DoloresDuran fazia composições nesse mesmonível de paixão, angústia, espera... NoraNey transcendia com sua inconfundívelinterpretação de mulher sofrida. Afinal,era a década de grandes paixões e demulheres românticas que hoje são vistascomo submissas e alienadas. Estamos noséculo XXI. Muita coisa mudou. Mas olamento e a voz de Nora Ney ficaram. Eantes de sua partida, aos 82 anos, no dia28 de outubro de 2003, deixou ela umapelo musical muito bem gravado: “Tireo seu sorriso do caminho/que eu queropassar comaminhador/ hoje pra você eusou espinho/espinho nãomachuca aflor” (Guilherme de Brito).

Q

Documento:AG07CP005;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Apr de 2012 21:21:50

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6PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE ABRILDE 2012

apresentando um Jesus que não éuma lenda, nem uma ideia atem-poral, nem uma criação a-históricada primeira comunidade cristã, masJesus como homem entre os homens,um personagem histórico que fundouum novo modo de pensar e viver, quemudou para sempre a ordem do mun-do ocidental.

MistérioA história de Jesus, seus gestos,

suas palavras, suas atitudes, sua dou-trina, seu testemunho e sua morte nacruz constituem o enredo dessa nar-rativa biográfica. Jesus pode e deveser acatado “historicamente”. Por umlado, Ele é um personagem históricoque viveu no princípio do primeiroséculo da Era Cristã (7-4 a.C. – 30d.C.), que exatamente dele recebeesse nome e o início. A ideia de queele nunca existiu, propagada por al-guns modernos, já não tem maisnenhum crédito nos tempos atuais.Mas, por outro lado, ao mesmo tem-po o concreto acontecimento his-tórico de Jesus constitui em simesmo, para os cristãos, a re-velação e a realização acabada do

PADRE ANALISA A BIOGRAFIA DO PERSONAGEM HISTÓRICOQUE MUDOU PARA SEMPRE A ORDEM DO MUNDO OCIDENTAL

religião

JESUS, UMHOMEM ENTREOS HOMENS

A história de Jesus, seus gestos, suas palavras, suas atitudes, sua doutrina, seu testemunho e sua morte na cruz constituem o enredo da narrativa biográ

REPRODUÇÃO/WIKIPÉDIA

Óleo sobre madeira “Ascensão deCristo” (1510-20), do italiano Garofalo

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Quem dizem os ho-mens que eusou? (...) E vós,(...) quem dizeisque eu sou?’(Marcos 8,27-29), Jesus

pergunta aos discípulos. Estas duasperguntas continuam sendo abso-lutamente intrigantes – como umanovidade que não se desmente, quese perpetua de era em era. Elasresumem os dois grandes debatesque agitaram a história relativa aJesus de Nazaré. Quem foi ele? Seriapossível traçar seu retrato com baseem textos e testemunhos de sua épo-ca? O que seus discípulos e, de modomais amplo, os homens teriam dito arespeito dele no decorrer da longahistória do cristianismo?” Com estaspalavras a biógrafa Christiane Rancéinicia sua obra “Jesus”, da L&PMEditores, recentemente lançada noBrasil. A autora tem a intenção dedar vida aos feitos e aos gestos deJesus ao inseri-los em seu contextoda maneira como podemos suporque eles se deram, sem a pretensãode apresentar a verdade histórica outeológica dessa figura; sem buscar,

também, diferenciar o Jesus da His-tória do Jesus da crença, uma vezque os dois são evidentemente in-dissociáveis.Nesta obra não há nada de ro-

mance, mas há intenção assumida-mente despojada de narrar uma vidaque não exclui nem os elementosconsiderados básicos (como o nas-cimento em um estábulo, a visita dosReis Magos ou a fuga ao Egito), nemas reservas manifestadas pelos his-toriadores exatamente a respeito dosacontecimentos dos quais não se en-contraram vestígios ou que tenhamsido comprovados como de carátererrôneo (o massacre dos inocentes).Em cada ocasião é indicado a quegênero a parte em questão pertence.Esta biografia tem apenas uma am-bição: traçar o retrato em movi-mento desse homem tão singularque todo mundo conhece pelo menosde nome, que viveu há mais de doismil anos na Palestina, que se cha-mava Jesus e a quem algumas pes-soas deram o nome de Cristo.Expondo de forma simples, porém

demonstrando um vasto conheci-mento das discussões exegético-teo-lógicas contemporâneas, a autora vai

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mistério da salvação, dom deDeus.

Toda e qualquer interpretação deJesus deve confrontar-se com a suahistória, da qual recebe endosso efundamento. O estudo sobre a aten-dibilidade histórica das fontes cristãse não cristãs, ao centro de um debatecaloroso iniciado a partir do séculoXVIII e até hoje ainda não intei-ramente superado, é de grande re-levância quer histórica da pessoa deJesus quer no seu caráter simbóli-co-teológico. A pesquisa contempo-rânea não só tende a considerar commaior confiança o fundamento his-tórico das narrações evangélicas, masvê sempre mais estreita a relaçãoentre os Evangelhos e as biografiasgreco-romanas daquele tempo. Tal-vez por isso tenham sido publicadasnesses últimos anos algumas biogra-fias de Jesus: as informações contidasnos Evangelhos cruzadas com o res-gate de fatos históricos na região daPalestina, há dois mil anos, expli-citam o homem Jesus.A narrativa histórica da existência

terrena de Jesus termina na sua cru-cifixão e morte. Não existe constantehistórica para saber o que aconteceuentre a fuga dos discípulos diante damorte de Jesus e o surgimento detestemunhas e de apóstolos da BoaNotícia que, em suamaior parte, trans-formaram-se em mártires alegres, co-mo bem observa Christiane Rancé.

Questão de féA história de Jesus chega ao fim na

sua morte de cruz, mas a do Cristo,toda simbólico-teológica como a féque ela suscita, começa nas palavrasdas testemunhas que afirmaram: ocrucificado ressuscitou. Quer tenhasido Deus ou não, e essa continuasendo uma questão de fé e não desaber, Jesus se apresenta ao mundocomo homem. E foi assim que seuscontemporâneos o viram, observa-ram e escutaram antes de precisarquestionar sua identidade frente aseus atos e suas palavras. Ele foi ummistério e sempre coube ao espec-tador a questão de solucionar pormeio de um trabalho de conversãointerna. E, com frequência, comocomprovam as contradições e as di-vergências dos relatos evangélicos,os discípulos não chegaram a ne-nhuma conclusão a respeito de seusatos nem da finalidade de suas pa-lavras, ofuscadas pela definição im-posta do Messias esperado que elesdesejavam desvelar em Jesus.Faz-se necessário ler os Evange-

lhos e refletir sobre as reações dasfiguras que aparecem na cena comessa noção de contemporaneidadeem perspectiva, para ver se estãoligadas à reação dos escribas e dos

por HELDER SALVADOR

a, seu testemunho e sua morte na cruz constituem o enredo da narrativa biográfica apresentada por Christiane Rancé

JESUSChristiane Rancé.Tradução de Ana Ban.L&PM Editores. ColeçãoL&PM Pocket.288 páginas.Quanto: R$ 19

REPRODUÇÃO/WIKIPÉDIA

O mais antigo painel iconográfico do Cristo Pantocrator, datado do século VI:representação artística do homem que fundou um novo modo de pensar e viver

> fariseus, dos discípulos ou da mul-tidão, porque, como observa Ray-mond Brown, citado e comentado porChristane Rancé, “aqueles que virame ouviram Jesus foram confrontadosem relação ao seu envolvimento porcausa das aparições depois da res-surreição; e tiveram plena fé no Jesusressuscitado, como naquele atravésdo qual Deus tinha manifestado o seuamor salvador e definitivo por Israele finalmente pelo mundo inteiro. Éessa fé pascal que ilumina as lem-branças daqueles que o tinham vistoe ouvido antes da ressurreição; e elesproclamam dessa maneira suas pa-lavras e seus atos com um acréscimode sentido”.É oportuno dizer que a narração

bíblica deve ser para o cristão, para ohomem de fé não tanto informação,mas autêntica e complexa obra detransmissão da fé, de manifestaçãodos acontecimentos salvíficos, de in-terpretação existencial, de conver-são, de apelo a uma missão coerente,embora ninguém tenha visto o Cristoressuscitado, porque não houve ne-nhuma pessoa presente no momentoda ressurreição. É um ato de fé quetodos os leitores dos Evangelhos sãoconvidados a fazer.Pode-se ainda dizer que os quatro

Evangelhos podem ser vistos comoquatro compêndios para se viver a féem Cristo no seu ensinamento e,sobretudo, na prática do amor ága-pe. Se a história de Jesus contada porMarcos pode preparar os catecúme-nos para a conversão, a história re-proposta por Mateus oferece aosneobatizados a maneira mais ade-quada para viver o seguimento deJesus. O Evangelho de Lucas e osAtos dos Apóstolos formam um sub-sídio para todos os fiéis levarem umavida de testemunho evangélico emissionário. Por fim, a história deJesus narrada por João constitui pa-ra os cristãos maduros um verda-deiro e genuíno manual de espi-ritualidade cristã.Por fim, parece-nos plenamente

oportuno reafirmar que é no cru-zamento das informações disponíveisnos Evangelhos e o resgate de fatoshistóricos na região da Palestina queencontramo-nos com o homem Jesusque os cristãos, a partir de sua fé,veem nele o Cristo, que é o Messias, oFilho de Deus, a quem devemseguir e viver o que ele viveu.

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9PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,7 DE ABRILDE 2012

ESSA...

poesias

MULHERANGELA TOGEIROSou mulher,sou todas as mulheres:sou Afrodite, Amélia, Angela, Eva,Diana, Joana,Madalena, Maria, Raquel, Rita, Sara,Salomé, Tereza, Vênus, Zênite...Tenho na genéticaa herança dos tempos,que me dá todos os nomes,que me tira todos os nomes,quando me desdobro em outramulher.Nasci em todas as raças,tenho todas as cores puras emiscigenadas.Pratico todos os credos.Nasci em todos os cantos desteplaneta.Vivi em todas as eras.Registrei meus gritos em todos osrincões,mesmo se expulsos da almano mais profundo silêncio.Vim de todos os lugares,nasci em berço de ouro, emchoupana,na rua, nas matas, hospitais,templos...Fui vestida, fui enrolada,despida, jogada.Gerada num útero que me amou,ou num que me recusou.Pouco importa, se rica ou pobre,se esculpida no Belo ou no Feio,preciso cumprir meu destino,meu destino de Mulher.

Do livro Sou Mulheres, de Angela Togeiro

crônicas

NAVEGARIMPRECISOpor CAÊ GUIMARÃESNo rastro de lugar nenhum, vago. Semmatrícula ou vaga no ancoradouro maispróximo.Ouemnenhumquemeabarquee onde eu caiba, da Rússia à Arábia, dabancada de corais mais traiçoeira aobancodeareiamais vasto, generoso comoum seio farto. Sou feito de ferro e sal. Edisso me basto. O que entendes porsolidão, ou solitude, guia minhas la-titudes. E se da destruição sou nato,renasço no momento absurdo em quevolto. Abstrato. Como se tudo fosse motoperpétuo.Easboas intenções– inclusiveoafeto – iluminassem o percurso como umfarol que revela o caminho e suas léguas.Mas que cega se a mirada for direta.Não naveguei em linha reta. Ime-

diato à rota, parti quando a terra ficoutorta e a água invadiu os quintais.Quando a morte, úmida, revolveu asgentes, suas carnes e ossos. E as ci-

dades, suas colunas e vielas. O uivoque me seguiu mar adentro, mescladoao gosto de iodo do deserto esme-ralda, surgiu da franja branca que metocou e ainda toca. Dessa massa mag-nânima que me separou – todo fer-rugem e espera – da mão humana comsuas alturas e crateras.Como cabra cega ao negar sua mirada

maisdileta,nãoretorneideliberadamente.Nada foi combinado. Leso e absoluto emabandono, farto de acasos, flutuei. E comoquando encontrado em silêncio estava,assim fiquei. Nada haveria a ser dito. Apósum ano desaparecido, surgi como o maiscompleto retrato do abandono que per-meia a evolução do homem e seu estar nomundo, órfão de significado e sentido.Naquelemomento tornei-me a grande

metáfora da vossa queda. E de todas assuas sequelas. Uma obra de arte, a

segunda maior de todos os tempos. Umaode à inutilidade e à estupidez. Vermelhoferroso. Azul e verde zinabre. Nenhumaluz acesa, botão acionado ou engre-nagem em atrito. Tornei-me um naco detudo que é finito, mas luze enquantodura. Na efêmera história humana nasuperfície do planeta sou um espetáculoque não simula a natureza. No meuconvés só o silêncio fez morada. Pas-sarela salgada cheia de nada.Sou a Stultifera Navis invertida – no

lugar de abrigar os loucos e dementesexcluídos pela sociedade, alijado da ci-vilização naveguei solitário renegando-a.Observei à distância vossas ânsias. Até serencontrado. Para lá das margens, em terrafirme e segura, os senhores seguiram eseguirão se devorando. Famintos e óbvios.Imensosemsuascertezas. Imersosemboasmaneiras, desperdiçando recursos, afeto eenergia. Tornando raso tudoqueégenuínoe porventura valeria. Eu? Sou apenas umnavio fantasma cujo nome não importa. Arepresentação da derrota que os senhoresse autoimpingiram. O dejeto que voltaimpreciso e se torna espelho. Encaremagora sua imagem refletida na ruína.

RIO ITAPEMIRIMpor SERGIO DAMIÃO

Todos os rios são iguais. Diferente é amaneira que o olhamos, maneira que ovemos e o descobrimos. Depende dequem o admira. Depende, também, dodia, mais ainda do momento em queestamos diante dele. Assim, depende denós mesmos. Diante das águas de um rioa beleza encontra-se sempre presente.Quando caminho junto ao rio Itapemirimme surpreende as coisas que vejo e ascoisas que ele me revela. A cada dia umaboa surpresa. O domingo, em dia de sol,pela manhã, é um momento perfeito. Acalçada, quase vazia, nos deixa livre parao devaneio. O pensamento corre se-melhante às suas águas: ora barrentas,ora cristalinas. Vejo o Itapemirim, o rioque mata minha sede e me alimenta,exalando jovialidade, enquanto enve-lheço. As pernas cansadas pelo tempo decaminhada contrastam com a força desuas águas. O que mais me espanta no

Itapemirim é o som emitido do seu leito.Caminhar junto ao seu leito epoder ouviras mudanças dos seus sons são algo quetranscende e apaixona. E nos faz pensarque é o rio mais desejado e cultuado. Omais belo de todos.Os sons se alternam a cada obstáculo

que as águas do rio ultrapassam. Seguir oItapemirim pelo centro da cidade é mo-dificar-se também. O nosso rio emitesons por um longo trecho,mas por váriosinstantes reina o silêncio. De repente,uma calmaria em suas águas, nesse mo-mento ele simplesmente vive e suaságuas fluem, sempre em direção ao mar.Claramente mostram que nesses mo-mentos de calmaria estão se fortalecendopara os obstáculos à frente. A naturezamostra o óbvio. Apesar das evidências, oser humano não se deixa convencer, quero novo. Aquilo que não conhece, preferearriscar. A paixão e a ilusão pelo des-

conhecido afastam o amor e a razão dascoisas estabelecidas.Nesse domingo, caminheimais.Mes-

mo com um trajeto mais longo nãoenxerguei bem o que o rio tinha a dizer.Talvez eu não tenha desejado. Quemsabe não estava preparado. Volto emoutros dias, é provável que veja ascoisas que não enxerguei ou não desejeiver. Pena que o rio e suas águas nãoesperem. O rio não será mais o mesmoe eu posso ter perdido a mensagem daságuas que passaram sobre as pedras. Aspedras permanecerão as mesmas, aságuas serão outras e diferente eu possoestar. É preferível assim, a monotoniano rio não existe e em nossas vidas elatambém não pode persistir. Um riocorre em direção ao mar e nós emdireção à felicidade. Cada um deveprocurar as coisas que estão no fundodo rio e junto do coração.

Essa que me cuida sempre à noitinha,Toma e relaxa meu corpo cansado,Faz tranquilo o meu sono de soldado,O que chega ao ninho feitoandorinha.

Essa que vai comigo e que me aninhaSe de guerra falam em qualquer lado,Cura a dor do meu peito desolado,Põe nele a esperança que a tudoalinha.

Essa por todos é capaz de tudo.É a que põe luz nas trevas; sobretudo,Brilha no sonho que mais nos apraz.

Essa vive de amor, toda ternura,Essa que se augura, que se procura,É Essa que se oferece ao mundo: a Paz

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perfil

OS DISCOS E AS HISTÓRIAS DEQUEM VIVE A MÚSICA COM PAIXÃO

VITOR JUBINI/ARQUIVO AG

Jornalista visitou um dos maiores conhecedores de jazz e Bossa Nova do Estado e ouviu delefatos curiosos sobre ícones como Billie Holiday, Dizzy Gillespie e Vinicius de Moraes

Luiz Paixão no quarto onde acomoda seus inúmeros CDs, DVDs e parte dos muitos discos de vinil que veio adquirindo desde a adolescência: a música mora nele

elefonei às quatro e vinte datarde para marcar um en-contro para os próximosdias.“Por que não hoje?”– per-

guntou.“Hoje?”“Sim, pode ser agora.”Recebeu-me às cinco e meia da tarde

daquela mesma quarta-feira, no portão

da casa na Joaquim Lírio, Praia doCanto, ondemora há 40 anos. Do portãome guiou pelo corredor comprido até aporta da cozinha e de lá a um cômodoexterior. É nesse cômodo que fica oquarto onde ele acomoda seus inúmerosCDs, DVDs e parte dos muitos discos devinil que veio adquirindo desde a ado-lescência. E toda a aparelhagem ne-cessária para ver e ouvir tudo isso, o que

ele faz repetidas noites, e lá se vão 87anos, até alta madrugada.A casa, que resiste ao crescimento

da cidade – “não vendo!” –, entrou nomapa “O melhor de Vitória 2010-11”,marcada como “acervo musical LuizPaixão”. Não é à toa e muito tem a vercom o quarto no cômodo exterior.Impressiona a quantidade de itens quePaixão guarda ali e que não sabe

precisar quantos são. Apenas diz, re-ferindo-se aos vinis: “Isso tudo quevocê vê mais aquelas caixas ali atrás eno sótão da casa”. E ele sabe buscar nolugar certo um CD ou um DVD quequeira mostrar. Só às vezes se afligepara encontrar um ou outro entre osque estão sobre a mesa no centro doquarto, e que ele separou paraouvir e ver aquela noite. >

T

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por MANUELA LOPES SANTOS NEVES

REPRODUÇÃO

Entre os trombonistas J. J. Johnson e Kai Winding nos EUA, nos anos 50

Luiz Paixão é assim: um afi-cionado sempre disposto a re-

ceber quem quer conversar e sabersobre música. É sensível aos timbres eacordes dos instrumentos e às en-tonações na voz dos intérpretes. Sabemuito e guarda tudo. Muitos músicoscapixabas, e outros interessados, têmnele um consultor.Tento iniciar a entrevista, mas an-

tes ele me pede atenção à voz deOleta Adams, que interpreta “Em-braceable you” no DVD que está gra-vando para Gumercindo, fiel com-panheiro de trocas musicais. Maisuma coletânea de músicas que se-lecionou e gravou para oferecer aosamigos. E assim foi durante todo otempo que passei com ele, conver-sando e ouvindo música.

No ginasialO amor pela música nasceu nos

tempos do ginasial, cursado nos co-légios Estadual e Maria Ortiz, entre asdécadas de 1930 e 1940. Começoupela audição das orquestras dos prin-cipais bandleaders americanos, co-mo Glenn Miller, Benny Goodman eHarry James. A música americana ser-viu ao aprendizado da língua inglesa,que ele ensinou para muitos. Foi só-cio-fundador e professor do IBEU, pri-meira escola de línguas da cidade.Usou a música como recurso paramelhorar vocabulário e pronúncia. Eprovavelmente as aulas também.O inglês fluente ajudou Paixão a

conhecer grandes nomes do jazz ame-ricano. Era o intérprete dos que vinhamaVitória – e houve um tempo, na gestãode Sônia Cabral à frente da FundaçãoCultural do Estado, que muitos vieramse apresentar no Teatro Carlos Gomes.“Art Blakey e Sarah Vaughan”, lembra.Confessa que alguns dos músicos queconheceu não foram muito simpáticos.Mas nem quer que eu conte. Preferefalar sobre os encontros que teve comaqueles que admirou pelamúsica e pelasimpatia. No quarto do cômodo ex-terior, Paixão guarda com todo cuidadoos objetos que são lembranças dessesencontros. Tudo bem protegido numapasta azul, seu relicário.Antes de continuar a contar dos

encontros, Paixão reinicia o DVD,agora já concluído. E como não se

acanha, a primeira performance dacoletânea gravada para Gumercindoé dele mesmo. Afinal, canta muitobem. “Sou bom no scat”, diz, semfalsa modéstia. Foi de uma apresen-tação que fez três anos atrás, numanoite no Jazz Café, casa de músicavizinha a sua. Acompanhado por An-drea Ramos, Márcia Chagas e VictorHumberto na guitarra, canta e im-provisa “You’ll never know”.Paixão é um notívago. Quando não

está no quarto de seu acervo, ele estápela noite, nos bares da Praia do Canto,cantando ou ouvindo osmúsicos daqui.OWunderBar, na Avenida Rio Branco, éo lugar preferido. “É a minha segundacasa.” É lá e no Sabor do Canto, tam-bém na Joaquim Lírio, que vai paraouvir Victor, Márcia e Andrea, KátiaRocha e Eliane Gonzaga. “Temos mui-tos talentos por aqui.”

Primeiros encontrosA conversa segue para 1955, ano

em que Paixão foi para os EstadosUnidos, aperfeiçoar o inglês na Uni-versidade do Texas. Ali ele teve osprimeiros encontros com artistas quejá admirava. Houve uma noite quemúsicos de jazz se apresentaram porlá, como parte dos eventos que auniversidade promovia para congre-gar seus estudantes. E ele foi. “Comoa casa estava cheia, me levaram paratrás do palco. O melhor lugar. Fiqueijunto dos músicos.”Entre os que se apresentaram na-

quela noite, estava Dizzy Gillespie,um dos maiores trompetistas do jazze já uma lenda. Esperando sua vez deir ao palco, Gillespie pediu um par-ceiro para uma partida de xadrez.Como não se acanha, Paixão se ofe-receu. E perdeu na terceira jogada. Omúsico reclamou e perguntou porque ele aceitou a partida, já que eratão mau jogador. “Porque você cha-mou e para poder contar para todomundo que joguei xadrez com DizzyGillespie.” Paixão se atreve.Ele tem sempre um jeito de chegar

perto de quem admira. Em geral, aaproximação se dá em conversas emtorno da música. Mas nem sempreaconteceu assim.

Com Pepe no coloPepe, um chihuahua cheio de den-

go foi logo conquistado pela atençãoque Paixão lhe deu. A dona do ca-chorrinho se espantou. “Nossa, elenão vai com ninguém. Então, faz umfavor, fica com ele enquanto eu can-to.” E assim fez Paixão, que acolheuPepe no colo enquanto Billie Holidaycantava. Aconteceu num café, umpequeno bar com palco, em Cleve-land, Ohio, no final da década de1950, pouco antes da morte da diva.“Eu estava em Cleveland e ela tam-bém. Não podia perder.” Pediu mú-sicas e um autógrafo. E ela escreveuuma dedicatória e o endereço na capado compacto que Paixão recebeu na-quela noite de seu empresário. Está

guardado na pasta azul.Guardou também autógrafos de

Dave Brubeck, a quem socorreu deuma quase insolação, comprando pa-ra ele pomada Senopó. O pianistaque lançou e consagrou “Take Five”fora vítima do sol de Guarapari, umade suas estadas naquelas férias quepassou com a família no Brasil, emmeados da década de 1970. “Ele nãoacreditou quando pedi que autogra-fasse um exemplar que eu tinha doprimeiro álbum que gravou.” De tãoraro, Brubeck avaliou em 300 dólareso valor daquele exemplar. “Autogra-fado, vale uns 500”, riu Paixão.

Ladeira da PiedadeMas não é só a canção americana

que cabe no coração de Luiz Paixão. Éum apreciador da música popularbrasileira, apaixonado pela BossaNova, que viu surgir. Conviveu deperto com Vinicius de Moraes, amigoe colega de sua irmã Sônia Paixão, naépoca que a Bossa Nova acontecia.Foi na casa dos irmãos, na ladeira daPiedade, final da Rua Sete de Se-tembro, que Vinicius se hospedouquando veio a Vitória, em 1962. “Láem casa ele mostrou o ‘Samba emPrelúdio’, que tinha acabado de com-por com Baden Powell. Éramos eu,Sônia, minha mulher Terezinha, Eva-nildo Silva e Moacir Barros comoprimeiros ouvintes daquela canção.”A casa de Luiz e Sônia foi um dos

pontos de encontro da turma quegostava e fazia Bossa Nova em Vi-tória, entre o final da década de 1950e início da década de 1960. “CariêLindenberg, Marien Calixte, Reynal-do Brotto, Marinho Carlos apareciamsempre”, lembra Paixão. A casa re-cebeu e ouviu também Sérgio Ri-cardo, Geraldo Vandré, Bené Nunes eoutros que vieram se apresentar nacidade por aquela época.Meses depois de passar por Vitória,

Vinicius autografou e enviou para Pai-xão um dos raros exemplares do álbum“Sinfonia da Alvorada”, composta porele e Tom Jobim, a pedido de JuscelinoKubitschek, em comemoração à inau-guração de Brasília. “Para Terezinha eLuiz por muitos motivos sempre lem-brados. Abraço do amigo Vinicius.”Está guardado.

>

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memóriapor MILSON HENRIQUES

O PAI NOSSO DO HUMOR E DA FILOSOFIACartunista descreve o impacto que as criações de Millôr Fernandes provocaram no Brasildos anos 40 e 50 do século passado, quando “O Cruzeiro” era a principal publicação do país

TASSO MARCELO/AE

Já publiquei aqui neste cader-no–oásis umartigo dizendo comoa difícil arte de fazer humor émenos valorizada pela dita in-telectualidade. Millôr Fernandesnão foi só um grande humorista,

foi um grande filósofo. Se antes de suasfrases geniais alguém escrevesse “segundoumfilósofogrego...”, elas seriamensinadasnos colégios mais austeros do país.Da mesma maneira que escolhi Vitória

para serminha cidade, desde cedo escolhiMillôr Fernandes para ser meu guru, meupai espiritual, aquele que eu iria seguir osensinamentos para o resto da vida. Maisainda, depois que descobri que ele erapara ser chamadoMilton, virouMillôr porumerro, fiquei todometidoabesta, jáqueMilson nada mais é que também um errodo Milton que eu seria.Os anos 40 e 50 do século passado, ao

contráriodosdecantados “anosdourados”,foram os anos mais “idade média” doBrasil. Duas décadas vividas nas trevas deummoralismo tacanho, idiota (moralismoidiota é pleonasmo), onde o homem queousasse usar camisa que não fosse branca,cremeouazul claro, quenãousasse cabelocortado rente igual aosmilitares (“homemque usa topete só se compromete”, diziaumamarchinha de carnaval), que ousasseusar a expressão “linda” para elogiar outraforma de beleza que não fosse a mulher,eraconsiderado “mariquinha”. Jáamulherque fumasse, usasse calça comprida, en-trasse em bar, a mulher desquitada, asecretária (“secretária que faz serão, sentano colo do patrão” era um dístico daépoca), as que perdiam a “santa vir-

gindade” ainda solteiras, eram varridas domeio social. Pois foi no meio dessa es-curidão que a inteligência de Millôr co-meçou a iluminar e, é claro, incomodar.A revista “O Cruzeiro” representava

paraoBrasil oqueoprograma “Fantástico”da TV Globo representa hoje: tudo aquiloque ela publicava era tido como crível,todo país comentava e respeitava. Apesarde a revista seguir e até ditar o moralismocerceador da época, seus editores ren-deram-se ao talento do nosso gênio. Con-tratado, Millôr passou a escrever duaspáginas de humor, o Pif-Paf, sob o pseu-dônimo de Emmanuel Vão Gogo. Foi ondeeu o descobri, maravilhado.Mas a genialidade, o tiro certeiro, o

invulgar talento de definir numa pequenafrase o que outros faziam em uma página,o antidesenho fantástico, tudo isso co-meçoua iluminardemais, sua luzera tantaque incomodava, cegava os olhos acos-tumados à penumbra de mediocridade edo falso moralismo das senhoras pudicas.

AteísmoNessemeio tempo, eu, pré-adolescente,

discutia meu ateísmo com meu pai es-pírita, minhamãe católica e osmestres doColégio Batista de Campos, onde estu-dava. O pai usava o argumento: “Quem évocê, uma criança ignorante, mau aluno,que tira zero em matemática, não con-segue ter amigos, para sedizer ateu, negara existência de uma divindade, indo con-tra todos os grandes homens do mundoquepossuemuma religião?”Foi entãoqueMillôr, por pressão dos leitores e anun-

ciantes, foi despedido da revista ao lançara debochadíssima “A Verdadeira Históriado Paraíso”, onde ridicularizava aindamais todo o ridículo da história de Adão,costela, Eva, serpente, paraíso, maçã eoutras invencionices paramentes infantis.Pronto! Eu estava salvo! Aquele gênio queeu lia com fervor, que eu admirava in-condicionalmente, pensava igual a mim!(aliás, eu é que pensava igual a ele). Foi aíque o “adotei” definitivamente como pai,que fez renascer a crença na minha des-crença, e minha autoestima, que andavabaixa, voltou.Ficou marcado em mim um episódio.

No Pif-Paf existia uma irônica seção in-titulada “Ministério de Perguntas Cre-tinas”. Nossa capixaba Dora Vivacqua eraa “musa da vez” no Rio, com o nomeartístico de Luz del Fuego, causando furorcom sua espetacular nudez – foi expulsado baile carnavalesco do Theatro Mu-nicipal por sua fantasia de Eva, que cons-tava apenas de uma serpente enrolada nobelo corpo. Entre as tais perguntas cre-tinas, Millôr lançou essa: “La Luz delFuego te gusta?”Aomever rindo,meupaiapanhou a revista, leu e disse: “Nãoentendi!” Emostrou paraminhamãe, quetambém não entendeu e fez apenas umcomentário, ao qual, aliás, eu já havia meacostumado a ouvir: “Você esquece queesse menino é doido?” Daí a “esse me-nino” fugir de casa, foi um pulo.Nessaaltura, a saídadeMillôrda revista

– que logo após começou a entrar emdecadência – não lhe fez falta, já que erabrilhante não apenas no humor, além deinteligente era culto (inteligência e cultura

são coisas distintas) e começou também afazer, na minha opinião, a função in-telectual mais difícil: a de traduzir livros epeças clássicas, o que ele fez magistral-mente, de Shakespeare a Brecht. Escreveuno “Jornal do Brasil” na época da grandevirada de um jornal vetusto para ummaismoderno e atraente, arrastando toda aimprensa brasileira. Logo depois, Millôrtentou criar uma revista usando o nomePif-Paf, das antigas páginas de “O Cru-zeiro”, mas a já crescente censura militar,imbecil e medrosa como toda censura quenão suporta a inteligência, principalmenteem forma de deboche, “cassou” a pu-blicação depois do terceiro número.Sempre acompanhei de longe meu

guru, mas infelizmente nunca o conhecipessoalmente. Em1969, época da criaçãode “O Pasquim”, eu já estava em Vitória,colaborei com algumas charges e duasvezes fui ao Rio para entregá-las, mas elenão estava na redação. Depois fui juradonum festival de música em Cachoeiro,onde a turma do jornal era convidada.Vieram Henfil (outro gênio) e Jaguar, elenão. Pelo que eu lembre,Millôr esteve emnosso Estado duas vezes, mas em ne-nhuma pude comparecer. Tenho grandeadmiração por sua genialidade, que in-fluenciou gerações que escrevem e de-senham humor, o humor que faz sorrir eprincipalmente pensar (“ser pobre não écrime,mas ajudamuito a chegar lá”). Usomuito seus ensinamentos no meu dia adia (“viver a vida é como desenhar sempoder usar borracha”) e, agora, mais quenunca, entendo sua frase – “A velhiceé fogo, mas faz muito frio”.

O desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor, que morreu no último dia 27 de março, aos 88 anos: gênio na arte de fazer sorrir e, principalmente, pensar

Documento:AG07CP012;Página:1;Formato:(274.11 x 381.00 mm);Chapa:Composto;Data:05 de Apr de 2012 21:19:17