pela humanização da transgeneridade

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Tramita no Congresso Nacional o PL 5002/2013, um Projeto de Lei que visa ao fim dos atos de constrangimento enfrentados por cidadãos transgêneros e travestis. De autoria dos deputados federais Jean Wyllys e Erika Kokay, a Lei de Identidade de Gênero ou Lei João W. Nery, como também é denominada, assegura a retifi- cação de registros civis, ao per- mitir mudanças de nome, sexo e fotografia na documentação pessoal de tais indivíduos. Frente aos mais distintos preconceitos, a medida de- fende, ainda, a regulamentação de tratamentos hormonais, intervenções cirúrgicas, preservação de paternidade ou maternidade e de matrimônio. Contudo, esta ainda é uma questão bastante polêmica, uma vez que a sociedade brasileira apresenta alto índice de homo e transfobia, denun- ciando uma realidade sexista, machista e misógina. Nesse contexto, são poucas as entidades nacionais que assumem medidas frente à discriminação com base na orientação sexual. Até o ano de 2013, segundo dados da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais da América Latina e Caribe, somente 14 entidades em todo o território brasileiro aderiam à postura protetora. De acordo com o assistente social Guilherme Gomes - doutorando em Serviço Social pela PUC-RS e pesquisador sobre diversidade sexual e de gênero -, travestis e transexuais são, entre a população GLBTT nacional, as grandes vítimas de violência. A agressão transfóbi- ca está amparada não apenas no gênero que a pessoa assume para si, mas, também, na etnia, na classe social e na fisionomia. “Isso faz com que os indivíduos ‘trans’ sejam considerados abjetos”, esclarece. Além da marginalização e da exclusão social, assume-se a ideia equivocada de que a transgeneridade é uma pato- logia e isso, algumas vezes, é levado em consideração até pelo Sistema Único de Saúde (SUS) durante o processo de redesignação sexual, popular- mente conhecido por cirurgia de mudança de sexo. Apesar da definição pa- tológica, que poderá ser corrigida com a aprovação da PL 5002/2013, é impor- tante salientar que apenas Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás têm pes- soal capacitado para realizar a transgenitalização. Esse procedimento também abrange a hormonioterapia, alinhada ao acompanhamento psicológico, e é oferecido para transexuais e travestis que estiverem no processo transexualizador, conforme determina a Portaria n. 2.803, de 19 de novembro de 2013, do Ministério da Saúde. Ultrapassando as questões de orientação sexual, a transgeneridade assume um amplo guarda-chuva a fim de abrigar as diversas manifesta- ções de identidade de gênero, as quais não estão integradas aos padrões do sexo biológico masculino e feminino. Nesse entendimento, a identidade é tida como uma construção pessoal em relação ao contexto social, cultural e histórico. Portanto, como justifica Guilherme Gomes, a pretensa natureza do gênero é uma nar- rativa dentre tantas outras pos- síveis. “Por isso, é importante lembrar que a transgeneridade, assim como a homossexu- alidade, em outras culturas e momentos históricos, não foram consideradas doenças”. Desse modo, transformar as concep- ções errôneas e preconceituo- sas, assegurando os devidos direitos aos cidadãos transgêne- ros, apresenta uma mudança positiva na sociedade, além de apontar para a humanização das expressões de gênero. Ao ressignificar o polêmico argumento da filósofa fran- cesa Simone De Beauvoir, presume-se a possibilidade do gênero ser compreendido como uma escolha. Para além das interpretações e dos diferentes conceitos acerca do tema, a frase também direciona ao entendimento das identidades trans, que vêm postular uma forma abrangente de compreender o corpo e o sexo. Assumida em sua identi- dade de gênero desde a ado- lescência, a cantora Valéria Houston Barcellos, natural de Santo Ângelo, comenta que ao olhar seu reflexo no espelho, não se identificava com a imagem refletida: “Meu susto maior não foi descobrir o que eu era, mas o que eu não era”. Para conquistar o corpo desejado, Valéria iniciou, aos dezoito anos, um processo de hormonização, assumiu os cabelos compridos, os rela- cionamentos com homens e driblou diversos preconceitos, atravessando barreiras soci- ais. Atualmente, a fisionomia masculina não faz parte da realidade da cantora de voz feminina, que é referência artística tanto no meio GLBTT, quanto nas mais conservadoras comunidades. A história de Valéria se dis- tancia da realidade vivida por muitos cidadãos transgêneros. Ao passo que alguns deles são expostos à periferia social, a cantora, que também passou por dificuldades, encontrou na música o amor e o reconheci- mento profissional. “Meu eu foi construído por fragmentos de experiências, vivências, carinhos, decepções e muita música. Quando eu subo no pal- co, deixo para trás as tristezas, frus-trações e desentendimen- tos. A música pauta e inspira a minha vida”, confessa. Com diversos prêmios na bagagem e casada com Luis Nei Machado - o legítimo guarda- costas -, Valéria Houston encon- tra-se em fase de imersão nos projetos pessoais, para alçar novos voos na carreira artística. Além de composições autorais, a cantora prevê trabalhos inter- nacionais e a produção de um álbum que mescle black music com MPB. Ninguém nasce mulher: torna-se mulher

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Matéria realizada para o Jornal Opa! (março/2014) www.facebook.com/jornalopa

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Page 1: Pela Humanização da Transgeneridade

Tramita no Congresso Nacional o PL 5002/2013, um Projeto de Lei que visa ao fim dos atos de constrangimento enfrentados por cidadãos transgêneros e travestis. De autoria dos deputados federais Jean Wyllys e Erika Kokay, a Lei de Identidade de Gênero ou Lei João W. Nery, como também é denominada, assegura a retifi-cação de registros civis, ao per-mitir mudanças de nome, sexo e fotografia na documentação pessoal de tais indivíduos.

Frente aos mais distintos preconceitos, a medida de-fende, ainda, a regulamentação de tratamentos hormonais, intervenções cirúrgicas, preservação de paternidade ou maternidade e de matrimônio. Contudo, esta ainda é uma questão bastante polêmica, uma vez que a sociedade brasileira apresenta alto índice de homo e transfobia, denun-

ciando uma realidade sexista, machista e misógina.

Nesse contexto, são poucas as entidades nacionais que assumem medidas frente à discriminação com base na orientação sexual. Até o ano de 2013, segundo dados da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais da América Latina e Caribe, somente 14 entidades em todo o território brasileiro aderiam à postura protetora.

De acordo com o assistente social Guilherme Gomes - doutorando em Serviço Social pela PUC-RS e pesquisador sobre diversidade sexual e de gênero -, travestis e transexuais são, entre a população GLBTT nacional, as grandes vítimas de violência. A agressão transfóbi-ca está amparada não apenas no gênero que a pessoa assume para si, mas, também, na etnia,

na classe social e na fisionomia. “Isso faz com que os indivíduos ‘trans’ sejam considerados abjetos”, esclarece.

Além da marginalização e da exclusão social, assume-se a ideia equivocada de que a transgeneridade é uma pato-logia e isso, algumas vezes, é levado em consideração até pelo Sistema Único de Saúde (SUS) durante o processo de redesignação sexual, popular-mente conhecido por cirurgia de mudança de sexo.

Apesar da definição pa-tológica, que poderá ser corrigida com a aprovação da PL 5002/2013, é impor-tante salientar que apenas Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás têm pes-soal capacitado para realizar a transgenitalização. Esse procedimento também abrange a hormonioterapia, alinhada ao acompanhamento psicológico,

e é oferecido para transexuais e travestis que estiverem no processo transexualizador, conforme determina a Portaria n. 2.803, de 19 de novembro de 2013, do Ministério da Saúde.

Ultrapassando as questões de orientação sexual, a transgeneridade assume um amplo guarda-chuva a fim de abrigar as diversas manifesta-ções de identidade de gênero, as quais não estão integradas aos padrões do sexo biológico masculino e feminino. Nesse entendimento, a identidade é tida como uma construção pessoal em relação ao contexto social, cultural e histórico.

Portanto, como justifica Guilherme Gomes, a pretensa natureza do gênero é uma nar-rativa dentre tantas outras pos-síveis. “Por isso, é importante lembrar que a transgeneridade, assim como a homossexu-alidade, em outras culturas e momentos históricos, não foram consideradas doenças”. Desse modo, transformar as concep-ções errôneas e preconceituo-sas, assegurando os devidos direitos aos cidadãos transgêne-ros, apresenta uma mudança positiva na sociedade, além de apontar para a humanização das expressões de gênero.

Ao ressignificar o polêmico argumento da filósofa fran-cesa Simone De Beauvoir, presume-se a possibilidade do gênero ser compreendido como uma escolha. Para além das interpretações e dos diferentes conceitos acerca do tema, a frase também direciona ao entendimento das identidades trans, que vêm postular uma forma abrangente de compreender o corpo e o sexo.

Assumida em sua identi-dade de gênero desde a ado-lescência, a cantora Valéria Houston Barcellos, natural de Santo Ângelo, comenta que ao olhar seu reflexo no espelho, não se identificava com a imagem refletida: “Meu susto maior não foi descobrir o que eu era, mas o que eu não era”.

Para conquistar o corpo desejado, Valéria iniciou, aos dezoito anos, um processo de hormonização, assumiu os cabelos compridos, os rela-cionamentos com homens e driblou diversos preconceitos, atravessando barreiras soci-ais. Atualmente, a fisionomia masculina não faz parte da

realidade da cantora de voz feminina, que é referência artística tanto no meio GLBTT, quanto nas mais conservadoras comunidades.

A história de Valéria se dis-tancia da realidade vivida por muitos cidadãos transgêneros. Ao passo que alguns deles são expostos à periferia social, a cantora, que também passou por dificuldades, encontrou na música o amor e o reconheci-mento profissional. “Meu eu foi construído por fragmentos de experiências, vivências, carinhos, decepções e muita música. Quando eu subo no pal-co, deixo para trás as tristezas, frus-trações e desentendimen-tos. A música pauta e inspira a minha vida”, confessa.

Com diversos prêmios na bagagem e casada com Luis Nei Machado - o legítimo guarda-costas -, Valéria Houston encon-tra-se em fase de imersão nos projetos pessoais, para alçar novos voos na carreira artística. Além de composições autorais, a cantora prevê trabalhos inter-nacionais e a produção de um álbum que mescle black music com MPB.

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher