pensamento mestiço

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    So Paulo: Companhia das Letras, 2001, 398 pp.

    Neste seu novo livro, Serge Gruzinski, historiador francs, diretor de pes-quisa do Centre Nacional de la Recherche Cientifique (CNRS) e diretor deestudos na cole des Hautes tudes em Sciences Sociales (EHESS), comentaem suas pginas iniciais a experincia precursora de Aby Warburg, um famo-so historiador da arte de incios do sculo XX. Warburg, imbudo de um olhar

    antropolgico, descobrira um vnculo entre a cultura dos ndios hopis do No-vo Mxico e a civilizao do Renascimento. Gruzinski tambm se volta paraesta relao, pois um dos objetivos centrais deste seu novo livro observarcomo os povos amerndios da segunda metade do sculo XVI, esto impreg-nados de diversos elementos europeus e vice-versa. Ou seja, se trataria de fa-to do estudo de culturas mestias.

    Gruzinski, ao abordar este tema, faz sempre uma ponte com o presente.Afinal, vivemos ainda mais radicalmente hoje as influncias do processo demundializao que se iniciou com a expanso europia no sculo XVI. Da

    Amaznia a Hong Kong vivemos em mundos mesclados, onde temos que nosesforar para juntar os fragmentos que nos chegam por todas as partes, hojeem escala planetria. Nossas prticas atuais foram inauguradas no Mxico doRenascimento (p. 90). A narrativa de Gruzinski demonstra que o arcaico um engodo e que estamos profundamente contaminados pela modernidade.Sua epgrafe retirada de Mrio de Andrade: Sou um tupi tangendo um ala-de, que tambm encerra o seu livro, exprime de maneira simblica o que oautor ir demonstrar em todo o decorrer do livro. Vrios traos caractersti-cos das sociedades analisadas, no caso, as sociedades indgenas da Amrica

    Espanhola do sculo XVI, provm da Pennsula Ibrica e da Itlia do Renas-cimento e no do distante passado pr-hispnico. O fenmeno da mestia-gem manobra com um nmero muito grande de variveis que muitas vezesfogem percepo dos historiadores. Alm da grande complexidade das mes-tiagens, o autor demonstra que havia e ainda h uma grande desconfianaem relao ao tema. Gruzinski estende a sua crtica aos antroplogos aman-tes de arcasmos e de sociedades frias ou de tradies autnticas. Gruzinskicertamente, ao escolher o ttulo de seu livro, quer marcar sua distncia do au-

    Gruzinski, Serge.

    O pensamento mestio.Antonio Carlos Amador Gil

    Universidade Federal do Esprito Santo

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 22, n 44, pp. 549-553 2002

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    Ao considerar o processo de ocidentalizao, Gruzinski passa a abordara cpia indgena. Fruto da demanda de uma clientela espanhola ou indgena,vida por objetos de estilo europeu, a reproduo indgena, ou melhor, a no-o de cpia acabou por se revelar extremamente elstica. Gruzinski demons-tra que a concepo europia de reproduo deixava um campo considervel

    interpretao e inveno. Neste ponto, o autor comea a analisar o queconsideramos o cerne deste seu novo livro: as mestiagens da imagem.

    De uma forma bastante criativa, Gruzinski, ao analisar os frisos do des-file das Sibilas que se encontram na Casa do Decano em Puebla ou os afres-cos que enfeitam a igreja agostiniana de Ixmiquilpan, foge dos esquematis-mos e clichs construdos em relao aos ndios da Amrica, que sempre sereferem aos esplendores das civilizaes pr-colombianas ou decadnciainapelvel que teria se sucedido (p. 131). Gruzinski demonstra que os indge-nas, que pintaram as imagens analisadas, se inspiraram nas obras de Ovdio,

    principalmente em As metamorfoses, e adaptaram motivos clssicos de mo-do a dar s cenas indgenas um aspecto antigo. Gruzinski acredita que a ra-zo para tantos esforos em unir os motivos ovidianos e indgenas seria ma-quiar as inmeras reminiscncias pags cujas conseqncias reflexivaspoderiam assim estar fora do alcance de um esprito europeu.

    Gruzinski direciona o nosso olhar para um espao ornamental os fri-sos. Seriam estes espaos um local dedicado s frivolidades da decorao, aosefeitos superficiais e ao culto do pormenor? Gruzinski afirma que precisoreconsiderar o papel das margens e do ornamento na arte europia e a devol-

    ver a esses espaos o papel e o significado que lhes cabem. Gruzinski tambmpe em relevo a importncia do maneirismo na proliferao do gosto pelobizarro, pelos fenmenos estranhos e monstruosos, que influenciou o uso dosgrotescos europeus pelos artistas mexicanos os tlacuilos. Os grotescos re-velam o gosto da poca pelos arabescos e bestirios fantsticos. Em sua anli-se, Gruzinski demonstra que os grotescos permitiram a troca entre dois mun-dos o indgena e o europeu. Neste sentido, o autor se volta para este objetoto pouco estudado mas essencial para o processo de localizao de engrena-gens e processos de mestiagem. Os grotescos europeus, ainda que explorem

    tendncias decorativas, privilegiam metamorfoses e hibridaes que estopresentes no pensamento do Renascimento. A contribuio de Gruzinski sed pelo fato de constatar que a hibridao presente nas gravuras analisadas setransforma, em solo mexicano, em mestiagens, uma vez que houve naquelemomento um alargamento gigantesco de horizontes (p. 193). Cabe ressaltarque Gruzinski, em relao ao seu conceito de mestiagem, no trabalha coma idia de choque, justaposio, substituio ou mascaramento. O autor con-sidera que o processo resultante da mestiagem no um puro produto dosmeios que o engendraram. Neste sentido, o autor prefere trabalhar com a idia

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    de atraidor que maneira de um m permite ajustar entre si peas dspa-res, reorganizando-as e dando-lhes um sentido (p. 197). Ou seja, ao unir con-cepes diversas, o atraidor possibilita a expresso de um pensamento mesti-o, como podemos ver nos afrescos indgenas, no mapa-paisagem da cidadede Cholula ou nos cantares indgenas mexicanos.

    Gruzinski se apropria da expresso culture of disappearance utilizadapelo socilogo Ackbar Abbas, que analisa a situao de Hong Kong no ltimodecnio do sculo XX (p. 315). Gruzinski considera mopes os que reduziramo passado do Mxico a uma histria de massacres e destruies, e que pormuito tempo ignoraram ou fizeram desaparecer as formas singulares do Re-nascimento indgena (p. 316). Os nobres mexicanos, para evitar serem assi-milados ou reabsorvidos, tiveram que aprender a sobreviver a uma culturade desaparecimento adotando estratgias para tirar partido de mutaes,evitando a hispanizao pura e simples (p. 316). Portanto, o autor de uma

    maneira bastante feliz descarta as ciladas da marginalidade que apenas con-solida o centro, assim como escapa s iluses do local, percebido de formaideal como um porto seguro que teria conservado a antiga pureza (p. 317).

    Gruzinski, o tempo todo, nos alerta que o conjunto de componentes ex-tremamente diversos como os pictogramas, os grotescos, as fbulas antigas, oscromatismos, os efeitos luminosos, frutos do encontro e do enfrentamento,no de duas culturas, mas do que ele chama dois modos de expresso e comu-nicao (p. 273), pertencem a um espao novo, a uma zona estranha (p.243), cuja compreenso depende da inveno de novos procedimentos de

    anlise.Os artistas da cidade do Mxico no sculo XVI, assim como os cineastas

    de Hong Kong, segundo o autor, elaboraram novas prticas da imagem, aomesmo tempo que desestabilizaram e distorceram os gneros, sejam eles osgrotescos do Renascimento, os velhos cantares amerndios ou os filmes dekung-fu (p. 319).

    Este livro de Gruzinski, alm de ser uma obra de grande erudio, tam-bm uma lio de mtodo. A ns, historiadores, prope que estejamos aten-tos interdisciplinaridade e a todas as formas de expresso que permitam um

    enriquecimento das formas de anlise de nosso objeto de estudo. Como disseanteriormente, Gruzinski faz diversas pontes com o presente. O seu estudodo Mxico espanhol aps a conquista no impede que analise certas questescontemporneas como a mundializao, a World Culture e a influncia ca-da vez mais predominante dos Estados Unidos. Gruzinski, por exemplo, ana-lisa em seu livro os filmes de Peter Greenaway Prosperos Books e The Pil-low Book, e o cinema do diretor Wong Kar-wai procedente de Hong Kong.Um dos filmes de Wong Kar-wai, Happy Together, que narra as peripciasde dois chineses em Buenos Aires, d ttulo a sua concluso. Ao analisar este

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    filme, Gruzinski, atravs do olhar do diretor, expe a fora das mestiagensnum mundo onde imperam os fluxos de informao e poder do capitalismoem nvel mundial.

    Gruzinski est atento complexidade do tema na medida em que realaos limites que uma mistura pode alcanar, uma vez que pode se transformar

    em uma nova realidade ou adquirir uma autonomia imprevista. Portanto, oautor sugere que o estudo destes limites com suas conseqncias para o fen-meno da mestiagem est sendo reservado para um livro futuro. Nele, talvezo autor possa nos mostrar algo que ainda no foi abordado neste livro. Qualser o lugar da cultura mestia neste processo de mundializao engendradoem escala planetria pelo capitalismo? Gruzinski j demonstrou a impossibi-lidade do retorno ao passado, do despertar das culturas submetidas. Resta-nos indagar se a cultura mestia se manter refm dentro dos limites da tra-dio ocidental ou se permitir o surgimento de algo novo que romper com

    a lgica do sistema de dominao atualmente vigente.Certamente o leitor que se dispuser a ler O Pensamento Mestio de Ser-ge Gruzinski, no se decepcionar e poder se deixar levar pelo prazer de des-cobrir uma outra Amrica.

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    Gruzinski, Serge. O pensamento mestio

    Dezembro de 2002

    Resenha recebida em 09/2002. Aprovada em 10/2002.