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Pelo Êxodo da Sociedade Salarial A Evolução do Conceito de Trabalho em André Gorz André Langer 1

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Pelo Êxodo da Sociedade SalarialA Evolução do Conceito de

Trabalho em André Gorz

André Langer

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Sumário

Introdução........................................................................................................................................................ 3

1 A crise da sociedade salarial ........................................................................................................................ 5

1.1 A revolução tecnológica .................................................................................................................. 5

1.2 O trabalhador pós-fordista ............................................................................................................. 8

1.3 A “brasilianização” do mundo do trabalho.................................................................................. 9

1.4 A crise da sociedade salarial............................................................................................................ 12

2 O conceito de trabalho em André Gorz ........................................................................................................ 15

2.1 A invenção moderna do trabalho .................................................................................................. 16

2.2 A emergência da racionalidade econômica................................................................................... 19

2.3 O trabalho como essência do homem .......................................................................................... 22

2.4 Da libertação no trabalho para a libertação do trabalho: a evolução de Gorz ....................... 27

2.5 Questionamento de atributos relacionados ao conceito emprego............................................ 29

2.6 O emprego: isso que se “tem” ou não se “tem” ......................................................................... 34

2.7 O trabalho: isso que se faz.............................................................................................................. 38

2.8 O fim do trabalho e a sua não-centralidade ................................................................................. 41

3 Propostas para o êxodo da sociedade salarial ................................................................................................ 43

3.1 Para além da lógica mercantil – rumo a uma economia plural.................................................. 43

3.2 Redução do tempo de trabalho e nova cultura do tempo livre................................................. 48

3.3 Mínimo vital universal e suficiente ................................................................................................ 52

3.4 Mudança política e cultural ............................................................................................................. 56

Considerações Finais ........................................................................................................................................ 58

Referências bibliográficas .................................................................................................................................. 60

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O autor é licenciado em Filosofia pela PUC-PR e mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela UNISINOS.Trabalha no CEPAT, Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores, em Curitiba, e participada Pastoral Operária.

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Introdução

O trabalho tem estado no centro de profun-das e radicais transformações provocadas pelocapitalismo no final do século passado e iníciodeste novo milênio. O impacto da revolução tec-nológica em curso tem sido tão grande que aindaestamos como que no meio do redemoinho porela causado. Muitas idéias, pensamentos e práticas,tidos como certos e que serviram de portos segu-ros para interpretar a realidade social e, mais espe-cificamente, a realidade do mundo do trabalho, seesvaeceram. Os fenômenos do desemprego, daflexibilização, da desregulamentação e da precari-zação relacionados ao trabalho tomaram de assal-to sociedades inteiras. Já não há um indivíduo quepossa se sentir seguro nesta nova sociedade quevai emergindo. O capitalismo parece mesmo terfeito desta situação de insegurança generalizadaum princípio de organização social e do trabalho.

Muito já se refletiu, escreveu e divulgou sobreo trabalho, sua natureza, seu estatuto e suas atuaismutações. Foi abordado sob ângulos muito dife-rentes e sob pontos de vista não raramente con-traditórios. Tem-se a impressão de que tudo já foidescoberto e escrito sobre o tema. Mas, por ou-tro lado, por vezes, emerge o sentimento de quenada se sabe a seu respeito. Um espesso véu deignorância o cobre.

Dizemos isso não porque queremos, atravésdestas ponderações, trazer todas as luzes sobre oassunto, o que seria pretensão demais da nossaparte, mas, antes, dizer com que cuidados quere-mos tratar deste tema. Nossa intenção é, isso sim,a de nos aproximar do tema do trabalho conduzi-dos pela mão de um pensador que, a nosso ver, oconhece muito bem e cujo pensamento nos temseduzido. A nossa reflexão sobre as transforma-ções sofridas pelo trabalho e, mais amplamente,pela sociedade do trabalho, sobre a urgência derepensar conceitualmente a noção de trabalho,

sobre possíveis saídas para ousar o êxodo da so-ciedade salarial, será sempre conduzida de pertopor André Gorz.

Gorz, cujo nome verdadeiro é Gerhard Horst,é austríaco de nascimento e está radicado naFrança há muitos anos. Nasceu em 1923 e viveatualmente perto de Paris. Jornalista por profis-são, Gorz é reconhecido, também, como filósofoe sociólogo. O tema do trabalho sempre tem sidouma constante na sua produção teórica. Gorz foimilitante de esquerda e sempre pensou tendo osocialismo como horizonte. Mas, por conta dasua concepção de trabalho e o lugar deste na so-ciedade, Gorz tem desafiado a esquerda tradicio-nal a repensar o socialismo.

Nossa reflexão, em primeiro lugar, não pre-tende ser sobre a vida e a obra de André Gorz,mas sobre sua contribuição para o tema do traba-lho. Em segundo lugar, não nos importa toda aobra de Gorz. Interessa-nos a produção teórica,realizada por ele a partir do final da década de1970, mais especificamente a que vai desde suaobra “Adeus ao proletariado” (publicada em 1980,na França). Este livro reflete uma importante in-flexão no pensamento de Gorz, razão pela qualé considerado um divisor de águas na sua pro-dução teórica. Ele passa do campo dos essenci-alistas ao campo dos historicistas, como vere-mos no segundo capítulo. E essa mudança écheia de conseqüências políticas, econômicas esociais. Gorz não acredita mais na possibilida-de de a classe operária se liberar no trabalho epassa a ser um ardoroso defensor da libertaçãodo trabalho.

Mas, por que a reflexão de Gorz pode contri-buir para uma nova compreensão do trabalho?Em que reside a ousadia apresentada pelo pensa-mento de Gorz? Fundalmentalmente, por trêsgrandes razões.

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A primeira diz respeito à leitura que Gorz fazda “crise” da sociedade salarial. Uma revoluçãotecnológica, a revolução informacional, está nabase das transformações ocorridas principalmen-te no último quartel do século XX. Gorz chama aatenção para a diferença dessas tecnologias emrelação àquelas que proporcionaram o surgimen-to da revolução industrial. A revolução informa-cional é, ao mesmo tempo, poupadora de traba-lho, de tempo de produção e maximizadora daprodutividade. E isso faz toda a diferença, quan-do são apropriadas unilateralmente pelo capital.A sociedade do pleno emprego acabou e não vol-tará mais. Para Gorz, não se trata de lamentar aschances e oportunidades perdidas, mas aprovei-tar-se das chances não realizadas.

Num segundo momento, tratamos de esmiu-çar a segunda razão. Por trás da crise do empre-go, há algo mais. Essa forma particular de traba-lho, o emprego, é uma invenção da modernidade,ou seja, o emprego é contemporâneo da indús-tria, do capitalismo industrial. Por trás da crise doemprego, Gorz enxerga a necessidade de se dife-renciar, conceitualmente, as noções de empregoe de trabalho. E concluímos, afirmando com eleque o que está em crise é uma determinada formade trabalho, o trabalho entendido como empre-go, isto é, aquele que foi submetido à racionalida-de econômica. O trabalho guarda uma riquezaque não pode ser confundida com o emprego.Resgatar essa diferença torna-se crucial para umamelhor compreensão dessa realidade, ao mesmotempo em que aponta para as conseqüências po-líticas e sociais oriundas desse rigor conceitual.

Gorz, como partidário do campo historicista,defende a limitação da racionalidade econômica.

Para ele é preciso arrancar do domínio do capitalo máximo de tempo das pessoas e não fomentarque, para solucionar o problema do desemprego,mais atividades não-remuneradas sejam incorpo-radas ao campo das atividades remuneradas.Mas, sabe-se que a criação de novos empregossignifica muito freqüentemente trabalho maisprecário, mal remunerado e mal protegido.

Terceira razão. A crise do emprego e a dife-renciação conceitual estabelecida entre as noçõesde emprego e de trabalho abrem um vasto lequede possibilidades para se pensar uma sociedadenão mais organizada principalmente sobre o tra-balho. Uma sociedade de multiatividades podeser fonte de uma densa rede de relações, de pro-ximidades, de entre-ajudas, capaz de desenvolveras potencialidades presentes em cada pessoa.Não há mais a preocupação em ampliar somenteaquelas potencialidades requeridas e úteis às em-presas.

Gorz elabora algumas propostas ou conjuntode políticas que tornam possível ousar o êxododa sociedade salarial ou do trabalho: a redução dotempo de trabalho e a renda de cidadania, univer-sal e suficiente. Ambas devem ser tomadas emconjunto. Isoladamente, podem correr o risco dese verem transformadas em medidas pontuais e,portanto, fadadas ao fracasso.

É por essas razões que o pensamento de Gorzé extremamente instigante e desafiador.

As reflexões que seguem são realizadas com afirme convicção de que estamos num momentocrucial da história e de que o trabalho pode con-tribuir decisivamente para uma nova organizaçãodas nossas sociedades. Ele poderá nos ajudar aescolher mais mercado ou mais sociedade.

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1 A crise da sociedade salarial

O trabalho é o foco central das reflexões deAndré Gorz. Ele vem acompanhando de pertoas principais transformações que o trabalhovem sofrendo especialmente no último quarteldo século XX. Gorz é um daqueles homens queaprendeu a transitar em diversas áreas do pensa-mento social (sociologia, filosofia, economia), oque lhe dá uma visão abrangente dos aconteci-mentos. Não se contenta em seguir caminhos játrilhados. Quando o faz, é no sentido de cami-nhar para além, abrir novos atalhos, jogar novasluzes sobre temas antigos e novos, sempre pararealizar aquilo que chama de “buscas de senti-do”. Ou seja, não basta analisar a realidade, masfaz-se necessário realizar buscas de sentido paracompreender a ação humana em cada momentoda história.

Gorz debruça-se sobre a problemática do de-semprego, o alcance da precarização do mundodo trabalho, a introdução e o impacto das novastecnologias sobre a produção, bem como sobre areorganização e a posição dos trabalhadores emrelação aos empregos existentes.

Na compreensão de Gorz, o trabalho está in-serido num sistema mais amplo, mais abrangen-te, a partir do qual se deve entender suas “meta-morfoses”. O trabalho, tal como o entendemoshoje, deve sua natureza, suas funções e seus mo-dos de organização, ao capitalismo. Não é possí-vel pensar as transformações pelas quais está pas-sando o trabalho, sem ter presente as dinâmicasdo capitalismo e as características que este assu-me para manter, em tempos de mundialização(globalização para muitos), o controle sobre ostrabalhadores.

O capitalismo passou a compreender o traba-lho como emprego e a valorizar mais a este doque àquele (capítulo 2). No entanto, no afã deacumular e de manter, ou mesmo de aumentar oslucros, recorre à “revolução tecnológica” paracortar custos e, portanto, economizar trabalhovivo. Essa “racionalidade econômica” acaba porinstaurar uma crise da sociedade do trabalho, queinduz a uma crise da sociedade salarial.

1.1 A revolução tecnológica

Em 1983, em “Les chemins du Paradis”, Gorzchama a atenção para o fato de que a crise decrescimento que os países do Primeiro Mundoatravessavam não era passageira. Ela era o esgo-tamento do modelo de desenvolvimento, basea-do no crescimento infinito e na extensão das rela-ções mercantis. Nem o industrialismo capitalista,nem o socialista “podem ser estendidos em esca-la planetária, por serem destruidores dos recursosnaturais limitados e dos equilíbrios necessáriospara a continuação da vida”1. E isso nem os teóri-cos da direita nem os intelectuais da esquerda es-tão compreendendo. Obcecados pelo crescimen-to econômico não se dão conta da profundidadee da natureza da crise em andamento. Na realida-de, segundo Gorz, são dois séculos de históriaque estão sendo rompidos. Portanto, há algo demagnitude apenas “comparável à primeira revo-lução industrial”2 em vias de tomar forma. Gorzestava se referindo à revolução microeletrônica.

A mundialização do capital é “favorecida pelarevolução tecnológica”3. Ou seja, a globalização,

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1 GORZ, André. Les chemins du Paradis: l’agonie du capital. Paris: Galilée, 1983. p. 23.2 Ib., p. 13.3 NEUTZLING Inácio; KREIN, José Dari. A mundialização do capital e o mundo do trabalho (II). Convergência, Rio de Ja-

neiro, n. 303, p. 315, 1997.

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tal como se processa neste momento da história,é tributária da revolução tecnológica surgida, so-bretudo, na década de 1970. Sem os notáveisavanços nas áreas da microeletrônica, da automa-ção, da computação, das comunicações, as gran-des empresas transnacionais não poderiam terfeito o que fizeram. Ao mesmo tempo, é precisocompreender o seu alcance para a organização e anatureza do trabalho.

Na origem desta revolução, está a chamada“informação”, que não deve ser reduzida ao de-senvolvimento tecnológico de comunicações,como a Internet ou a televisão, portanto, aos meios.A informação é também conteúdo, pois ela podeser registrada, arquivada, calculada (“computa-da”) em máquinas e artefatos que se tornam “in-formatizados”, e não automatizados, como se dizfreqüentemente4.

O último quartel do século XX foi testemunhade um amplo processo de automação ocorridonas fábricas. A automação vem a ser algo qualita-tivamente diferente da simples mecanização. Pormecanização entende-se o trabalho físico realiza-do pelo homem por meio de uma máquina. Já aautomação ocorre “quando a máquina realiza otrabalho humano, controlando as suas própriasoperações e corrigindo os seus próprios erros”.Ou seja, a automação consiste “na substituiçãodos órgãos humanos de esforço, de memória e dedecisão por órgãos tecnológicos”5.

A revolução tecnológica, na perspectiva deGorz, é fundamental para que hoje possamos fa-lar em mundialização.

A mundialização não teria podido se desenvolver, nemsequer considerar-se, na ausência do potencial, emgrande parte não explorado até esse momento, das ‘tec-nologias da informação’. Se cada grande grupo não ti-vesse esperado obter uma participação suplementar nomercado mundial, tirando melhor e mais rápido provei-to que os outros das possibilidades latentes que a revo-lução informática oferecia, é verossímil pensar que teriaprevalecido a tendência à cartelização e a uma reparti-ção do mundo por acordos de cartel [...].6

Gorz mostra como a revolução tecnológicafoi vital para os interesses do capital. Este seapropria daquela para alavancar a continuidade ea exacerbação da concentração das riquezas e dopoder7. Ou seja, a revolução tecnológica atendeaos dinamismos do capitalismo8.

1.1.1 Natureza da revolução

Gorz é partidário daquele grupo de pensado-res que - como Jacques Robin, Roger Sue, entreoutros - acreditam que, com as transformaçõestecnológicas em andamento, não estamos en-trando propriamente numa terceira revolução in-dustrial. Antes, por suas características, seu im-pacto sobre o sistema produtivo, sobre a organi-zação do trabalho e sobre a própria sociedade,convém que seja concebida como uma verda-deira “revolução”. Para ele, a robótica na indús-

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4 Cf. ROBIN, Jacques. In: AZNAR, G. et al. Vers une économie plurielle: un travail, une activité, un revenue pour tous. Paris:Syros, 1997. p. 26. O livro é um debate entre pensadores franceses sobre os diversos temas discriminados no subtítulo.

5 MARÉCHAL, Jean-Paul. Imaginar uma outra sociedade. Por uma economia solidária. CEPAT Informa, Curitiba, n. 39, p.2, maio 1999. Lojkine fala em “revolução informacional”, revolução que nasce da “oposição entre a revolução da má-quina-ferramenta, fundada na objetivação das funções manuais, e a revolução da automação, baseada na objetivação decertas funções cerebrais desenvolvidas pelo maquinismo industrial” (p. 14). Para Lojkine, a revolução informacional seopõe à revolução industrial pelas seguintes características: polifuncionalidade, flexibilidade e as redes descentralizadas(p. 73). A grande novidade da revolução informacional seria a alta potencialidade de criação, de circulação e de estoca-gem de imensa massa de informação antes monopolizadas. Ela estaria empreendendo um caminho de superação das di-visões de atividades e funções próprias da revolução industrial (p. 14-15). LOJKINE, Jean. A revolução informacional. SãoPaulo: Cortez Editora, 1995.

6 GORZ, André. Misères du présent. Richesse du possible. Paris: Galilée,1997. p. 29.7 Gorz, contudo, já em Les chemins du Paradis chama a atenção para o caráter ambivalente das tecnologias da microeletrô-

nica, que ele chama de tecnologias-encruzilhada, em oposição às tecnologias-ferrolho, próprias do capitalismo fordista.A especificidade das tecnologias-encruzilhada está em que não comportam necessariamente um determinado tipo dedesenvolvimento, pois podem servir à hipercentralização, assim como à autogestão. GORZ, 1983, p. 67.

8 Sobre como o capital reage diante da crise do keynesianismo e seus limites, cf. ib., p. 27-66.

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tria “possibilita uma economia ao mesmotempo dos investimentos (capital constante fixo),da mão-de-obra (capital variável) e das matérias-primas. Esta é a radical novidade. Ela justificaplenamente a expressão ‘revolução microeletrô-nica’”9. É essa nova natureza da revolução queconvém seja apreendida e compreendida paraque se tenha uma correta visão da realidade e dorumo que os acontecimentos podem tomar, ouefetivamente estão tomando.

A revolução realça o aspecto da ruptura, dadescontinuidade, do intervalo, ainda que as mu-danças paradigmáticas não sejam vistas a olho nuno curto período de tempo10. Uma linha de pen-samento – Gorz, Castells, Beaud, Neutzling, Pe-reira da Silva, para citar alguns – está de acordoque, no final do século XX, vivemos uma dessasrupturas, isto é, que presenciamos uma revoluçãotecnológica e não simplesmente uma TerceiraRevolução Industrial.

Qualquer revolução implica uma mudança derelações com a natureza e com os outros. Marx jáhavia chamado a atenção para o significado da-quilo que estava ocorrendo na sua época e queteve a burguesia como elemento propulsor. Elateve um papel extremamente revolucionário,afirma Marx.11

As transformações operadas afetam profun-damente a produção, as condições sociais e cultu-rais. Foi Polanyi, posteriormente, que pôs em

evidência o alcance e a profundidade da revolu-ção que culmina com a colocação no centro dasociedade do mercado e, com ele, da economia.A economia, de periférica que era, passa a ocuparo lugar de destaque nas sociedades modernas demercado. Essa transformação altera os alicercessociais, culturais e econômicos12. Assim, o quevivemos no final do século XX, leva-nos a crerque se trata de uma revolução no sentido de que“um grande aumento repentino e inesperado deaplicações tecnológicas transformou os proces-sos de produção e distribuição, criou uma enxur-rada de novos produtos e mudou, de maneira de-cisiva, a localização das riquezas e do poder nomundo”13.

As mudanças que se dão na produção, nochão da fábrica, entranham uma mutação culturaligualmente cheia de conseqüências. Duas delassão as mais importantes. A primeira é que “otempo de trabalho não poderá mais ser a medidado valor de troca, nem o valor de troca a medidado valor econômico”14. A segunda é que “o salá-rio não poderá mais ser função da quantidade detrabalho, nem o direito a uma renda ser subordi-nado à ocupação de um emprego”15.

Essa “revolução” tem profundas conseqüênciaseconômicas e sociais, pois significa que hoje sepode produzir mais em menos tempo16, com me-nos trabalho17, enquanto se caminha para a desma-terialização dos produtos e do próprio trabalho.

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9 GORZ, 1983, p. 68. Cf. também _____. Pourquoi la societé salariale a besoin de nouveaux valets. Le Monde Diplomatique,Paris, jun. 1990, p. 22; _____. Adeus ao Proletariado: para além do socialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,1987. p. 161.

10 Cf. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 49.11 Cf. MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. 9. ed. Petrópolis: Vozes. 1999. p. 69.12 POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.13 CASTELLS, 1999, p. 53.14 Ib., p. 69.15 GORZ, 1983, p. 69.16 Dados sobre o aumento da produtividade podem ser encontrados em: GORZ, 1990, p. 22; RIFKIN, Jeremy. O fim dos em-

pregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books,1995. p. 7; AZNAR, Guy. Trabalhar menos para trabalharem todos. São Paulo: Scritta. 1995, p. 41; GORZ, André. Cambios socialesen la era posindustrial. Disponível em: <http:www.iztapalapa.uam. mx/iztapala.www/topodrilo/23/td23_11.html> Acessoem: 15 jun. 2003b. Entrevista concedida a John Keane; NEUTZLING, Inácio. Sem emprego... Por quê? A CF-99 e a gran-de transformação do mundo do trabalho. Convergência, Rio de Janeiro, n. 319, p. 16, 1999.

17 Informações sobre a redução do tempo de trabalho podem ser encontradas em: GORZ, 1990, p. 22; Id. El futuro delempleo. Documentación Social, Madrid, n. 93, p. 77, oct-dic. 1993a; BEAUD, Michel. Le basculement du monde. Paris: La Dé-couverte, 1997. p. 213.

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A revolução da microeletrônica inaugura, por-tanto, a “era da abolição do trabalho”, que deveser compreendida num duplo sentido:

a) a quantidade de trabalho necessário decresce rapi-damente até tornar-se marginal na maior parte dasproduções materiais e das atividades de organização;b) o trabalho não implica mais um face a face do traba-lhador com a matéria. A transformação dessa últimanão resulta mais de uma atividade imediata completa esoberana.18

Segundo Méda,

a riqueza é cada vez mais o produto de um conjunto deinterações complexas entre os capitais, os sistemas deinformação, o trabalho ‘das máquinas’ e o trabalho hu-mano, no qual o trabalho humano não é o único produ-tor de riqueza. O trabalho humano é hoje tão imbrica-do no conjunto de máquinas e sistemas que a eficáciadessas não pode ser distinguida da sua19

1.2 O trabalhador pós-fordista

O sistema pós-fordista de produção não maisse assenta sobre o tipo de trabalhador requeridopela organização do trabalho taylorista-fordista20.O novo trabalhador requerido pela empresaflexível deve ser basicamente polivalente, tercapacidade de trabalhar em equipe, estar apto alidar com a fragmentação, ter capacidade deaceitar novos riscos e viver sob a égide dos “la-ços fracos”21.

Como observa Gollain, a mudança é maisprofunda, pois

forçoso é constatar que a favor da rapidez das novastransformações atuais, a empresa e o assalariado estãoem vias de desaparecer como entidades que podem fa-

cilmente ser identificadas e que as diversas estratégiasde utilização da força de trabalho adotadas pelas em-presas nos últimos anos questionam a clivagem tradi-cional entre assalariado e independente.22

Há mesmo nisso um processo paradoxal. “Asnovas modalidades de contratação aproximam osassalariados do estatuto tradicional dos indepen-dentes, ao mesmo tempo, esta independênciaperde sua substância para os dois grupos de tra-balhadores”23. Ou seja, exige-se cada vez maisiniciativa, criatividade e responsabilidade porparte do trabalhador assalariado. Os trabalhado-res independentes, por sua vez, são instados a su-portarem todos os riscos inerentes à situação.

Para Gorz, a nova tendência do capital é tor-nar cada trabalhador um empresário, o empresá-rio de si. Num parágrafo denso ele mostra emque consiste este trabalhador-empresário:

A diferença entre a pessoa e a empresa, entre a força detrabalho e o capital, deve ser suprimida. A pessoa devetornar-se por si mesma uma empresa, deve tornar-sepor si mesma, como força de trabalho, um capital fixoque exige ser continuamente reproduzido, moderniza-do, alargado, valorizado. Nenhum constrangimentodeve ser imposto de fora, ela deve ser seu próprio pro-dutor, seu próprio empregado e seu próprio vendedor,obrigando-se a se impor os constrangimentos necessá-rios para assegurar a viabilidade e a competitividade daempresa que ela é.24

Cada trabalhador-empresário é responsávelpela sua produção enquanto empresário e, comotal, deve assumir as responsabilidades necessáriaspara que possa estar à altura de poder competircom os outros trabalhadores-empresários.

Cada um deve se sentir responsável pela sua saúde, pelasua mobilidade, pela sua capacidade de se adaptar aos

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18 GORZ, 1983, p. 73.19 MÉDA, Dominique. Le travail. Paris: Aubier, 1995. p. 181.20 Muitos são os autores e os estudos sobre o sistema taylorista-fordista. Cf. NEUTZLING, Inácio; KREIN, José Dari.

Organização do trabalho. In: ENDERLE, Georges et al. Dicionário de Ética Econômica. São Leopoldo: Unisinos, 1997b. p.701-2; CORIAT, Benjamin. Pensar pelo avesso. Rio de Janeiro: Revan; Ed. UFRJ, 1994; TENÓRIO, Fernando G. Flexibiliza-ção organizacional: mito ou realidade? Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000.

21 Cf. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro:Record, 1999.

22 GOLLAIN, Françoise. Une critique du travail: entre écologie et socialismo. Paris: La Découverte, 2000. p. 166.23 GOLLAIN, loc. cit.24 GORZ, André. L’Immateriel: connaissence, valeur et capital. Paris: Galilée, 2003. p. 25.

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horários variáveis, pela colocação em prática de seusconhecimentos. Cada qual deve gerir seu capital huma-no ao longo de toda a sua vida, sem deixar de investirnele com momentos de formação [...].25

Ou seja, cada qual é responsável por sua em-pregabilidade. Dessa maneira, a ideologia liberalconsegue jogar sobre os ombros dos própriostrabalhadores o problema do desemprego. Háuma individualização das causas do desemprego.A rigor, já não há mais desemprego, pois com ofim do assalariamento, não há mais trabalhadoresno sentido tradicional.

As exigências de liberdade e de autonomiaqueridas pelos trabalhadores vêm ao seu encon-tro de forma paradoxal: o que parecia libertar, naverdade, escraviza.

1.3 A “brasilianização”26 do mundo dotrabalho

As conseqüências, tanto da revolução infor-macional quanto da ditadura do sistema financei-ro para a realidade do trabalho, são profundas e

dramáticas. As sociedades parecem estar mergu-lhando, cada vez mais profundamente, num futu-ro incerto e inseguro, ao menos para uma grandeparcela de suas populações. Não é por nada que osociólogo alemão Ulrich Beck fala em “sociedadede risco”. A sociedade de risco não é uma socie-dade das catástrofes. Caracteriza-se, acima detudo, por “um desenvolvimento social no qual aexpectativa do inesperado, a expectativa dos ris-cos possíveis domina cada vez mais a cena danossa vida: riscos individuais e riscos coleti-vos”27. E desses riscos sequer o trabalho escapa.

A chamada “revolução da microeletrônica”abre novas possibilidades para o agir humano.Veremos, agora, que ela terá também repercus-sões que afetarão a natureza mesma do trabalhoe, por conseguinte, as condições dos trabalhado-res e trabalhadoras28. Para Gorz, a imagem queretrata com mais fidelidade os seres humanosneste início de novo século não é mais a figura dotrabalhador, mas sim a imagem do precário. Esta-mos fadados a sermos “todos precários”29. Se-não vejamos.

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25 GORZ, loc. cit.26 O conceito “brasilianização” é usado na Europa por Alain Lipietz. Ele o usa no contexto das políticas de flexibilização

adotadas na Europa do Sul, na França, mas sobretudo pelos países anglo-saxões, aplicadas com a finalidade de supera-rem a crise do fordismo. Para ele, a “brasilianização” conduz ao neotaylorismo na medida em que preserva os princípiosda organização do trabalho taylorista, mas sem as vantagens concedidas aos trabalhadores pelo fordismo. Cf. LIPIETZ,Alain. La société en sablier: Le partage du travail contre la déchirure sociale. Paris: La Découverte,1998. p. 33. Outro euro-peu a usar o mesmo conceito é o sociólogo alemão BECK, Ulrich. Il lavoro nell’epoca della fine del lavoro. Tramonto delle sicurez-ze e nuovo impegno civile. Torino: Einaudi, 2000. No entanto, o conceito foi cunhado, em 1995, pelo norte-americano Mi-chael Land. Para ele, “o perigo principal com o qual os Estados Unidos confrontar-se-ão no século XXI não é a balcani-zação, mas o que se poderia chamar de brasilianização. Com a brasilianização não compreendo a separação das culturaspela etnicidade, mas a separação da etnicidade pelas classes”. LAND, M. The next American Nation. New York–London:s/Editora, 1995 apud NEUTZLING, Inácio. Sociedade do trabalho e sociedade sustentável: algumas aproximações. In:OSOWSKI, Cecília; MÉLO, José Luiz Bica de (org.). O Ensino Social da Igreja e a globalização. São Leopoldo: 2002. p. 37. Opróprio Neutzling usa o conceito por meio do qual se exprime o forte processo de flexibilização e precarização ocorri-do no trabalho. Outro que assume a tendência da “brasilianização” do mundo do trabalho, ainda que não use este con-ceito, é Antonio D. Cattani, que usa o termo “servidão” para designar o processo de precarização francamente em ex-pansão no Brasil e que ameaça os países do Primeiro Mundo. Finaliza a sua análise perguntando: “Trata-se de dados so-bre um país do Terceiro Mundo. Estarão eles anunciando o que poderá acontecer em breve nos países avançados?”CATTANI, Antonio David. Desemprego e trabalho precário: bases para a servidão moderna? Revista de Ciências Huma-nas, Curitiba: Ed. UFPR, n. 10, p. 203, 2001.

27 BECK, Ulrich. A sociedade do risco. CEPAT Informa, Curitiba, n. 72, p. 66-7, maio 2001. Ver a este respeito também_____. Terceira Via de esquerda perdeu força. Folha de S.Paulo, 27 out. 2002.

28 Cf. GORZ, 1990, p. 22.29 GORZ, 1997, p. 89.

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1.3.1 O desemprego

O desemprego tornou-se um dos mais sérios edramáticos problemas no início deste novo sécu-lo. Praticamente todas as sociedades convivemcom altos índices de desemprego e subemprego.Transformou-se num dos problemas sociais epolíticos mais prementes.

A categoria sociológica desemprego é con-temporânea da generalização forçada da relaçãosalarial, e, portanto, é também uma invenção dasociedade moderna. O conceito evoluiu e sofreumodificações, o que nos leva a distinguir três ti-pos básicos de desemprego: o estrutural, o tecno-lógico e o cíclico ou conjuntural.

Desemprego estrutural é aquele que resulta da despro-porção qualitativa entre demanda e oferta de força detrabalho, devido sobretudo à falta de força de trabalhoqualificada ou, mesmo, à inadequação do tipo de quali-ficação às necessidades do mercado. O desemprego tec-nológico é caracterizado pela diminuição relativa daquantidade de trabalho humano empregado nas ativi-dades produtivas ou de serviço, que resulta da crescen-te mecanização ou automação dessas atividades. O de-semprego cíclico ou conjuntural, por sua vez, é aquele asso-ciado à insuficiência de demanda decorrente das oscila-ções da atividade econômica.30

Somos partidários da tese de que a atual expe-riência do desemprego se deve prioritariamente àrevolução tecnológica em curso31, ainda que nãoexclusivamente. Há também, evidentemente, ou-tras razões, entre as quais se destacam as políticaseconômicas adotadas pelos governos nacionais,as opções políticas que favorecem a concentra-ção da produtividade socialmente produzida e aimplementação da reorganização da produção edo trabalho.

No mundo e no Brasil, assiste-se a uma ten-dência ascendente do desemprego aberto. Consi-derando-se o período 1975-1999, “o Brasil desta-cou-se por ter a sua taxa de desemprego abertoaumentada em 369,4%, alterando-se de 1,73%em 1975, para 9,85%, em 1999”32.

Se levarmos em conta os anos 90, a “décadaneoliberal”, houve entre 1989 e 1999 um forteaumento do desemprego em nosso país. “O vo-lume de desempregados cresceu a uma taxa mé-dia anual de 15,4%, significando que a cada doispostos de trabalho criados, surgia mais um novodesempregado”33. Ou seja, neste período a quan-tidade de desempregados passou de 1,8 milhãopara 7,6 milhões de pessoas, o que fez o desem-prego aberto passar de 3% da PEA para 9,6%34.

Aqui estamos nos referindo unicamente aochamado desemprego aberto. Caso incluirmos odesemprego oculto precário (bicos, serviços tem-porários enquanto se aguarda por outro empre-go) ou o desemprego oculto por desalento, as ci-fras certamente serão bem mais elevadas, che-gando a atingir mais de 19% da PEA35.

No entanto, o desemprego é apenas uma dassombrias faces da “brasilianização” do mundodo trabalho. Ou, como afirma Castel, “é apenas amanifestação mais visível de uma transformaçãoprofunda da conjuntura do emprego”36.

1.3.2 A precarização do trabalho

É inegável que todo o processo de reestrutu-ração produtiva e do trabalho esteja, por um lado,suprimindo empregos, mas por outro, criandonovos empregos. A diferença é que os chamadosnovos “empregos” são qualitativamente diferen-

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30 SILVA, Josué Pereira da. Cidadania e/ou trabalho: o dilema da questão social neste final de século. Idéias, Campinas, v. 5,n. 2-vol. 6, n. 1, p. 126-127, 1998-1999.

31 Recente estudo da UFRJ revela que as novas tecnologias são responsáveis pelo fechamento de quase 11 milhões depostos de trabalho no Brasil. Cf. FERNANDES, Fátima. Tecnologia cortou 10,8 milhões de empregos. Folha de S.Pau-lo, 18 jan. 2004.

32 POCHMANN, Marcio. O emprego na globalização. São Paulo: Boitempo, 2001. p. 86.33 POCHMANN, Marcio. E-trabalho. São Paulo: Publisher Brasil, 2002. p. 72.34 POCHMANN, 2001a, p. 48.35 Sobre as diferentes metodologias usadas para medir as taxas de desemprego, cf. DUPAS, Gilberto. Economia global e ex-

clusão social: pobreza, emprego, Estado e o futuro do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 132.36 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 514.

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tes dos empregos tradicionais, de tempo integrale de duração indeterminada. Os novos “empre-gos” acabam modificando profundamente o es-tatuto dos assalariados e as condições de empre-go37. Trata-se, cada vez mais, de empregos des-qualificados, pouco atraentes e mal remunerados.São “empregos” de tempo parcial ou de duraçãodeterminada. Roger Sue estima que 90% dos em-pregos criados nos Estados Unidos, em 1993, te-nham sido precários ou de tempo parcial. Possi-velmente mais da metade dos empregados nor-te-americanos estejam nesta situação38. Estas,entretanto, não são apenas estatísticas válidasapenas para os Estados Unidos. “Na Inglaterra,os ‘trabalhadores flexíveis’ aumentaram em 16%,alcançando 8,1 milhões entre 1981 e 1985, en-quanto os empregos permanentes caíram em 6%,ficando em 15,6 milhões”39.

O processo de flexibilização implantado noBrasil foi decisivo para o surgimento de umnovo paradigma do mercado de trabalho brasi-leiro, mais fortemente acentuado na década de1990. Várias mudanças estruturais importantesestão em andamento e afetam, em cheio, a so-ciedade brasileira. Simplesmente elencamos asmais notáveis: crescimento do trabalho infor-mal, progressivo desassalariamento, decres-cente participação do trabalho na renda nacio-nal e crescimento do fenômeno chamado so-bretrabalho40.

1.3.3 A metamorfose do assalariado

Todo esse processo de precarização do traba-lho conduzirá a uma “metamorfose do assalaria-do”, que acaba por dividir o conjunto dos traba-lhadores em duas grandes categorias:

Primeiramente, há um núcleo central com-posto de assalariados permanentes e de tempointegral, capazes de polivalência profissional e demobilidade. Participar deste núcleo central é pri-vilégio de poucos. Significa gozar de uma estabi-lidade econômica e de trabalhos maiores. As con-dições de trabalho são boas e a proteção da lei,assegurada. Ao redor deste primeiro núcleo, háuma massa importante de trabalhadores periféri-cos, dos quais uma proporção importante de pre-cários e de interinos com horários e salários va-riáveis. Um pouco mais distante do núcleo cen-tral, mas gravitando em torno do segundo grupo,se ajunta uma proporção cada vez mais impor-tante de “externos”, ou seja, prestadores de servi-ços pretensamente “independentes”, pagos portempo ou tarefa, cuja carga de trabalho varia se-gundo as necessidades do momento. Esses “in-dependentes” não contam com nenhuma prote-ção social e são os mais expostos às incertezasconjunturais e comerciais que as empresas des-carregam sobre eles41.

A tendência da reengenharia é reduzir drasti-camente o núcleo central de trabalhadores nasempresas. Em contrapartida, a política das em-presas consiste em ampliar a participação dos tra-balhadores “contratuais”, que fazem praticamen-te tudo o que os primeiros faziam, mas com a di-ferença de que não contam com os “mesmos di-reitos sociais, nem a mesma remuneração”42. Ouseja, a competitividade e a contenção de “gastos”com mão-de-obra faz com que as empresas op-tem por um trabalhador que tem uma relaçãocontratual mais frágil, tênue, com elas. Isso evi-dentemente entra em conflito, muitas vezes, coma ideologia empregada pelas empresas de que o

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37 Cf. GORZ, André. Saindo da sociedade do trabalho assalariado. São Paulo em Perspectiva, n. 3, p. 136, coluna 1, jul.-set.1995.

38 Cf. SUE, Roger. La richesse des hommes: vers l’économie quaternaire. Paris: Odile Jacob, 1997. p. 27-8.39 HARVEY, 1999, p. 144.40 Sobre esses tópicos há vasta bibliografia e dados. Basta conferir, entre outros, POCHMANN, 2001a e b; GORZ, 1997;

NEUTZLING, 2002; KREIN, José Dari. O aprofundamento da flexibilização das relações de trabalho no Brasil nos anos 90. Campi-nas: UNICAMP, 2001. Dissertação (Mestrado em Economia Social e do Trabalho), Instituto de Economia, Universida-de Estadual de Campinas, 2001.

41 Cf. GORZ, 1997, p. 82-3.42 GORZ, 1997, p. 82-3.

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trabalhador deve “vestir a camisa” da firma etransformá-la (a esta) em sua “família”.

Para Gorz, por trás da lógica da externalizaçãodos trabalhadores, “abre-se a perspectiva da abo-lição do próprio assalariado, batizado de ‘pós-sa-larial’: ela permite arrematar a ‘flexibilização’, tor-nando a remuneração do trabalho livremente ne-gociável entre a empresa e cada um dos prestado-res de trabalho individual”43.

À margem dessas duas categorias, encontra-seuma outra: a dos desempregados. Castel os cha-ma de “inúteis para o mundo”, de “supranumerá-rios”. “São menos excluídos do que abandona-dos”. “Nem sequer são explorados [...] São su-pérfluos”44. Para uma parte deles, a esperança deencontrar novamente um emprego torna-se re-mota. Figuram na lista dos chamados “desalenta-dos”, pois já desistiram de procurar um empregoe se viram por conta própria ou são atraídos portrabalhos precários, de tempo parcial.

Esquemas semelhantes ao concêntrico, ado-tado por Gorz, podem ser encontrados em ou-tros autores: Roger Sue45, David Harvey46 e AlainLipietz47.

1.4 A crise da sociedade salarial

Gorz usa dois conceitos que são importantesdefinir: “sociedade do trabalho” e “sociedade salari-al”. Ele os usa como sinônimos. Refere-se a amboscomo resultando num “modo específico de perten-ça social e um tipo específico de sociedade”48. São,portanto, criações humanas, situadas historicamen-te. Têm cerca de 150 anos de existência.

A sociedade do trabalho é, na visão de Gorz,aquela sociedade em que o trabalho, na sua formaemprego, aparece como fundamento de direitose de cidadania. Na sociedade do trabalho, este écolocado no centro da sociedade como a ação so-cial por excelência. Todas as dimensões sociais,jurídicas, políticas, econômicas passam inevita-velmente pelo trabalho. A sociedade se organizaa partir do trabalho.

A sociedade salarial, por sua vez, é aquela emque as pessoas são definidas e descritas na sua ci-dadania pelo trabalho assalariado que possuem49.O acento recai sobre o fato do assalariamento.Por ser um trabalho demandado pela sociedade,portanto, útil a ela, ele é pago. O pagamento (sa-lário) é o reconhecimento, por parte da socieda-de, dado ao trabalhador e o passaporte de perten-ça a esta sociedade também como consumidor.

Robert Castel também usa o termo “socieda-de salarial”. A sociedade salarial coincide com omomento histórico em que a proporção dos assa-lariados na população ativa passa a representar amaior parte dessa população. E situa 1975 comoo ano que marca a apoteose da sociedade salari-al50. Daí para diante começa a declinar.

Na introdução a “Misères du présent. Richesse dupossible”, Gorz afirma que a crise da sociedade sa-larial ou do trabalho consiste em que “um novosistema tende a abolir massivamente o ‘trabalho’.Este sistema restaura as piores formas de domi-nação, de servidão, de exploração ao obrigar to-dos a lutar contra todos para obter esse ‘trabalho’que ela aboliu”51.

A figura do precário é, para Gorz, a figura em-blemática do trabalhador do século XXI: “Nos

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43 GORZ, 1997, p. 85.44 CASTEL, 1998, p. 32-3.45 Cf. SUE, 1997, p. 29-30.46 Cf. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 8. ed. São Paulo: Loyola,

1990. p. 143-4.47 Cf. LIPIETZ, Alain. La société en sablier: le partage du travail contre la déchirure sociale. Paris: La Découverte, 1998. p.

37-8.48 GORZ, 1997, p. 95.49 Cf. NEUTZLING, 2002, p. 37.50 Cf. CASTEL, 1998, p. 452.51 GORZ, 1997, p. 11.

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sabemos, nos sentimos, nos apreendemos a cadaum de nós como desempregados em potência,subempregados em potência, precários, tempo-rários, de tempo parcial em potência”52. “A figu-ra central e a condição ‘normal’, como tendênciaao menos, não são mais a do ‘trabalhador’”, talcomo foi compreendido ao longo dos últimos150 anos. ‘Normal’ parece ser a figura do “precá-rio que ora ‘trabalha’, ora não ‘trabalha’, que exer-ce, de maneira descontínua, múltiplos ofícios,dos quais nenhum é um ofício, que não tem pro-fissão identificável e que tem como profissão a denão ter nenhuma”. E finaliza dizendo que “estafigura central do precário é a que se apresenta po-tencialmente como a nossa”53.

Neste cenário econômico e político, o trabalhotornou-se uma “mercadoria rara” e o “emprego,um privilégio”54. Por isso precioso, segundo a ló-gica econômica reinante. O capital já “não temmais necessidade e terá cada vez menos necessi-dade do trabalho de todos”55. Por outro lado, a“ideologia do trabalho-valor”56 nunca foi tão pro-palada e a sua necessidade tão exaltada. Mas,

convertido em algo precário, flexível, intermitente,com duração, horários e salários variáveis, o empregodeixa de integrar num coletivo, deixa de estruturar otempo cotidiano, semanal, anual e as idades da vida,deixa de ser o alicerce sobre o qual cada um pode cons-truir seu projeto de vida.57

Nesse contexto, como garantir que o trabalhocontinue sendo atrativo, estimulante para os tra-balhadores? O capitalismo e a sociedade au-to-regulada criam mecanismos para a incitaçãoao trabalho.

Conservar a idéia de uma contribuição e de uma retri-buição proporcionais ao trabalho realizado, ao diplo-

ma, ao mérito, é guardar a idéia da incitação ao traba-lho, de aguilhão individual, de interesse individual ou, oque dá no mesmo, do medo da fome. Se não houvessemais o engodo do ganho, as pessoas não trabalhariammais; é, pois, impossível de encarar a dissociação entrerenda e trabalho realizado.58

O trabalho perde a sua centralidade. Tende adesaparecer. Mas, cuidado! Não é, porém, todo equalquer trabalho que tende a desaparecer.

O trabalho que desaparece é o trabalho abstrato, o tra-balho em si, mensurável, quantificável, separável dapessoa que o ‘oferece’, suscetível de ser comprado evendido no ‘mercado de trabalho’, em resumo, o traba-lho pelo qual se ganha dinheiro ou o traba-lho-mercadoria, que foi inventado e imposto pela forçae com grandes penúrias pelo capitalismo manufatureiroa partir do fim do século XVIII.59

Nossas sociedades chegam, assim, a um para-doxo: tornar atraente aquilo que tende a ser sem-pre mais escasso ou precário. Incitar ao trabalhopara que não deixe de ser marginal na vida e noimaginário das pessoas. Fazer repousar sobre eleos direitos, a cidadania, o laço social. É justamen-te aqui que se situa uma das rupturas fundamen-tais de Gorz a fim de superar a sociedade do tra-balho ou a sociedade salarial. A ruptura tem umduplo vértice:

Primeiro: “trata-se de desconectar do ‘traba-lho’ o direito a ter direitos e, sobretudo, o direitoao que é produzido e produzível sem trabalho, oucada vez com menos trabalho”60. Ou seja, o “tra-balho” já não pode mais ser o fundamento de to-dos os direitos, tanto individuais quanto sociais.A equação da sociedade industrial trabalho/pro-dução/salário caducou. Como afirma Aznar:“querer continuar a determinar o salário pelaprodução, a renda pelo tempo passado na produ-

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52 Ib., p. 89.53 GORZ, 1997, p. 89-90. Cf. também GORZ, 1987, p. 89-90. Aí Gorz falava em “neoproletariado pós-industrial”, referin-

do-se a esses trabalhadores precários, de tempo parcial.54 GORZ, 1997, p. 97.55 GORZ, loc. cit.56 Ib., p. 98.57 GORZ , loc. cit.58 MÉDA, 1995, p. 182.59 GORZ, op. cit., p. 95.60 GORZ, 1997, p. 90-1. Cf., também, p. 11.

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ção é, então, uma noção absurda e, em certa me-dida, injusta. Querer continuar enquadrado pelalei do século passado (trabalho/produção/salá-rio) é um nonsense econômico”61.

Segundo: trata-se de fazer com que o “traba-lho” “perca seu lugar central na consciência, nopensamento, na imaginação de todos”62. Essa éuma aposta cultural e política. Cultural, porqueenvolve uma mudança das mentalidades. Políti-ca, porque se trata de “uma luta pelo poder”63.Em outras palavras, a saída da sociedade salarialimplica uma visão mais ampla que a meramenteeconômica. Em outra passagem, Gorz volta aeste ponto: “O problema se situa no limite docultural e do político. É preciso que as mentalida-des mudem para que a economia e a sociedadepossam mudar”64.

Mas, as dificuldades de uma tal “mutação cul-tural” são enormes. Para Gorz, se situam no âm-bito do político, “no atraso da política a respeitoda evolução das mentalidades”65. Está na dificul-dade que a mentalidade política tem de superar o

horizonte de que os direitos da pessoa não preci-sam necessariamente estar assentados no direitoao trabalho.

É indiscutível que, na sociedade industrial ca-pitalista, o “trabalho” tenha servido de grandeinstrumento jurídico e econômico de inserçãodas pessoas na sociedade. Atualmente, devido àsmudanças ocorridas no mundo do trabalho porinfluência da revolução tecnológica em curso eda financeirização do capital, parece ter havidouma mudança de sinal. O trabalho deixa, cadavez mais, de ser fator de inclusão para sedimentara exclusão e a desigualdade. O trabalho deixa decumprir sua função, na medida em que sua forçaé mais desestabilizadora e fonte de privilégiospara uma pequena elite66. Assim, o desencantocom o trabalho aciona a necessidade de colocarem ação a “nossa capacidade de encantar outrosespaços que não os da produção”67. Gorz acredi-ta numa sociedade em que o trabalho pode voltara assumir outras formas, mais ricas, mais plenasde sentido.

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61 AZNAR, Guy. Trabalhar menos para trabalharem todos. São Paulo: Scritta, 1995. p. 107.62 GORZ, 1997, p. 91.63 GORZ, loc. cit.64 Ib., p. 101.65 Ib., p. 108.66 Cf. GORZ, André. Métamorphoses du travail. Quête du sens. Paris: Galilée, 1988, a primeira parte ‘Métamorphoses du tra-

vail’.67 MÉDA, 1995, p. 309.

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2 O conceito de trabalho em André Gorz

O trabalho tornou-se, especialmente a partirdo final do século XVII e princípio do século se-guinte, aquilo que Dominique Méda denominade “fato social total”. Em nossa sociedade, o tra-balho foi elevado a fator estruturante da organi-zação econômica, política e social. “Ele estruturanão somente a nossa relação com o mundo, mastambém as nossas relações sociais. Ele é a relaçãosocial fundamental. Está, além disso, no centro davisão de mundo que é a nossa [...]”68. O trabalho éa roda que gira a economia e a sociedade. Uma vezque o trabalho é colocado no centro da sociedade,essa passa a se identificar como sociedade do tra-balho e na qual este é o seu fundamento.

Para que as sociedades se transformassem emsociedades do trabalho, este teve que sofrer umamutação em sua natureza. Na prática, o trabalho,reconhecido como tal pela sociedade, é a formaparticular de trabalho remunerado ou mais co-mumente entendido como emprego. É este tipode atividade que “se tornou a principal fonte derenda que permite aos indivíduos viver, mas queé também uma relação social fundamental [...] efinalmente o meio para alcançar a abundância”69.Todo o “trabalho”, deve, portanto, ter as seguin-tes condições: ser remunerado, ser realizado emvista da obtenção de uma renda, ser uma ativida-de social e socialmente definida e mediante a qualse alcança a abundância, isto é, as riquezas.

Na verdade, é a forma particular de trabalhochamado emprego que foi projetado para o cen-

tro da sociedade industrial. Esta forma particulare historicamente curta de trabalho é a mais difun-dida e valorizada. Não é por nada que a escassezde empregos provoca tanto frenesi em todos ossetores da sociedade, especialmente no meio po-lítico. É porque seu desaparecimento coloca emxeque a estrutura inteira da nossa sociedade70. Ti-rar o emprego é o mesmo que abrir um abismointransponível diante de nós. A crise de empre-gos que todas as sociedades ocidentais hoje expe-rimentam, em menor ou maior grau, aponta paraa sua centralidade nestas sociedades, mas, histori-camente, também denuncia, a nosso ver, um “re-ducionismo”71 da noção e da natureza daquiloque denominamos trabalho.

Por outro lado, o conceito genérico “traba-lho” esconde muitas formas de atividades prati-cadas, como veremos mais adiante. O termo“trabalho” serve como uma espécie de guar-da-chuva que abriga todas as atividades humanas.Na sociedade do trabalho, “todo ato humano étrabalho”72. É trabalho a atividade realizada pelamulher que cuida das crianças em casa; é trabalhoaquilo que o operário faz na indústria; é trabalhoa composição de uma música ou o ato de pintarum quadro; é trabalho o parto realizado pela grá-vida... A noção “trabalho” tornou-se onipresen-te. O trabalho é como o ar que se respira. Tudoremete a ele e tudo dele depende.

Atacar o “trabalho”, ou dizer que estamos ca-minhando para o “fim do trabalho”, é um ato de

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68 MÉDA, 1995, p. 26.69 Ib., p. 8.70 MÉDA, 1995, p. 26.71 Na perspectiva aberta por Gorz, a rigor, não se pode falar em “redução” da noção de trabalho, pois a concepção moder-

na de trabalho é antes uma invenção sem precedentes na história da humanidade. Nesta linha de pensamento, vai tam-bém Méda. Não se pode pensar que a economia teria operado uma redução em relação a um conceito ou uma realidademais rica e mais ampla do trabalho, o que “seria cometer um contra-senso, pois esse famoso conceito ou esta famosarealidade não existia anteriormente, nem em si nem como representação”. MÉDA, op. cit., p. 68.

72 Ib., p. 101.

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vandalismo injustificado contra a sociedade dotrabalho.

Várias perguntas nascem do que foi exposto:Como o trabalho veio a ser o que é hoje? Se eleengloba todas as atividades humanas, como épossível defini-lo ou mesmo descrever sua espe-cificidade? A saída para a crise do emprego é real-mente alargar a noção de trabalho a tal ponto quetodas as atividades devem ser remuneradas,como preferem alguns? Ou devem-se colocar li-mites a essa tentativa de mercantilização de todasas atividades e esferas humanas?

Dois são, portanto, os objetivos que iremosperseguir neste capítulo: num primeiro momento,procuraremos definir o que é o emprego e quaissão as suas implicações para a nossa sociedade;num segundo momento, passaremos a definir oque entendemos por trabalho e acenar para as no-vas possibilidades que esta concepção de trabalhopode trazer para uma sociedade de multiativida-des. Antes, porém, se faz necessário discorrer so-bre como o trabalho chegou a ser o que é hoje eque fatores foram determinantes para que a nossasociedade viesse a se compreender como uma so-ciedade assalariada. Dessa maneira, queremoscontribuir para um debate sobre a natureza e o lu-gar do trabalho na nossa sociedade e, ao mesmotempo, perceber a força potencializadora que umaoutra compreensão do trabalho pode assumir naconstrução de uma nova organização social.

2.1 A invenção moderna do trabalho

Gorz parte da constatação de que, historica-mente, o trabalho nem sempre foi aquilo que eleé hoje. O que nós nos acostumamos a chamar“‘trabalho’ é uma invenção da modernidade. Aforma sob a qual o conhecemos, praticamos e o

situamos no centro da vida individual e social, foiinventada, e em seguida generalizada com o in-dustrialismo”73. A compreensão que dele temose o lugar que lhe damos, são novos. Ele ocupououtro lugar em outras sociedades74.

No entanto, para uma visão mais ampla e me-nos asfixiante da noção de trabalho um olhar delongo prazo pode ser útil. Gorz olha, particular-mente, para a realidade e o significado desta reali-dade que denominamos trabalho entre os gregos.

Os gregos faziam uma diferenciação maisaguda entre as atividades que constituíam a vitaactiva. Eles distinguiam o labor, o trabalho e aação. O labor diz respeito à luta pela sobrevivên-cia física do corpo. É realizado em vista da manu-tenção da vida e da sobrevivência da espécie hu-mana. O labor está associado ao processo bioló-gico do corpo. Há uma estreita relação entre pro-dução e consumo. Tudo o que é produzido pelolabor é destinado ao consumo imediato, motivopelo qual não deixa nada atrás de si75. O labor re-úne estas características: é menosprezado, nãoglorificado, pertence ao reino das necessidades, érealizado na esfera doméstica ou privada e distin-gue-se pela sua transitoriedade. Está no degraumais baixo da hierarquia de valores do ideal gre-go. Enfim, é marcado pela eterna circularidadeentre produção e consumo.

Um segundo grupo de atividades é aquele de-nominado de trabalho76.

O trabalho é a atividade correspondente ao artificialis-mo da existência humana, existência esta não necessa-riamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cujamortalidade não é compensada por este último. O tra-balho produz um mundo ‘artificial’ de coisas, nitida-mente diferente de qualquer ambiente natural. Dentrode suas fronteiras habita a vida de cada indivíduo, em-bora esse mundo se destine a sobreviver e a transcendertodas as vidas individuais. A condição humana do tra-balho é a mundanidade.77

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73 GORZ, André. Métamorphoses du travail: quête du sens. Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988. p. 25.74 Para ver como o trabalho era compreendido por outras sociedades, conferir: MÉDA, 1995, p. 30-59; POLANYI, Karl. A

grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 62-75.75 Cf., ib., p. 98.76 Vale a pena recordar que entre os gregos não havia uma noção unívoca que englobasse os diferentes ofícios e ‘produto-

res’. Cf. MÉDA, 1995, p. 39.77 ARENDT, 1989, p. 15.

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O homo faber, em contraposição ao “animal la-borans”, que requer o organismo humano porinteiro, caracteriza-se pelo uso das mãos. Comelas o homem fabrica a infinita variedade de coi-sas que o rodeiam e passam a constituir a suamundanidade78. O homo faber é dependente dassuas mãos; elas são o seu instrumento primor-dial79. Nesse sentido, o homem já não mais la-bora, mas obra.

Se o labor combina necessidade e futilidade, otrabalho combina permanência e liberdade. Otrabalho, também chamado de poièsis, não estámais a serviço das necessidades e dos constrangi-mentos materiais da subsistência. Por esse moti-vo, ele pode prescindir deste nível elementar etornar-se criação, inovação, expressão, realizaçãode si.

A terceira atividade fundamental da vita activaé a ação ou a praxis. “A ação, única atividade quese exerce diretamente entre os homens sem a me-diação das coisas ou da matéria, corresponde àcondição humana da pluralidade, ao fato de quehomens, e não o Homem, vivem na Terra e habi-tam o mundo”80.

Quatro são as características básicas que dis-tinguem a ação, tanto do labor como do trabalho:a pluralidade, a não-mediação material, o fato deser exercida na esfera pública e a liberdade. “Nohomem, a alteridade, que ele tem em comumcom tudo o que existe, e a distinção, que ele parti-lha com tudo o que vive, tornam-se singularida-de, e a pluralidade humana é a paradoxal plurali-dade de seres singulares”81. A singularidade pró-pria da ação aparece na sua intransferibilidade. Épossível que alguém faça outros trabalharem noseu lugar e assim lhe providenciam a sobrevivên-cia, mas não é possível que abdique do discurso eda ação, uma vez que “trata-se de uma iniciativa

da qual nenhum ser humano pode abster-se semdeixar de ser humano”82. Não há vida humanasem ação.

Ao contrário do labor e do trabalho, a açãonão tem mediação material. A práxis é exercidadiretamente entre as pessoas. A ação e o discursosão capacidades humanas imprescindíveis. “Naação e no discurso, os homens mostram quemsão, revelam ativamente suas identidades pessoaise singulares [...]”83. Cada ser humano se revelaplenamente aos outros naquilo que é, comuni-cando-se. É no discurso e na ação que ele se mos-tra aos outros na sua individualidade.

Por essas razões, o lugar próprio da ação ou dapráxis é a esfera pública, não a vida privada. Apolis grega é o lugar por excelência onde se cons-trói a comunidade pelo agir e pelo falar, mas tam-bém o lugar da aparência.84

A ação produz uma realidade distinta da do la-bor e do trabalho; o “produto” mais imediato daação é a realidade do próprio eu, da própria iden-tidade ou a realidade do mundo circundante. Apráxis não produz objetos, mas acima de tudo re-flexões, ensinamentos, relações. Refere-se à pro-dução de sentido, à produção do humano naspessoas e elas entre si. Por isso a insistência deque “só a ação é prerrogativa exclusiva do ho-mem”85. Mas, tal só pode ser alcançado num es-paço em que predomina a liberdade. É evidenteque, neste estágio, o suposto fundamental é queas necessidades já tenham sido atendidas. A po-lis não nega a esfera privada, o espaço da família,da “economia”, da necessidade, mas a transcen-de. A vida doméstica só existe em função davida na polis. “A esfera da polis era a esfera da li-berdade, e se havia uma relação entre essas duasesferas era que a vitória sobre as necessidades davida em família constituía a condição natural

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78 Ib., p. 149.79 Ib., p. 157.80 Ib., p. 15.81 ARENDT, 1989, p. 189.82 ARENDT, loc. cit.83 Ib., p. 192.84 Ib., p. 211.85 ARENDT, 1989, p. 31.

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para a liberdade na polis”86. Por isso, cada cida-dão “se esforçava para reduzir ao mínimo o pesodas necessidades da vida”87, para poder dispor demais tempo para a polis.

Como se vê, os gregos estabeleceram uma hie-rarquização das atividades constitutivas da vita acti-va. Nessa hierarquia, a práxis ocupava o lugar maisalto, ao passo que o labor ocupava o degrau maisbaixo88. Destacar esse aspecto é importante paraperceber com mais clareza a mutação de valoresque a sociedade industrial irá introduzir na suapercepção do mundo e das atividades humanas.

O “trabalho” entre os gregos não gozava denenhuma simpatia. Pelo contrário, era vistocomo algo degradante, como um castigo, comoalgo que denegria a imagem de ser humano e decidadão. Dessa maneira, o trabalho não podia sero fundamento do laço social. As ligações sociaisestavam antes fundadas em outros lugares, quenão na “economia”. Os costumes, as leis, a ma-gia e a religião, eram suportes fundamentais paraa coesão e a integração social. Eles constituíamum todo, no qual a organização econômica re-presentava apenas um elemento89. A rigor,como enfatiza Gorz, o labor não pode jamais sero fundamento da coesão social, pois não é issoque ele realiza: “este trabalho necessário para asubsistência não pode jamais converter-se numfator de integração social. Era, antes, um princí-pio de exclusão: aqueles que o realizavam eram ti-dos como inferiores em todas as sociedadespré-modernas”90. Mais do que incluir, ele exclui;mais do que conduzir à igualdade entre todas aspessoas, ele introduz irremediavelmente a sub-missão e a heteronomia.

Gorz relê os gregos especialmente a partir dasnoções de labor e trabalho e diz que aquilo que

nós chamamos de “trabalho” não é rigorosamen-te nem labor nem trabalho, porém é uma simbio-se das duas atividades. Para ele, esse novo traba-lho tem as seguintes características:

a) É realizado na esfera pública91. Ele sai doesconderijo da esfera privada a que era submeti-do no mundo antigo e passa a ser realizado nocoração do espaço público, à vista de todos. Ha-via, no mundo antigo, uma certa simetria entre aesfera privada, o mundo da família e a economia.“A maior parte da economia é uma atividade pri-vada que não se desenvolve à luz do dia, na praçapública, mas no seio do domínio familiar92”. O“novo” trabalho precisa ser “demandado, defini-do, reconhecido como útil pelos outros”93.

b) É um esforço humano remunerado. O tra-balho reconhecido como útil pela sociedade éaquele que é remunerado. Essa é a principal ca-racterística do trabalho moderno. “Pelo traba-lho remunerado (e mais particularmente pelotrabalho assalariado) é que pertencemos à esferapública, conseguimos uma existência e umaidentidade sociais (ou seja, uma “profissão”), es-tamos inseridos numa rede de relações e inter-câmbios na qual nos medimos com os outros enos são conferidos direitos sobre eles em trocade nossos deveres para com os mesmos”94. Atransformação do trabalho assalariado no prin-cipal elemento de socialização foi responsávelnão só para que a sociedade industrial se distin-guisse de todas as sociedades precedentes, maspara que se autodenominasse como “sociedadede trabalhadores”95.

c) É fator de exclusão social. É fazendo estavolta ao passado, que Gorz alerta para o fato deque o trabalho necessário para a sobrevivêncianunca pôde converter-se num fator de integração

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86 Ib., p. 40.87 GORZ, 1988, p. 28.88 Cf. ARENDT, 1989, p. 25-6; MÉDA, 1995, p. 46.89 Cf. POLANYI, op. cit., p. 75.90 GORZ, 1988, p. 26.91 Cf. GORZ, 1988, p. 25, 27-8.92 Ib., p. 27.93 Ib., p. 25.94 GORZ, 1988, p. 25-6.95 Cf., ib., p. 26.

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social. Ao contrário, sempre funcionou comoprincípio de exclusão social. E isso porque aque-les que o realizavam sempre eram tidos como in-feriores (escravos, mulheres...), pois pertenciamao reino da necessidade96. A satisfação das neces-sidades excluía da cidadania, pois impedia a parti-cipação na polis. Fazendo a distinção entre labore trabalho, Gorz é capaz de desvendar a incapaci-dade de libertação no trabalho, uma vez que elesempre se realiza em condições de poder extre-mamente desiguais.

A perspectiva de inclusão social que o traba-lho moderno arroga para si esconde uma outramutação na natureza do trabalho: de algo despre-zível, para os antigos, transforma-se numa virtu-de, num valor97. Por não ser um valor para os an-tigos, a própria idéia de “trabalhador” era incon-cebível: “condenado à servidão e à reclusão nadomesticidade, o ‘trabalho’, longe de conferiruma ‘identidade social’, definia a existência priva-da e excluía do domínio público àquelas e àquelesque estavam submetidos a ele”98.

2.2 A emergência da racionalidadeeconômica

Para Gorz, a idéia moderna de trabalho é con-temporânea do capitalismo industrial. A indús-tria, como modo de produção, ganha relevo ape-nas no século XVIII. Até aí, a “produção mate-rial” não estava, em seu conjunto, regida pela ra-cionalidade econômica99. Mas, vários fatores fo-ram decisivos para que a economia e, particular-mente, o trabalho, fossem submetidos à lógica daracionalidade econômica. Vejamos, a seguir, trêsdesses fatores que contribuíram para evidenciaruma mudança de paradigma.

a) O trabalho como medida. Para DominiqueMéda, a “Riqueza das Nações”, de Adam Smith,marca uma ruptura em relação ao contexto inte-lectual da época e constitui uma inversão na or-dem dos valores. Até começos do século XVIII,havia uma forte condenação da vontade de enri-quecimento, e o trabalho, uma ausência completanas obras dos intelectuais. Mas tudo isso muda, emuda rapidamente. As experiências e pesquisasque têm por objetivo aumentar a busca das rique-zas, são francamente incentivadas, e o trabalhopassa a ser um tema importante na economia po-lítica. O trabalho torna-se o meio por excelênciapara aumentar a riqueza100.

Segundo Smith, o trabalho aparece sob doisaspectos: primeiro, o trabalho do indivíduo apre-senta-se como uma dispensa física, que tem porcorolário o esforço, a fadiga e a pena e que admitepor tradução concreta uma transformação mate-rial do objeto; segundo, o trabalho é descritocomo uma substância homogênea idêntica emtodos os tempos e lugares e infinitamente divisí-vel em quantums (em “átomos”)101. E assim estádado um dos elementos constitutivos do traba-lho entendido como emprego. O tempo de traba-lho é elevado a critério para medir e compararquantidades diferentes de trabalho. “O trabalho édivisível em quantidades idênticas e é possíveldecompor todo o trabalho complexo em múlti-plas quantidades de trabalho simples, mas tam-bém de combinar o mais inteligentemente possí-vel essas diferentes quantidades em muitas ope-rações”102.

b) O trabalho como riqueza. O trabalho não évisto só como critério de medida, mas progressi-vamente, e principalmente, como criador de ri-quezas, isto é, como fator de produção. Várias re-duções, no entanto, são necessárias para se chegar

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96 GORZ, loc. cit.97 Cf. MÉDA, 1995; CHAUI, Marilena. Introdução. LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. 2. ed. São Paulo: Hucitec; Unesp,

1999. p. 9-56.98 GORZ, 1988, p. 28.99 GORZ, 1988, p. 28-9.100 Cf. MÉDA, 1995, p. 60-2.101 Cf. ib., p. 62.102 MÉDA, 1995, p. 63-4.

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a isso. Uma primeira diz respeito à redução do tra-balho ao trabalho produtivo, excluindo todas asatividades que, mais tarde, passariam a ser chama-das de “serviços”. Produtivo é só aquele trabalhoque produz valor. Mas, e o que é riqueza? Portan-to, uma segunda redução é necessária. Malthusconcebe uma visão de riqueza extremamente re-dutora. Para ele a riqueza deve ser passível de sermedida, calculada. E uma concepção demasiadoampla não presta para isso, portanto, não é prática.A riqueza deve ser limitada aos objetos materiais:

Chamo riqueza os objetos materiais necessários, agra-dáveis ou úteis ao homem, e que são voluntariamenteapropriados pelos indivíduos ou nações às necessida-des que eles experimentam. A definição deste modo li-mitada contém quase todos os objetos que nós temosordinariamente em vista ao falar da riqueza. [...] Umpaís será rico ou pobre, segundo a abundância ou a rari-dade dos objetos materiais dos quais é dotado, relativa-mente à vastidão de seu território.103

Essa escolha é extremamente importante parase compreender a economia na sociedade capita-lista, bem como a crise em que a nossa sociedadeestá mergulhada por conta da revolução informa-cional104. Ao mesmo tempo, ela é importante pe-las conseqüências que tem para a definição dotrabalho, pois a concepção redutora de riquezaentranha uma concepção redutora de trabalho.“Trabalho significa, de agora em diante, trabalhoprodutivo, isto é, o trabalho exercido sobre osobjetos materiais e intercambiáveis, a partir dosquais o valor acrescentado é sempre visível emensurável”105. O “estrago” está feito. Mais doque uma invenção da modernidade, o trabalhoassim compreendido é, na verdade, uma inven-ção dos economistas. Compreende-se como tra-

balho “toda atividade capaz de acrescentar valora um objeto material”106.

c) O trabalho como mercadoria. No contextodos valores emergentes da principiante sociedadeindustrial, o trabalho constituiu o símbolo da au-tonomia individual. Essa idéia está fortementepresente em Locke, que havia fundado o direito àpropriedade, precisamente no exercício de suasfaculdades por parte de cada indivíduo, e nãomais sobre uma ordem natural. “Cada um temum direito particular sobre sua própria pessoa,sobre a qual nenhuma outra pessoa pode ter ne-nhuma pretensão. O trabalho de seu corpo e aobra de suas mãos, podemos dizer, são seu pró-prio bem”107. Ou seja, o direito à propriedadeestá agora estreitamente relacionado ao trabalho,e este fundado sobre a emergência do indivíduo.

O trabalho em sociedade permite aos indiví-duos negociar seus talentos, viver com sua forçade trabalho. Mas o trabalho em si torna-se objetode troca. O mercado passa a receber outra merca-doria que não os simples produtos feitos ao me-nos por uma parcela dos homens: o trabalho108.Ele pode ser vendido e comprado no mercadocomo outra mercadoria qualquer. Para que sejauma mercadoria, no entanto, o trabalho necessitade dois outros ingredientes: primeiro, que elepossa ter um preço, isto é, de que seja uma ativi-dade passível de ser comprada e vendida; segun-do, a possibilidade de que uma parte da atividadehumana possa ser separada de seu sujeito. Agora,portanto, o trabalho é conhecido como uma“quantidade de esforço físico mensurável que seinscreve duradouramente sobre um objeto mate-rial e desde logo suscetível de aumentar o seu va-lor e que sua ‘mercantilização’ é possível”109.

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103 MALTHUS, Th. Principes d’économie politique considérés sous le rapport de leur application pratique. Paris: Calmann-Lévi, 1969. p.14. (apud MÉDA, 1995, p. 67).

104 Há um amplo debate sobre a insuficiência da noção de riqueza e a necessidade de voltar a ampliá-la. O próprio Gorz en-tra neste debate. Ver especialmente GORZ, André. L’Immateriel: connaissence, valeur et capital. Paris: Galilée, 2003c;MÉDA. Qu’est-ce que la richesse? Paris: Champs, 1999; Revue du Mauss, Paris, n. 21, premier semestre 2003.

105 MÉDA, 1995, p. 68.106 MÉDA, loc. cit.107 LOCKE, J. De la propriété des choses. In: _____. Traité du gouvernement civil. Paris: GF-Flammarion, 1992. (apud MÉDA,

1995, p. 69).108 MÉDA, 1995, p. 70.109 Ib., p. 71.

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Na perspectiva dos teóricos do século XVIII,o trabalho está estreitamente relacionado à liber-dade do indivíduo. O trabalho é sinônimo e fatorde liberdade. A autonomia, por excelência, brotado trabalho. Por outro lado, inventa-se um con-ceito de trabalho imediatamente material, quanti-ficável e mercantil. Que revolução!

E por se tratar de uma “revolução” no sentidopleno da palavra, convém que se veja com maisatenção o que realmente está em jogo, pois isso éde extrema importância para o que segue e mes-mo para fundamentar a distinção que Gorz fazentre emprego e trabalho e entre atividades mer-cantis e atividades não mercantis110.

“Para se consolidar, a economia de mercado –sistema no qual a mercadoria é a forma dominan-te de mediação das trocas – precisa também deum mercado para a ‘mercadoria’ força de traba-lho”111. O trabalho torna-se mercadoria na medi-da em que ele pode ser vendido e comprado porum determinado preço no mercado de trabalho.Mas, o que são mercados e mercadorias? ParaPolanyi, mercadorias são “objetos produzidospara a venda no mercado; por outro lado, os mer-cados são definidos empiricamente como conta-tos reais entre compradores e vendedores”112.

Qual é a condição para que se institua um“mercado” para a “mercadoria” trabalho? Segun-do Offe, “esta solução requer a existência demão-de-obra assalariada ‘livre’, isto é, de trans-formação da força de trabalho em mercadoria(‘trabalho assalariado’), assim como de sua liber-tação dos vínculos normativos [...]”113. Offeavança na reflexão adiantando que “um mercadode trabalho livre existe quando, e somente quan-

do, os trabalhadores (seguindo a conhecida frasede Marx) são livres no duplo sentido, ou seja, ‘co-mo pessoas livres, podem dispor de sua força detrabalho como mercadoria própria’ e ‘são des-providos de tudo o mais necessário à realizaçãode sua força de trabalho”114, isto é, são livres depropriedade. Há um consenso em torno do fatode que a institucionalização de um mercado detrabalho é característica central do capitalismo.

Polanyi adverte, no entanto, que o trabalho, aterra e o dinheiro, os três elementos fundamentaisda indústria no capitalismo “obviamente não sãomercadorias”115. E isso porque nenhum deles éproduzido para a venda, fato pelo qual são mer-cadorias fictícias116. Contudo, como Polanyi éforçado a reconhecer, “a ficção da mercadoriaoferece um princípio de organização vital em re-lação à sociedade como um todo [...]”117.

A partir da distinção entre mercadoria genuí-na e mercadoria fictícia, feita por Polanyi, é possí-vel, então, destrinchar as razões pelas quais o tra-balho – assim como o dinheiro e a terra – não éuma mercadoria genuína118.

Primeira razão: a força de trabalho difere dasmercadorias genuínas pelo fato de não ser criadacom o objetivo de ser vendida no mercado. Combase em Polanyi, Offe diz o seguinte: “A decisãode produzir a mercadoria fictícia trabalho não étomada pelas empresas orientadas para o merca-do, mas pelas famílias e outros agentes de sociali-zação cujas motivações são amplamente distintasda negociabilidade”119.

Segunda razão: a força de trabalho difere dasmercadorias convencionais por sua variabilidade eflexibilidade. “O que o agenciador de mão-de-obra

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110 Cf. GORZ, 1988, p. 173-211.111 SILVA, Josué Pereira da. Cidadania e/ou trabalho: o dilema da questão social neste final de século. Idéias, Campinas, v. 5,

n. 2-v. 6, n. 1, p. 131, 1998-1999.112 POLANYI, 2000, p. 93.113 OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. 2. ed., 1. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 71.114 Ib., p. 71.115 POLANYI, op. cit., p. 94.116 POLANYI, loc. cit.117 POLANYI, 2000, p. 94.118 Para o que segue cf. OFFE, 1995, p. 76-8.119 Ib., p. 76.

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compra no mercado de trabalho não é ‘trabalho’,mas força de trabalho”120.

Terceira razão: a “mercadoria” força detrabalho não é claramente separável de seu pro-prietário.

Todo comprador da força de trabalho deve contar coma ‘participação’ do trabalhador, pois, por um lado, ocomprador não pode controlar exclusivamente a mer-cadoria adquirida e, por outro, a utilização da força detrabalho está inevitavelmente ligada à cooperação deseus proprietários. O trabalhador precisa também que-rer trabalhar.121

Resumidamente, podemos dizer que “a histó-ria da formação do mercado de trabalho, da insti-tuição do trabalho assalariado como meio de in-serção social, é a própria história da transforma-ção da força de trabalho em mercadoria, ou seja,de sua ‘mercadorização’”122.

2.3 O trabalho como essência do homem

O século XVIII foi longe na concepção de tra-balho ao caracterizá-lo como valor e fator de pro-dução de riqueza e proporcionar, assim, os ele-mentos estruturantes da nova natureza do traba-lho, entendido modernamente como emprego.O século XIX, sobretudo, com Hegel e Marx,avança nesta concepção de trabalho, ao elevá-lo àessência mesma do homem. O século XIX termi-na com a evidência de que o homem não mais seautocompreende sem a referência ao trabalho. Arealização do homem moderno depende grande-mente da sua vinculação ao trabalho, uma vezque este passa a ser, ao mesmo tempo, fator desobrevivência, de humanização, de integraçãosocial, de auto-estima e de utilidade social.

Em Hegel, o conceito de trabalho está rela-cionado ao de Espírito. Hegel chama de traba-

lho a atividade espiritual pela qual o Espírito seopõe a um dado exterior para se conhecer a simesmo, se inventa diversos obstáculos exterio-res para se obrigar a descobrir suas potencialida-des. O Espírito trabalha, pois, sem cessar, até ofim da História. Dessa forma, o trabalho é o me-diador entre a natureza e o Espírito. Pelo traba-lho o homem destrói o natural e se faz sempremais humano123.

Na medida em que o trabalho designa a ativi-dade espiritual em si, Hegel enriquece e transfor-ma o conceito de trabalho dos economistas, masemprega o mesmo termo para o conjunto doprocesso, isto é, “para a vida do Espírito, que éperpétuo aprofundamento de si e que toma for-mas cada vez mais espirituais (instituições políti-cas, obras artísticas, religiões, sistemas filosófi-cos) e para o trabalho industrial, que é apenasuma das formas que a história da humanidadetoma”124. Veja-se a polissemia que há entre asduas noções de trabalho.

Gorz diz que o conceito de trabalho em Hegel

designa a essência comum da totalidade das atividadespelas quais o sujeito se inscreve e se objetiva na mate-rialidade do mundo, configura o mundo e, ao fazerisso, também produz a si mesmo. Trabalho designa a es-sência comum do conceber, do fazer, do fabricar e doagir, que até então eram categorias incomensuravel-mente distintas.125

E isso significa, segundo Gorz uma revoluçãofilosófica e cultural de extraordinário alcance po-lítico.

Marx realiza a inversão hegeliana, transferin-do o trabalho do Espírito para o dos homens.São os homens, pela sua labuta cotidiana, pelasua inventividade e utensílios, mediante o traba-lho, os construtores da História: “A história ditauniversal não é outra coisa que a geração do ho-mem pelo trabalho humano e o devir da natureza

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120 Ib., p. 77.121 OFFE, 1995, p. 78.122 SILVA, 1998, p. 133.123 Cf. MÉDA, 1995, p. 7.124 Ib., p. 99.125 GORZ, André. Entretien avec André Gorz. In: GOLLAIN, Françoise. Une critique du travail. Paris: La Découverte, 2000a.

p. 220.

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para o homem”126. Segundo Méda, esta afirma-ção deve ser compreendida como a de uma ver-dadeira identidade: “a essência do homem é o tra-balho. O homem só pode existir trabalhando [...]o homem não é plenamente homem, segundoMarx, se não imprimir em todas as coisas a marcade sua humanidade”127. O trabalho é, então, emMarx, sobretudo expressão: “o trabalho é todaatividade humana que permite exprimir a indivi-dualidade daquele que a exerce. Mas exprimir-separa o outro, portanto, de mostrar ao outro aomesmo tempo sua singularidade e seu pertenci-mento ao gênero humano”128. Aparece, assim,com o surgimento do proletariado o “trabalhoabstrato, trabalho-mercadoria, mensurável,quantificável, indiferente a seu conteúdo, desta-cável dos indivíduos intercambiáveis que o exe-cutam”129.

O trabalho ganha relevo como o fator de rela-ção social por excelência. Em Marx, o trabalhopossui uma tríplice qualidade: “de me revelar amim mesmo, de revelar minha sociabilidade e detransformar o mundo”130.

Chegamos, portanto, ao ápice de uma novacompreensão do conceito de trabalho. Sua natu-reza, seu lugar e sua importância mudaram pro-fundamente. Como não concordar com Marx, oumesmo com Polanyi, quando estes se debruçamsobre o desenvolvimento histórico do capitalis-mo industrial, e concluem tratar-se de uma ver-dadeira “revolução” ou uma “transformação” deproporções nunca antes vistas?

Mas, efetivamente, o que aconteceu com oconceito de trabalho? De maneira esquemáticapodemos dizer que ele sofreu as seguintes trans-formações:

1) Na conjunção com a nova realidade do ca-pitalismo industrial, aliado a uma nova compre-ensão da ciência, o trabalho tornou-se fator de do-minação. O Ocidente pode ser lido como aqueleque efetuou inicialmente uma mutação na manei-ra de conceber e fazer ciência. Ainda no final doséculo XVI, Francis Bacon defendia apaixonada-mente uma finalidade prática para a ciência aoquerer sua vinculação à indústria. Dedicava-se àafirmação da idéia “de que o saber devesse pro-duzir seus frutos na prática, de que a ciência de-vesse ser aplicável à indústria, de que os homenstivessem o dever sagrado de se organizarem paramelhorar e para transformar as condições devida”131.

Mas, o ideal de todo o Ocidente foi expressocom a máxima clareza por Descartes, na primeirametade do século XVII. Evocando “alguns co-nhecimentos gerais” que havia adquirido em físi-ca, Descartes explicava que

eles me fizeram ver que é possível chegar a conheci-mentos que sejam úteis à vida, e que no lugar desta filo-sofia especulativa que se ensina nas escolas, podemosencontrar uma prática, através da qual, conhecendo aforça e as ações do fogo, da água, do ar, dos astros, doscéus e de todos os outros corpos que nos circundam,tão distintamente quanto conhecemos os diversos ofí-cios de nossos artesãos, nós poderíamos empregá-losda mesma maneira a todos os usos aos quais são apro-priados, e assim nos tornarmos como mestres e possui-dores da natureza.132

Ser mestres e dominadores da natureza: esse éo grande ideal do Ocidente. Esse ideal, com aresde sagrado, perdura até hoje. Ciência e indústriaandam de mãos dadas para subjugar a natureza eos homens através do trabalho. O trabalho, sub-metido à lógica da razão instrumental-analítica,

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126 MARX, Karl. Ebauche d’une critique de l’économie politique. In: Oeuvres, Economie. Paris: Gallimard, 1979. p. 89 (apudMÉDA, 1995, p. 100).

127 MÉDA, 1995, p. 100-101. O grifo é da autora.128 Ib., p. 103. O grifo é da autora.129 GORZ, 2000a, p. 220.130 MÉDA, op. cit., p. 104.131 FARRINGTON, B. Francesco Bacone filosofo dell’età industriale. Turim: Einaudi, 1952. p. 23. (apud DE MASI, Domenico. A

sociedade pós-industrial. São Paulo: Ed. SENAC, 1999. p. 12).132 DESCARTES, René. Discours de la méthode. 1637. In: Oeuvres et Lettres. Paris: Gallimard; La Pléiade, 1952. (apud BEAUD,

Michel. Le basculement du monde. Paris: La Découverte, 1997, p. 91).

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mostrou suas verdadeiras garras especialmente apartir do final do século XVIII. Este período rela-tivamente curto da história da humanidade se ca-racteriza pela “ditadura do modo-de-ser-trabalhocomo intervenção, produção e dominação”133.O trabalho assim compreendido é fator de domí-nio, de subjugação, de posse, de apropriação, mastambém de destruição. Os recursos naturais de-vem estar a serviço do homem e deve-se tirar danatureza, pelo trabalho, o máximo de proveitono mínimo de tempo. Esta é a grande lei do capi-talismo. A lógica da razão instrumental é profun-damente destruidora e antiecológica, realidadesobre a qual Gorz tem refletido e chamado aatenção. Por outro lado, a mesma racionalidadeeconômica aplicada à organização do trabalholeva indubitavelmente à crise do trabalho assala-riado que hoje vivemos, como analisamos no ca-pítulo precedente.

2) Para que o trabalho viesse a ser o que é emnossa sociedade foi necessário que se transfor-masse de atividade desprezível em virtude. O “la-bor” dos gregos foi edulcorado pelo capitalismoa tal ponto que todos querem ser assalariados:“Transformou em seus trabalhadores assalaria-dos o médico, o jurista, o padre, o poeta, o ho-mem de ciência”134. Na nova ordem, olha-secom desprezo para os que não querem se sujeitarao trabalho assalariado. São vistos como vadios,vagabundos, preguiçosos, um fardo para a socie-dade, um estorvo para o reto funcionamento dasociedade e que, portanto, precisam ser puni-dos135.

Há outras maneiras, todavia, mais sutis deprovocar a adesão de todos e todas ao trabalhoassalariado: desvalorizar as atividades não remu-neradas, como Gorz insiste em chamar a atenção.Digno de consideração é apenas o trabalho feitoem troca de um salário. Assim, não é por acasoque paira uma névoa de depreciação sobre as ati-

vidades não remuneradas, mas igualmente im-portantes quando vistas sob outra perspectiva.Dessa maneira, o capitalismo, valorizando exclu-sivamente a economia de mercado, acaba pordestruir a economia plural.

3) O trabalho, da maneira como é praticado,sofreu uma simbiose. A grande crítica que Arendtfaz a Marx consiste em dois elementos indisso-ciáveis entre si: primeiro, que este passou a usarindistintamente labor e trabalho136; segundo,que, por conseguinte, todo trabalho passaria a serlabor, uma vez que todas as coisas seriam produ-zidas como funções do processo vital137. Logo,“a produção moderna está assentada na recor-rência de um processo produtivo que, sem come-ço e sem fim determinados, nada deixa atrás de sie se realiza através da capacidade que todo o ho-mem possui como participante do ciclo de sobre-vivência e de reprodução da espécie”138.

Dada a valorização atribuída ao traba-lho-labor, Marx, na perspectiva de Arendt, inver-te a hierarquia tradicional. No ápice, Marx nãomais situa a ação grega, mas o labor moderno. Oideal do homem moderno passa a ser o ideal dohomem trabalhador, aquele e aquela que se satis-fazem através da profissão, do ofício que execu-tam. A realização humana se dá no trabalho e nãomais fora dele.

Gorz fundamenta sua crítica do trabalho nareflexão de Arendt. Mas, em vez de falar em ter-mos de inversão da ordem antiga, compreende amutação como simbiose. O conceito modernode trabalho reúne, numa mesma realidade, o la-bor e o trabalho antigos, na condição de que umnão anula o outro, um não se sobrepõe ao outro,mas acabam formando algo distinto.

4) O trabalho foi submetido a uma racionaliza-ção econômica. Gorz está convencido de que a idéiamoderna de trabalho é contemporânea da racio-nalização econômica, a qual só se impõe em épo-

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133 BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 97.134 MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 69.135 Cf. CASTEL, 1998, particularmente a p. 249.136 Cf. ARENDT, 1989, p. 98.137 Ib., p. 100.138 WAGNER, Eugênia Sales. Hannah Arendt e Karl Marx: o mundo do trabalho. São Paulo: Ateliê, 2000. p. 96.

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ca muito recente. Até por volta de 1830, o capita-lismo industrial ainda coexistia com a indústriadoméstica, o que revela não ser aquele de todopredominante. A indústria doméstica constituipara os tecelões, não simplesmente um meio desobrevivência, mas “um modo de vida regido pelastradições que – ainda que sejam irracionais doponto de vista econômico – os próprios comerci-antes capitalistas respeitam”139. E atendendo aosbenefícios de ambas as partes envolvidas, “os co-merciantes não pensam em sequer racionalizar otrabalho dos tecelões domiciliares, em colocá-losem competição entre si, em buscar racional e sis-tematicamente o maior benefício”140. Portanto,até então, a “produção material não estava, emseu conjunto, regida pela racionalidade econômi-ca”141. Mas isso está para ser transformado radi-calmente.

Gorz, para descrever este momento de “revo-lução”, transcreve um longo texto de Weber. Apergunta de fundo é: Que manobra ideológica ecultural foi capaz de transformar os camponesesem operários? Weber diz que foi o surgimento deum “novo espírito”, o “espírito do capitalismomoderno”142. Ele alega que a “forma de organi-zação” dos produtores já era “capitalista”, masque o “espírito que animava o empreendedor”,era ainda fundamentalmente “um negócio de cu-nho tradicionalista”143.

Para Gorz, o “novo” em tudo isso não é o “in-teresse” que os mercadores capitalistas tinham“em racionalizar a fabricação de tecidos, em con-ter o custo desta, em fazer esse custo rigorosa-mente calculável e previsível graças à quantifica-ção e à normalização de todos os seus elemen-

tos”144, mas sim “que num certo momento dahistória os mercadores começaram a impô-lo aseus provedores, quando até então se haviamabstido de fazê-lo”145.

O espírito do capitalismo se caracteriza porsua “estreitez unidimensional, indiferente a todaconsideração que não seja contábil, com a qual oempresário capitalista leva a racionalidade econô-mica às últimas conseqüências”146.

Uma das características fundamentais de uma econo-mia capitalista individualista é ser racionalizada combase no cálculo rigoroso, dirigida com previsão e aten-ção para o sucesso econômico que é procurado, emchocante contraste, com a precária existência do cam-ponês e com o tradicionalismo privilegiado do artesãoda guilda e do ‘capitalismo aventureiro’[...].147

Na nova ordem de coisas que vai se instauran-do por conta de todo o processo de racionaliza-ção há, contudo, do ponto de vista de cada indiví-duo, uma irracionalidade, na medida em “o ho-mem existe em razão de seu negócio, ao invés dese dar o contrário”148.

Para Gorz, a racionalidade econômica só foipossível no momento em que ela se emancipoude todos os outros tipos de racionalidade parasubmetê-los à sua ditadura149. É a perspectivatambém aberta pela reflexão de Polanyi, paraquem a existência de um mercado auto-regulávelé a condição para “a separação institucional dasociedade em esferas econômica e política”150. Aimportância de Polanyi está em mostrar, recor-rendo a estudos de história e de antropologia, quetodas as economias dos homens sempre estive-ram submersas em suas relações sociais. Ou seja,que “o ganho e o lucro feitos nas trocas jamais

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139 GORZ, 1988, p. 29. O grifo é do autor.140 GORZ, loc. cit. Grifo do autor.141 GORZ, 1988, p. 29.142 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 6. ed. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. p. 44.143 Ib., p. 43.144 GORZ, op. cit., p. 31.145 GORZ, loc. cit.146 Ib., p. 32.147 WEBER, 1989, p. 50.148 Ib., p. 46.149 Cf. GORZ, 1988, p. 32.150 POLANYI, 2000, p. 92.

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desempenharam um papel importante na econo-mia humana”151.

Até o século XIX, não havia qualquer motiva-ção econômica, de tal sorte que o sistema econô-mico era mera função da organização social. Mastudo isso está para mudar drasticamente. Na eco-nomia de mercado, “toda a produção é para ven-da no mercado, e que todos os rendimentos deri-vam de tais vendas. Por conseguinte, há merca-dos para todos os componentes da indústria, nãoapenas para os bens [...], mas também para o tra-balho, a terra e o dinheiro [...]”152. O resultado detudo isso é a crescente mercantilização de tudo ea transformação da sociedade numa sociedade demercado. As pessoas relacionam-se não mais di-retamente entre si, mas através das coisas queproduzem. A sociedade tornou-se um acessóriodo sistema econômico.

Na análise que Weber faz do mercado, “a co-munidade de mercado, enquanto tal, é a relaçãoprática de vida mais impessoal na qual os homenspodem entrar”, e isso porque cada qual está “ori-entado exclusivamente pelo interesse nos bensde troca”153. Como deixaram claro Marx eEngels, esta nova ordem

[...] não deixou subsistir entre homem e homem outrovínculo que não o interesse nu e cru (das nackte Interesse),o insensível ‘pagamento em dinheiro’. Afogou naságuas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos daexaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, dosentimentalismo pequeno-burguês. Fez da dignidadepessoal um simples valor de troca [...].154

Ou como afirma Weber, “o mercado, em ple-na contraposição a todas as outras comunidades,que sempre supõem confraternização pessoal e,quase sempre, parentesco de sangue, é, em suasraízes, estranho a toda confraternização”155.

O processo que levou à racionalização econô-mica foi, de longe, a tarefa mais difícil de ser al-cançada pelo capitalismo industrial. Quatro fato-res foram essenciais para que o trabalho se tor-nasse uma mercadoria, ainda que sui generis: pri-meiro, o custo do trabalho deveria poder ser cal-culável e previsível com precisão; segundo, erapreciso tornar calculável o seu rendimento paraque pudesse ser tratado como uma magnitudematerial quantificável; terceiro, para ser umagrandeza passível de ser medida, o trabalho deve-ria poder ser destacável do trabalhador, isto é, ga-nhar status de coisa independente; e quarto, otrabalhador deveria entrar no processo de produ-ção como simples força de trabalho, despojadode sua personalidade, de seus objetivos, de seusdesejos próprios, a fim de poder estar a serviçode fins inteiramente alheios aos seus156. As satis-fações pessoais que podia, eventualmente, tirardo seu trabalho ficam em segundo plano.

Por tudo isso, é justo concluir que a racionali-zação econômica do trabalho

foi uma revolução, uma subversão do modo de vida,dos valores, das relações sociais e da natureza, em es-sência, a invenção no sentido pleno do termo de algo quenunca havia existido. A atividade produtiva foi esvazia-da de seu sentido, de suas motivações e de seu objetopara se tornar simples meio de ganhar um salário. Ela dei-xou de fazer parte da vida para se tornar o meio de ‘ga-nhar sua vida’. O tempo de trabalho e o tempo de viverforam separados; o trabalho, seus instrumentos, seusprodutos adquiriram uma realidade separada da do tra-balhador e a depender de decisões estranhas.157

E assim se deu o nascimento do trabalho en-tendido como emprego.

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151 Ib., p. 62.152 Ib., p. 90.153 WEBER, Max. Economía e sociedad. 12. reimpr. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. p. 494.154 MARX; ENGELS, 1999, p. 68.155 WEBER, 1998, p. 494.156 GORZ, 1988, p. 34-5.157 Ib., p. 36.

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2.4 Da libertação no trabalho para a li-bertação do trabalho: a evoluçãode Gorz

Dominique Méda, com o intuito de diferen-ciar os debates sobre o trabalho, divide os escri-tos sobre esse tema em duas grandes correntes:a essencialista e a historicista158, que são reto-madas posteriormente por Françoise Gollain159

e Neutzling160. As duas correntes têm em co-mum a referência de que há uma mutação do tra-balho e de que a atual crise do trabalho é umachance para instaurar uma ordem social melhor.Mas as referências comuns terminam por aqui.As diferenças entre elas se expressam basicamen-te na leitura diferenciada que fazem da crise e nomodelo de cidadão-trabalhador161.

A corrente essencialista

considera que uma liberação no trabalho é mais do quenunca possível graças às atuais rupturas, de naturezapositiva, nas práticas de trabalho. Contra os defensoresdo fim de uma sociedade do trabalho e de um saláriosocial, um certo número de autores responde que o tra-balho permanece ainda hoje o principal provedor deidentidade social. Disso decorre logicamente um apelopelo alargamento da noção de trabalho.162

A corrente historicista, por sua vez, “defende oprincípio de uma libertação do trabalho, mais doque nunca acessível em virtude das técnicas e dodiagnóstico do ‘fim do trabalho’”163. Ao questio-nar as representações do trabalho, forjadas na eraindustrial164, essa corrente apela para uma tradi-ção crítica que vai desde os gregos até Habermas,passando por Hannah Arendt165.

Geralmente o pensador ou pensadora quepertence a uma dessas correntes não passa a de-fender em outro momento da sua vida a outracorrente. Há, podemos dizer, uma “fidelidadepartidária” não declarada. Até porque a visãoque cada corrente tem do trabalho e da socieda-de é politicamente cheia de conseqüências e teo-ricamente implica uma verdadeira “conversão”do pensamento. Gorz é um desses raros pensa-dores que transitou de uma corrente à outra166.Até o final dos anos 1970, Gorz foi um ardorosodefensor da corrente essencialista. Mas váriasrazões, como veremos mais adiante, fizeramcom que se desiludisse com a concepção de tra-balho, de sociedade e de mundo que alimentavaaté então.

Podemos dividir o conjunto da obra intelectu-al de Gorz em duas fases diferentes.

A primeira fase vai dos seus primeiros escritosaté o final da década de 1970. Ao longo desta pri-meira fase, a preocupação central de Gorz foi oproblema da alienação, ainda que com aproxima-ções diferenciadas. O próprio Gorz, falando dela,afirma de si mesmo: “eu era, para dizer sumaria-mente, um teórico da alienação, isto é, da expe-riência que as ‘potências próprias do ser huma-no’, como chama Marx, se autonomizam em po-tências alheias e acabam por dominá-lo, subju-gá-lo, destituí-lo de si mesmo”167.

A seqüência das obras escritas durante estafase revela uma evolução no tema. “Nessa época,a alienação é discutida, de um lado, como umproblema do indivíduo, em sua relação com ahistória pregressa, com o corpo, com o meio am-

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158 MÉDA, 1995.159 GOLLAIN, 2000, p. 109-22.160 NEUTZLING, 2002, p. 61-2.161 Cf. GOLLAIN, 2000, p. 110.162 GOLLAIN, loc. cit.163 GOLLAIN, loc. cit.164 Cf. NEUTZLING, 2002, p. 61.165 Cf. GOLLAIN, op. cit., p. 110.166 No Brasil, um dos poucos a refletir sobre esta mudança no pensamento de Gorz é Josué Pereira da Silva, da UNICAMP.

Cf. SILVA, Josué Pereira da. André Gorz: trabalho e política. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002; _____. O “Adeus aoproletariado” de Gorz, vinte anos depois. Lua Nova, São Paulo, n. 48, p. 161-74, 1999b.

167 GORZ. 2000a. In: GOLLAIN, 2000, p. 222.

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biente e com a sociedade; de outro, como umproblema sociológico, onde o foco da análise sãoas classes sociais”168. A alienação, para Gorz, nãoestá restrita à esfera da produção; ela abrangetambém a esfera do consumo, de tal maneira quea alienação nunca pode ser eliminada em apenasuma dessas duas esferas. Apesar disso, a esfera daprodução continua a ser o campo privilegiadopara que a alienação seja eliminada169. O impor-tante a reter aqui é que, para Gorz, a primaziaatribuída à esfera da produção está relacionada aoapego ao chamado paradigma do trabalho. “Suaprodução teórica desse período parece estar ba-seada no duplo pressuposto segundo o qual a so-ciedade pode ser vista através do modelo da fá-brica e a classe operária é o único sujeito da trans-formação social revolucionária”170. É por essasrazões que Gorz acreditava que a fábrica era o ce-nário para a luta contra o capital a fim de lhe ar-rancar o controle do processo de trabalho, mastambém onde a superação da alienação poderiater início. Em síntese, na concepção teórica deGorz dessa época, a liberação se dava no e pelotrabalho171. Comungava com as idéias da corren-te essencialista.

O final dos anos 1970 preparava, porém, sur-presas. A recepção de “Adeus ao Proletariado”, lan-çado na França em 1980, causou furor e indigna-ção, mas também admiração172. Esse livro é teste-munha de uma grande reviravolta no pensamentode Gorz. Ele abre a segunda fase do pensamentogorziano, ainda que devamos admitir, para sermosrigorosamente corretos, que alguns escritos da se-gunda metade dos anos 1970 já antecipam estamudança de rota. No entanto, é com o livro acimamencionado que a nova concepção de Gorz vai sefirmando definitivamente. Nessa época, ele

abandona o modelo de sociedade unificada em tornoda categoria trabalho e passa a postular um modelo desociedade baseada em duas esferas diferenciadas e au-tônomas e no qual o trabalho não é mais uma categoriahegemônica, nem o proletariado o único sujeito capazde liderar uma transformação social.173

Essa mudança no seu pensamento é cheia deconseqüências econômicas, políticas e culturais.No nosso trabalho, aqui, nos interessa particu-larmente esta segunda fase devido à contribui-ção que a produção teórica de Gorz traz para sepensar inovadoramente o trabalho e sua organi-zação e, por conseguinte, saídas audaciosas paraa crise de trabalho que a nossa sociedade está vi-vendo. Por conseguir enxergar e fazer enxergaro trabalho com um olhar e um lugar diferentes,não mais a partir da fábrica e de suas necessida-des, mas a partir da sociedade, ou mais particu-larmente, das necessidades de cada indivíduo, asreflexões de Gorz são, sem sombra de dúvida,polêmicas. Mas, exatamente pelo fato de serempolêmicas, é que elas podem jogar nova luz so-bre um pensamento que, às vezes, se pauta maispor um pisar e repisar nos mesmos argumentose que mais fazem olhar para trás, do que encararde frente e com ousadia as chances que a pre-sente crise nos oferece, pois, como diz Gorz, acrise não tem como tarefa nos resignar e lasti-mar tempos idos, mas a de nos fazer perceberque é preciso ousar o Êxodo.

É preciso ousar querer o Êxodo da ‘sociedade do traba-lho’: ela não existe mais e não voltará. É preciso querera morte desta sociedade que agoniza, com o fim de queoutra possa nascer sobre seus escombros. É precisoaprender a distinguir os contornos desta sociedade di-ferente detrás das resistências, das disfunções, dos be-cos sem saída dos quais está feito o presente.174

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168 SILVA, 1999b, p. 163.169 Cf. id., 2002, p. 27-8.170 SILVA, 2002, p. 28.171 Cf. SILVA, loc. cit.172 Cf. GORZ, A. Oficios del saber y del trabajo. Clarín, Buenos Aires, 21 fev. 1999b. Suplemento Cultura y Nación.173 SILVA, 1999b, p. 164.174 GORZ, André. Misères du présent. Richesse du possible. Paris: Galilée, 1997. p. 11.

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2.5 Questionamento de atributos rela-cionados ao conceito emprego

2.5.1 A impossível apropriação coletiva

Quais são as principais razões que levaramGorz a operar uma ruptura tão significativa noseu pensamento? Basicamente podem ser encon-tradas duas175: a revolução tecnológica e a impos-sibilidade do controle do processo de produçãopor parte dos operários, que está relacionada àprópria concepção industrial. Como já analisa-mos a natureza e o impacto da revolução tecno-lógica no primeiro capítulo, não voltaremos aquiao assunto. Dada a importância da segunda razãopara o pensamento de Gorz nesta segunda fase,passaremos a examiná-la agora.

O princípio básico subjacente à impossívelapropriação do controle do processo de produ-ção é a racionalidade econômica a que está sub-metido o trabalho no industrialismo.

O tema da apropriação coletiva do processode trabalho encontra-se desenvolvido em duas desuas obras: “Adeus ao Proletariado” e “Métamorphosesdu travail”, publicadas, respectivamente, em 1980e 1988176. Para Gorz, havia uma crença comumao movimento operário revolucionário e aos re-gimes socialistas: ambos acreditavam que a classeoperária era capaz de se apropriar coletivamentedos meios de produção e que esta apropriaçãocoletiva realizaria a coincidência dos fins indivi-duais com as metas coletivas, dos interesses decada um com os interesses de todos177. A “cons-ciência socialista” se desenvolvia com a convic-ção de que “o interesse de todos coincidia com ode cada um”, e vice-versa, de tal modo que aconsciência socialista era “esse conjunto de quali-dades morais e intelectuais graças ao qual a inte-

gração funcional ia ser vivida e querida por cadaum como uma integração social”178. Na verdade,era o que o próprio Gorz pensava até o final dadécada de 1970179.

Mas a coincidência entre a integração funcio-nal e a integração social não poderia nunca acon-tecer devido àquilo que Gorz chama de “razãoontológica”.

É ontologicamente que a utopia marxiana da coinci-dência do trabalho funcional e da atividade pessoal é ir-realizável na escala dos grandes sistemas. E isso pelo fatoevidente de que o funcionamento da megamáquina in-dustrial-burocrática exige uma subdivisão das tarefasque, uma vez posta em prática, se perpetua e deve perpe-tuar-se por inércia, com a finalidade de tornar fiável ecalculável a funcionalidade de cada uma das engrena-gens humanas. A definição e a distribuição das tarefasparciais são, pois, determinadas pela matriz material,transcrita pelo organograma, da megamáquina que setrata de fazer funcionar.180

Por essa razão acontece exatamente o contrá-rio do que pretendiam os que acreditam que a li-bertação se dá no e pelo trabalho: “a integraçãofuncional dos indivíduos vai excluir sua integraçãosocial”181. Ambas sofrem de uma incompatibili-dade radical. Em outro momento, Gorz volta aafirmar que a maquinaria industrial “é inapropriá-vel pelos trabalhadores em sua própria nature-za”182, independentemente do regime de pro-priedade privada dos meios de produção. Poressa razão, o capital pode tirar proveito da situa-ção, conseguindo confiar maquinarias cada vezmais complexas aos trabalhadores, que, por suavez, contam com capacidades sempre mais limi-tadas183. Aqui aparece uma das originalidades dopensamento de Gorz: “o fato de que a heteronomiaestá inscrita na estrutura mesma do modo de produção in-

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175 Aqui nos baseamos em SILVA, 1999b, p. 164-65.176 Este último acaba de ser publicado no Brasil. GORZ, André. Metamorfoses do trabalho. São Paulo: Annablume, 2003d.177 Cf. GORZ, 1988, p. 56.178 GORZ, 1988, p. 56. Os grifos são do autor.179 Cf. id. Adeus ao Proletariado: para além do socialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. p. 39.180 GORZ, 1988, p. 60. Os grifos são do autor.181 GORZ, loc. cit. Os grifos são do autor.182 Ib., p. 72.183 Cf. id., 1987, p. 40.

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dustrial”184. Ou seja, a exterioridade do trabalha-dor coletivo com relação aos trabalhadores indi-viduais é, para Gorz, inerente à própria estrutura-ção material do aparelho produtivo, à naturezados processos e dos fluxos185.

Para compreender o alcance dessa proposi-ção, é preciso recuperar alguns outros elementoscaracterizadores do pensamento de Gorz. A “in-dústria” é “uma concentração técnica de capitalque só foi possível graças à separação do traba-lhador dos meios de produção”186. A racionaliza-ção e a economia de trabalho só foi possível gra-ças a essa separação introduzida pelo capitalismoentre o trabalhador e os meios de produção. E aindústria, filha do capitalismo, “só pôde nascergraças à racionalização econômica do trabalho –que implicava necessariamente a funcionalização– e perpetua esta em seu funcionamento comouma exigência impressa na materialidade de suamaquinaria”187. Portanto, o processo de produ-ção industrial não supõe apenas a racionalizaçãoeconômica do trabalho, mas também a sua fun-cionalização188. Ambas, a racionalização e a fun-cionalização, caminham lado a lado.

O processo de racionalização econômica, emdeterminada esfera de atividades, induz a que ou-tras esferas também busquem a racionalização,de modo que vão adquirindo maior autonomiaentre si. Assim, surgem aparelhos mais comple-xos que vão exigindo subdivisões cada vez maio-res de tarefas e competências, uma organizaçãocada vez mais diferenciada de funções cada vezmais especializadas. Neste movimento de com-plexificação e de impessoalização das condutas,tarefas e relações, na medida em que são assegu-

radas por regulamentações formais, elas se tor-nam sempre mais funcionais, porque especializa-das e porque determinadas do exterior189. ParaGorz, funcional é toda

conduta racionalmente programada para alcançar umresultado que vai além da compensação do agente e, naprática, independe de sua intenção de alcançá-lo. A fun-cionalidade é uma racionalidade que vem de fora, umaconduta predeterminada e prescrita ao ator pela organi-zação que o engloba. Esta conduta é a função que eletem de desempenhar e cujos fins ele não deve questio-nar. Quanto mais ela se desenvolve, mais a organizaçãotende a funcionar à maneira de uma máquina.190

Uma vez desencadeado, o processo de dife-renciação das competências leva a maior buro-cratização, e essa, por sua vez, à constituição daesfera da heteronomia, “conjunto de atividadesespecializadas que os indivíduos têm de cumprircomo funções coordenadas do exterior por umaorganização preestabelecida”191. A proletariza-ção só é possível na medida em que se destrói porcompleto, nos operários, a capacidade autônomade produzir sua subsistência. Em outras palavras,o proletário, por excelência, é aquele cujo traba-lho é inteiramente heterônomo192.

Numa engrenagem produtiva crescentementedeterminada pela esfera da heteronomia, “os in-divíduos são induzidos a funcionar de forma com-plementar, à maneira dos órgãos de uma máqui-na, com vistas a fins freqüentemente desconheci-dos para eles e diferentes dos que são propostos para asua busca pessoal”193. Ou seja, o trabalhador nãopassa de “um acessório vivo”194 dessa engrena-gem produtiva, na qual ele, como produtor, é ir-relevante. Seu trabalho tornou-se um ingrediente

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184 GOLLAIN, 2000, p. 78. O grifo é da autora.185 Cf. GORZ, 1987, p. 42.186 Id., 1988, p. 72.187 GORZ, loc. cit.188 Cf. GOLLAIN, op. cit., p. 78.189 Cf. GORZ, 1988, p. 48.190 GORZ, loc. cit. Os grifos são do autor.191 Ib., p. 49.192 Cf. Id., 1987, p. 46 e 49.193 Id., 1988, p. 52.194 Ib., p. 74.

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a mais no processo de produção, reduzido à meramercadoria.

Para Gorz, a apropriação coletiva do processoda produção será impossível uma vez que “osmeios de produção industriais funcionam comocapital fixo, quaisquer que sejam o regime econô-mico e o regime de propriedade”195. Recorrendoao conceito de “trabalho morto”, de Marx, e de“espírito coagulado”, de Max Weber, Gorz estáconvencido de que

a materialidade inerte da maquinaria (ou da organizaçãoque a imita) confere à poièsis passada (ao trabalho mor-to, à organização) uma ascendência duradoura sobre ostrabalhadores que, servindo-se dela, são obrigados a ser-vi-la. Este domínio é tanto mais inexorável quanto aquantidade de capital fixo (ou seja, de trabalho e de sa-ber mortos) por posto de trabalho é importante.196

Ou seja, “é o trabalho morto, esta massa desaberes necessariamente especializados que or-dena a produção social (a ‘produção coagulada’),que é inapropriável pelo trabalhador e impedeeste último de viver seu trabalho como uma açãosoberana sobre a matéria, como ‘poiètica’”197. Otrabalho perdeu sua soberania em meio à maqui-naria. É um elemento a mais na complexa engre-nagem industrial. Gorz recorre a Marx (Grun-drisse) para mostrar esta submissão:

É a própria máquina que, procurando destreza e forçano operário, é agora virtuosa, dotada de alma própria[...]. A atividade do operário, reduzida a uma pura abs-tração, é determinada e regulada por todos os ladospelo movimento da maquinaria. A ciência que obrigaos membros inanimados da maquinaria a funcionar,por sua construção, como autômatos que cumpremsua missão, tal ciência não existe na consciência do operário,mas que atua sobre ele como um poder estranho, o poder damáquina.198

Dada a incapacidade de os trabalhadores seapropriarem do processo de produção, o poder

de cada indivíduo e do operário como classe éafetado profundamente. A organização industrialtem a capacidade de transfigurar e escamotearpermanentemente o poder. O grande segredo daprodução industrial está em que nela ninguémdetém o poder. Nela, o poder não é sujeito, poisnão pertence a homens soberanos que definemlivremente o que fazer e o que não199. O podernão é algo que está encarnado em alguém; nin-guém – nem os que estão situados na hierarquiaindustrial ou administrativa, nem os operários –pode dizer que seja o sujeito do poder. O poderestá acima de tudo, diluído no próprio sistema,dada a sua complexidade. “O poder não é sujeito:é sistema de relações, ou seja, estrutura. É gerido,não detido pelo capitalista coletivo. E é essa dilui-ção ad infinitum do poder na ordem das coisas queconcede a seus detentores sua legitimidade”200.O poder, portanto, não pertence a ninguém, masao sistema.

Essa descoberta de Gorz foi decisiva para quedeixasse de acreditar na possibilidade de liberta-ção no trabalho. Como este tipo de poder é danatureza mesma do sistema industrial capitalistade produção, sua tomada só é possível mediantea destruição irreversível deste aparelho. E nisso,afirma Gorz, todas as revoluções passadas fra-cassaram. A única chance que entrevê para aboliras relações de dominação é reconhecer, por umlado, que o poder funcional é inevitável e, por ou-tro, limitar seu domínio, concedendo-lhe um lu-gar circunscrito201.

A integração funcional, através dos grandes ecomplexos aparelhos heterorregulados, introduz,portanto, uma cisão intransponível na vida dostrabalhadores. Cisão essa que se manifesta noaparecimento de duas racionalidades contraditó-rias: a racionalidade dos indivíduos, cujos fins –mesmo quando levam a condutas funcionais –

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195 GORZ, 1988, p. 72.196 Ib., p. 73. Os grifos são do autor.197 GOLLAIN, 2000, p. 79.198 MARX, K. Grundrisse apud GORZ, 1988, p. 74.199 Cf. id., 1987, p. 64. Os grifos são de Marx.200 Ib., p. 65.201 Cf. GORZ, 1987, p. 80-1.

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são irracionais em relação às finalidades das orga-nizações em que trabalham; a racionalidade dasorganizações, para quem aquelas são sem senti-do. Este divórcio entre racionalidades diferentesacaba por introduzir uma fragmentação na vidados trabalhadores: a vida profissional e a vida pes-soal de cada indivíduo são regidas por normas evalores radicalmente diferentes quando não con-traditórios. O que acontece, com freqüência, é quea lógica da vida profissional acaba se impondotambém à vida privada. A vontade de triunfar se-gundo critérios de eficácia puramente técnicos (es-pírito de competição, oportunismo...) acaba sendotransposta para a vida privada202, e esta acaba sen-do, cada vez mais, regida pela lógica da racionali-dade econômica. Os valores da competitividade,da eficiência e do individualismo, restritos ao cam-po econômico, acabam por transbordar e migrarpara os campos social e político.

Mas, como vimos, a integração funcional in-troduziu uma cunha entre o trabalho e a vida pri-vada de cada um. Exatamente porque a esfera daprodução e a vida fora do trabalho são marcadaspor lógicas diferentes, a integração funcional nãopode levar à integração social.

É rigorosamente impossível traduzir de novoessa funcionalização das atividades heterodetermi-nadas em termos de colaboração social voluntária.Pelo contrário, a integração funcional dos indivíduosvai excluir sua integração social: a predeterminaçãofuncional de suas relações os impedirá de tecer re-lações recíprocas fundadas na cooperação comvistas a fins comuns segundo critérios comuns.Ela os impedirá de viver a execução de sua tarefacomo uma cooperação e pertença a um grupo203.

2.5.2 É o “trabalho” criador de laço social?

Dominique Méda dedica um capítulo inteirodo seu livro “Le travail. Une valeur em voie de dispari-

tion” à discussão do trabalho como laço social.Sua reflexão vai na linha de Gorz e ajuda a com-preender melhor alguns fundamentos de seupensamento, motivo pelo qual vamos nos deterpor um momento na sua análise.

Os defensores da corrente essencialista recor-rem, com freqüência, à argumentação de que otrabalho está no fundamento do laço social, ouseja, de que ele é não somente o meio maior desocialização e de integração social, mas tambémque ele contém, no dia-a-dia, o laço social204. Emseguida, relaciona os principais argumentos usa-dos por seus defensores: o trabalho permite aaprendizagem da vida social e a constituição dasidentidades; é a medida das trocas sociais; permi-te a cada indivíduo ter uma utilidade social; é umlugar de encontros e cooperações, oposto aos lu-gares não-públicos205.

É preciso, porém, atentar para os limitesdesse tipo de discurso: primeiramente, ao to-mar o trabalho como modelo de laço social,seus defensores promovem uma concepção re-dutora de laço; segundo, sustentando que o tra-balho exerce funções sociais, eles esquecem arealidade do trabalho e dos instrumentos eco-nômicos e jurídicos pelos quais ele é regido emnossa sociedade206.

Méda admite que o trabalho pode ser laço so-cial, mas de “maneira derivada”, porque

o trabalho permite hoje o exercício de uma certa formade sociabilidade, mas é essencialmente porque é a for-ma maior de organização do tempo social e que é a rela-ção social dominante, sobre a qual são assentadas asnossas trocas e nossas hierarquias sociais e não porqueteria sido concebido como o meio colocado a serviçode um fim preciso: o estabelecimento do laço social.207

Historicamente há duas tradições que inter-pretam de maneira diferente o laço social: uma oentende como laço econômico, e a outra prefe-

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202 Cf. id., 1988, p. 53-4.203 GORZ, 1988, p. 60.204 Cf. MÉDA, 1995, p. 167.205 MÉDA, loc. cit.206 Cf. MÉDA, 1995, p. 167-68.207 Ib., p. 169.

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rencialmente como laço político208. A primeiratradição vai de Smith a Marx, para quem “produ-zir é realizar o laço social”209. A outra vai de Aris-tóteles a Habermas, passando por Arendt, paraquem o laço social é algo de mais substancial eque não pode, por isso, ser reduzido simples-mente à esfera econômica210. Como se pode de-preender, num e noutro caso, o trabalho, comoespaço das trocas mercantis, não ocupa o mesmolugar. Ou seja, a concepção de laço social está es-treitamente ligada à concepção de trabalho que setenha.

Gorz, em “Misères du present. Richesse du possi-ble”, de 1997, trata do mesmo tema no início doterceiro capítulo. Para ele, o trabalho socialmentedefinido, aquele entendido como emprego e,portanto, definido estritamente,

[...] jamais foi uma fonte de ‘coesão social’ nem de in-tegração. O ‘laço social’ que estabelecia entre os indi-víduos era abstrato e débil. Ele os inseria, isso sim, noprocesso de trabalho social, nas relações sociais deprodução, como constituintes estreitamente imbrica-dos e funcionalmente especializados de uma imensamaquinaria.211

A razão última parece ser a de que “esse traba-lho correspondia às exigências objetivas, funcio-nais da maquinaria econômica: da sociedade-sis-tema”212.

O trabalho entendido como emprego, comoveremos mais adiante, não poderá, na perspecti-va aberta por Gorz, ser tomado como fundamen-to em torno do qual a sociedade encontra suaunidade, e as pessoas procuram sua integraçãosocial. Não é próprio do emprego ter essas atri-buições, uma vez que isso não cabe na racionali-dade que lhe dá sustentação.

Méda, numa recuperação histórica, mostraque o trabalho, assim como as nossas sociedades

o praticam, só pode surgir devido à emancipaçãodo indivíduo. Ou, visto na perspectiva de Polanyie Castel, quando os laços e instituições comunitá-rios que asseguravam a subsistência de cada indi-víduo foram destruídos, e cada indivíduo foiobrigado a providenciar a sua própria sobrevi-vência. Em tal contexto de grandes transforma-ções, o trabalho emerge como solução redentora.“Ele foi o meio privilegiado de integração do in-divíduo ao todo social”213, mas, para os essencia-listas, “é na esfera do trabalho e da produçãoonde se realiza o essencial da nossa vida indivi-dual e social”214.

Entretanto, hoje, no contexto de desemprego,de flexibilização e precarização do trabalho, deintrodução de tecnologias maximizadoras deprodutividade e poupadoras de trabalho, aindaserá possível conceber o trabalho como integra-dor social e promotor de laço social?

Neste contexto em que o trabalho se tornouuma “mercadoria rara” ou um “privilégio”215

para poucos, o sinal parece ter se invertido: maisdo que apontar para o caminho da inclusão, o tra-balho, pelo que tudo indica, empurra para a po-breza e a exclusão. Que o trabalho empobrecenão é nada tão residual atualmente, a ponto de sero caso de uns poucos “preguiçosos” ou vagabun-dos não afeiçoados ao valor-trabalho: os workingpoor são uma categoria sociológica reconhecida.São pobres, não porque não trabalham, mas exa-tamente porque trabalham. O trabalho é fator deempobrecimento.

Por outro lado, como afirma Bauman, o ca-pital rompeu unilateralmente a sua dependên-cia em relação ao trabalho. “A reprodução e ocrescimento do capital, dos lucros e dos divi-dendos e a satisfação dos acionistas se torna-ram independentes da duração de qualquer

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208 Cf. Ib., p. 177.209 Ib., p. 171.210 Cf. MÉDA, loc. cit.211 GORZ, 1997, p. 96.212 GORZ, loc. cit.213 MÉDA, 1995, p. 193.214 MÉDA, loc. cit.215 GORZ, 1997, p. 97.

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comprometimento local com o trabalho”216. Ocapital, as indústrias, não têm mais necessidadede tanto trabalho. E aqui se processa uma “ma-ravilhosa inversão”217: já não são mais os indiví-duos, os trabalhadores, que se tornam úteis à so-ciedade, mas é a sociedade (empresas) que setorna útil aos indivíduos, permitindo que traba-lhem. Como pode algo que se tornou quase umfavor, portanto, feito entre desiguais, ser aindaelevado a criador de laço social ou de integradorsocial?

O desemprego estrutural traz à tona a proble-mática da insegurança e da instabilidade. Insta-bilidade por parte de quem está empregadohoje, mas que não sabe até quando. Insegurançapor parte de quem está desempregado ou su-bempregado e que está entregue à própria sorte.Quem está empregado vive uma permanenteexpectativa do fim mais ou menos iminente doemprego. O emprego por tempo indeterminadogoza cada vez menos das prerrogativas a ele atri-buídas. Amanhã sempre pode ser o último dia.De novo, um trabalho que deixa atrás de si tantainstabilidade e insegurança não pode, em sãojuízo, ser criador de laço social, justamentequando este se constrói sobre relações de confi-ança e de estabilidade.

Evidentemente, em nossa sociedade, o traba-lho continua sendo fator importante de integra-ção na medida em que a ele está ligada em grandeparte a sobrevivência das pessoas. Certamente, setrabalho e renda estivessem desconectados, o tra-balho passaria a ocupar outro espaço na vida daspessoas e outro lugar no imaginário social. Assimse pode dizer que o trabalho mata – dadas as con-dições estressantes em que se realiza –, mas que ainatividade mata218 igualmente – uma vez que,em nossa sociedade, como afirma Castel, o traba-lho é mais que o trabalho219.

Mas, quando falamos de trabalho, estamos narealidade falando de quê? Debruçar-nos-emossobre isso a seguir.

2.6 O emprego: isso que se “tem” ounão se “tem”

Vimos acima que Gorz opera uma guinada noseu pensamento teórico a partir da segunda me-tade da década de 1970, consagrada em 1980 coma publicação de Adeus ao proletariado. Nesta segun-da fase, Gorz dá especial atenção à redefinição danoção de trabalho. Na primeira fase, esta preocu-pação conceitual está fora dos seus propósi-tos220. A concepção de trabalho, que vai emer-gindo nesta segunda fase, é tão importante quenão pode ser dissociada do conjunto do seu pen-samento. É mesmo um vetor central para se pen-sar uma nova sociedade. Não há como pensarnovas bases para uma sociedade sem levar em con-ta o papel que o trabalho irá ocupar nela. A impor-tância da reflexão de Gorz sobre o trabalho repousaexatamente nesta íntima relação entre a concepçãode trabalho e de sociedade que se pretende. Gorzchega a definir, fundamentado em Polanyi, o socia-lismo em base a essa nova realidade que o trabalhoterá nele: a essência do socialismo consistirá na “su-bordinação das atividades econômicas às finalida-des e valores societais”221. Gorz insere-se, portan-to, nesta fase, na linha de pensamento que propug-na a subordinação da racionalidade econômica e darealidade econômica a fins sociais. E isso diz respei-to diretamente ao trabalho.

A distinção entre “trabalho” e “emprego” estápresente em “Adeus ao proletariado”. No artigo“Nove teses para uma esquerda futura”, acres-centado como “Prefácio” à edição brasileira de“Adeus ao proletariado”, Gorz expõe, de maneira

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216 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 171.217 GORZ, op. cit., p. 97.218 Cf. MOTHÉ, Daniel. L’utopie du temps libre. Paris: Esprit, 1997, p. 29. Neste livro, Mothé contesta direta e frontalmente as

teses de André Gorz.219 Cf. CASTEL, 1998, p. 496.220 Cf. SILVA, 1999b, p. 165.221 GORZ, 1988, p. 226.

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fenomenal, os grandes temas que o acompanhamao longo desta segunda fase, ao menos até o pre-sente momento: trabalho, desemprego, hetero-nomia, a impossível apropriação coletiva, ativida-des autônomas, mudança tecnológica, desvincu-lação entre direito ao trabalho e direito à renda,bem como a redução da jornada de trabalho, umadas grandes propostas que defende. Consegue jáhá mais de 20 anos chamar a atenção para temasque hoje estão em voga na agenda das discussõespolíticas das sociedades. Ousaria mesmo dizerque este artigo é uma espécie de manifesto pro-gramático de Gorz desta fase.

Entendemos por emprego a aplicação da ra-cionalidade econômica ao trabalho. Para Gorz, aracionalidade econômica é co-irmã da razão cog-nitiva instrumental222. A racionalidade econômi-ca passa a existir em conexão com o cálculo con-tábil. O triunfo desse tipo de racionalidade passaa ocorrer, quando o cálculo se torna o critério su-premo de avaliação. Determinada atividade vale apena ser executada ou não em vista do cálculodas vantagens e desvantagens, sem que tenha emconta as minhas preferências223. E o cálculo ésempre o cálculo matemático, frio, imparcial, ló-gico. Todos os outros critérios, sociais ou pes-soais, são submetidos à contabilidade. Foi a su-premacia desta lógica que tornou possível, emprimeiro lugar, que se pudesse

organizar esta civilização fria, cujas frias relações, fun-cionais, calculadas, formalizadas, fazem dos indivíduosvivos estranhos no mundo reificado que, no entanto, éseu produto, e na qual uma formidável inventividadetécnica vai de par com a deterioração da arte de viver,da comunicatividade, da espontaneidade.224

Portanto, sem esse cálculo não haveria racio-nalidade econômica.

Contudo, para que o trabalho seja racional,duas outras condições se fazem necessárias: pri-

meiro, “o trabalho deve ter por fim o intercâm-bio mercantil e não o autoconsumo”225. Como sevê, há uma incompatibilidade por natureza entrea autonomia e a heteronomia em qualquer siste-ma regido pela racionalidade econômica. Cadaindivíduo é incitado a abandonar aquelas ativida-des direcionadas para a satisfação das necessida-des individuais. O que importa é que se produ-zam mercadorias.

Segundo, a produção deve destinar-se “ao in-tercâmbio num mercado livre em que produtoressem nenhum vínculo entre si se encontram emconcorrência frente a compradores com os quaisnão têm nenhum vínculo”226. É mediante estamaneira de organizar a atividade econômica queo capitalismo vai se reproduzindo. Cada qual éresponsável pelo êxito de sua “mercadoria”, otrabalho.

Assim, reúnem-se as condições para que o tra-balho seja o que é em nossas sociedades: empre-go. E, portanto, a característica fundamental doemprego é ser “uma atividade desdobrada emvista do intercâmbio mercantil e tornada necessa-riamente objeto de um cálculo contábil de manei-ra que seja realizado o mais eficazmente possí-vel”227. Já anteriormente, em “Métamorphoses dutravail”, Gorz havia descrito como entende o tra-balho enquanto emprego:

A característica essencial desse trabalho – esse que nós‘temos’, ‘buscamos’, ‘oferecemos’ – é ser uma atividadeque se desenvolve na esfera pública, uma atividade re-querida, definida e reconhecida como útil pelos outros,que, por esse motivo, a retribuem. É pelo trabalho remu-nerado (e mais particularmente pelo trabalho assalaria-do) que pertencemos à esfera pública, adquirimos umaexistência e uma identidade sociais (isto é, uma ‘profis-são’), somos inseridos numa rede de relações e de inter-câmbios na qual nos medimos com os outros e nos ve-mos conferidos direitos sobre eles em troca de nossosdeveres para com eles. É porque o trabalho remunera-

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222 Cf. GORZ, 1988, p. 158.223 Cf. Ib., p. 138-9.224 Ib., p. 158-9.225 GORZ, 1988, p. 139.226 Ib., p. 140. O grifo é do autor.227 GORZ, André. Capitalisme, socialisme, écologie (orientations, désorientations). Paris: Galilée, 1991. p. 111-13. (apud GOLLAIN,

2000, p. 112).

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do e determinado é – mesmo para aqueles e aquelas queo procuram, que se preparam para ele ou que dele sãoprivados – de longe o fator mais importante da sociali-zação, que a sociedade industrial se compreende comouma ‘sociedade de trabalhadores’, e, por isso, se distin-gue de todas as outras que a precederam.228

O emprego assume as características de mer-cadoria: é algo que se tem ou não se tem229; é algoque se pode vender e comprar no mercado230; ésocialmente determinado, homologado, legaliza-do, legitimado, definido pelas competências ensi-nadas, certificadas e tarifadas231. O trabalho, en-tendido como emprego é, então,

uma atividade social, destinada a se inscrever no fluxodos intercâmbios sociais na escala de toda a sociedade.Sua remuneração atesta esta inserção, mas ainda não éo essencial: o essencial é que o ‘trabalho’ preencheuma função socialmente identificada e normatizada na produ-ção e na reprodução do todo social. E para preencher umafunção socialmente identificável, ele mesmo deve seridentificável pelas competências socialmente definidas quecoloca em funcionamento segundo procedimentos social-mente determinados. Deve, em outras palavras, ser um‘ofício’, uma ‘profissão’, quer dizer, a colocação em práti-ca de competências institucionalmente certificadas segundo pro-cedimentos homologados.232

A sociedade do trabalho passou a identificaresta forma particular de trabalho, o emprego,com a forma genérica trabalho. E empregando demaneira indiferenciada a noção de “trabalho”passou a situar “no mesmo plano o trabalho dooperário da indústria e do compositor de músicaou do cientista”233. Por trás desta confusão con-ceitual esconde-se uma rica realidade de ativida-des que se faz necessário recuperar. O próprio

Gorz reconhece que essa confusão está presenteem Marx e em toda a modernidade234. E nisso eleestá de acordo com Arendt. O moderno conceitode “trabalho” oculta, para Arendt, a antiga distin-ção entre labor, trabalho e ação. O que Marx cha-ma de “trabalho” é, para Arendt, labor235. Aoidentificar o trabalho com o labor, parece óbvioque a sociedade industrial atribua ao labor certasqualidades que somente o trabalho possui236. Eassim “a produção moderna está assentada na re-corrência de um processo produtivo que, sem co-meço e sem fim determinados, nada deixa atrásde si e se realiza através da capacidade que todo ohomem possui como participante do ciclo de so-brevivência e de reprodução da espécie”237.

Realizando uma inversão da hierarquia tradi-cional entre labor e trabalho – Gorz fala em sim-biose – a realização da atividade do labor passa aser feita na esfera pública, razão pela qual, na óti-ca de Arendt, o labor atingiu a excelência na so-ciedade moderna238. O homem moderno é, por-tanto, um homo laborans por excelência. O homo fa-ber grego passou para segundo plano e, com ele,as suas qualidades.

A indistinção no conceito de trabalho tem porconseqüência uma ampliação do conceito de tra-balho a tal ponto que todas as atividades huma-nas podem ser consideradas trabalho. O que efe-tivamente tem acontecido. Mas, como diz o filó-sofo Paul Ricoeur: “Uma noção que significatudo não significa mais nada”239.

Gollain chama a atenção para o fato de queuma concepção extensiva ou ampliada de traba-lho não ajuda a perceber a radical novidade apre-

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228 GORZ, 1988, p. 25-6. Os grifos são do autor.229 Cf. id., 1997, p. 12 e 97.230 Cf. ib., p. 95.231 Cf. ib., p. 96.232 Ib., p. 14. Os grifos são do autor.233 Id., 1988, p. 168.234 Cf. GORZ, 1988, p. 168.235 ARENDT, 1989, p. 100.236 Cf. ib., p. 113.237 WAGNER, 2000. p. 96.238 Ib., p. 99.239 RICOEUR, Paul. História e verdade. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 1968. p. 202 (apud SILVA, 1995, p.

179).

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sentada pela corrente historicista, mais particu-larmente, por André Gorz: a de que ela não ajudaa “apreciar as descontinuidades da história e da geo-grafia das atividades humanas e a propor uma defi-nição restritiva, a nosso modo de ver mais rigorosa, do con-ceito de trabalho assim como é apreendido no seu sentidomoderno”240, como o definimos anteriormente.

Por conta dessa confusão conceitual, e con-frontados com o problema do desemprego, umadas saídas está em ampliar ainda mais o leque deatividades que podem ser remuneradas de algu-ma maneira. Os defensores dessa idéia trazem àtona uma série de atividades não mercantis, masque poderiam ser incorporadas ao campo das ati-vidades mercantis. E não seria difícil encontraruma utilidade social para tantas atividades prote-gidas da lógica da racionalidade econômica. Essaquestão, no entanto, pode ser alargada a ponto dese revelar absurda241.

Gorz não concorda com a definição ampliadade trabalho apresentada pelos partidários da cor-rente essencialista. Para ele é preciso “reaprendera diferenciar a noção de trabalho a fim de evitar o con-tra-senso de remunerar as atividades sem fins mer-cantis e a submeter à lógica do rendimento os atosque só estão em conformidade com seu sentido,quando o tempo neles consumido não for conta-bilizado”242. Ou seja, Gorz propõe a necessidadede postular a limitação da racionalidade econômi-ca aplicada ao trabalho. Não basta simplesmentedefinir os critérios da racionalidade econômica,isto é, evidenciar que uma atividade, para serconsiderada “trabalho”, seja socialmente útil (comofizemos anteriormente); faz-se necessário, tam-bém, definir os critérios de sua aplicabilidade243.

Gorz propõe quatro critérios necessários paradefinir uma atividade como submetida à raciona-

lidade econômica ou não. Esses critérios são osseguintes: a) que crie valor de uso; b) com vistas aum intercâmbio mercantil (salário); c) na esferapública; d) e que tenha o tempo como medida derendimento244. Portanto, qualquer atividade paraser considerada emprego deve preencher estesquatro requisitos. Gorz chama a atenção para ofato de que, contra uma concepção muito difun-dida, não é o salário que define o trabalho no sen-tido econômico245. Os outros critérios tambémprecisam ser preenchidos.

Gorz divide as atividades em dois grandesgrupos: as mercantis e as não-mercantis. De saí-da, ele exclui as atividades não-mercantis como“trabalho”. São outra coisa, mas não trabalho nosentido de emprego, pois não preenchem os cri-térios apontados acima. A remuneração pode es-tar presente neste grupo de atividades, porémnão é prioritária. As atividades mercantis, por suavez, são divididas em cinco subgrupos246: o tra-balho no sentido econômico como emancipação;o trabalho do servidor; as funções, cuidados e as-sistência; a prostituição; a maternidade, funçãomaternal, mães substitutas.

a) O trabalho no sentido econômico como emancipa-ção. Na análise que Gorz faz das atividades à luzdos quatro critérios acima indicados, apenas estegrupo de atividades preenche todos eles. São ati-vidades que criam valor de uso, são socialmenteúteis, por isso remuneradas e cuja produtividadeé medida em termos de quantidade de tempo.

b) O trabalho de serviçal. Aqui se situam todos ostrabalhadores serviçais: domésticos, engraxates,servidores públicos. Preenchem todos os crité-rios, menos o de criarem valor de uso. Por issonão podem ser classificados de trabalho econo-micamente racional.

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240 GOLLAIN, 2000, p. 117.241 Cf. GORZ, 1988, p. 168-70. Para expor o ridículo da lógica subjacente à ampliação ilimitada da remuneração, Gorz faz a

seguinte pergunta: “Tenho eu direito a uma remuneração, quando escovo os dentes três vezes ao dia e faço assim eco-nomias à Seguridade Social?”. Aqui p. 170.

242 Ib., p. 170-71.243 Cf. GORZ, 1988, p. 171.244 Cf. ib., 172.245 Cf. GORZ, loc. cit.246 Para esta parte cf. ib., p. 173-90.

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c) As funções, cuidados e assistência. Este subgru-po inclui os trabalhos de vigilância, controle, ma-nutenção, bombeiro, fiscalização, saúde. São ati-vidades que não podemos medir, nem maximizarseu rendimento. Não podemos medir a eficáciado médico, por exemplo, pelo número de pacien-tes que atende; nem o professor pelo número deaulas que dá. As exigências de controle de quali-dade, qualidade total, podem ter conseqüênciasdesastrosas, quando transpostas da fábrica paraum hospital, para um estabelecimento de ensi-no... O que significa produtividade em ambientescomo esses? A aplicação da racionalidade econô-mica não se torna uma irracionalidade, quandoinserida num contexto mais amplo em que con-tam também as relações humanas, o afeto, o cari-nho, a atenção...?247 Os custos indiretos (desem-prego, violência social, exclusão), muitas vezes,podem superar os custos diretos, em vista de cujaredução a racionalidade econômica é introduzi-da. Olhando dessa perspectiva, nem sempre aimplantação de inovações tecnológicas sem maisé o caminho mais racional.

d) A prostituição. A prostituição e o trabalho demassagens carecem do terceiro critério, o de quesão realizados na esfera pública. O trabalho doou da massagista é protegido por um procedi-mento codificado do qual é sempre o dono e quefunciona como barreira instransponível que pro-tege o/a terapeuta de uma relação mais íntima. Arelação com os pacientes, no caso da prostitutaou do terapeuta, é uma relação meramente pro-fissional.

e) Maternidade, função materna e mães substitutas.Para Gorz, essas atividades não preenchem ne-nhum dos quatro critérios. O ponto de partidapara a sua reflexão sobre essas atividades é a exis-tência de um “subsídio público dado às mães emnome da utilidade social e econômica da ‘funçãomaterna’”248. A função maternal é sempre uma

relação de amor, uma relação pessoal, não po-dendo, por isso, ser considerada uma relação so-cial. Mas, quando a sociedade brinda a mãe comum subsídio social, deve ter claro se este subsídioconsagra o direito soberano da mulher a ser mãee a criar seu filho com toda a independência ou seé atribuído à mulher em razão da função social-mente útil que ela cumpre. Gorz inclina-se para aprimeira opção.

O segundo grupo de atividades, as atividadesnão-mercantis, Gorz subdivide em dois: o traba-lho para si e as atividades autônomas. O trabalhopara si é aquele cuja produção de valor de uso nósmesmos somos os artesãos e os únicos destinatá-rios. As atividades autônomas são aquelas quenão têm necessidade nem utilidade e cuja realiza-ção é seu fim em si mesmo249. Veremos agora oque Gorz entende por trabalho.

2.7 O trabalho: isso que se faz

A maior distância que Gorz toma do tempomoderno permite-lhe lançar novas luzes sobre aproblemática conceitual do trabalho. O contatocom a experiência grega aviva-lhe uma riquezaescondida pela moderna noção de trabalho.Assim, Gorz passa a pleitear uma outra noção detrabalho, como veremos agora.

Uma entrevista de Gorz publicada em1998250, portanto, depois de “Misères du présent.Richesse du possible”, é bastante ilustrativa a respei-to dos três conceitos usados por ele para se refe-rir ao trabalho: labor ou ponos, isto é, aquelas ativi-dades que é preciso realizar dia após dia para ga-rantir a sobrevivência. Ele relaciona ponos e cor-véia. A segunda categoria é a poièsis, isto é, o tra-balho de criação, invenção, expressão, realizaçãode si. A práxis ou o agir é a terceira categoria, comexplícita referência a Hannah Arendt. Essa noção

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247 A respeito de uma certa cultura da produtividade que vai invadindo o conjunto dos setores antes excluídos e suas conse-qüências, cf. AZNAR, Guy. Trabalhar menos para trabalharem todos. São Paulo: Scritta, 1995. p. 63-73.

248 GORZ, 1988, p. 186.249 Cf. ib., p. 191.250 Cf. GORZ. “Oser l’exode” de la societé du travail. Vers la production de soi, entretien avec André Gorz. Les périphériques

vous parlent n. 10, 1998. Disponível em: <http://www.glogenet.org/periph.html> Acesso em: 10 maio 2003a.

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compreende a reflexão, o debate político e filosó-fico, o ensino, boa parte daquilo que hoje chama-mos de “relacional”, e a “produção de si”, o Eros.Admite que há cruzamentos e interpenetraçõesentre essas dimensões da atividade humana, masque se distinguem por seu sentido e sua intencio-nalidade, muito mais do que por seu conteúdo.

O que acima definimos como emprego, está,portanto, mais na linha do labor ou do ponos. ParaGorz, está claro que há outras dimensões da exis-tência humana (poièsis e práxis) e que elas foram,no capitalismo, subjugadas à primeira. O traba-lho abstrato, que pode ser comprado e vendido eque serve para fins determinados por outros, nãoé toda a realidade. Aliás, assentado na máximagrega e posteriormente retomada por Marx, pos-tula que a verdadeira vida começa quando as de-terminações do reino da necessidade já foramatendidas. O reino da liberdade só encontra espa-ço para além do reino da necessidade. Gorz cita otexto de Marx em que este fala desses dois reinos:“O reino da liberdade ‘só começa no outro ladode suas fronteiras [do reino da necessidade]’ e seconfunde com ‘o desenvolvimento da atividadeconsiderada fim em si mesma’ (‘der Kraftentfal-tung die sich als Selbstzweck gilt’)”251.

Gorz distingue entre atividades heterônomase autônomas. As atividades autônomas, contra-riamente às heterônomas, não têm por finalidadeprimeira a troca no mercado, mas são aquelas au-todeterminadas por cada um e em vista dos seusinteresses. Ou como ele próprio define:

Eu chamo autônomas essas atividades que são para simesmas sua própria finalidade. Valem por e para simesmas não porque não tenham outro fim além dasatisfação ou do prazer que procuram, mas porque arealização do fim, tanto como a ação que o realiza, são fon-tes de satisfação: o fim se reflete nos meios e inversa-mente [...].252

O trabalho acaba por recobrir um campo maisvasto de atividades que o emprego. Muitas ati-

vidades socialmente não reconhecidas comoúteis ficam à margem, em segundo plano, assimcomo tantos interesses e motivações pessoais.Limitar o conceito de trabalho permite reconhe-cer, valorizar e estimular uma série de atividadescomo socialmente importantes, ainda que nãoremuneradas.

Atividades artísticas, políticas, científicas, ecosóficas,esportivas, artesanais, relacionais; trabalhos de auto-produção, de reparação, de restauração do patrimônionatural e cultural, de disposição do marco da vida, daeconomia de energia; ‘oficinas de crianças’, ‘oficinas desaúde’, redes de intercâmbios de serviços, de ajuda mú-tua e de assistência mútua, etc.,253

seriam possíveis de se proliferarem muito mais.Uma das conseqüências mais importantes seriaque estas e tantas outras atividades resultariam naprodução de novas socialidades, de novos modosde vida e de cooperação. Subtraídas aos dispositi-vos de poder do capital e do Estado254, seriamcapazes de estimular redes de relações com po-tencial para densificar o tecido social esgarça-do255. Novos laços sociais poderiam ser construí-dos. Evidentemente que o político e o cultural jo-gariam outro papel, não o de subordinados aoeconômico.

Essa maneira de conceber o trabalho faz des-locar o foco das atenções para o interior da socie-dade e de suas necessidades (nem sempre só eco-nômicas) e não prendê-lo à fábrica, à empresa esuas necessidades (sempre econômicas). Olhan-do sob esta perspectiva mais ampla, o que faltanão é trabalho, mas um determinado tipo de tra-balho que passamos a denominar de emprego.Este sim está em crise. Trabalho, porém, há de-mais. O verdadeiro trabalho (poièsis), aquele nosentido antropológico e filosófico, é o trabalhode criação, de invenção, de expressão, de realiza-ção de si. É dele que a sociedade sente falta.

Há um aspecto em Gorz que merece umaatenção especial por conta das conseqüências

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251 GORZ, 1988, p. 206.252 GORZ, loc. cit.253 Id., 1997, p. 161-62.254 Cf. GORZ, 1997, p. 132-33.255 Cf. ib., p. 163.

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que poderá ter. Ele usa o termo “relações” nocontexto dos círculos de cooperação: seu valorsocial não reside na criação de “utilidades” comvistas à troca, mas no “estabelecimento de rela-ções de reciprocidade estáveis [...].” 256. Por ou-tro lado, se a nossa hipótese acerca da simbioseque Gorz realiza entre poièsis e práxis estiver acer-tada, podemos concluir que o trabalho é criadorde relações sociais e não apenas produtor de bense serviços, cuja concepção passou a prevalecercom a imposição da forma emprego. O trabalhoé mediador social direto, não havendo necessida-de de que as pessoas se relacionem umas com asoutras por meio de seus objetos. Assim, este tipode atividade estaria sendo elevado novamente aotopo da hierarquia, seguindo também o pensa-mento de Arendt. Essa visão encontra, ainda,apoio em outras culturas como mostram estudosantropológicos e etnográficos aos quais, porexemplo, Polanyi faz referência. Aqui há, certa-mente, um vasto campo a ser explorado.

Gorz, na segunda metade do capítulo sobre oslimites da racionalidade econômica, desenvolvedetalhadamente os subgrupos das atividadesnão-mercantis, às quais vale a pena retornar.Como já vimos, ele subdivide essas atividades ematividades para si e autônomas.

Parte do problema de que hoje as tarefas do-mésticas são reduzidas em boa parte ao ponos. Osserviços domésticos são externalizados em vistada criação de empregos. Por trás está a ideologiada geração de empregos a todo custo, não impor-tando sua qualidade nem sua real necessidade.Parte do princípio de que o desenvolvimento dosserviços pessoais só é possível num contexto dedesigualdade social crescente, em que uma parce-

la da população abocanha as atividades bem re-muneradas e obriga a outra a trabalhar a serviçodela. O serviço de doméstica acaba sobrandopara uma massa econômica e socialmente mar-ginalizada. Perpetua-se, assim, na sociedade bra-sileira, por exemplo, a tradição escravocrata257.A profissionalização dos serviços domésticosmostra-se uma nova escravidão. Ela introduzuma divisão social que reforça a desigualdadesocial. A solução não é, segundo Gorz, seguirpelo caminho da ampliação das atividades quepodem ser remuneradas258. Antes, a soluçãoestá em que todo mundo trabalhe menos. Dessemodo, todos poderiam assumir também os afa-zeres domésticos.

O caminho não passa pelo assalariamento dotrabalho doméstico. A luta deve ser pela emanci-pação da mulher no seio das relações da esferadoméstica. Em outras palavras, não passa pelaconsagração da esfera doméstica à mulher asse-gurada pelo assalariamento, mas pela repartiçãovoluntária das tarefas, tanto da privada como dapública, a fim de que pertençam igualmente auma e a outra.

O trabalho para si é “fundamentalmenteaquele que temos que fazer para tomar possessãode nós mesmos e dessa organização de objetosque, prolongando-nos e refletindo-nos a nósmesmos como existência corporal, constitui nos-so nicho no seio do mundo sensível: nossa esferaprivada”259. Trabalhar para si não significa fazeras coisas só para si. O trabalho para si pode tam-bém ser um trabalho para nós. A esfera privadanão se limita ao espaço íntimo de cada um, masrefere-se também à casa, à vizinhança, à praça, àrua, ao bairro.

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256 Ib., p. 174.257 Segundo José Carlos Ferreira, diretor-adjunto da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o elevado índice de

empregadas domésticas no Brasil (21% da PEA feminina – maior que todos os outros países da América Latina) se devea dois fatores: o aumento nas taxas de desemprego e uma tradição escravocrata da sociedade brasileira. Cf. DANTAS, I.,Doméstica é 2ª maior ocupação da mulher. Folha de S.Paulo, 25 maio 2003.

258 Este é, por exemplo, o caminho entreaberto pela Dominique Schnapper. “A revolução tecnológica permite ter umaprodução superior com menos trabalhadores, e isto deve forçar-nos a pensar nas maneiras de reconhecer, económica-mente e socialmente, a actividade e a utilidade social de muita gente que já não pertence a este sector da produção”.SCHNAPPER, D. Contra o fim do trabalho. Lisboa: Terramar, 1998. p. 38.

259 GORZ, 1988, p. 197.

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As atividades autônomas radicalizam aindamais a independência em relação à lógica da racio-nalidade econômica, uma vez que não devem sernecessidade nem ter por finalidade o intercâmbio.Ou seja, elas são sem significação econômica.

O propósito central de Gorz, como vimos,consiste em delimitar, por um lado, o conceito detrabalho no sentido de emprego e, por outro, li-berar uma vasta gama de atividades não sujeitas àlógica da racionalidade econômica. Procura mos-trar que o verdadeiro trabalho não está no “traba-lho”, mas fora dele260. E que a verdadeira vidanão está no “trabalho”, mas fora dele.

2.8 O fim do trabalho e a suanão-centralidade

Vimos no primeiro capítulo que a sociedadesalarial ou sociedade do trabalho está em crise. Oemprego de tempo integral e para todos já nãoexiste mais, e o tempo em que o foi não voltará.No segundo capítulo, definimos o conceito deemprego e de trabalho, delimitando dessa manei-ra, por um lado, sua abrangência e sua relevânciae, por outro, enriquecendo o significado daquiloque denominamos trabalho. Isso nos permite,agora, avançar ainda outro aspecto: o traba-lho-emprego pode, sim, acabar. Seu fim pode serproclamado e mesmo reivindicado. Entretanto,notemos bem, o trabalho cujo fim está próximo éo trabalho-emprego. Ou ainda dito com outras

palavras: “o trabalho cujo fim é evidenciado nãoé o trabalho no sentido antropológico, mas estaatividade nascida com o capitalismo industrial,ou antes imposta à força261 pelo desenvolvimen-to capitalista como parte destacável do corpo,mercadoria quantificável”262.

Uma realidade bem visível a olhos vistos se di-lata por todos os lados: “Tornado precário, flexí-vel, intermitente, com duração, horários e saláriosvariáveis, o emprego deixa de integrar num cole-tivo, deixa de estruturar o tempo cotidiano, se-manal, anual e as idades da vida, deixa de ser abase sobre a qual cada um pode construir seuprojeto de vida”263.

Por conta dessa concepção estrita de trabalhopodemos mesmo reivindicar a perda da centralida-de do trabalho264. Para Gorz, isso é algo necessário.

É necessário que o ‘trabalho’ perca sua centralidade naconsciência, no pensamento, na imaginação de todos: épreciso aprender a ter sobre ele um olhar diferente: nãomais pensá-lo como isso que se tem ou não se tem; mascomo isso que nós fazemos. É preciso ousar querer nosreapropriar do trabalho.265

Por conta do declínio em quantidade, mastambém em qualidade do trabalho,

a maioria das pessoas não pode identificar-se com seutrabalho porque a economia não requer trabalho pagosuficiente para fornecer empregos estáveis em períodointegral para todos [...] Paralelamente à impossibilidadeefetiva de identificar-se com um emprego, surge umarelutância crescente em identificar-se com um trabalhoque não favoreça o desenvolvimento da personalidadee a autonomia.266

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260 Cf. GORZ, 1997, p. 13.261 Sabemos das muitas resistências históricas oferecidas por parte dos trabalhadores para que a chamada “sociedade sa-

larial” se tornasse hegemônica. Cf. CASTEL, 1998; MÉDA, 1995; MARGLIN, Stephen. Origem e funções do parcela-mento das tarefas. Para que servem os patrões? In: GORZ, André (Org.). Crítica da divisão do trabalho. 3. ed. São Paulo:Martins Fontes, 1996. p. 37-77. Este texto, a nosso ver, foi importante para a virada no pensamento de Gorz, pois elecontribuiu para a compreensão da impossível apropriação coletiva. Cf. também _____. 1988, p. 34-6; 62-3. Gorzocupa-se e chama a atenção para os grupos atuais de resistência à racionalidade econômica do trabalho: a geração X,os programadores de softwares livres e trabalhadores da “cultura da nanotecnologia”. Cf. _____. 1997. p. 101-7;_____. 2003c. 87-95.

262 GOLLAIN, 2000, p. 112.263 GORZ, 1997, p. 98.264 Cf. GOLLAIN, op. cit., p. 120.265 GORZ, 1997, p. 11-2.266 GORZ. O declínio da relevância do trabalho e a ascensão de valores pós-econômicos. O socialismo do futuro, Salvador, n.

6, 1993c, p. 29, col. 1.

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A atração pelo trabalho-emprego repousa, emgrande parte, na relação que guarda com a fontede recursos necessários para a sobrevivência.Contudo, também subjetivamente, parece que otrabalho está perdendo espaço na vida e na cons-ciência das pessoas. Outras esferas da vida pas-sam a ser mais importantes e valorosas, fazendocom que o trabalho seja descentrado. Nesse sen-tido, afirma Offe,

o que é paradoxal é que, ao mesmo tempo em que umaparcela sempre crescente da população participa do tra-balho assalariado dependente, há um declínio no grauem que o trabalho assalariado, digamos, ‘participa’ navida dos indivíduos, envolvendo-os e ajustando-os dediferentes maneiras.267

A ética do trabalho, fundamental para o surgi-mento e a evolução da sociedade do trabalho, pa-rece estar se encaminhando para a sua crise. Eisso por vários motivos:

O trabalho exclui a atuação moral. O trabalho es-taria se enfraquecendo como “dever ético”, namedida em que já não permite mais que os ho-mens possam atuar nele moralmente. O processode racionalização do trabalho, atualmente emcurso, parece excluir, cada vez mais, o chamado“fator humano” e as potencialidades de cada tra-balhador268.

A vida não está mais no trabalho. Boa parte dostrabalhadores já não pauta mais a sua vida pelotrabalho, pois a “vida” está em outro lugar, forado trabalho, nas relações familiares, de proximi-dade. “A satisfação com atividades que não sãode trabalho contribui mais do que qualquer outro

fator para a satisfação na vida”269. Gorz faz refe-rência a diversas pesquisas realizadas na Europa eque apontam para um crescente divórcio entretrabalho-emprego e vida. O emprego não dá con-ta dos desejos reais que as pessoas têm. A não-identificação com o trabalho que têm agiliza a de-safeição ao trabalho270.

Precarização do trabalho e desemprego. Quantomais precário o trabalho mais ele contribui paraque não mais seja visto como fator de realizaçãoou de desenvolvimento das potencialidades. Pelocontrário, as condições precárias do trabalho im-pedem uma identificação com ele. O desempre-go de longa duração ou freqüentemente intermi-tente não é capaz de manter uma afeição pelo tra-balho. Offe cita um estudo no qual se faz basica-mente a seguinte afirmação: quanto mais tempoas pessoas passam fora do emprego, mais perce-bem que o trabalho não é mais um foco suficien-te para organizar a vida271. Essas evidências noslevam à afirmação de que “o trabalho não é ape-nas objetivamente amorfo, mas também está setornando subjetivamente periférico”272.

Não bastasse isso, o capitalismo acaba por co-locar em crise não apenas o trabalho, mas tam-bém diversas noções relacionadas a ele e seu ge-renciamento. A emergência do trabalho imaterialconduz a caminhos ainda mal vistos e afeta o pró-prio capitalismo, na medida em que categoriascomo “valor”, “trabalho”, “propriedade”, “ri-queza” e “capital” estão em profunda transfor-mação. Aprofundar isso, no entanto, seria outrodesafio, que foge dos limites deste trabalho.

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267 OFFE, 1995, p. 182.268 Cf. ib., p. 183-184.269 OFFE, 1995, p. 188.270 Cf. GORZ, 1997, p. 101-7.271 Cf. OFFE, op. cit., p. 187, nota 23.272 Ib., p. 194.

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3 Propostas para o êxodo da sociedade salarial

A trajetória feita até aqui nos permitiu alcan-çar dois objetivos: primeiro, caracterizar rapida-mente a crise da sociedade do trabalho ou socie-dade salarial. Segundo, conceituar o que entende-mos por “emprego” e trabalho. Fomos guiadospela suspeita de que a crise do trabalho era, naverdade, a crise de um determinado tipo de traba-lho, o trabalho-emprego. Ao mesmo tempo, umacerteza caminhava à nossa frente: o trabalhopode ser mais que o “trabalho”. Resta, para com-pletar o nosso caminho, sempre conduzidos deperto por Gorz, traçar algumas propostas capa-zes de nos levar para além da sociedade do em-prego. É o que perseguiremos neste terceiro capí-tulo. Mas para isso se faz necessário ver primeiroalguns princípios norteadores dentro dos quais aspropostas da redução do tempo de trabalho e domínimo vital universal e suficiente fazem sentido.

3.1 Para além da lógica mercantil –rumo a uma economia plural

Nosso tempo vive sob a ditadura do mercado,do mercado auto-regulável. Sua dinâmica e vora-cidade em ampliar seu leque de influência foramanalisadas por inúmeros estudiosos, bem comoas conseqüências nefastas de sua impostura. Suaoriginalidade consiste em não deixar sobrevivernenhuma esfera (política, intelectual, científica,artística, esportiva) ou recôndido (mesmo osmais pessoais) fora da sua lógica de assimilação.A autonomia que ainda restava em cada uma des-

sas esferas “está sendo suprimida, e todas essasatividades se tornam mercantis”273. O “pensa-mento único” do economicismo elevou, ao piná-culo, os valores da dominação, da competição eda destruição. O homo oeconomicus ou o homo labo-rans tornou-se o modelo ideal de ser humano.

A economia deve, como muito bem o mostraDominique Méda274, para tornar-se um métodoa serviço de uma visão contratualista de socieda-de, ter as seguintes características: ser a ciênciadas leis naturais da vida em sociedade, ter o indi-víduo como centro e valorizar a troca realizadano silêncio do mercado275. O grande sonho doseconomistas é o de conceber a economia políticacomo uma ciência natural e matemática. As rela-ções de troca realizadas por diferentes pessoas,cedem lugar a uma ciência regida por frias leismatemáticas. A ciência de inspiração dos econo-mistas é a matemática. Por outro lado, a econo-mia já não consiste mais na gestão da oikos, istoé, em suprir as necessidades da grande casa, masé uma relação eminentemente individual. A eco-nomia é “apresentada como uma filosofia docontrato cujo objeto de troca não mais é consti-tuído de liberdades individuais, mas de capaci-dades e de produtos”276. O laço social é esse flu-xo incessante de intercâmbios. O grande desafioé o de “fazer coexistir indivíduos que não têminteresse pelos outros”277. Isso explica a matrizindividualista, hedonista e utilitarista da econo-mia moderna. Como vimos, o trabalho não es-capou a essa visão da economia da qual ele se tor-nou servo.

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273 CAILLÉ, Alain. Lula salva a esquerda mundial? Primeira Leitura, São Paulo, ano 1, n. 5, p. 54., jul. 2002.274 No seu livro “Le travail: une valeur en voie de desaparition”, ela consagrou o longo Capítulo VIII à temática do que po-

deríamos chamar de a “invenção” da economia. Cf. MÉDA. Le travail. Paris: Aubier, 1995. p. 196-259.275 Cf. ib., p. 197-208.276 Ib., p. 201.277 Ib., p. 201.

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Com o homo oeconomicus, se universaliza tambéma idéia de uma economia concebida como a ciên-cia do princípio de racionalidade: “A atividadeeconômica é o domínio mais vasto do princípio deracionalidade, e igualmente onde esse princípioapareceu por primeiro, mas não é o único”278. Ouseja, o princípio econômico é conquista e conquis-ta de novos campos. “A economia se pretende,pois, a ciência que descobre e promete o princípiode racionalidade concebido como o princípio uni-versal de toda ação racional”279.

Contrariamente a essa visão natural da econo-mia, ela é, ao contrário, uma construção sócioe-conômica280. Polanyi mostra muito bem que nãose tem conhecimento de que, em economias an-teriores à nossa, tenha havido uma que tenha sidocontrolada e regulada por mercados. Pelo contrá-rio, uma perspectiva histórica nos faz ver que, viade regra, a economia do homem sempre estevesubmersa em suas relações sociais, isto é, o siste-ma econômico é sempre uma função da organi-zação social281.

As pesquisas de Polanyi ajudam a situar a atualeconomia de mercado num contexto históricomais amplo e a desmitificar e relativizar sua forçaabsolutizante diante da qual não é possível fazernada a não ser, como diante de um deus que sereverencia, curvar-se resignadamente282. Ele dis-tingue quatro princípios de comportamento eco-nômico283, cada um dos quais está associado aum modelo institucional284.

1) Princípio da domesticidade. Este princípioconsiste na produção para uso próprio (da pessoa

ou do grupo), ou daquilo que os gregos chama-vam de oeconomia. Quaisquer que sejam as entida-des muito diferentes, o princípio é sempre o mes-mo: produzir e armazenar para a satisfação dasnecessidades dos membros do grupo. O modeloda administração doméstica é o grupo fechado.

2) Princípio da reciprocidade. Ele corresponde àrelação estabelecida entre muitas pessoas poruma seqüência duradoura de dons. “A reciproci-dade é em conseqüência fundada sobre o domcomo fato social elementar, a existência do domque é ligada a um contradom. O aspecto essencialda reciprocidade é que as transferências são in-dissociáveis das relações humanas”285. Por trásda reciprocidade pode estar uma grande varieda-de de motivações possíveis. Apesar disso, o elocomum é a garantia de que as trocas não sejamdespersonalizadas. O retorno (ganho) do domdado nem sempre é imediato e muito menos“material” no nosso sentido. Pode estar em que,executando bem determinada ação, seu realiza-dor ganha em respeito, em estima ou em reco-nhecimento diante dos outros membros.

Em socorro da reciprocidade vem o padrãoinstitucional da simetria,

um aspecto freqüente da organização social entre ospovos iletrados. A marcante ‘dualidade’ que encontra-mos em subdivisões tribais colabora para a união de re-lações individuais, ajudando assim o tomar-e-dar debens e serviços na ausência de registros permanentes.As metades da sociedade selvagem, que tendem a criarum pendant em cada subdivisão, acabam resultando de,e ajudando a executar os atos de reciprocidade sobre osquais o sistema repousa.286

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278 LANGE, O. Économie politique. Paris: PUF, 1962. (apud MÉDA, 1995, p. 236).279 MÉDA, op. cit., p. 236.280 Cf. LAVILLE, Jean-Louis. Économie et solidarité: esquisse d’une problématique. In: _____ (Dir.). L’Économie solidaire:

une perspective internationale. Paris: Desclée de Brouwer, 2000. p. 13.281 Cf. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p. 63-9.282 Saramago, por exemplo, afirma que muito da impotência da nossa geração provém dessa crença de que não é possível

fazer nada: “Nos convertemos em seres passivos. Resignados. Seres que não questionamos, patéticos seres sentados aesperar que a ciência e a tecnologia nos tragam a nossa cota diária de bem-estar. Somos responsáveis por este mundo in-feliz no qual nos cabe viver.” SARAMAGO, José. “Vivimos en una plutocracia, un gobierno de los ricos”. Página/12,Buenos Aires, 06 maio 2003.

283 Seguimos para esta parte POLANYI, op. cit., p. 67-75.284 Aqui, além de Polanyi, seguimos a esquematização apresentada por Laville. Cf. LAVILLE, op.cit., p. 14-7.285 LAVILLE, 2000, p. 14.286 POLANYI, 2000, p. 68.

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3) Princípio da redistribuição. Este princípio su-põe a centralização numa autoridade de parte detoda a produção do grupo. Supõe o armazena-mento da produção antes de ser novamente re-partida. Do ponto de vista econômico, esta cen-tralização é parte essencial do sistema vigente dedivisão do trabalho. “Entretanto, essas funçõesde um verdadeiro sistema econômico são inteira-mente absorvidas pelas experiências intensamen-te vividas que oferecem uma superabundantemotivação não-econômica em cada ato executa-do no quando do sistema social como umtodo”287. A centralização para posterior redistri-buição é fundamental para tribos de caçadores,por exemplo, uma vez que a natureza desta ésempre irregular e imprevisível. O produto da ati-vidade de cada um é partilhado com as outraspessoas que vivem com ele. Inúmeros exemplos“mostram que a redistribuição também tende aenredar o sistema econômico propriamente ditoem relações sociais”288.

4) Princípio do mercado. O mercado é o “localde encontro para a finalidade da permuta o dacompra e venda”289. Mas o princípio mercado,assim como os outros princípios, depende de umpadrão. O padrão de mercado é capaz de criaruma instituição específica: o mercado. E isso temconseqüências nada desprezíveis, pois significauma radical mudança na maneira de conceber asrelações sociais. “Em vez de a economia estarembutida nas relações sociais, são as relações so-ciais que estão embutidas no sistema econômi-co”290.

O mercado tem a particularidade de dependerde um modelo institucional que é próprio: faz ointercâmbio repousar sobre um equilíbrio entre aoferta e a procura. Este intercâmbio pode ser fei-

to em forma de compra e venda, quando a ofertae a demanda se ajustam a um valor expressonuma equivalente geral, o “preço” e o equivalen-te geral em “moeda”291.

Os três primeiros princípios assentavam so-bre a “poli-valência”, ao passo que o mercado ne-cessita realizar a “equi-valência”292.

Até o século XIX, todos os sistemas econômi-cos conhecidos por nós foram organizados se-gundo “os princípios de reciprocidade ou redis-tribuição, ou domesticidade, ou alguma combi-nação dos três. Esses princípios eram institucio-nalizados com a ajuda de uma organização sociala qual, inter alia, fez uso dos padrões de simetria,centralidade e autarquia”293. Elas não engendra-vam instituições únicas. Isso não significava ne-nhuma ausência do mercado, mas os mercadoseram diferenciados e limitados a certos espaços econdições, portanto, isolados.

O surgimento do mercado, no entanto, só épossível mediante a descontextualização da eco-nomia, isto é, o mercado tende a se autonomizarem relação aos contextos sociais, culturais e reli-giosos nos quais se desenrola. Em outros contex-tos que não o capitalista, a troca tinha um papelcircunscrito e era enquadrada por certos tipos derelações entre grupos e pessoas. No capitalismo,pelo contrário, a troca passa a ter um papel pri-mordial na coordenação das ações humanas294.

Na economia de mercado, o interesse passa ater um lugar privilegiado, especialmente o inte-resse individual, perseguido por todos indistinta-mente. A liberdade consiste em que cada indiví-duo é livre para perseguir os seus interesses parti-culares e, dessa maneira, favorecer o conjunto docorpo coletivo. Esse é, na verdade, o princípioorientador de Smith em Riqueza das nações e tantos

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287 POLANYI, 2000, p. 68.288 Ib., p. 72.289 Ib., p. 76.290 Ib., p. 77.291 Cf. LAVILLE, 2000, p. 15.292 Cf. GODBOUT, Jacques. O espírito da dádiva. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. p. 197. Na terceira parte,

“O estranho circuito”, o autor faz um confronto entre a dádiva e o mercado, apontando para as diferenças entre ambos.293 POLANYI, 2000, p. 75.294 Cf. LAVILLE, op. cit., p. 17.

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outros pensadores depois dele. Assim, “o merca-do, baseado na consideração do interesse, é con-siderado como o primeiro princípio de comportamentoeconômico, destinado a assegurar a ordem na eco-nomia; a esfera econômica mercantil ganha im-portância crescente na organização das relaçõesentre indivíduos livres [...]”295.

A economia de mercado, por sua própria lógi-ca, procura relativizar, escantear, desvalorizar,minimizar a influência das tradicionais formas deeconomia. Ela não sabe conviver com as outraseconomias e as vê como formas “atrasadas”,“primitivas” de economia. Felizmente, contudo,formas residuais da economia tradicional persis-tem até hoje.

As manifestações de protesto em Seattle, nosEstados Unidos, em 1999, por ocasião do encon-tro da OMC, foram um contundente grito de dis-cordância com relação ao imperialismo totalitá-rio do mercado e sua cega racionalidade econô-mica. Foi o primeiro sinal mais visível e de am-plas repercussões de que algo na economia estavaindo mal.

O Fórum Social Mundial, realizado pela pri-meira vez em janeiro de 2001, em Porto Alegre,chama a atenção, primeiramente, para este des-contentamento generalizado para com o “pensa-mento único” imposto pela economia de merca-do. Coincide com sinais de claro fracasso do neo-liberalismo em todo o mundo. Em segundo lu-gar, o Fórum reúne uma constelação de organiza-ções sociais, econômicas, culturais de todo omundo, que têm em comum - talvez só - o fato deserem clara e abertamente contra a maneira decomo a economia está sendo gerida em todo oplaneta e de como os governos das nações sesubmeteram à lógica do mercado.

Outras tantas manifestações e encontros seseguiram e continuam a ser realizados. Emergeum forte e vigoroso grito de que “outro mundo épossível”, na medida em que outras economias

são novamente admitidas e reconhecidas. Há umreconhecimento generalizado de que o mundo setornou tão desigual e injusto devido à supremaciado mercado auto-regulado, sem freios e sem limi-tes. A crise do capitalismo atual revela um limite:o mercado é incapaz de resolver os problemassociais. E a classe política tornou-se co-responsáveldessa situação ao raciocinar em função de esque-mas redutores, segundo os quais o Estado e omercado são as únicas forças ativas das socieda-des modernas296. Ao agir assim, reduz-se toda adiscussão a pensar sobre a necessidade de maismercado, menos Estado ou o contrário.

Estudiosos têm se dado ao trabalho de trazerà tona a redução do conceito de “riqueza”, reali-zado pela economia política clássica. A maneiracomo é contabilizado o PIB (Produto InternoBruto) é a expressão de uma concepção de eco-nomia que valoriza só aquela produção que é rea-lizada com vistas ao intercâmbio mercantil. Des-sa forma, “não são contabilizadas na riqueza so-cial nem o que escapa à lógica do intercâmbio (aeducação pessoal, a saúde...) nem o que escapa àsocialização [...]”297. Tampouco se inclui nessamaneira de medir a riqueza, por exemplo, o pre-juízo causado à natureza.

Roger Sue sustenta que a economia domésti-ca, a economia de autoprodução individual e co-letiva e a economia associativa, representam umaprodução de riqueza que ultrapassa o PIB tradi-cional, ou seja, ela é superior à riqueza produzidapela economia formal e o trabalho-emprego. Des-se modo, sem querer subestimar a importância damacroeconomia ou da economia de mercado,convém chamar a atenção para o fato de que, emmomentos de crise econômica, certamente, essas“outras economias” têm contribuído, em muito,para que a pobreza e a miséria social não fossemmaiores. Assim, falar em “crise da economia” ésempre referir-se a um determinado tipo de eco-nomia e não à economia na sua totalidade298,

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295 LAVILLE, 2000, p. 20. Os grifos são do autor.296 Cf. CAILLÉ, Alain. In: AZNAR, 1997, p. 134.297 MÉDA, 1995, p. 210.298 Cf. SUE, Roger. La richesse des hommes: vers l’économie quaternaire. Paris: Odile Jacob, 1997, p. 79-80.

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sempre muito mais vasta, rica e não passível deser contabilizada.

Pensar uma outra sociedade significa reco-nhecer que a riqueza é mais ampla do que aquelaincluída no PIB, mas também significa admitiruma pluralidade de economias convivendo jun-tas. Nem só mercado, nem só Estado, nem sóeconomia solidária, nem só Terceiro Setor, nemsó seja lá o que for, ou seja, como sugere Laville,

é preciso definir a economia de maneira mais extensiva.À economia mercantil se acrescenta a economia nãomercantil, regida pela redistribuição, e cujas normas sãopromulgadas pelo viés da participação representativa.Mas mais possível esquecer a economia não monetária,na qual a produção e a distribuição de riquezas estão aserviço do laço social [...].299

Adotar a perspectiva de uma economia pluralsignifica não eliminar a economia de mercado esubstituí-la pela economia doméstica ou do dom,nem voltar a um passado nostálgico, mas sim-plesmente tomar consciência da complexidadeda economia300. Admitir pólos diferenciados naeconomia é “domesticar” a economia de merca-do e valorizar a riqueza de formas de se fazer eco-nomia, baseadas em lógicas diferenciadas.

Nesse, a pergunta central passa a ser a se-guinte: podemos inverter a evolução descritapor Polanyi e fazer com que a sociedade não sejamais gerida como auxiliar do mercado?301 Naperspectiva da corrente antieconomicista, naqual Gorz também se inscreve, devemos admitirque sim. A economia econômica clássica subes-timou todas as atividades cuja racionalidade nãofosse a econômica dominante. Portanto, umadas funções dessas outras economias é subtrairatividades, espaços, tempos, da racionalidadeeconômica. É admitir que fora da economia demercado também pode haver e, efetivamente,há economia.

Se “o mercado é fundamentalmente o lugaronde se enfrentam indivíduos isolados, buscandocada um sua própria vantagem”, então, “merca-do e sociedade são fundamentalmente antinômi-cos”302. Isso leva Gorz a concluir que a chamada“‘sociedade de mercado’ é uma contradição nostermos: supõe-se que seja o resultado da luta decada um contra todos”303. Há aqui uma razão amais para restringir o domínio do mercado.Como mercado e sociedade têm interesses anta-gônicos, a construção desta (sociedade) implica aadmissão e efetivação de práticas e políticas quetenham por objetivo a redução do poder de forçado mercado.

A concepção de uma economia que seja pluralé pré-requisito básico para se admitir e valorizar aexistência de uma pluralidade de atividades quenão estejam submetidas à racionalidade econô-mica, pois, como afirma Beck, “a civilização oci-dental recalcou e esqueceu as outras formas deatividade, erigiu a sociedade unicamente sobre otrabalho”304, entendido na sua forma emprego.

Gorz e Méda falam da necessidade de se “de-sencantar” o trabalho-emprego para que se pos-sa pensar numa sociedade diferente. Nos últi-mos dois séculos, na medida em que ocorreu aglorificação do trabalho, este passou a “encan-tar” os indivíduos e as sociedades, no sentido deque “ele exerce sobre nós um ‘charme’ do qualsomos hoje prisioneiros”305, charme do qual épreciso que nos libertemos a fim de desencantaro trabalho. Para Gorz, desencantar o trabalhosignifica basicamente dar-lhe outro lugar emnossas vidas, na nossa imaginação e no nossopensamento. Significa também admitir em seulugar a existência de “atividades múltiplas, cujaremuneração e rentabilidade não serão mais acondição necessária nem o seu fim. As relaçõessociais, os laços de cooperação, o sentido de

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299 LAVILLE, J. L. In: AZNAR, 1997, p. 135-36.300 Cf. LAVILLE, J. L. In: AZNAR, 1997, p. 136.301 Cf. GOLLAIN, Françoise. Une critique du travail. Paris: La Découverte, 2000. p. 194.302 GORZ, André. Métamorphoses du travail: quête du sens. Critique de la raison économique. Paris: Galilée, 1988. p. 228.303 Ib.304 BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Unesp, 2003. p. 160.305 MÉDA, 1995, p. 293.

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cada vida serão produzidos principalmente poressas atividades que não valorizam o capital”306.Como se percebe pela prática, há uma gama mui-to rica de atividades, que vão desde o chamadoTerceiro Setor, passando economia solidária, pe-los LETs ou círculos de cooperação, até os clu-bes de trocas, agrupadas em organizações, seto-res, que é difícil de classificar num mesmo e gran-de setor.

3.2 Redução do tempo de trabalho enova cultura do tempo livre

A luta pela redução do tempo de trabalhoestá inscrita na luta histórica da classe operáriapor melhores condições de vida. Reduzir o tem-po de trabalho sempre soou como arrancar dodomínio do capital a vida que pertence a cadatrabalhador. A classe operária, através da orga-nização sindical, tem conseguido fazer com quea jornada de trabalho fosse efetivamente reduzi-da, passando de 15 ou 16 horas diárias para 8horas diárias em boa parte do mundo. A voraci-dade do capital foi sendo, assim, limitada pelaredução do tempo diário, semanal ou anual detrabalho. A marca de 44 horas semanais está vi-gente em nosso país desde a Constituição de1988, ainda que se deva fazer uma distinção en-tre: (1) a jornada de trabalho legal, a que é fixadapela Constituição; (2) a contratada, que decorreda negociação coletiva entre trabalhadores eempresários; e (3) a efetivamente praticada, queé a realidade de cada empresa307.

De modo geral, se pode dizer que a reduçãodo tempo de trabalho teve sempre como prota-gonista principal a classe operária. Hoje, pelocontrário, dadas as transformações pelas quais ocapitalismo está passando, os trabalhadores per-deram o mando da proposição da redução do

tempo de trabalho. Ironicamente, o capital, nasúltimas três décadas, passou a ditar o jogo e a es-tabelecer as regras para a efetivação dessa redu-ção. Não há necessidade de dizer que o capital ofaz na perspectiva de seus interesses, com a fina-lidade de manter e assegurar para si a centralida-de do tempo dos trabalhadores. Enfim, o capitaltransformou esta bandeira da classe operárianum “modo de gestão”, isto é, num “métodoque dá às empresas o domínio total do tempo, opoder total sobre a vida dos prestatários de tra-balho”308.

O capitalismo chegou ao ponto de, por inci-dência da revolução tecnológica informacional,produzir igual, ou mesmo maior, volume de ri-quezas com sensível diminuição do volume detrabalho. O trabalho transformou-se numa“mercadoria rara”309, aumentando ainda mais ofosso entre a oferta e a procura de empregos. Ocapital tomou para si a gestão desses empregosainda existentes.

Grande parte dos estudiosos da redução dotempo de trabalho admite que está efetivamenteem curso a prática de tal redução, ou seja, a redu-ção do tempo de trabalho passou a ser impostapelos mecanismos do mercado. Ela tem diversasexpressões. O desemprego certamente é a maisdramática de todas. Evidentemente, somente umolhar mais atento é capaz de perceber que, por de-trás do desemprego, se esconde uma redução dajornada de trabalho muito radical: a que divide asociedade entre o desemprego e o sobretrabalho,como já vimos no primeiro capítulo. Frear aomáximo a entrada dos jovens no mercado de tra-balho, assim como excluir os trabalhadores quese encontram na faixa dos 40 ou 45 anos é outramaneira de repartir o trabalho existente. A flexi-bilização do trabalho, assim como a sua precari-zação, inserem-se dentro da mesma dinâmica. Asempresas criam empregos sempre mais precários,

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306 GORZ, André. Misères du présent. Richesse du possible. Paris: Galilée, 1997. p. 124. Essa idéia da multiatividade está presenteno pensamento de Gorz já, ao menos, em 1983. Cf. _____. Les chemins du Paradis: l’agonie du capital. Paris: Galilée,1983. p. 90.

307 Cf. PASTORE, José. Não há milagres. Folha de S.Paulo, 23 nov. 2002.308 GORZ, 1997, p. 152.309 Ib., p. 97.

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com remuneração mais baixa e com menos ga-rantias sociais310.

O trabalho por hora acaba sendo uma das for-mas mais extremadas e perversas pelas quais ocapital procura dominar o tempo e a vida dos tra-balhadores. Não permite que o “desempregado”sequer tenha a posse sobre o seu tempo. O “em-pregado” - que não é empregado - deve estar per-manentemente à disposição da empresa, espe-rando que ela tenha necessidade dele por algunsdias ou algumas horas, pagando-lhe uma tarifapor hora apropriada311.

O que se presencia, portanto, é uma redistri-buição do trabalho existente que implicou a des-possessão dos trabalhadores de todo poder sobreseu tempo:

alguns, de cuja permanência a empresa tem necessida-de, trabalham com horários flexíveis, segundo a con-juntura e as estações; os outros – temporários, precários,de tempo parcial, teletrabalhadores, encarregados dediligências – trabalham intermitentemente entre umnúmero crescente de ativos [...], mas de maneira tal queninguém mais está seguro de nada [...].312

“Quando uma sociedade produz para trabalharem lugar de trabalhar para produzir, é o trabalhoem geral que se encontra atingido pelo não-senti-do”313. Esta nos parece ser a perspectiva da lutapela redução do tempo de trabalho. Do ponto devista da sociedade e dos trabalhadores, faz-se ne-cessário repensar a redistribuição do trabalho exis-tente e a redução da jornada de trabalho. É precisoquerer o êxodo do trabalho-emprego para que pos-samos nos reapropriar do trabalho de outras ma-neiras, como atividades cheias de sentido.

O tema da redução do tempo de trabalho en-tra no horizonte do pensamento teórico deAndré Gorz na sua segunda fase. Este tema co-meça a ser elaborado em “Adeus ao proletariado”,publicado em 1980, e que, como já vimos, marcaa passagem de Gorz da primeira para a segundafase. Para Gorz está claro, desde o primeiro mo-mento em que concebe a proposta da redução dotempo de trabalho, que ela não é uma finalidadeem si mesma. O horizonte dentro do qual eladeve ser pensada é a extensão máxima da esferada autonomia. É nessa perspectiva que ela deveser colocada e exigida314.

Gorz considera, grosso modo, a existência deduas condições empíricas315 na formulação desua proposta da redução da jornada de trabalho: aprimeira consiste na desafeição ao trabalho, quesolapa as bases ideológicas e éticas do industria-lismo; a segunda é a diminuição do tempo de tra-balho socialmente necessário, provocada pela re-volução tecnológica316. Consiste, portanto, noencontro de uma transformação cultural e outratecnológica. Ambas mudaram sensivelmente omundo do trabalho.

O sentido da redução do tempo de trabalhoconsiste numa dupla tarefa: 1) liberar tempo paraas atividades autônomas sem fins lucrativos (oefeito inverso é pretendido para todas as ativida-des assalariadas e mercantis)317; 2) é a única alter-nativa capaz de evitar uma crescente dualizaçãoda sociedade entre os trabalhadores do núcleocentral, de tempo integral, e os trabalhadores doscírculos periféricos318, precários, de baixa remu-neração, de tempo parcial...

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310 Cf. AZNAR, 1997, p. 42-46; GOLLAIN, 2000, p. 165-78.

311 Cf. GORZ, 1997, p. 152. Um trabalhador, morador da Vila Farrapos, Porto Alegre, contou, certa vez, que trabalhavasob este regime para uma empresa do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Constava no contrato que devia estar àdisposição da empresa 24 horas por dia para uma eventual entrega, que devia ser feita imediatamente.

312 GORZ, loc. cit.313 ORZ, André. Adeus ao Proletariado: para além do socialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, p.

92.

314 Cf. Ib., p. 107.315 Cf. SILVA, Josué Pereira da. André Gorz: trabalho e política. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002, p. 185.

316 Cf. GORZ, 1983, p. 76.317 Cf. GORZ, 1987, p. 107-8.318 Cf. id., 1988, p. 224; SILVA, 2002, p. 186.

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Num belo artigo publicado no Brasil em 1995,Gorz relaciona magnificamente a política de re-dução do tempo de trabalho a um projeto políti-co de transformação da sociedade: “As medidasque compõem uma política de redistribuição dotrabalho e do tempo liberado deverão se inscre-ver na perspectiva de uma superação da socieda-de do trabalho assalariado [...]”319. Uma políticade redução do tempo de trabalho não pode per-der de vista o horizonte mais amplo, a construçãode uma nova sociedade – para a qual uma novacompreensão de trabalho e de tempo liberadosão ingredientes fundamentais. Caso contrário,será apenas uma medida pontual ou isolada320,um remendo no sistema, com grandes chancesde fracassar.

É neste sentido que o grande desafio está em

saber como essas economias de tempo de trabalho po-dem ser transformadas em novas liberdades individuaise coletivas; como, em outras palavras, o tempo liberadodo trabalho à escala da sociedade pode ser transforma-do em um recurso e como a sociedade pode se apropriar eredistribuir este recurso de maneira que todos e todas te-nham acesso a ele e possam se tornar mestres de seutempo, mestres de suas vidas, produtores livres de relações decooperação e de troca.321

Na verdade, a proposta da redução do tempode trabalho procura enfrentar dois grandes desa-fios: primeiro, redistribuir entre todos o trabalhosocialmente necessário, de modo que todos pos-sam trabalhar menos, melhor e de outra manei-ra322. Trata-se de proceder a uma outra reparti-ção do trabalho que não a implantada hoje pelocapital. Segundo, começar a visualizar o tempo li-berado ou o tempo livre, não mais como um tem-po vazio, sem sentido, ou simplesmente na pers-

pectiva de recuperar as forças e as energias para otrabalho assalariado, mas como um tempo ricoem novas possibilidades desvinculadas da lógicada racionalidade econômica e da mercantilização.O tempo livre não deve ser visto como um tem-po vazio, um tempo de pura passividade323. É otempo de produção de sociedade, de relações so-ciais e tempo para o livre desenvolvimento pes-soal. “O tempo liberado do trabalho não é, sim-plesmente, um tempo livre. Ele só se torna tem-po livre se nós nos apropriarmos desse tempo li-vre, tornado-nos senhores, individual e coletiva-mente, escolhendo os objetivos e usos que delefaremos”324.

Gorz resgata uma passagem dos “Grundris-se” de Marx para assinalar que a verdadeira eco-nomia que uma sociedade pode fazer é a eco-nomia de tempo e que nisso consiste a sua ver-dadeira riqueza. “‘O primeiro sintoma de umaautêntica prosperidade e riqueza da nação’ estáno fato de que os homens podem trabalhar me-nos”325. “O tempo é considerado como a fontemais preciosa, e a economia da esfera da neces-sidade terá por princípio economizar ao máxi-mo o tempo de trabalho a fim de maximizar otempo disponível”326.

Para Gorz, “o pleno desenvolvimento das forças pro-dutivas dispensa do pleno emprego das forças produtivas(em particular da força de trabalho) e permite fa-zer da produção uma atividade acessória”327. Se-guindo o caminho aberto por Marx, Gorz enfati-za que “‘a verdadeira economia – aquela que eco-nomiza – é economia de tempo de trabalho’. Averdadeira economia leva à eliminação do traba-lho como forma dominante de atividade”328. Épor razão que a redução do tempo de trabalho

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319 GORZ, André. Saindo da sociedade do trabalho assalariado. São Paulo em Perspectiva, n. 3, p. 137, col.2, jul.-set. 1995.320 Cf. ib., p. 138, col. 1; _____. p. 234, 1988.321 GORZ, 1988, p. 137, col. 2. Os grifos são do autor.322 Cf. ib., p. 235. Cf. também AZNAR, G. Trabalhar menos para trabalharem todos. São Paulo: Scritta, 1995.323 Cf. GORZ, op. cit., p. 244.324 GORZ, André. Da aptidão ao tempo livre. CEPAT Informa, Curitiba, n. 51, p. 32, jun. 1999a.325 GORZ, 1983, p. 120.326 Ib., p. 121.327 Id., 1997, p. 151. Os grifos são do autor.328 GORZ, loc. cit. A primeira frase é citação de Marx.

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pode abrir um espaço sempre maior para a reali-zação de atividades que não estejam mais ligadasà lógica da racionalidade econômica. O tempo li-vre “permite aos indivíduos desenvolver capaci-dades (de invenção, de criação, de concepção, deintelecção) que lhe conferem uma produtividadequase ilimitada [...]”329.

O tempo livre não pretende, dessa maneira,ser um tempo submetido à lógica do consumo,como acreditam alguns autores330. Logicamente,podemos desdenhar do poder que o consumopassou a ter em nossas sociedades331. Convémdar-nos conta de que o exacerbamento do consu-mo está estreitamente ligado à produção capita-lista que separa o produtor do consumidor. Nãohá produtor sem consumidor, assim como nãohá produção sem consumo. Por esse motivo,para que a produção possa crescer sempre, é pre-ciso instigar e dinamizar o crescimento do consu-mo, sem que levemos em conta os efeitos ma-crossociais e ambientais de tal lógica. Como re-corda Gorz, o antigo “isso me basta” cede lugarao “mais vale mais”332 ou ao nunca é suficiente.Uma revolução em nível das necessidades entra-nha uma nova concepção na qual “a eficácia má-xima ilimitada na exploração do capital exigirá, as-sim, o máximo ilimitado de ineficiência na cober-tura das necessidades, e do esbanjamento noconsumo”333.

É verdade que, na perspectiva de Mothé, exis-te uma mercantilização das relações sociais etambém uma colonização do tempo livre porparte da indústria do lazer. No entanto, na medi-da em que a lógica da racionalidade econômica élimitada através de uma concepção reduzida detrabalho e de uma redução no tempo de trabalho,

há espaço para que o consumo seja freado e no-vamente posto a serviço de outra lógica. A redu-ção do tempo de trabalho pode, na medida emque abre espaço para o desenvolvimento de ativi-dades autônomas, sem fins mercantis, contribuirpara reverter a “cultura do desperdício” na socie-dade ocidental e orientá-la para o “bem-estar”,em detrimento do “bem-ter”334. Dessa maneiracontribuirá para podermos gozar com mais ple-nitude da “boa vida”.

O capitalismo conseguiu a façanha de trans-formar o tempo em mercadoria. Gorz escreveque fomos levados a conceber o tempo livrecomo o inverso do tempo de trabalho, mas numalinha de continuidade em se tratando de sua fina-lidade. Concebemos o tempo livre

como um tempo que em vez de vender nós devemoscomprar dos mercados que nos fornecem o emprego eos equipamentos que permitem este emprego: parquede diversão, cruzeiros, turismo, hotéis, espetáculos,etc... Captado e monetarizado, o tempo continua aindaum bem mercantil do qual, já que se paga, é necessáriolucrar o máximo a fim de ‘tê-lo por seu dinheiro’.335

A reapropriação do tempo livre passa pelasubtração do tempo livre da lei do dinheiro e dalógica da mercadoria. O que exige, certamente,um amplo trabalho de transformação cultural eideológica. Se fomos até hoje preparados (na es-cola, nas igrejas, pelas políticas públicas...), parao trabalho, tratatemos de começar a nos prepa-rar para o otium ou a scholé, para as atividades semfins mercantis ou lucrativos, para a inutilidadeeconômica.

Quando o capitalismo já não necessita mais detodo o trabalho de todas as pessoas, o trabalho des-contínuo, dentro de uma política de redução do

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329 Ib., p. 150.330 Cf. especialmente MOTHÉ, 1997. Mothé é um dos maiores críticos do tempo livre. Para ele, o tempo livre continua a

ser o tempo do consumismo, da precarização do trabalho. É visto por ele como fator de produção e reprodução das de-sigualdades. Cf. também BEAUD, M. Le basculement du monde. Paris: La Découverte, 1997. p. 220-4.

331 Cf. RIFKIN, 1995, p. 19-26.332 Cf. GORZ, 1988, p. 138-59.333 Ib., p. 145.334 Cf. a esse respeito o interessante artigo de TOMÁS, Robert. En la cultura del despilfarro. Clarín, Buenos Aires, 26 ago.

2003.335 GORZ. 1999a, p. 33.

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tempo de trabalho, pode converter-se num espaçode realização de novas liberdades. Ele pode trans-formar a descontinuidade em “direito a trabalharde maneira intermitente e a levar uma vida multia-tiva, na qual trabalho profissional e atividades nãoremuneradas se revezem e se completem”336. Otrabalho descontínuo não é outra coisa do que“uma redução do tempo de trabalho semestral,anual ou plurianual, com repartição do empregoentre um maior número de pessoas”337. No en-tanto, a sociedade deve reconhecer “a todos o di-reito de trabalhar de maneira descontínua e simul-taneamente o direito a uma renda contínua”338.

Está claro, portanto, que a redução do tempode trabalho não visa unicamente à criação de no-vos empregos, por mais importante que isso sejaem nossas sociedades para a distribuição das ri-quezas socialmente produzidas, mas visa tam-bém à abertura de novos horizontes de realizaçãopessoal, interpessoal e comunitária para além dotrabalho-emprego. Gorz chama a atenção para ofato de que, para boa parte dos trabalhadores, otempo fora do trabalho acaba sendo investido decrescente importância na vida desses trabalhado-res. Não admitem mais viver exclusivamentepara o trabalho339. Por todos os lados, salta o de-sejo de trabalhar menos e viver melhor. A quali-dade de vida aparece como um valor cada vezmais importante a ser cultivado. “O lazer, o tem-po com a família e a diversão fazem toda a dife-rença entre uma vida pautada e invadida pelo tra-balho e uma boa vida”340.

Na medida em que as pessoas redescobrem aqualidade de vida que há fora do trabalho e namedida em que lhes está assegurada a sobrevi-vência, elas relutam em perder este espaço parao trabalho heterônomo. Tornam-se mais exi-

gentes quanto à natureza, o conteúdo e a organi-zação do trabalho. “A libertação do trabalho teráconduzido à liberação no trabalho”.341 E, evi-dentemente, a exigência de autonomia experi-mentada fora do trabalho não tem comparaçãocom aquela sempre limitada que se dá dentro dotrabalho:

a autonomia no trabalho é pouca coisa na ausência deuma autonomia cultural, moral e política que a prolon-ga e que não nasce da cooperação produtiva em si, masda atividade militante e da cultura da insubordinação,da rebelião, da fraternidade, do livre debate, do questio-namento radical (que vai à raiz das coisas) e da dissidên-cia que ela produz.342

Pelo que vemos, a redução do tempo de traba-lho não aumenta automaticamente o tempo livredas pessoas. Trata-se de ir criando uma nova cul-tura do tempo livre, para que a redução da jorna-da de trabalho não redunde num segundo oumesmo terceiro empregos. No fundo, trata-se dedar uma nova importância aos outros tempos davida e construí-los fora da lógica produtivista. Asociedade está convidada a olhar muito mais parao seu interior, suas necessidades, suas carências,seus desejos, e menos para o interior da fábrica,do escritório e suas necessidades.

Concluindo, vale dizer que a diminuição pla-nejada e cada vez mais importante do tempo detrabalho deve ser organizada em sinergia com ainstauração de uma renda de cidadania universal,incondicional e suficiente.

3.3 Mínimo vital universal e suficiente

Não basta distribuir eqüitativamente o traba-lho entre todos. Na atual fase do capitalismo, é

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336 Id., 1997, p. 154.337 GORZ, 1997, p. 155.338 Ib., p. 156.339 Cf. Ib., p. 101-7; _____. 1988, p. 128-31.340 CHAIM, Célia. Trabalho para todos. IstoÉ, São Paulo, 12 dez. 2002.341 GORZ, 1988, p. 119. Os grifos são do autor.342 GORZ, 1997, p. 72. Os grifos são do autor.

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preciso distribuir também entre todos as riquezassocialmente produzidas com cada vez menos tra-balho343.

Gorz torna-se partidário da renda básica nasua segunda fase, mais precisamente em 1983,com “Les chemins du paradis”. O seu pensamentosobre a renda básica sofre uma importante infle-xão que não podemos ignorar. Num primeiromomento, Gorz relaciona o direito à renda ao di-reito ao trabalho; na fase seguinte, ele admite edefende vigorosamente a alocação universal, in-condicional e suficiente. Vejamos cada um dessesmomentos.

1. Vínculo entre direito à renda e direito ao trabalho.No primeiro momento, Gorz vincula o direito àrenda ao direito ao trabalho344. Gorz raciocinaem termos de direitos e deveres. Escreve ele:

Enquanto pertenço à sociedade, tenho o direito de pe-dir-lhe minha parte da riqueza socialmente produzida:enquanto pertenço à sociedade, esta tem o direito depedir minha parte de trabalho social correspondente. Épelo dever que ela me faz, que ela me reconhece comofazendo parte dela. Se ela não me pede nada, ela me re-jeita. Direito ao trabalho, dever de trabalhar e direito decidadania estão inextricavelmente vinculados.345

Gorz raciocina, na verdade, em termos da so-ciedade que está aí. Mesmo defendendo uma ren-da de cidadania, em termos de uma nova concep-ção de trabalho, ele ainda não se distingue muito,neste aspecto, da concepção de renda básica quea direita tem e que ele critica. E isso porque a li-berdade que a renda deveria garantir está para eleainda estreitamente relacionada ao emprego. “A

garantia de uma renda independente de um em-prego só será portadora de liberdade se vieracompanhada do direito de cada um ao trabalho, ouseja, à produção de sociedade, à produção de ri-quezas socialmente desejáveis e à livre coopera-ção com os outros [...]”346.

Gorz traz para essa reflexão a análise dastransformações ocorridas no capitalismo, especi-almente a capacidade deste em produzir maiscom menos trabalho. Gorz admite que “não é dotrabalho em si, mas da duração do trabalho que arenda deve tornar-se independente”347.

2. Defesa da renda de cidadania. A partir de “Misè-res du présent. Richesse du possible”, escrito em 1997,Gorz dá uma guinada importante no seu pensa-mento relativo à concepção de renda cidadã quedefendia até então. A nosso ver, muda a perspec-tiva da sua reflexão. Não raciocina mais em ter-mos da sociedade capitalista centrada no empre-go, mas articula a renda em vista da sociedade demultiatividades. “A segurança de renda é a condi-ção primeira de uma sociedade de multiativida-des”348, afirma.

Ele próprio reconhece a inflexão no seu pen-samento: “Durante muito tempo eu recusei aidéia de uma renda social que permite ‘viver semtrabalhar’”349. As razões dessa recusa estão rela-cionadas à sua idéia de que aos direitos corres-pondem deveres e de que o trabalho é importantepara a socialização e para o reconhecimento so-cial. Mas, à medida que diminui o peso da neces-sidade de todo o trabalho, de todas as pessoas, ajustiça social exige que o trabalho diminua na

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343 Cf. SANSON, César; LANGER, André: CORBELLINI, Dárnis. Brasil: pensar o trabalho na perspectiva do bem comume da solidariedade. In: NEUTZLING, Inácio (Org.). Bem comum e solidariedade: por uma ética na economia e na política doBrasil. São Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 127.

344 Cf. GORZ, 1988, p. 253.345 Ib., p. 256. Alain Caillé, por exemplo, critica a visão contratualista da sociedade capitalista sobre a qual repousa esta per-

cepção de sociedade. “A idéia segundo a qual ‘não se tem nada sem nada’ faz parte das crenças largamente partilhadaspela vida social. Não se pode receber nada sem fornecer uma contrapartida igual ou proporcionalmente à que se forne-ceu, acredita-se. Não há direito(s) sem dever(es), e não há renda sem trabalho. Parece que as relações entre sujeitos de-vem obedecer à regra do ‘troca-troca’. E, portanto, que os mais pobres devem ‘merecer’ as prestações sociais que lhesão concedidas”. CAILLÉ, Alain. In: AZNAR, 1997, p. 91.

346 GORZ, 1983, p. 88. Os grifos são do autor.347 Id., 1988, p. 256.348 Id., 1997, p. 134.349 GORZ, 1997, p. 139.

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vida de cada um e que seja eqüitativamente repar-tido entre todos350. Para ele, esse modo de racio-cinar era coerente com alguns aspectos, mas in-coerente com outro: “era coerente com a pers-pectiva da extinção do assalariamento e da ‘lei dovalor’: a renda social garantida não era mais umsalário. Ela era coerente com a apropriação e ocontrole do tempo, mas ela não era coerente comas perspectivas e as mudanças introduzidas pelopós-fordismo”351. Em seguida, passa a descreveras quatro razões que o levaram a abandonar a po-sição anterior. Apresentamos, a seguir, ainda quesucintamente, estas razões.

1) A primeira razão diz respeito ao rompi-mento do vínculo entre tempo de trabalho e me-dida de trabalho. “Quando a inteligência e a ima-ginação (o general intellect) se tornam a principalforça produtiva, o tempo de trabalho deixa de sera medida do trabalho; mais, ele deixa de ser men-surável. O valor de uso produzido pode não ternenhuma relação com o tempo consumido para asua produção”352. Portanto, torna-se sempremais difícil saber qual é o volume de trabalho comque cada indivíduo deve contribuir para o conjun-to da sociedade num determinado período. Ficaextremamente difícil medir a jornada de trabalhode certas categorias de trabalhadores, especial-mente os que atuam no trabalho imaterial. Dessamaneira, se ressalta a importância da alocação uni-versal e incondicional de uma renda capaz de esti-mular as atividades não remuneradas.

2) Gorz reconhece as objeções que se levan-tam contra uma tal proposta (renda universal eincondicional). No caso de a alocação de umarenda precisar ser condicionada a uma contra-prestação que a justifique, então, que ela seja umtrabalho de interesse geral na esfera pública e queseja remunerada como fim, sem que isso altere o

seu sentido. Mas, se este sentido não puder serseguido e se a alocação servir para alavancar o de-senvolvimento de uma ampla gama de atividadesnão remuneradas, então “é preciso que a aloca-ção universal seja garantida incondicionalmente atodos, porque, só sua incondicionalidade poderá preser-var a incondicionalidade das atividades que só têm sen-tido se forem cumpridas por elas mesmas”353.

3) A alocação universal é a que melhor seadapta à evolução do trabalho imaterial. Serve,também, para desvincular o direito à formaçãoaos interesses das empresas. A alocação universalserve para “fazer do direito ao desenvolvimentodas faculdades de cada um o direito incondicio-nal a uma autonomia que transcende sua funçãoprodutiva [...]”354.

4) Mas é também a que corresponde melhor àeconomia para além da “lei do valor”. A presenteevolução no campo da economia “torna caduca a‘lei do valor’. Exige, de fato, outra economia, naqual os preços já não reflitam o custo do trabalhoimediato, cada vez mais marginal, contido nosprodutos e nos meios de trabalho, nem o sistemade preços, o valor de troca dos produtos”355.Num mundo em que fica cada vez mais difícildistinguir e avaliar a contribuição de cada um noprocesso de criação das riquezas, “a alocação uni-versal de uma renda suficiente equivale a uma co-locação em comum das riquezas socialmente produ-zidas”356. Cada vez mais o PIB é resultado nãomais de contribuições individuais identificáveis,mas do conjunto da sociedade, portanto, umaobra coletiva, e da atual geração e das geraçõespassadas. O princípio do “a cada um segundo oseu trabalho”, caducou357.

Podemos dizer, então, que a alocação de umarenda universal e suficiente atende a um duploobjetivo: por um lado, contribui para a formula-

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350 Cf. ib.351 Ib., p. 140.352 GORZ, loc. cit.353 GORZ, 1997, p. 143-4. Os grifos são do autor.354 Ib., p. 144-5.355 Ib., p. 148.356 GORZ, 1997, p. 148.357 GORZ, loc. cit.

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ção de uma nova equação de distribuição das ri-quezas socialmente produzidas, e, por outro,aponta para uma sociedade diferente, onde a ne-cessidade do trabalho se faz sentir de maneira di-ferente358.

Gorz, desde o primeiro momento em queabordou a temática da renda básica, sempre acre-ditou não ser suficiente defender incondicional-mente todas as propostas de renda. Chama aatenção para o lugar de onde vêm e aponta para anecessidade de se verificar as reais intenções des-sas propostas. Divide as propostas de renda bási-ca em duas grandes correntes: as partidárias dadireita e as partidárias da esquerda. A partir de1997, passa a chamá-las de partidárias da rendainsuficiente e partidárias da renda suficiente. Opano de fundo continua sendo o mesmo. Cadauma delas é cheia de conseqüências econômicas esociais. Como já vimos a corrente da renda sufici-ente, dentro da qual Gorz se situa, vamos agoradeter-nos um pouco na outra corrente.

De modo geral, podemos dizer que as parti-dárias da renda insuficiente compartilham daidéia de que os pobres são os responsáveis pelasua situação de desempregados, de pobreza, in-digência e exclusão. Acreditam ser o desempre-go voluntário. A saída seria liberalizar totalmen-te o mercado de trabalho a fim de que todas aspessoas em condições possam encontrar o seuemprego, não importando se mal pago ou não eem que condições359.

Por não perceberem as transformações estru-turais ocorridas no capitalismo, sua política derenda insuficiente estigmatiza os mais pobres dasociedade, na medida em que força os desempre-gados a aceitarem empregos com salários rebai-

xados e mesmo aqueles que ninguém aceitaria emoutra situação. Serve de argumento para “incitar”os desempregados a aceitarem qualquer tipo detrabalho. Ao mesmo tempo, acaba sendo uma es-pécie de subvenção dada aos empregadores360.

Os assistidos pela renda insuficiente, por ou-tro lado, têm o sentimento de que fazem outrostrabalharem no seu lugar. O Estado é visto sob asuspeita de estar fomentando o parasitismo e apreguiça, sem contar os controles humilhantes evexatórios a que os assistidos são submetidos361.

Por não reatar a solidariedade entre os incluí-dos e os excluídos, a renda insuficiente acaba poracelerar a desregulamentação, a precarização e aflexibilização do trabalho362. Termina por justifi-car e sacramentar econômica e socialmente a de-sigualdade social.

A instauração de uma renda de cidadania in-condicional não pretende justificar, manter363,ou mesmo, aprofundar a brecha entre os doisgrupos. Objetiva, pelo contrário, “reafirmar opertencimento dos excluídos e dos ‘incluídos’ aum mundo comum”364. Ou, como afirma Dea-glio, trata-se de retomar a antiga utopia de “‘fazercom que todos tenham o suficiente para comer’ esair do problema cotidiano para uma digna pers-pectiva de vida, num projeto econômica e politi-camente sustentável”365.

Nas reflexões que realiza em “L’Immateriel” so-bre as mudanças que o capitalismo opera, Gorzconstata que a renda de existência, neste contexto,é vista como “necessária remuneração do tempofora do trabalho cuja contribuição para a produti-vidade se torna decisiva”366. O capital forçou a si-tuação a tal ponto que hoje a vida toda se tornaprodutiva como produção de capital fixo humano.

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358 Cf. ib., p. 149.359 Cf. LAVILLE, Jean-Louis. In: AZNAR, 1997, p. 79.360 Cf. GORZ, 1997, p. 135-6. Cf. também _____. Direito ao trabalho versus renda mínima. Serviço Social e Sociedade, São

Paulo, n. 52, p. 76-80, dez. 1996.361 Cf. id., 1988, p. 257.362 Cf. id., 1997, p. 137.363 Cf. SUE, 1997, p. 70-3.364 CAILLÉ, Alain. In: AZNAR, 1997, p. 92.365 DEAGLIO, Mario. Distribuição da renda. Uma utopia? CEPAT Informa, Curitiba, n. 84, p. 57, maio 2002.366 GORZ, André. L’Immateriel: connaissence, valeur et capital. Paris: Galilée, 2003c. p. 30.

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Esta concepção de renda insuficiente legitima odomínio do capital sobre todas as dimensões e es-paços da vida. “Se a renda de existência ‘remunera’o trabalho invisível, esta remuneração autoriza aexigir que o trabalho invisível torne efetivamente otrabalho visível o mais produtivo possível”367.

Pelo contrário, para Gorz, a renda de existên-cia deve permitir não uma nova reapropriaçãopor parte do capital, mas sua função consiste an-tes em

restringir a esfera da criação de valor no sentido econô-mico, tornando possível a expansão de atividades quenão criam nada que se possa comprar, vender, trocarpor outra coisa, nada do que tenha um valor (no senti-do econômico) - mas somente riquezas não monetáriasque têm um valor intrínseco.368

O grande desafio que se apresenta à renda decidadania universal e suficiente na era da econo-mia informal é que ela proporcione o direito deacesso universal e ilimitado ao saber e à cultura eimpeça o capital de se apropriar e instrumentali-zar tanto um quanto a outra369. Na realidade, essedesafio diz respeito à superação do domínio doeconômico sobre o social, o político e o cultural.O grande trunfo de uma defesa de uma renda decidadania repousa sobre um princípio antropoló-gico e não econômico:

As pessoas têm direito ao mínimo vital porque existeme não para existirem. Sua instauração repousa sobre aseguinte idéia: a capacidade produtiva de uma socieda-de é o resultado de todo o saber científico e técnicoacumulado pelas gerações passadas. Assim, os frutosdesse patrimônio devem servir ao conjunto das pessoas,sob a forma de uma renda de base, incondicional.370

E isso só é garantido na medida em que sedesvincula a renda do trabalho. A justiça comuta-

tiva, própria da sociedade salarial e que fomenta-va a liberdade individual, deve ceder lugar à justi-ça distributiva371, regida por outros critérios,pois, segundo Leontieff, “quando a criação de ri-quezas não depende mais do trabalho dos ho-mens, esses morrerão de fome às portas do Paraí-so a menos que se responda com uma nova polí-tica de renda à nova situação técnica”372.

Constatamos que a vida das pessoas é entre-meada com intermitências cada vez mais fre-qüentes e maiores entre emprego e desemprego.A alocação de uma renda suficiente e permanentepermitiria às pessoas poderem contar com um in-gresso estável, ainda que o emprego não o seja.“A distribuição dos meios de pagamento deverácorresponder ao volume de riquezas socialmenteproduzidas e não ao volume de trabalho forneci-do”373.

As reflexões feitas acima nos levam à renda decidadania como um ingresso pago em moedapelo Estado a cada membro da sociedade, donascimento à morte, independente da sua condi-ção social e do fato de estar trabalhando, ter tra-balhado ou ainda vir a trabalhar. Não exige, por-tanto, nenhuma contrapartida. Seu montante écalculado em função dos recursos de cadapaís374. A renda de cidadania aparece, assim,como a condição indispensável para o desenvol-vimento da autonomia existencial.

3.4 Mudança política e cultural

Evidentemente, com tudo o que vimos atéaqui, o que está em jogo não são aspectos mera-mente pontuais que podem ser desencaixados

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367 GORZ, loc. cit. O grifo é do autor.368 Ib., p. 31.369 GORZ, 2003c, p. 31.370 RAMONET, Ignacio. A aurora. CEPAT Informa, Curitiba, n. 58, p. 03, fev. 2000.371 Cf. ROBIN. Jacques. In: AZNAR, 1997, p. 74.372 LEONTIEFF, Wassily. La distribution du travail et du revenu. Pour la Science, 61, avril 1982. (apud GORZ, 1997, p.

146-7).373 GORZ, 1997, p. 147.374 Cf. PAÑELLA, Daniel Raventós. La renta básica: lo que es y lo que no es. El País, Madrid, 12 jun. 2001; BRESSON, Yo-

land. Le revenue d´existence. In: AZNAR, 1997, p. 72-3; SUE, 1997, p. 69-70.

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e reencaixados sem que afetem o conjunto dasociedade. Somos da tese de que a mudança dasociedade passa pela mudança do lugar que otrabalho ocupa na vida das pessoas e da socie-dade. Ambos, trabalho e sociedade, estão inter-conectados e não há como mudar um (o traba-lho) sem que, com isso, acabemos afetando aoutra (a sociedade).

Tampouco as transformações que devem serprocessadas no âmbito do trabalho são mudan-ças de cunho técnico. São eminentemente políti-cas. Uma nova concepção de trabalho e a instau-ração das propostas anteriormente estudadas re-querem vontade política e mudança cultural.

Gorz está convencido de que uma esquerdaousada ou o socialismo do futuro passará pelo re-conhecimento da inversão polanyiana, ou seja,pela convicção de que a racionalidade econômicae, dentro dela, a racionalidade financeira, devenovamente ser subordinada a fins e valores socie-tais375. Em nível de mundo, está em crise a políti-ca representativa fortemente identificada com osinteresses do grande capital. O descrédito da po-lítica vem em boa parte da subserviência dos go-vernantes aos interesses do mercado. As políti-cas neoliberais não resolveram os problemasdas desigualdades sociais. O seu fracasso afetouvisivelmente os governos coniventes com taispolíticas, na medida em que significaram tam-bém dar as costas para os anseios das popula-ções. Gorz insiste na participação de toda a so-ciedade no debate das grandes questões que lhedizem respeito. Trata-se, no fundo, de retomarformas mais ricas, inovadoras, descentralizadas,participativas do agir político. As soluções po-

dem ser tecnicamente perfeitas, mas, muitas ve-zes, são politicamente desconectadas e exclu-dentes. Neste contexto, é preciso que todos ossegmentos da sociedade sejam chamados parauma real e efetiva participação376.

Uma retomada do político deve-se dar emconjunto com o reconhecimento de uma inver-são de valores que começa a se mostrar dentrodas sociedades. Gorz não se cansa de chamar aatenção para o fato de que a ética do trabalho, ovalor-trabalho, está em crise. Já são muito pou-cos os que “morrem” pelo seu trabalho: “O tra-balho, para quase 80% das pessoas interrogadas,não é mais um valor ou uma fonte de valores e desentido, mas apenas ‘um meio de ganhar a vida’, ouseja, ‘uma necessidade subordinada’”377.

Precisamos nos render às evidências de queestamos entrando numa nova era em que o va-lor-trabalho foi deslocado. Já não figura mais, aomenos para a grande maioria, no topo das coisasmais importantes da vida. Suportam o trabalhoem vista daquilo que ele pode proporcionarcomo mais agradável, realizador e cheio de senti-do fora dele.

O tripé deverá ser completado com uma “re-volução nas prioridades”378 que determinada so-ciedade irá adotar. As propostas acima indicadasse justificam nesta perspectiva. Elas querem con-tribuir para que a sociedade brasileira comece porrealizar um amplo e profundo debate em tornode novas prioridades, calcadas não mais sobre aracionalidade econômica, mas sobre valores so-ciais e para que ela ajude a pensar uma nova so-ciedade e, dentro dela, uma nova organização so-cial do trabalho.

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375 Cf. GORZ, 1988, p. 226.376 Cf. id., 1995, p. 140, col. 1.377 GORZ, 1995, p. 139, col. 1. Os grifos são do autor.378 Conceito tomado de BUARQUE, Cristovam. A revolução nas prioridades. 2. ed. Brasília: Centro Gráfico do Senado Fede-

ral, 1993. Neste livro, o autor, ao analisar o tipo de modernização seguido pelo Brasil, propõe a urgência de passar damodernidade técnica, marca da modernidade brasileira, à modernidade ética. É certamente a melhor radiografia do fra-casso do tipo de desenvolvimento que se pautou rigorosamente por uma racionalidade instrumental.

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Considerações finais

O capitalismo, no final do século passado einício deste, passou por profundas transforma-ções que afetaram profundamente o mundo dotrabalho. Seguindo o pensamento de André Gorz,somos levados a situar, principalmente na revo-lução tecnológica, a razão impulsionadora dessastransformações. A revolução informacional abreuma série de possibilidades para a organização daprodução e do trabalho. O capitalismo sabe tirarproveito dessa revolução tecnológica para“emancipar-se” dos constrangimentos tradicio-nais impostos tanto pelo Estado, como pelo con-junto dos trabalhadores. Essa revolução apresen-ta duas características principais: ela permite pro-duzir mais, em menos tempo e com menos traba-lho; o trabalho, na “economia do conhecimen-to”, é sobretudo trabalho imaterial.

Instaura-se, assim, a chamada crise da socie-dade salarial. A sociedade do trabalho ou a so-ciedade salarial é aquela em que cada indivíduoé reconhecido como sujeito de direitos, na me-dida em que, pelo “trabalho”, realiza atividadesreconhecidas como úteis pela sociedade e fei-tas para ela, e que são por ela remuneradas. Osalário atesta esse reconhecimento. Falamos decrise, porém, porque as sociedades assim estru-turadas já não dão mais conta das necessidadese dos interesses que os indivíduos perseguemdentro dela. O sinal acabou por ser invertido:mais do que inserir, ela acaba por excluir. A so-ciedade que toma por normal a situação da pre-cariedade, mostra-se cega e impotente em facede tais problemas.

Por outro lado, a economia prioriza, cada vezmais, o conhecimento, o símbolo, a marca e pro-cura apropriar-se deles. Em conseqüência, a pro-priedade e a produção, fundamentais para o capi-talismo tradicional, são rebaixadas na escala deimportância. E com elas o trabalho.

Nesse movimento do capital, o trabalho ima-terial emerge como categoria importante. Háuma recuperação do conceito de “general intel-lect”, tomado dos Grundrisse de Marx e que seráobjeto de estudos e discussões de toda uma linhade pensamento. Esse conceito é importante emGorz. Por meio dele, o autor segue a reflexão so-bre a noção de trabalho em contraposição à no-ção de emprego. Na medida em que o capitalis-mo avança mediante o uso sempre mais generali-zado das novas tecnologias, o conhecimento tor-na-se a principal fonte de produção. E aqui se dáum embate: por um lado, o capitalismo faz detudo para não perder esse novo filão que se abre;mas, por outro, Gorz procura mostrar os limitesque o trabalho imaterial impõe ao capitalismo.Partindo dos conceitos de conhecimento e saber,Gorz toma partido pela sua inapropriação porparte do capital. A razão fundamental é a de queo trabalho imaterial, feito de saberes e conheci-mentos que pertencem a toda a humanidade – enão somente a uma pessoa em particular nem auma geração em particular – não pode mais sermedido, calculado, destacado, separado em peçasisoladas, segundo um padrão preestabelecido.Foge da tradicional noção de valor e de riqueza.

Com a temática do trabalho imaterial já somoscolocados no centro de outra questão: o que é otrabalho? Nosso objetivo principal nestas refle-xões consistiu em contribuir para a conceituaçãodas noções de emprego e de trabalho a partir daAndré Gorz, para quem a crise do trabalho é, naverdade, a crise de um determinado tipo de traba-lho, o emprego. Esta forma particular de traba-lho, o emprego, é uma “invenção” da sociedadeindustrial e com ela se identifica. Entende-se poremprego aquela atividade exercida na esfera pú-blica, definida e reconhecida como útil pela so-ciedade e que, por isso, a remunera. Esse “traba-

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lho” deve preencher uma função socialmenteidentificada e normatizada na produção e na re-produção do todo social. Ele é destacável do seusujeito, pode ser medido, quantificado, separado.Torna-se um elemento da produção como os de-mais. Por isso, o emprego é algo que se ‘tem’ ounão se ‘tem’. Os desempregados não o ‘têm’mais.

Gorz reluta em aceitar essa forma de “traba-lho” como “o” trabalho. Para ele, o emprego é aforma histórica que o trabalho assumiu na socie-dade capitalista industrial e que tem uma duraçãomuito breve (brevíssima!) considerando-se a his-tória da humanidade. A crítica de fundo é que,política e ideologicamente, pretendemos mostrarque ela sempre existiu e que, portanto, não pode-rá nunca acabar, ou seja, que ela é constitutiva dahumanidade e da organização social. Pretendemosnegar sua historicidade.

No pensamento de Gorz, o trabalho-emprego,fruto da racionalidade dominadora moderna, éum dos elementos centrais de dominação (daspessoas umas sobre as outras, do gênero humanosobre a natureza) e fator determinante da criseecológica.

Mas, para Gorz, uma coisa está clara: não faltao que fazer. A crítica radical da racionalidade eco-nômica, que transforma o trabalho em emprego,leva Gorz a dar a este um lugar definido dentroda sociedade, a fim de que uma outra gama de ati-vidades mais ricas e realizadoras de sociedadepossam ressurgir. Uma das grandes contribui-ções de Gorz para o debate sobre a questão dotrabalho reside, a nosso ver, na nova concepçãode trabalho presente na sua reflexão. A evoluçãotecnológica abre a possibilidade de fazer recuarno tempo e nas nossas consciências o espaçodado ao trabalho com finalidade econômica e

abrir um vasto campo de possibilidades paraaquelas atividades não-mercantis. Somos defen-sores da idéia de que, dessa maneira, o trabalho énão apenas produção de bens e serviços, mastambém de relações sociais. E é disso que a socie-dade tem necessidade.

Entendemos ser de grande importância a evo-lução que Gorz faz em relação ao conceito de tra-balho. Ela é uma grande contribuição para sepensar uma nova organização da sociedade e olugar que nela terá o trabalho.

Gorz não é apenas um crítico da sociedadeque aí está. Se o faz, é porque tem em vista umaoutra sociedade e uma outra economia que elecomeça a vislumbrar por entre os escombros daarruinada sociedade do trabalho. Ele não diz ape-nas que por aí não é mais possível caminhar, masajuda a indicar possíveis saídas para a crise. Cen-tra a sua atenção em propostas amplas e globais.A redução do tempo de trabalho e a defesa deuma renda cidadã universal, incondicional e sufi-ciente, não devem ser tomadas como propostasisoladas, mas antes como um conjunto de políti-cas interligadas. Elas, junto com uma terceira quedesenvolvemos – economia plural – são impres-cindíveis para se pensar uma sociedade, evidente-mente com mercado, mas não de mercado. E aci-ma de tudo, contribuir para evidenciar que agrande questão não é mais a da produção de ri-quezas (produzidas com menos trabalhadores),mas a sua distribuição entre todos os participan-tes da sociedade.

Foi para contribuir com a consciência de que acrise do desemprego não será superada com maisemprego e de que o êxodo da sociedade salarial sedará ousando propostas novas, feitas a partir de umhorizonte social e cultural e não primordialmenteeconômico, que essas reflexões foram realizadas.

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