pedaços de um caderno manchado de vinho€¦ · chegada do verão do amor em 1967, pois então...
TRANSCRIPT
Agradecimentos
Muitas pessoas me ajudaramna produção deste livro nosúltimos oito anos. Agradeço a EdFields, do Departamento deColeções Especiais daUniversidade da Califórnia emSanta Bárbara, à BibliotecaDavidson, pela permissão de
incluir o manuscrito inédito“Prefácio a 7 on Style de WilliamWantling”, assim como trechos domanuscrito “A cena de LA”; aRoger Myers, da Biblioteca daUniversidade do Arizona,Coleções Especiais; à equipe deempréstimos do projeto debibliotecas interligadas daUniversidade do Leste deMichigan; e a Julie Herrada,coordenadora da ColeçãoLabadie, Coleções Especiais,
Universidade do Michigan, AnnArbor. Jamie Boran me foi deextremo auxílio no início desteprojeto, em 2000. Agradeço aAbel Debritto, da Espanha, umacadêmico de notávelconhecimento sobre a obra deBukowski, que chamou minhaatenção para diversos ensaios econtos, todos soberbos e aindadesconhecidos. Michael Monfortgentilmente passou seu tempocomigo em Freiburg, na
Alemanha. Meus mais profundosagradecimentos, como sempre, aMaria Beye. Elaine Katzenberger,da City Lights, orientou meuprojeto com pulso firme. Umagradecimento especial tambémao meu editor na City Lights,Garret Caples, por suainteligência refinada, seu gostorequintado e profissionalismo epor ter tornado o desafiadorprocesso de criação deste livrouma experiência das mais
prazerosas. Minha mais profundagratidão a Ludwig Wittgenstein,que sempre me manteve focado emotivado. Finalmente, umagradecimento especial a JohnMartin por seu apoio e a LindaLee Bukowski, que generosamentecedeu seu tempo e, com paciência,encorajou-me a encontrar o laradequado para a obra de Hank.
Introdução
David Stephen Calonne[1]
Somente agora, catorze anosdepois de Charles Bukowski(1920-1994) escrever suasúltimas palavras, torna-sepossível avaliar em profundidade
seu proteico potencial criativo.Embora tenha sido conhecidoprimeiramente como poeta[2],também é autor de uma quantidadesignificativa e variada de prosa:contos, ensaios autobiográficos,introduções às obras de outrospoetas, resenhas de livros,ensaios literários, a famosa série“Notas de um velho safado”,assim como uma sequência de“manifestos” sobre odesenvolvimento de sua poética e
estética. Além disso, ele eratambém um prolífico autor decartas (atualmente reunidas, demodo parcial, em cinco volumes)e publicou seis romances: PostOffice (1971), Factótum (1975),Mulheres (1978), Misto-quente(1982), Hollywood (1989) e Pulp(1994). Por ser Bukowski tãoprolífico, os estudiosos não foramcapazes de acompanhar seuspassos e ainda não há umabibliografia completa e adequada
de sua produção. O presentevolume demonstra a riqueza e avariedade de sua oeuvre e contémcontos e ensaios que ainda nãohaviam sido reunidos oupublicados.[3]
Os primeiros contos deBukowski, “Consequências deuma longa carta de rejeição”(1944) e “20 tanques deKasseldown” (1946), representama um só tempo os estiloscomplementares e opostos que
marcariam toda a sua carreira.“Consequências” é um retratoinventivo do jovem artistaquixotesco como um outsider e umbufão, enquanto em “20 tanques”Bukowski é sombrio e meditativo,na mesma tradição de seusmestres Nietzsche e Dostoiévski,nos confins da solidão espiritual,rabiscando notas angustiadas dosubterrâneo. É possível que suaoriginalidade seja, em últimainstância, combinar a dureza da
existência com a vervehumorística, criando a inimitávelfusão do que conhecemos como“bukowskiano”. Como seupersonagem niilista e filosofante,Bukowski era, ele mesmo, apersonificação de um gêniosensível e vulnerável,enclausurado, mas tambémpossuía um senso de humoresquisito, além de ser umadorável cartunista, seguindo alinhagem de outro de seus heróis
literários, James Thurber.Bukowski fez sua estreia aos
24 anos, com a publicação de“Consequências” na prestigiosaStory, editada por Whit Burnett eMartha Foley, seguida, dois anosmais tarde, por “20 tanques” naPortfolio, publicação de vanguardadirigida por Caresse Crosby, naqual apareceu ao lado de JeanGenet, Federico Garcia Lorca,Henry Miller e Jean Paul Sartre.Contudo, ao contrário do que diz
o mito, Bukowski não escreveuapenas prosa durante esseperíodo, mas também poesia. Porexemplo, na edição de verão daMatrix, de 1946, seu primeiropoema publicado, “Hello”,aparece junto com o conto “Thereason behind reason”. E naedição de outono da Matrix de1947, tanto o poema “Voice in aNew York subway” e o conto“Cacoethes scribendi” forampublicados. De modo que desde o
início sua prática foi alternarentre a poesia, o conto e o ensaio,estabelecendo uma identidadedupla de poeta e prosador. Essa“duplicidade” pode ser discernidaem uma obra escrita em 1959, maspublicada em 1961, Pedaços de umcaderno manchado de vinho, naqual Bukowski compõe um gênerohíbrido, que extrapola ascategorias da prosa, da poesia ouda prosa-poética.
Boa parte de seus trabalhos
subsequentes apareceria em umaimensa variedade de “pequenasrevistas”[4]. Assim como osfamosos berços do modernismo –Blast, Criterion, Little Review, TheDial, transition – exerceram papelcentral na publicação das obras-primas de Ezra Pound, T. S. Eliote James Joyce, mesmo papeltiveram os jornais literários e aimprensa alternativa – Trace, Ole,Harlequin, Quixote, WormwoodReview, Spectroscope, Simbolica,
Klactoveedsedsteen – ao abriremespaço para os escritos nãoconvencionais de Bukowski. E natradição dos grandes modernistas,Bukowski se tornou um militanteescritor de manifestos. Em seuensaio sobre poesia acompanhadapor jazz para a Trace (editada porJames Boyer May e publicada emLondres), começou a desenvolverteorias estéticas que não deixoude expandir e refinar. O estilo deBukowski e o seu modo de
aproximação eram essencialmenteexperimentais, e, como certa vezdeclarou, “não há leitoressuficientes para compreender,desfrutar e digerir um estiloavançado de escrita”.[5]
Em um de seus manifestosmais contundentes, “Em defesa deum certo tipo de poesia, de umcerto tipo de vida, de um certotipo de criatura com sangue nasveias que um dia morrerá”, elecomeça a desenvolver uma
poética do coração, uma poéticada ternura e da franqueza: Elatoma meu coração em suas mãos.Bukowski escolhe esta variaçãode um verso do poema“Hellenistics”, de RobinsonJeffers, como título para uma desuas primeiras obras de poesia,que descreve com precisão seusanseios românticos e espirituaisem nosso “mundo fraturado”.[6]Ao longo da infância, Bukowskihavia sido brutalmente espancado
e emocionalmente abusado porseu pai. De modo que aqui “acriatura com sangue nas veias”guarda múltiplos significados: o“sangue” ou instinto/intuição deD. H. Lawrence, como umsentimento primevo mais sábioque o intelecto, mas também osangue literal expelido porBukowski durante as agônicassessões de punição corporal e porfim o sangue que viria a brotar deseu corpo em 1955, quando, aos
35 anos, seria internado na ala decaridade do Los Angeles CountyHospital, ocasião em que esteveperto da morte, vitimado por umapoderosa hemorragia estomacalprovocada pelo excesso deálcool.[7] A partir dessemomento, e com razão, elepassaria a se perguntar por que aliteratura oficial, segura eestabelecida por gerações, tãofrequentemente se mostravareticente sobre aqueles que mais
sofriam dor: os vitimizados, ospobres, os loucos, osdesempregados, os mendigos, osalcoólatras, os desvalidos, ascrianças abusadas, ostrabalhadores braçais. Seu mundopoético, assim como o de SamuelBeckett, é o mundo dosdespossuídos, “a morte esquálidae orgulhosa”, e ele define a simesmo como um “poeta fora dalei”; não pode haver nenhumasegurança em uma vida vivida in
extremis nos limites da loucura eda extinção. A ira mais intensa deBukowski estava reservada paraos “garotos universitários”, oselitistas que traíram a poesia comseu modo profissional e tranquilo,sagaz e limpo, de jogar com aspalavras para esconder o vazio deinspiração, que tentaramdomesticar a Musa sagrada ebárbara: as forças primais,disruptivas, violentas,rudimentares do inconsciente
criativo. A arte de Bukowski estádedicada a revelar seus própriosestigmas sanguinolentos, adramatizar a si mesma (em geralcom bom humor) como uma vítimasacrificial em uma linguagemsimples, direta, crua, impactante,livre de afetação ou pretensão.Como ele escreve no prefácio nãopublicado para 7 on Style, deWilliam Wantling: “O estilo não éuma espécie de escudo. O estilonão é uma frente de batalha. O
estilo é o último estágio danaturalidade. O estilo é umhomem sozinho com outrosbilhões de homens ao redor”.[8]
Em muitos desses manifestos,cujos títulos são a um só tempoultrajantes e líricos, tais como“Um ensaio errante sobre apoética e a vida visceral escritoao longo de seis cervejas(grandes)” e “Sobre a matemáticada respiração e do caminho”,Bukowski explora a relação da
escrita com a busca pelo caminhoda autenticidade. Ele vai àscorridas de cavalo para examinara Vida a fim de que possa chegarem casa e sentar à “máquina” etransformar aquilo em Arte. ComoHenry David Thoreau, ele querencurralar a vida para descobrir oque há ali: nenhuma torre demarfim do esteticismo. Bukowskivê a criação artística diretamenterelacionada com sua evoluçãointerior, e há nisso uma disciplina
tão séria quanto a disciplinanecessária para se tornar ummonge zen. Ele combina uma“matemática” da percepçãoaguçada com a Respiração e oCaminho de um praticante dotaoísmo: o escritor está com o péna estrada e deve observar comexatidão tudo o que vê em seucaminho através do mundoverdadeiro e cotidiano. Nascorridas, no bar, ouvindo Sibeliusno radinho de pilha em seu
quartinho humilde, nas ruasdesertas e maltratadas, eleencontrará o caminho que procura.Bukowski, como ele nos diz em“Confissão de um velho safado”,era beat antes dos beats e não éacidental que sinta uma grandeafinidade pela poesia de AllenGinsberg: percebe corretamenteno jovem Ginsberg de EmptyMirror o poeta talentoso que viriaa se tornar mais tarde o visionáriode O uivo.
As publicações alternativas –pequenas revistas, jornais,edições populares emimeografadas – para as quaisBukowski contribuía com seuscontos e ensaios começaram aproliferar durante os anos 60, efoi então que sua criatividadeexplodiu em múltiplas direções. Épreciso lembrar que Bukowskiestudou jornalismo no LosAngeles City College eoriginalmente tinha esperanças de
trabalhar em um jornal. Talvez omodelo de Hemingway tenhainspirado esse desejo, mas ele nosdiz, ao final de sua notaautobiográfica na conclusão deLongshot Poems for Broke Players(1962) que “... o mais perto quecheguei de me tornar um repórterfoi como assistente decomposição no New York Item .Havia por ali um bar barato nosfundos, e as noites passavamrápido, enquanto eu bebia
cervejas de um níquel”[9]. Masisso estava para mudar com achegada do Verão do Amor em1967, pois então temos a curiosasincronicidade dos 47 anos deBukowski, no auge de sua meia-idade, realizando finalmente acarreira tantas vezes adiada dejornalista, no exato momento emque a revoluçãohippie/jovem/sexual chegava aoapogeu. Foi quando começou aescrever a série “Notas de um
velho safado”: a primeira parte,relativa ao procedimentoadequado diante das autoridadesao ser pego dirigindo embriagado,apareceu no Open City de JohnBryant, no número de 11 de maiode 1967. Dois anos mais tarde, emnovembro de 1969, com a ajudafinanceira de seu editor JohnMartin, da Black Sparrow Press,Bukowski finalmente escapou doslongos anos de servidão nosCorreios e começou uma nova
vida como escritor profissional.“Notas de um velho safado”
apareceria em diversos veículos,c o mo Los Angeles Free Press ,Berkeley Tribe, Nola Express, TheNew York Review of Sex andPolitics, National UndergroundReview e, mais tarde, nos anos 80,no High Times. A série cobria umaquantidade ampla de tópicos, queincluía rebelião estudantil, aGuerra do Vietnã, a guerra dossexos, racismo e os infortúnios de
Henry (“Hank”) Chinaski (aprimeira vez que somosapresentados ao alter ego literáriode Bukowski é num antigo contode 1946, intitulado “The reasonbehind reason”, no qual se chama“Chelaski”). As colunas, tal comono LA Free Press , eram compostasde maneira artística, porqueapareciam decoradas com cartunsbem-humorados do próprioBukowski, colocados nosmomentos apropriados da
narrativa. Depois que umacoletânea da série foi publicadaem forma de livro, em 1969, pelaEssex House, a fama de Bukowskicomeçou a se espalhar, e LosAngeles, São Francisco/Berkeleye Nova Orleans se tornaram oeixo triplo de suas atividadesliterárias. Bukowski haviaestabelecido ligações com SãoFrancisco no início dos anos 60quando enviara seu ensaio contraa guerra “Peace, Baby, Is Hard to
Sell” para a revista Renaissance,de John Bryant. E ele tambémhavia sido publicado na TheOutsider, de Nova Orleans,editada por John Edgar Webb esua esposa, Gypsy Lou, cujaLoujon Press também publicara oprimeiro grande livro de poesiade Bukowski, It Catches My Heartin Its Hands: New Selected Poems1955-1963 (1963) e Crucifix in aDeathhand (1965). O Nola Express,situado em Nova Orleans, também
foi significativo na expansão dareputação de Bukowski para alémde Los Angeles.[10]
Bukowski começava então arefinar sua imagem/máscara desobrevivente luxurioso, violento eastuto, que desavergonhadamentebebe, briga, procura sexo eescreve poemas e contos enquantoescuta Mozart, Bach, Stravinsky,Mahler e Beethoven. Ele inventaum novo gênero literário, entre aficção e a autobiografia: uma
mistura de referências locais,alusões literárias e culturais eelaboração imaginativa deexperiências pessoais. Naquelemomento, todos os anos de escritade cartas e de devoção aotrabalho começavam a serrecompensados, porque a prosade Bukowski exibia então umdestacado grau de autoconfiança eautocontrole; estava aguda, vivaz,divertida, peculiar, sólida,constantemente em movimento.
Ele havia tomado de Hemingwayo vocabulário simples e osdiálogos rápidos, mas sem deixarde se mover sob esse modelo comsua tremenda energia, seu humor esua imprevisível comicidade,como se pode ver em “A noite emque ninguém acreditou que eufosse Allen Ginsberg”, em que suanarrativa asfixiante, focada ejocosa cruza de uma cenaimprovável para outra. A históriatambém ilustra as maneiras como
Bukowski combina fantasia comautobiografia. A aparência de HalNorse ao final e o relato da ferozdiscussão por telefoneenvolvendo a Penguin ModernPoets 13 (na qual Bukowski haviade fato sido publicado emconjunto com Norse e PhilipLamantia) permitem a Bukowskiexecutar uma virada em suaprópria carreira poética de ummodo espontâneo e hilário.Depois da cena sexual grosseira,
da violência ao estilo pastelão,das piadas literárias internas, ahistória se conclui em umagraduação calma e perfeita,resignada, enquanto imagenssurreais, talvez oriundas dasmemórias mais profundas dainfância do narrador, vêm à tona(“O BATALHÃO DEABRAHAM LINCOLN e os onzegirinos mortos sob um varal em1932”) no momento em que elefala com a pequena filha ao
telefone, de um jeito terno.A maneira como Bukowski
rompe tabus possui umaintencionalidade certeira e feroz –e também irônica/humorística. Eleé violento e sexualmente maníacode um modo que seus dois grandesmestres americanos – WilliamSaroyan e John Fante – não são,embora essa pose agressiva possaser compreendida como uma duracarapaça que ele adota para seproteger da violação.[11] Ainda
que não haja nada em sua“obscenidade” que não estejapresente na longa tradição daliteratura clássica: no Satyricon,de Petrônio; no Asno de ouro, deApuleio; nos angustiados,fervorosos e febris poemas deamor/ódio de Catulo para Lesbia;ou no Decamerão, de Boccaccio, apartir do qual Bukowski extraiu omodelo para o seu romanceMulheres.[12]
Entretanto, Bukowski é um
rebelde literário à maneira deCéline e Artaud. Bukowski tinhaadoração por Viagem ao fim daNoite, de Céline, e homenageiacom frequência o misantropofrancês em seus poemas eentrevistas, enquanto vê AntoninArtaud como um artista queodiava a hipocrisia da sociedadeque tanto fora incapaz decompreendê-lo quanto odesprezara.[13] E Bukowski eraum transgressor dentro da tradição
de um terceiro autor que ele nãochegou a conhecer: GeorgesBataille. Bataille havia teorizadosobre a ligação entre tabu,obscenidade, violência, loucura eo sagrado, ressaltando que “aspalavras que em várias línguasdesignam o sagrado significam‘puro’ e ‘sujo’. O significado dosagrado pode ser dado comoperdido à extensão que aconsciência dos horrores secretosna base das religiões está
perdida”[14]. Dessa forma, oalter ego de Bukowski é o velhodirty, captando em inglês a duplavalência do termo, carregando oaspecto sexual da palavra aolongo de toda a sua obra. Umconto como “O cristo prateado deSanta Fé” exemplifica diversascorrentes bataillianas: o jogoentre a psiquiatria e a loucura, osindígenas “primitivos” invadindoo banheiro dos “civilizados”anglicanos, o encontro sexual
“ilícito” quando o personagemprincipal observa um horripilantecrucifixo prateado, la nostalgiepour la boue[15]. Ainda que emBukowski haja virtualmentesempre um elemento de humorsombrio – negro – a impregnarsua absurda visão existencial.
De fato, parte do fracasso dacrítica americana em avaliar compropriedade a obra de Bukowskireside na ignorância dasensibilidade cultural
essencialmente europeia do autor.Isso serve para explicar, por outrolado, seu sucesso na Alemanha ena França, onde tanto osintelectuais quanto os “leitorescomuns” puderam compreenderrapidamente sua originalidade eseu lugar dentro da tradiçãofilosófica da Europa. Podemosimaginá-lo em um bistrô de Pariscom Bataille, ou quem sabetrocando aforismos adstringentese sardônicos com o grande
escritor romeno E. M. Cioran commuito mais rapidez do queenxergá-lo na companhia de seuscontemporâneos americanos SaulBellow ou John Updike. Oaspecto vagamente “obscuro, asmeditações impraticáveis e osdesejos reprimidos de um homemdo leste europeu”, característicasque ele menciona de forma bem-humorada em “Consequências deuma longa carta de rejeição”descrevem, habilmente, aspectos
significativos de seu própriopersonagem[16].
A “obscenidade” na escritade Bukowski o tem colocadorecentemente no centro do debatesobre censura nos EstadosUnidos, o que não vem a ser algonovo: Ulysses, de James Joyce; Oamante de Lady Chatterley, de D.H. Lawrence; Trópico de Câncer,de Henry Miller; Lolita, deVladmir Nabokov; Almoço nu, deWilliam Burroughs; e Uivo, de
Allen Ginsberg, haviam, todos,enfrentado a fúria oficial, e taisbatalhas ainda não estavamencerradas nos anos 60. Bukowskiescreveu dois ensaios em apoio ad. a. levy, um poeta de Clevelandque tinha sido acusado de“obscenidade”, enquanto que umabatida na livraria Asphodel, deJim Lowell, na mesma cidade,inspirou outro ensaio deBukowski em Um tributo a JimLowell, em que se juntou a uma
lista de importantes escritoresamericanos, incluindo RobertLowell, Lawrence Ferlinghetti,Guy Davenport e Charles Olson.A própria escrita “provocante” deBukowski para os periódicosalternativos e sua defesa daliberdade de expressão acabarampor torná-lo alvo de umasindicância do FBI, um dosfatores que levou ao seudesligamento como funcionáriodos Correios.[17]
Tivesse o FBI se ocupado deler na íntegra um ensaioespirituoso como “Devemosqueimar o rabo do Tio Sam”,teriam descoberto que Bukowskiestava longe de acreditar que aEra de Aquário já havia chegado.Escrevendo sobre o incêndio doBank of America provocado porestudantes em Isla Vista, em SantaBárbara, e sobre o Chicago SevenTrial, Bukowski declara que“slogans românticos não são o
suficiente”. Depois de umlevantamento dos escritores deesquerda dos anos 30 – John dosPassos, Arthur Koestler, JohnSteinbeck e a mutabilidade desuas convicções políticas –,Bukowski diz aos estudantesrevolucionários: “O tom principalde seu pensamento não deve sercomo destruir um governo, mascomo criar um que seja melhor.Não sejam mais uma vezaprisionados e enganados.” E
aconselhou aos hippies que sepreparavam para a revolução comum slogan que teria feito felizesnão só Gandhi como tambémThoreau: “Tudo o que vocês têmdeve caber numa mala de mão: sóentão vocês serão livres”.Bukowski simpatizava com osideais da contraculturacaliforniana, mas eraessencialmente apolítico eanarquista e, como muitos artistas,um sonhador antes de um homem
de ação. Poetas, como ressaltouShelley, podem muito bem ser “osinconfessos legisladores domundo”, mas quando colocamseus dedos na água quente dapolítica (Esquerda ou Direita),geralmente se queimam, comoaponta Bukowski em seu ensaiosobre Ezra Pound, “Olhando paraum dos grandes em retrospectiva”.
No final dos anos 50, acontracultura do sul da Califórniahavia sido documentada por
Lawrence Lipton em The HolyBarbarians (1959), e Bukowskisimilarmente descreve alguns dospersonagens da boemiacontemporânea que encontrou nacidade no ensaio “A cena de LA”.O melhor Bukowski se localizanum grupo recorrente devizinhanças: East Hollywood,MacArthur Park, Lincoln Heights,Bunker Hill, Venice Beach, ocorreio do Terminal Annex,Melrose Ave., Alvarado St.,
Carlton Way, Hollywood Blvd.,Western Ave., DeLongpreAve[18]. O hipódromo em SantaAnita, Hollywood Park e LosAlamitos, as lutas de boxe noOlympic Auditorium, a mistura deneblina e sujeira, as autoestradasinfinitas, os infinitos automóveis,o infinitamente silencioso oceanoPacífico, as plantações de laranjae as palmeiras formam os pontosde referência para este terríveluniverso poético erguido com
tanta beleza.[19] Além disso, suaadmiração por John Fante temraízes no fato de que, em livroscomo Pergunte ao pó, Fante faziacom que a cidade de Los Angelesfosse digna de figurar como umlocal em que grande literaturapudesse ser escrita. Bukowski viaa si mesmo como um seguidor dospassos de Fante no esforço dereivindicar igual ou maiorimportância a Los Angeles do quequalquer outro centro literário
americano; mais tarde, em suacarreira, ele iria render umahomenagem a Fante no conto “Euconheço o mestre”.
Los Angeles era o “furo”jornalístico de Bukowski, e seutrabalho de reportagem incluiuuma cobertura de um show dosRolling Stones no Forum. Em“Jaggernauta”, ele se coloca nocentro de um evento que de fatoocorreu, tanto como participantequanto como observador,
borrando a linha divisória entrerealidade e ficção quase àmaneira de Norman Mailer eHunter S. Thompson em suasincursões pelo “New Journalism”.Talvez também seja digno de notaque foi durante essa época que oproeminente teórico da culturaHayden White publicouMetahistory (1975), o quepossibilitou aos historiadores queolhassem mais uma vez para aestrutura ficcional das narrativas
que compunham para descreveracontecimentos pretensamente“objetivos”, enquanto que, emcaráter simultâneo, escritorescomo Bukowski exploravam aintersecção entre os “fatos” deuma suposta autobiografia e arecriação imaginativa daexperiência.[20]
Nos anos 70 e 80, entrevistascom Bukowski apareceram emrevistas como a Rolling Stone e aInterview, de Andy Warhol,
enquanto o filme Barfly, comMickey Rourke, em 1987, trouxe-lhe reconhecimento internacional.Durante esse período, a fim deaumentar seus vencimentos,Bukowski começou a colaborarcom revistas adultas, incluindoFing, Rogue, Pix, Adam, Oui,Knight, Penthouse e Hustler, etambém com algumas revistas dedroga/rock and roll econtracultura, como a High Timese a Creem.[21] Como observado
acima, a prática de Bukowski aolongo de sua carreira foi alternarde modo bastante metódico aprodução de poemas, ensaios econtos. O último período da suavida não foi exceção, e de 1980até sua morte, em 1994, continuoua criar de modo prolífico emagistral em cada um dosgêneros.
Entre os últimos contos,“Como tudo aconteceu” é umaparábola gnóstica sobre a
reversão e a violação da ordemnatural em que Bukowski retornaaos temas apocalípticos tãoevidentes em muitos dos seusprimeiros contos e poemas,enquanto “Apenas matandotempo” evoca o bar da Filadélfiarememorado em “Pedaços de umcaderno manchado de vinho”. Esteconto também introduzpersonagens e situações queBukowski em breve utilizaria demodo remodelado em Barfly: os
bartenders Jim e Eddy, e o climade unidade mística etranscendência que, infelizmente,não pode ser mantido: “E todosficávamos bem, dava para sentiraquilo se espalhando no ar:estávamos ali, afinal, todos eramlindos e grandiosos einteressantes, e cada momento eraúnico em seu brilho, reluzente eintacto.”
A habilidade zen deBukowski de conferir um intenso
sentido de completa realidadedurante cada experiênciamomentânea é demonstrada em“Distrações na vida literária”. Asfrases iniciais de cada parágrafoestão todas no presente doindicativo, conferindo um sentidode vívido imediatismo à narração,colocando o leitor no centro dosacontecimentos: “É uma noitequente de verão”; “O telefone tocana outra peça”; “Seja como for,Sandra me alcança o telefone”; “É
meu traficante, que vive numacasa cujo pátio dá de frente para omeu”. Também encontramos aquium tropo típico de Bukowski: umescritor que escreve sobre ahistória que está escrevendo,apagando os limites entre a arte ea vida, e mencionando ao longodo caminho outros escritores:Updike, Cheever, Ginsberg,Mailer, Tolstói, Céline. Bukowskiera completamente “pós-moderno” e “metaficcional”: seus
escritores escrevem com maisfrequência sobre escrever e seremescritores do que sobre qualqueroutra coisa.[22]
Seu último conto, “O outro”,é uma história muito bemamarrada de doppelgänger, queantecipa alguns dos temas de seuúltimo romance, Pulp: umahistória de mistério na qual umOutro/a Morte/o Self se torna umgêmeo íntimo e inimigo. E em“Treinamento básico”, seu
derradeiro ensaio sobre a escrita,Bukowski declara: “Voltei-mepara o meu deus pessoal:SIMPLICIDADE. Quanto maiscompacto e menor você se tornar,menor é a chance de errar ou dementir. Os gênios são aquelescapazes de dizer algo profundo demaneira simples. Palavras erambalas, raios solares, palavraseram capazes de romper oinfortúnio e a danação”. No fimestá o início, e a longa jornada
literária de Bukowski descreveum círculo perfeito quando eleinvoca, por uma última vez, osfogos mágicos da poiesis: amáquina de escrever, a garrafa devinho e Mozart no rádio.
[1]. David Stephen Calonne é editor eprofessor. Nasceu em Los Angeles eleciona em várias universidades naEuropa e nos Estados Unidos. (N.E.)[2]. No Brasil ocorreu fenômenoinverso. Sua obra em prosa foiamplamente traduzida, tornando-oconhecido como prosador. Somentenos últimos anos sua poesia tem sidovertida ao português de modo maissistemático. (N.T.)[3]. Dorbin, Sanford. A bibliography
of Charles Bukowski, Los Angeles:Black Sparrow Press, 1969; Fox,Hugh. Charles Bukowski: A criticaland biographical study. E. Lansing:Abyss Publications, 1969;Krumhansl, Aaron. A descriptivebibliography of the primarypublications of Charles Bukowski,Santa Rosa: Black Sparrow Press,1999; Fogel, Al. Charles Bukowski:A comprehensive price guide andchecklist: 1944-1999, Surfside, Fl:The Sole Proprietor Press, 2000. Osimensos arquivos de Bukowski foramlegados à Biblioteca Huntington em
San Marino, Califórnia, em setembrode 2006. Há ainda grandes coleçõesde trabalhos publicados e inéditos,incluindo manuscritos naUniversidade da Califórnia em SantaBárbara e na Universidade doArizona, em Tucson.[4]. Ver: Anderson, Elliott e Kinzie,M a r y . The little magazine inAmerica: A modern documentaryhistory. Yonkers: The PushcartPress, 1978; Glazier, Loss Pequeno.Small Press: An annotated guide.Westport: Greenwood Press, 1992;Gleesing, J. Robert. The underground
press in America. Bloomington eLondres: Indiana University Press,1970; Peck, Abe. Uncovering theSixties: The life and times of theunderground press . Nova York;Pantheon, 1985; Rothenberg, Jeromecom as contribuições de Steven Claye Rodney Phillips, A secret locationon the lower east side: Adventures inwriting 1969-1980. Nova York:Granary Books; Dorbin, Sanford.“Charles Bukowski and the littlemag/small press movement”, inSoudings: Collections of theUniversity Library, University of
California, Santa Barbara, may1970, p. 17-32.[5]. Ensaio sem título em A tribute toJim Lowell, Cleveland: Ghost Press,1967, n.p.[6]. “Hellenistics” em The CollectedPoetry of Robinson Jeffers, ed. TimHunt, volume dois, 1928-1938.Stanford: Stanford University Press,1989, p. 526. “Sou a infânciapassada, olho para este oceano e paraos pássaros pescadores, os/ rochedosberrantes, a água luminosa,/ Ascristas de espuma, o exultantealvorecer se erguendo para oeste, os
pelicanos, suas/ asas enormessemiabertas, mergulhando comopedras./ O que quer que seja isso,apanha meu coração entre suas mãos,o que quer que seja isso, faz com queeu estremeça de amor/ E de umadolorosa alegria...” E o sentido dealienação gnóstica de Bukowski e oalto grau de romantismo lembramHart Crane: “E assim foi, entrei nomundo fraturado/ Para seguir avisionária companhia do amor, suavoz/ Um instante ao vento (não seipara onde arremessado)/ Mas não osuficiente para agarrar cada uma das
vozes desesperadas.” “The BrokenTower” em The Complete Poemsand Selected Letters and Prose ofHart Crane, ed., com introdução enotas de Brom Weber. Nova York:Anchor Books, 1966. p. 193.[7]. A infância brutal produziu tantoos traumas que dispararam sua vidade alcoolismo e os frequentes surtosde uma depressão suicida comotambém a força que alimentava suagenialidade. Sobre a relação entrecriatividade artística e as feridaspessoais, ver Edmund Wilson,“Philoctetes: The Wound and the
Bow”, em The Wound and the Bow:Seven Studies in Literature. Athens:Ohio University Press, 1997. Sobreescritores e o uso de drogas, ver aexcelente pesquisa de Marcus Boon,The Road of Excess: A History ofWriters on Drugs. Cambridge:Harvard University Press, 2005. Parainformações biográficas, ver BarryMiles, Charles Bukowski. Londres:Virgin Books, 2005; de HowardSounes, Charles Bukowski: Lockedin the Arms of a Crazy Life. NovaYork: Gorve, 2000; e de DavidStephen Calonne, ed., Charles
Bukowski: Sunlight Here I Am/Interviews & Encounters 1963-1993.Northville: Sundog Press, 2003.[8]. Prefácio não publicado para 7 onStyle, de William Wantling.[9]. Charles Bukowski, LongshotPoems for Broke Players. NovaYork: 7 Poets Press, 1962.[10]. Ver Jeff Weedle, BohemianNew Orleans: The Story of theOutsider and Loujon Press.University Press of Mississippi, 2007.Capítulo 6, “Focusing on Bukowski”;Capítulo 7, “Meeting Bukowski.” ONola Express era editado por Darlene
Fife e Robert Head. O nome doperiódico é um acrônimo: NovaOrleans, Louisiana, e foi baseado notítulo de um romance de WilliamBurroughs, Nova Express.[11]. Sobre a influência de Saroyan eFante em Bukowski, ver DavidStephen Calonne, “Two on theTrapeze: Charles Bukowski andWilliam Saroyan”, em Sure: TheCharles Bukowski Newsletter, 5/6,1992, p. 26-35.[12]. O poema de Bukowski “To theWhore Who Took My Poems” éuma homenagem ao poema 42 de
Catulo: “Adeste hendecasyllabi, quotestis omnes”. Ver Burning in WaterDrowning in Flame: SelectedPoems, 1955-1973. Santa Bárbara:Black Sparrow Press, 1978, p. 16;também a tradução de Peter Green,The Poems of Catullus: A BilingualEdition. Berkeley: University ofCalifornia Press, 2005, p. 88-91. Asreferências de Bukowski a Hamsum,Turguêniev, Li Po, Boccaccio, TuFu, Vallejo, Catulo, Pound, Céline,Dostoiévski, Nietzsche eSchopenhauer ilustram o amploescopo de suas leituras. Ele também
possuía um grande conhecimento euma paixão genuína pela músicaclássica. Por exemplo, o primeiroconto de Bukowski, “Consequênciasde uma longa carta de rejeição”(1944), faz referência à SextaSinfonia de Tchaikovsky. “Difícilsem música” também incluireferências a um grande número decompositores clássicos, e opersonagem principal pronuncia umfervoroso discurso sobre o poderextático, transcendente e inefável dagrande música. Ideias semelhantesaparecem na poesia de Bukowski,
como se pode ver no exemplo destemagnífico poema da última fase nãorecolhido em livro sobre a DécimaSinfonia de Shostakovich, “Duas damanhã”: “e então/ A Décima deShostakovich,/ quase duas/ damanhã/ mas não aqui/ nestanoite,/Dmitri faz tudo/ perdurar/ etomo emprestado sua/ imensa forçapsíquica,/sinto-me melhor e melhor/ emelhor/ ouvindo sua música,/ que mecura progressivamente,/ cada bebida/mais perfeita, / minhas feridasestúpidas/ se fecham,/ a Décimacontinua/ girando nessas/ paredes,/ eu
devo para esse canalha...” em TheNew Censorship, vol. 2, no 3, 1991.E em “A música clássica e eu”,Bukowski se inebria com Mahler:“agora Mahler está no quarto/comigo/ e os arrepios correm pormeus/ braços, chegam a minha/nuca.../ é tudo tãoinacreditavelmente/ esplêndido...” emThe Last Night of the Earth Poems.Santa Rosa: Black Sparrow Press,1992, p. 374. Bukowski compôs umaampla lista de poemas que sãohomenagens diretas a grandescompositores ou que fazem
referência a suas vidas e obras,incluindo Bach, Beethoven, Brahms,Bruckner, Chopin, Handel, Haydn,Mozart, Schumann, Sibelius,Stravinsky, Vivaldi e Wagner.[13]. Sobre Céline, ver Sunlight HereI Am, p. 41, 69, 129, 134, 160, 163,168, 198, 215, 242, 246, 267, 273, e“Céline with Cane and Basket” emThe Last Night of the Earth Poems.Santa Rosa: Black Sparrow Press,1992, p. 242. Céline é, além disso,um personagem importante no últimoromance de Bukowski, Pulp.[14]. Georges Bataille, Visions of
Excess: Selected Writings, 1927-1939. Edição e introdução por AllanStoekl. Minneapolis: University ofMinnesota Press, 1985. Em outrolugar Bataille comenta: “... sagradotem dois significados contraditórios.Qualquer que seja o objeto de umaproibição, este é basicamentesagrado. O tabu oferece umadefinição negativa do objeto sagradoe nos inspira com a reverência doplano religioso... Os homens oscilamentre duas emoções simultâneas: sãoafastados pelo terror e atraídos poruma fascinação reverencial. Tabu e
transgressão refletem esses anseioscontraditórios.” Bataille, Erotism:Death & Sensuality. São Francisco:City Lights, 1986. p. 68. O autor deHistória do olho acharia congenial amatéria objetiva de muitos dospoemas e dos contos de Bukowski:voyeurismo, fetichismo etc. Vertambém Mary Douglas, Purity andDanger: An Analysis of the Conceptof Pollution and Taboo . Londres eNova York: Routledge Classic, 2002.[15]. Em francês no original. Anostalgia pela podridão. (N.T.)[16]. Em inglês a palavra usada é
character, que traduzi porpersonagem, mas que tambémpoderia se referir ao caráter dopróprio Bukowski ou mesmo à suaindividualidade. Optei porpersonagem tendo em vista que estaescolha contempla a ideia tantasvezes associada ao Velho safadocomo um personagem de si mesmo.(N.T.)[17]. Ver o recentemente publicadoFederal Bureau of Investigation File#140-35907, 1957-1970. HenryCharles Bukowski, Jr. (a.k.a.“Charles Bukowski”).
[18]. Lawrence Lipton, The HolyBarbarians. Nova York: JulianMessmer, Inc., 1959. Ver tambémHebert Gold, Bohemia: Digging theRoots of Cool. Nova York: Simonand Schuster, 1993.[19]. Sobre a tradição literária de LosAngeles, ver também Lionel Rolfe,Literary LA. São Francisco:Chronicle Books, 1981; John Miller,E d . , Los Angeles Stories: GreatWriters on the City. São Francisco:Chronicle Books, 1991; David M.Fine, Imagining Los Angeles: A Cityof Fiction. Albuquerque: University
of New Mexico Press, 2000; DavidL. Ulin, Writing Los Angeles: ALiterary Anthology. Nova York:Library of America, 2002.[20]. Hayden White, Metahistory:The Historical Imagination inNineteenth Century Europe.Baltimore: John Hopkins, 1975.[21]. Em uma entrevista para SilviaBizio, Bukowski destacou: “A razãopor que o sexo entra tanto em minhashistórias é porque quando eu deixeios Correios, aos cinquenta anos, euprecisava ganhar dinheiro. O que euqueria mesmo fazer era escrever
sobre algo que me interessasse. Maslá estavam todas aquelas revistaspornográficas da Melrose Avenue, eos caras tinham lido os meus textosn a Free Press , e começaram a mepedir para lhes mandar alguma coisa.Então o que eu tinha de fazer eraescrever uma boa história e, no meio,dar um jeito de colocar alguma cenagrosseira de sexo. Assim, ao começara escrever uma história, chegava ummomento em que eu me dizia: ‘Bem,esta na hora de pôr algum sexo noesquema’. E então eu jogava algumsexo na trama e seguia escrevendo o
conto. Funcionava bem: era sómandar a história pelo correio efaturar imediatamente um cheque detrezentos dólares”. Sunlight Here IAm: Interviews & Encounters, 1963-1993. p. 181.[22]. Ver Patricia Waugh:Metafiction: The Theory and Practiceof Self-Consuming Fiction. Londres:Routledge, 1990; Robert Scholes,Fabulation and Metafiction. Urbana:University of Illinois Press, 1979;Jules Smith, “Charles and the Avant-Garde”, em The Review ofContemporary Fiction: Charles
As consequências deuma longa carta de
rejeição
Dei uma volta na rua,pensando no que tinha acontecido.Era a maior que eu já recebera.Normalmente, diziam apenas:“Lamentamos, mas esta obra nãosegue nossos padrões” ou,
“Lamentamos, mas não temoscomo enquadrar seu texto emnossa linha editorial”. Ou o queera mais comum, a boa e velharejeição impressa e padronizada.
Mas esta era a maior detodas. Era sobre o meu conto“Minhas aventuras em meiacentena de pensões”. Fui até umposte de luz, retirei a carta dobolso e a reli:
Caro sr. Bukowski:
De fato, trata-se de umareunião de ideias ótimas,mas também de outrascoisas tão cheias deprostitutas idolatradas,manhãs de ressaca evômito, misantropia,elogio ao suicídio etc. quenão creio que qualquerrevista em circulaçãopossa aceitar o conto. Há,no entanto, uma espéciede saga de um certo tipode pessoa no que o senhorescreve, um trabalho feito
com honestidade. Épossível que publiquemosalguma coisa sua embreve, só não podemosprecisar quando. Dependedo senhor.Atenciosamente,Whit Burnett
Ah, eu conhecia aquelaassinatura: o longo “h” que securvava em direção à extremidadedo “W”, e o começo do “B” quedescia página abaixo.
Coloquei a carta de volta nobolso e segui caminhando pelarua. Sentia-me muito bem.
Fazia então apenas dois anosque eu estava escrevendo. Doisbreves anos. Hemingway precisoude dez. E Sherwood Andersontinha quarenta antes de publicaralguma coisa.
Enfim, me parecia que omelhor a fazer era largar a bebidae as mulheres de má fama. Detoda maneira, estava difícil de
conseguir uísque, e o vinho estavaarruinando o meu estômago.Millie... bem, me livrar de Millieseria muito mais complicado...
...Mas Millie, Millie querida,precisamos nos lembrar da arte.Dostoiévski, Górki, a invasãorussa, e agora a América queralguém do Leste Europeu. AAmérica está cansada de tantosBrowns e Smiths. Os Browns e osSmiths são bons escritores, mashá milhares deles, todos
escrevendo igual. A Américadeseja algo obscuro, asmeditações impraticáveis e osdesejos reprimidos de um homemdo Leste Europeu.
Millie, Millie, seu corpo éperfeito: todo ele desce firme atéos quadris, e fazer amor com vocêé fácil como calçar um par deluvas no auge do inverno. Seuquarto está sempre quente e alegree você tem discos e queijos esanduíches que me agradam. E,
Millie, tem o gato também,lembra? Lembra quando era umfilhotinho? Tentei ensiná-lo a dara patinha e depois rolar, e entãovocê me disse que ele não era umcachorro e que não ia conseguirfazer aquilo. Bem, eu consegui,não é verdade, Millie? O gatoagora já cresceu e já tem seusfilhotinhos. Mas a hora delechegou, Millie: os gatos e o seucorpo perfeito e a Sexta Sinfoniado Tchaikovsky. A América
precisa de um homem do LesteEuropeu...
Quando dei por mim estavana frente da minha pensão eresolvi entrar. Foi quando percebiuma luz acesa na minha janela.Olhei para dentro: Carson eShipkey estavam sentados na mesacom alguém que eu não conhecia.Jogavam carta, e no centro haviauma enorme garrafa de vinho.Carson e Shipkey eram pintoresque não conseguiam se decidir se
imitavam Salvador Dalí ouRockwell Kent, e trabalhavam noestaleiro enquanto tentavamchegar a uma conclusão.
Então avistei um homemsentado de modo muito calado nabeirada da cama. Usava umbigode e cavanhaque e mepareceu familiar. Tinha aimpressão de lembrar o seu rosto.Devia tê-lo visto em um livro,num jornal, num filme, talvez.
Então lembrei.
Quando lembrei quem eleera, fiquei em dúvida se entravaou não. Afinal, o que dizer? Comoagir? Com um homem comoaquele era difícil saber. Erapreciso tomar cuidado para nãodizer a coisa errada, era precisoser cauteloso em relação a tudo.
Decidi, primeiro, dar umavolta na quadra. Li em algumlugar que isso ajudava a diminuiro nervosismo. Ouvi Shipkeyblasfemar enquanto eu me
afastava e alguém deixou cair umcopo. Isso em nada me ajudaria.
Decidi treinar meu discursopara a ocasião. “Na verdade, nãosou muito bom com as palavras.Sinto-me muito tímido e nervoso.Guardo tudo para pôr no papel.Tenho certeza de que o senhorficará desapontado comigo, massempre fui assim.”
Pensei que aquilo funcionariae, assim que terminei de dar avolta na quadra, fui direto para o
quarto.Percebi que Carson e Shipkey
já estavam para lá deembriagados, e vi que não meajudariam em nada. O tampinhaque eles tinham trazido para ojogo também estava fora decombate, excetuado o fato de queele acumulara todo o dinheiro damesa.
O homem de cavanhaque selevantou da cama.
– Como vai o senhor? –
perguntou.– Bem, e o senhor? –
Trocamos um aperto de mão. –Espero que o senhor não estejaesperando há muito tempo? – eudisse.
– Ah, não.– Na verdade – eu falei –,
não sou muito bom com aspalavras...
– A não ser quando ele estábêbado, então ele fala peloscotovelos. Às vezes ele vai até a
praça e começa a discursar e seninguém o escuta ele fala com asaves – disse Shipkey.
O homem de cavanhaquedeixou escapar um riso. Tinhauma risada maravilhosa.Evidentemente um homem de finoentendimento.
Os outros dois seguiamjogando cartas, mas Shipkey viroua cadeira e ficou a nos observar.
– Sinto-me muito tímido enervoso – continuei – e...
– Nervoso que nem bifenervoso – gritou Shipkey.
Tinha sido uma péssimasacada, mas o homem decavanhaque riu novamente e eu mesenti melhor.
– Guardo tudo para pôr nopapel e...
– Nervosinho ou nervosão? –gritou Shipkey.
– ...e tenho certeza de que osenhor ficará desapontadocomigo, mas sempre fui assim.
– Escute, senhor! – gritouShipkey, avançando e recuando ocorpo na cadeira. – Escute aí, ôdo cavanhaque!
– Pois não?– Escute, tenho um metro e
noventa de altura, cabeloscacheados, um olho de vidro edados vermelhos.
O homem riu.– Então não acredita em
mim? Não acredita que eu tenhoum par de dados vermelhos?
Shipkey, quando ficavabêbado, sempre queria, poralguma razão, fazer com que aspessoas acreditassem que eletinha um olho de vidro. Apontavapara um dos olhos e afirmava queaquele era de vidro. Alegava queo olho tinha sido feito pelo pai,um especialista internacional, quehavia, infelizmente, sido mortopor um tigre na China.
De repente, Carson começoua gritar:
– Vi você pegar aquela carta!Onde você a enfiou? Vamos,devolva, devolva agora! Cartasmarcadas, marcadas! Por isso estáganhando! Assim até eu!
Carson se levantou e agarrouo pequeno jogador pela gravata ecomeçou a sufocá-lo. Carsonestava com o rosto vermelho deraiva, e logo o do pequenojogador começou a adquirir amesma cor por causa daesganação.
– O que está pegando, hein?Rá! O que está pegando? Rá! –gritou Shipkey. – Deixe eu ver,hein! Passa pra cá!
Carson estava tão vermelhoque mal conseguia falar. Silvou aspalavras por entre os lábios comgrande esforço, sem deixar depuxar a gravata. O pequenojogador começou a se debater, osbraços parecendo os de um polvoque tentasse chegar à superfície.
– Ele nos passou a perna! –
silvou Carson. – Trapaceou!Puxou uma carta da manga, tenhocerteza! Trapaceou a gente, não hádúvida!
Shipkey se posicionou atrásdo pequeno jogador e o agarroupelos cabelos, sacudindo a cabeçadele para frente e para trás.Carson se atinha à gravata.
– Você nos passou a perna,não é? Trapaceiro! Diga algumacoisa! – gritou Shipkey, aferradoaos cabelos do outro.
O pequeno jogador não dizianada. Apenas debatia os braços,começando a suar.
– Vou levá-lo a um lugaronde possamos tomar uma cervejae comer alguma coisa – eu disseao homem de cavanhaque.
– Vamos! Desembucha!Desista! Você não pode nosenganar!
– Ah, não creio que sejanecessário – disse o homem decavanhaque.
– Seu verme! Seu ratoimundo!
– Eu insisto – eu disse.– Querendo roubar um
homem com olho de vidro, não éverdade? Vou mostrar pra você,seu rato imundo!
– Bem, é muita gentileza desua parte. Estou com um pouco defome, de fato – disse o homem decavanhaque.
– Fale alguma coisa, ratoimundo! Se não disser nada em
dois minutos, nos próximos doisminutos, arranco seu coração parausar de maçaneta!
– Vamos sair daqui – eudisse.
– Tudo bem – disse o homemde cavanhaque.
*
Todos os lugares que serviamcomida estavam fechados àquelahora, e era uma longa distância até
a cidade. Não podia levá-lo devolta para o meu quarto, de modoque tive que tentar a sorte comMillie. Ela sempre tinha bastantecomida. Na pior das hipóteses,ela sempre tinha queijo.
Eu estava certo. Preparou unssanduíches para a gente e nosserviu café. O gato me reconheceue veio se acomodar no meu colo.
Pus o gato no chão.– Veja, sr. Burnett – eu disse.– Dê a patinha – eu disse ao
gato. – Dê a patinha!O gato ficou ali sentado.– Muito espertinho, ele
sempre faz isso – eu disse. –Vamos, dê a patinha!
Lembrei de Shipkey dizendoao sr. Burnett que eu falava comas aves.
– Vamos! A patinha!Comecei a me sentir um
idiota.– Vamos lá! Me dê a patinha!Aproximei minha cabeça do
gato e dei o melhor de mim.– Dê a patinha!O gato não se mexeu.Voltei a me recostar na
cadeira e peguei meu sanduíchede queijo.
– Os gatos são animaiscuriosos, sr. Burnett. Nunca sepode dizer como vão reagir.Millie, coloque a Sexta doTchaikovsky para o sr. Burnett.
Escutamos a música. Milliese aproximou e se sentou no meu
colo. Vestia apenas um négligé.Ela se escorou sobre mim. Deixeimeu sanduíche de lado.
– Quero que o senhor repare– eu disse ao sr. Burnett – naseção que conduz ao movimentoandante nesta sinfonia. Acho que éo mais belo movimento na históriada música. E além de sua beleza eforça, a estrutura é perfeita. Pode-se notar a inteligência a plenovapor.
O gato pulou no colo do
homem de cavanhaque. Milliecolou o rosto no meu, pôs umamão em meu peito.
– Onde você andava,garotão? A Millie sentiu sua falta,sabe?
O disco terminou e o homemde cavanhaque tirou o gato docolo, levantou-se e virou o lado.Ele devia ter pegado o segundoálbum de dentro da capa. Ao viraro lado, chegaríamos muito cedoao clímax. Eu não disse nada, no
entanto, e escutamos o disco até ofim.
– O que lhe pareceu? –perguntei.
– Ótimo! Simplesmenteótimo.
Colocou o gato no chão.– Dê a patinha! Dê a patinha!
– ele disse ao gato.O gato lhe estendeu a pata.– Veja – ele disse –, consigo
fazer o gato me dar a patinha.– Dê a patinha!
O gato se fingiu de morto.– Não, dê a patinha! Dê a
patinha!O gato ficou ali parado.Aproximou sua cabeça do
bicho e falou em seu ouvido:– Dê a patinha!O gato enfiou a pata direto
em seu cavanhaque.– Viram só? Fiz ele me dar a
patinha!O sr. Burnett parecia
satisfeito.
Millie se apertou forte contramim.
– Me beija, garotão – eladisse –, me beija.
– Não.– Credo, você está numa ruim
hoje, garotão? O que estápegando? Tem alguma coisafodendo sua paciência essa noite,tenho certeza! Conta pra Millie oque é! A Millie dá a vida porvocê, garotão, você sabe disso. Oque está pegando, hein?
– Agora vou fazer o gato sefingir de morto – disse o sr.Burnett.
Millie me apertou forte comos braços e me deu uma olhadelade cima para baixo, que euretribuí. Ela parecia triste ematernal e cheirava a queijo.
– Diz pra Millie o que estáfodendo com você, garotão.
– Finja-se de morto! – o sr.Burnett disse ao gato.
O gato não se mexeu.
– Escuta – eu disse a Millie–, está vendo aquele homem ali?
– Sim, estou vendo.– Bem, ele é Whit Burnett.– Quem é?– O editor da revista. Para
quem eu mandei meus contos.– Você quer dizer aquele que
manda uns bilhetinhos pra você?– Cartas de rejeição, Millie.– Bem, ele é malvado. Não
gosto dele.– Finja-se de morto! – o sr.
Burnett disse ao gato. O gato sefingiu de morto. – Vejam! – elegritou. – Fiz o gato se fingir demorto! Quero comprar esse gato!Ele é maravilhoso!
Millie se apertou ainda maiscontra mim e me olhou nos olhos.Eu não via escapatória. Sentia-mecomo um peixe ainda vivo, imersono gelo do balcão do açouguenuma sexta-feira de manhã.
– Escuta – ela disse –, possodar um jeito dele publicar um dos
seus contos. Posso arrumar paraele publicar todos!
– Vejam-me fazer o gato sefingir de morto! – disse o sr.Burnett.
– Não, não, Millie, você nãoestá entendendo. Editores não sãocomo homens de negóciocansados. Editores têmescrúpulos!
– Escrúpulos?– Escrúpulos.– Finja-se de morto! – disse o
sr. Burnett.O gato ficou parado.– Conheço bem esse negócio
de escrúpulos! Não se preocupecom escrúpulos! Deixa comigo,garotão, vou fazer ele publicartodos os seus contos!
– Finja-se de morto – disse osr. Burnett para o gato. Nadaaconteceu.
– Não, Millie, isso não vaiacontecer.
Ela estava toda enroscada em
mim. Era difícil de respirar e elaera bastante pesada. Senti meu péficar dormente. Millie apertou abochecha contra a minha e passoua acariciar meu peito com umadas mãos.
– Garotão, não precisa dizernada.
O sr. Burnett aproximou suacabeça da do gato e disse algo emseu ouvido.
– Finja-se de morto!O gato enfiou a pata no meio
do cavanhaque de Burnett.– Acho que o gato está com
fome – ele disse.Com isso, retornou a sua
poltrona. Millie se aproximou e sesentou sobre seu joelho.
– Onde você conseguiu essecavanhaque charmoso?
– Com licença, vou pegar umcopo d’água – falei.
Fui até a cozinha e me senteià mesa de café da manhã e olheipara os desenhos de flores sobre
o tampo. Tentei descascá-los comuma das unhas. Já era bastantedifícil dividir o amor de Milliecom o vendedor de queijo e osoldador. Millie remexendo osquadris. Merda, merda.
Fiquei ali sentado e depoisde um tempo retirei do bolso acarta de rejeição e a li mais umavez. Os lugares onde a carta foradobrada começavam a ficar sujos,amarelados e carcomidos.Deveria parar de olhar para
aquele pedaço de papel, guardá-loentre as páginas de um livro comoaquelas antigas rosas.
Comecei a pensar no queestava escrito ali. Sempre tiveesse problema. Mesmo na épocada faculdade, deixava-me arrastarpara essa vasta depressão. Certanoite, a professora de escritacriativa me levou para jantar edepois para um show a fim de mefalar sobre as belezas da vida. Euhavia lhe mostrado um conto em
que eu, como personagemprincipal, tinha ido até uma praiaà noite e me estendido na areia,mergulhando numa meditaçãosobre Cristo, sobre o significadoda morte, da completude e domovimento de todas as coisas.Então, no meio de minhasmeditações, surgia um mendigo deolhos turvos, que jogava areia naminha cara. Eu falava com ele,depois acabava comprando umagarrafa e nós enchíamos a lata até
ficarmos enjoados. Mais tarde,seguíamos até uma casa mal-afamada.
Depois do jantar, aprofessora abriu a bolsa e puxou omeu conto da praia. Destacou otexto na parte em que o mendigode olhos turvos entrava em cena elá se iam as meditações sobreCristo.
– Até aqui – ela disse –, atéaqui o texto estava muito bom, defato, estava maravilhoso.
Então ela ergueu os olhos dopapel e me encarou daquele modoque somente quem possuiinteligência artística e conseguiufazer carreira e dinheiro com issopode olhar.
– Agora sinto muito – eladisse, batendo com os dedos naparte inferior do meu conto –, masisso aqui não presta. Que diabosafinal você quer com este trechoaqui?
*
Eu já tinha ficado afastadopor tempo demais. Levantei esegui em direção à sala principal.
Millie estava toda enroscadanele, olhando-o de cima parabaixo. Ele parecia um peixe nocongelador.
Millie deve ter pensado queeu queria falar com ele sobredetalhes editoriais.
– Me deem licença, mas
preciso ajeitar meus cabelos – eladisse, deixando a sala.
– Um bela garota, não émesmo, sr. Burnett?
Ele se ajeitou e apertou o nóda gravata.
– Me desculpe – ele disse –,mas por que segue me chamandode sr. Burnett?
– Não é este seu nome?– Me chamo Hoffman. Joseph
Hoffman. Trabalho para aSeguradora Curtis. Vim atendendo
à sua solicitação.– Mas não mandei a vocês
nenhuma solicitação.– Ora, recebemos sua carta.– Não enviei carta nenhuma.– O senhor não é Andrew
Spickwich?– Quem?– Spickwich. Andrew
Spickwich. Taylor Street, 3.631.Millie voltou e se enroscou
em Joseph Hoffman. Não tivecoragem de lhe dizer a verdade.
Fechei a porta com muitocuidado e desci a escada emdireção à rua. Segui quadraabaixo e então vi as luzes seapagarem.
Corri como um louco emdireção ao meu quarto,esperançoso de que houvessesobrado um pouco de vinhonaquela enorme jarra sobre amesa. Não acreditava, porém, quefosse ter essa sorte, porquerepresento como ninguém um
certo tipo de pessoa: tomada poruma vasta depressão, pormeditações infrutíferas e desejosreprimidos.
20 tanques deKasseldown
Estava sentado em sua cela,tamborilando os dedos na garrafa,pensando, é muito espíritoesportivo da parte deles me daresta garrafa. Enquanto ele batia novidro, sentia uma sensaçãoagradável nos dedos, esticando-os
um bocado, o toque fresco e limpoda superfície. Bebera uísqueanteriormente, tinha descobertoque ele tornava a vida suportável;suavizava as coisas; lavava bemas mentes agitadas demais:selecionando-as, retardando-as,estabelecendo uma marca visívelpara elas.
Uma barata cruzou o chão,como um raio, depois parou desúbito ante um de seus sapatos.Ficou ali e ele parou de bater,
prestando atenção. Dos dedosimóveis na garrafa à forma dopróprio sapato junto à barata, seustraços eram magros, flexíveis,delicados sem ser femininos; ehavia uma dignidade que faziapensar em reis, em príncipes, emcoisas protegidas e arruinadas, ese você não o conhecessepensaria que a vida não lheprovocara qualquer marca.(Esticou o pé e esmagou a barata.)Tinha aproximadamente trinta
anos e seu rosto, como o rosto deum pensador, parecia a um sótempo jovem e idoso. Osmovimentos eram contidos esuaves, sempre subordinados àmente, e às vezes, quando no meioda multidão, eram abruptamentedissimulados e restritos, de modoa não atrair a atenção. Durante ojulgamento, quando ainda eranotícia, a cela vivia cercada porrepórteres. Ele sorriacontinuamente quando o
questionavam, contudo podiamver que ele não estava nem umpouco feliz – como se pudesseestar! No entanto, não se tratavade um sorriso de escárnio. De umcerto modo, era até agradável.Não parecia conter muito ódio;apenas um traço vago, umainconsistência. Não se dava aotrabalho de se barbear e cultivavauma barba macia, fina, como ospelos sob as axilas. Isto lheconferia um ar de mártir, aquela
barba, os olhos de fantasma, eentão ele se inclinava para trás,de encontro à parede, acendendoo cigarro com movimentosrefinados, os olhos voltados parabaixo. Então sorria para osrepórteres:
– Bem, amigos, o que possofazer por vocês? Apenasmantenham os padres afastados...
Estava na cela, sentado,quando os dedos começaram atamborilar outra vez na garrafa.
Era a segunda vez que faziaaquilo, e já não pôde obter omesmo prazer pois tamborilar jánão lhe era surpreendente.Começou a sorrir.
Teve tempo para escrever umlivro. Deveria ter escrito umlivro. Letras impressas naspáginas, sabe. A primeira letra decada capítulo cheia de firulas.Feita como uma rosa ou como umafolha ou mesmo o joelho de umadonzela. Deveria ter escrito um
livro. Todos fazem isso.“Traição... é estar no ladoderrotado da revolução.” Este éum país pequeno, mas eu poderiater escrito um grande livro... É umpaís pequeno, mas com vintetanques a mais, apenas vinte, e euestaria em Kasseldown eCurtwright estaria aqui –escrevendo um livro. Inferno, atécom cem cavalos...
Mas agora você é o alvoprivilegiado para tornar a glória
do país mais belicosa nos manuaisde História. Veja bem, vocêmatou uma barata e eles também –quero dizer, é o que eles farãohoje quando o sol se pôr...Consegue ver os pequeninoslendo, lendo, e então a professora,com sua longa vara de madeira eo quadro-negro, apontando paraum mapa colorido. Os cadernos, atinta densa nas mesas...memorizem, memorizem isso. Ummovimento completo, um fluxo
completo de palavras epensamentos e ideias... horas defalação e contra-argumentos,exames, a tradição entrandocustosamente nas mentesmaleáveis, e para sempreinalterada. E agora eles cantam,cantam, e marcham para fora dassalas de aula e jogam bola eacreditam no que lhes disseram...e crescem e leem jornais, eacreditam... tudo isso por umadiferença de cem cavalos, cem
pedaços da carne bestial, queapenas se alimentam e defecam;massa estúpida, massa estúpidade carne bestial que fez soar asnotas da canção... Os cavalos deCurtwright.
Bebeu outra vez da garrafa,sentindo-se muito sozinho, masnão por causa das quatro paredesmolhadas e areentas.
M a s ainda assim... vocêtentou. E se você tivesse vencido,seria a mesma coisa, só que no
extremo oposto... Por que isto lhecausou aborrecimento? Não sabiaque com um número tão reduzidoisso representaria o fim? ...Não,não se tratava de ambição – nãonesse sentido... Eram apenas aspessoas, todas as vidas correndo,todas as vidas que corriam fracas,mergulhadas completamente nomedo. Tudo não passava de umritual de não fazer, não machucar,não aguardar. Ele tinha sentidoapenas uma fome, fome de fazer...
fazendo qualquer coisa paraquebrar aquela redoma sufocante.
Sentou-se na cela e trouxa agarrafa para diante dos olhos. Aluz era fraca, mas ele ainda podiaentender as palavras marcadas novidro: A LEI FEDERAL PROÍBEA VENDA OU REUTILIZAÇÃODESTA GARRAFA...
Pôs-se de pé e logo se deuconta de que olhava para asparedes. Paredes de um cinzacurioso, cobertas por um suor
frio, grossas – submetidas a seupróprio drama – e tão velhas...Velhas. Envelhecendo como asmulheres... Do mesmo modo comoelas envelhecem. Triste,realmente triste. Você viu osjovens andando todos aprumadose altivos... e você odiou o orgulhoque ostentavam, porque não havialugar para orgulho entre coisasmecânicas e momentâneas. Oorgulho só podia pertenceràqueles que criaram novas
formas, aos que venceram... Elesorriu outra vez e permaneceuolhando para as paredes.Pareciam agradáveis e cheias designificado, e ele tocou com umdos dedos a borda áspera,cinzenta e molhada.
Estava com a garganta seca efoi à torneira encher o copo delata. A água jorrou com força,fazendo um redemoinho,aumentando a branca espuma nocopo. Fechou a torneira, mas
demasiado tarde, e houve umtransbordamento que provocouuma mancha porosa visível nocouro de um dos sapatos. Algumacoisa girou lentamente em suatesta e ele pensou, tudo está muitocalmo. Bebeu a água, mas o gostode lata era horrível, e, de súbito,sentiu-se doente, muito doente.Voltou a se sentar no catre, oquarto todo sombra e cimento, eteve consciência de suarespiração, e a cada inalar vinha o
gosto de lata. Bebeu o que restarada garrafa de uísque, então adepôs com muito cuidado no chão.Assentar corretamente a garrafaera uma das poucas açõesindependentes que lhe haviamrestado. Encostou-se outra vez naparede, fechou os olhos, abriu-os,e soube então que talvez estivesseapenas amedrontado, a mentetentando elaborar algumadesculpa para a morte da carne.
Quando os pensamentos
encontraram seu destino, um frioque começou nos dedos foisubindo por ambos os braços,fazendo com que mexesse osombros em espasmos, para nãodeixar que a agitação tomasseconta das costas. Tudo está muitocalmo, pensou outra vez, esubitamente sua mente encontrouuma saída, uma base, e ele odiouo redemoinho, o redemoinhoembebido de sentido, o imensovolume e a soma, o peso dos
números e das possibilidades; ovolume e a pressão das coisas nãocanalizadas e não embasadas quepoderiam matar sem umpestanejar, um suspiro, um clique.
Mas foque no presente,pensou, nunca deixe a paixãodeformar o momento. A paixão,disforme, é um sinal dainferioridade! Escute. Tome isso,tudo isso, e para eles – façanumerais, símbolos, fórmulasresistentes e bem equilibradas.
Então, por fim, começou a rir– não uma risada, mas um risinhoefeminado, quase imperceptível,quase louco.
– Guarda! – ele gritou.O guarda apareceu e ficou ali
parado, para além das grades.– Você quer ver o padre? –
perguntou.O guarda era careca e gordo
e parecia olhar para ele; careca egordo, sua cara é um misto debrutalidade e humor, sem que haja
uma definição, e os olhos são tãopequenos, tão pequenos.
– Você não deve me acusarde grosseria ou de amargura,guarda, mas um homem comovocê... não faz nenhuma diferençaem que época você vive: se agora,ou daqui a dois mil anos, ou emalguma época intermediária. Vocênão tem nenhuma marca, nenhumsom específico, nada a serregistrado... Apesar disso, é ótimoestar vivo, ótimo até mesmo para
você. É ótimo estar aí e meperguntar se eu quero um padre, éótimo jogar seu joguinho seguro eaguardar o grande estrondo do queestá por vir. Afinal de contas,você absorve alguma coisa,mesmo sem participar de nadadiretamente... mas me sintoenojado de ouvir minha própriavoz. Diga alguma coisa. O quevocê acha, guarda?
– O que eu acho?– Sim.
– Vai querer o padre?– Não. Suma daqui.Sentou-se na cela, sentindo-
se mal.Eu tento, tento... tento ver.
Mas esse maldito mundo inteirome parece falso, falso... Ah, eudeveria ter permanecido nohospital, interagindo com aspessoas, pintando à noite. Poderiater feito meu próprio mundo ànoite. Mas eu quis agitar toda alagoa, fazer tremer as bases. Ah,
Difícil sem música
Larry foi interrompido porsua senhoria no saguão assim quechegou da rua.
– Há gente lá em cima no seuquarto. Viram seu anúncio sobre otoca-discos e os discos. Acheique não haveria problema emdeixar eles subirem. Falei com
eles por um bom tempo, e alémdisso...
– Tudo certo.Cruzou por ela.Ela o deteve pelo cotovelo.– Larry.– O quê? – Ele se voltou na
direção dela.– São freiras.Ele não respondeu.– Você está bem, Larry?– Sim, estou bem.– Tem certeza, Larry? São
Irmãs. Não haveria problema senão fossem Irmãs.
Subiu as escadas, entrou nobanheiro. Fechou a porta e seolhou no espelho. Bebeu um copod’água, depois acendeu umcigarro. Deu umas boas tragadas.A fumaça ergueu-se no banheiro eo cigarro produziu uma cinzavermelha, fina e dura. Puxou umaúltima baforada, seguiu emdireção à privada e deixou ocigarro cair dentro. Então voltou
para a frente do espelho e seolhou outra vez...
A porta do quarto estavaaberta e ele foi entrando. Uma dasfreiras estava sentada na cadeirade encosto reto, e a outracaminhava na direção do toca-discos com um disco nas mãos.
A que estava na cadeira o viuprimeiro.
– Ah, são encantadores,encantadores!
Larry foi na direção da
poltrona e sentou-se. Ficava juntoà janela. Podia ver as árvores e oquintal. Seria verdade o que dissePaul? Que elas raspam ascabeças?
A freira com o disco nasmãos colocou-o ao lado do toca-discos e olhou para o homem.
– Escute – ele disse –, vá emfrente. Escute o disco. Podeescutar todos os que quiser.
– Oh, eu estou certa de quesão todos encantadores – disse a
que estava na cadeira.– A Irmã Celia conhece todos
eles – disse a que estava de pé.A da cadeira sorriu. Seus
dentes eram muito brancos.– O senhor tem um ótimo
gosto. Quase todas as obras deBeethoven, e Brahms, e Bach e...
– Sim – disse Larry. – Sim,obrigado. – E voltou-se para aoutra freira: – Não gostaria de sesentar? – perguntou. Mas ela nãose moveu.
O suor brotava na testa dele,nas palmas das mãos, na altura desua garganta. Limpou as mãos nosjoelhos. Por que tinha essesentimento de que iria fazer algoterrível? Como eram negrasaquelas vestes; e o branco: quecontraste. E os rostos.
– Minha obra favorita – eledisse – é a Nona de Beethoven.
Não era. Não tinhapredileções.
– Gostaria de usá-los nas
minhas classes – disse a IrmãCelia, a da cadeira. – É tãodifícil... sem música.
– Sim – disse Larry. – Paratodos nós – a voz dele tinha soadodramática. Sentiu-se uma figuraalheia àquele quarto. Era o augedo verão. Seus olhos pareciamcobertos por uma névoa, agarganta estava seca. Uma finabrisa passou por um momentoatravés de sua testa. Pensou emhospitais, em desinfetantes.
– É uma pena ter de vendê-los. Quero dizer... para o senhor –disse a Irmã Celia. Ela eraevidentemente a compradora, elepensou; a outra tinha vindo apenaspara acompanhá-la.
Larry esperou um momento eentão respondeu:
– Tenho que me mudar daqui.Para uma outra cidade. Acabariamse quebrando, a senhora sabe.
– Tenho certeza de queseriam excelentes para minha
classe, para as garotas maisvelhas.
– Garotas mais velhas – disseLarry. Então seus olhos seabriram e ele olhou fixamentepara a Irmã Celia, para o rostoliso e os olhos pálidos de freira. –Isto é sábio – ele disse. –Extremamente sábio – a voz tinhase tornado áspera e metálica. Osuor que se formava em suaspernas fazia desagradável ocontato da lã das calças. Suas
mãos se moviam sobre os joelhos.Olhou para baixo, e depois denovo para a Irmã Celia. A outrafreira parecia estar distraída,distante.
Então ele começou:– A instrução básica
moderna, por razõesdesconhecidas, ao menos paramim, considera plausívelintroduzir Beethoven às almas deoito anos. Alguém uma vez fezuma pergunta, “Os compositores
são seres humanos?”. Bem, eu nãosei, mas o que sei é que os sonsque saíam do toca-discos do meuprofessor na terceira série nãoeram, para mim, sons humanos,sons que de modo algumguardavam qualquer relação coma vida real e com os seres vivos,com o mar ou com o campo debeisebol. E a professoraembebida em suas ponderaçõesetéreas e magnânimas, seus óculossem aros, a peruca branca e a
Quinta Sinfonia não eram umaparte mais real da vida do que oresto deles... Mozart, Chopin,Handel... Os outros aprendiam osignificado dos pequenos pontospretos com caudas, e sem caudas,que subiam e desciam as escadasmarcadas a giz no quadro-negro.Mas eu, vencendo o medo e arevolta, à moda de uma tartaruga,recolhia minha cabeça,mergulhando na escuridão docasco. E hoje, quando erro pelas
notas programadas de meusálbuns... tudo continua escuro...
Ele riu. Sentiu-se de repenteidoso e mundano. Esperou que asfreiras dissessem alguma coisa,mas elas não disseram nada.
– A boa música me chegavasorrateira. Não sei como issoacontece. Mas de repente, láestava eu, um jovem em SãoFrancisco, gastando todo odinheiro que eu conseguia juntarem sinfonias para alimentar as
famélicas entranhas da enormevitrola de madeira da minhasenhoria. Acho que aqueles foramos melhores dias, ser jovem epoder olhar a ponte Golden Gateda minha janela. Quase todos osdias eu descobria uma sinfonianova... Escolhia meus álbunspraticamente por acaso, nervoso eperturbado demais paracompreendê-los nas divisórias devidro das lojas de disco que maispareciam clínicas... Há momentos,
descobri, quando uma peça,depois de audições prévias,estéreis e secas... Descobri queum momento vem quando, por fim,a peça se revela por inteiro àmente...
– Sim, há muita verdade emsuas palavras – disse a IrmãCelia.
– Você está escutando amúsica casualmente, distraído. Eentão, através do brilhopreguiçoso que você produziu,
quase sobre esse brilho, escalandopor sobre ele, através dele,centrando-se flexivelmente sobreo cérebro desprotegido... vem amelodia, ondulando, cantando,dançando... Toda a potência dasvariações, das notas emcontraponto, deslizando comfrescor de modo inacreditável namente. No que diz respeito àbondade é... como o zumbido deincontáveis abelhinhas de açogirando em torno de uma beleza
em constante elevação... Ummovimento repentino do corpo,um esforço para acompanhar, comfrequência vai matá-lo, e apósalgum tempo você acabaaprendendo isso. Você aprende anão matar a música. Mas suponhoque é isso o que estou fazendoagora, não é?
As freiras não responderam.A que estava de pé se moveu umpouco.
– Não é mesmo? – Larry
repetiu.– Quanto você quer? Quanto?
– perguntou a Irmã Celia.Olhou para fora da janela.
Então se sentiu incomodado. Era ahora do jazz e das laranjas, deagitar as cadeiras. Tinha esperadotempo demais. Viu uma mulherpendurar um lençol lá fora.
– O anúncio – ele disse,calmo e firme – falava emquarenta dólares.
Formou-se um círculo do
silêncio. A mulher terminara deestender o lençol. Alguémtropeçou no andar de cima dapensão.
– Contudo – olhou para IrmãCelia e sorriu –, posso fazer por35...
Elas partiram num táxi depoisque ele desceu as coisas e ascolocou no banco traseiro entre asduas. Sentiram-se muito mal portomarem o táxi, mas era a única
maneira. Ele concordou.Sentiram-se mal quanto aos 35dólares também, mas nãodisseram nada...
Larry encontrou a senhoriaquando subia novamente a escada.
– Vai ser bom – ela disse.– O quê?– Para a escola, para as
meninas.– Ah, sim – ele disse –, acho
que sim.Subiu as escadas e voltou
para o quarto. Sentou-se na beirada cama e retirou a carteira.Correu os dedos ao longo dasbordas das notas. Então as puxoue as espalhou sobre a cama. Asnotas não eram nem velhas nemnovas; de meia-idade. Havia trêsde dez e uma de cinco.
Pareceu muito pouco.
Traço: Escrita deeditor
Charles Bukowski (antigoeditor da Harlequin): “...Nesterifacimento estamosdeliberadamente dourando apílula que o público terá deengolir? Quem é o poeta quedançará diante da multidão
comprimida? Jazz não vai bemcom poesia. O jazz pode ser vital,estimulante. Pode ser parte dofolclore e ser convertido – àsvezes – em arte, mas o jazz nãochega a ser uma verdadeira arte.O jazz é uma batida, o jazz é umasuperfície, o jazz sugere ritmossexuais e o ato em si: jazz écongo, jazz é bom, jazz é mau;mas jazz, em tudo o mais, éesquálido e confinado e tênue –pega seus truques emprestados
dos clássicos, mas nunca aprende.Poesia? Poesia é boa e má egrandiosa – a maioria é péssima –e se for para cama com o jazz nãoproduzirá filhos fortes.
Tudo bem, você tem umaaudiência. Mas trata-se de umaaudiência intelectual ou de umgrupo de gaiatos? E de quem estãotirando sarro? Que ermitão, quepersonagem saído de sua Torre deMarfim virá cantar para elesenquanto as próprias nereidas se
afogam? Me parece que um poetaque se coloca nesta posição deveser, de alguma maneira, um ator eum extrovertido e, de todo modo,estar faminto por reconhecimentoimediato: o aplauso daquelessuficientemente dispostos para lhedar as boas-vindas e oreconhecimento que nada maisfazem do que garantir que ele aomenos está vivo, percebam ou nãoquaisquer intenções e conceitosque o poeta pretende preservar
depois de ter cedido tanto.Não estou desmerecendo o
público das leituras poéticas –estou louvando a poesia. Quandoa poesia se torna popular a pontode encher cabarés e casas deshow, então alguma coisa estáerrada com essa poesia ou entãocom a audiência. Ou a plateia olhapara o poeta como um louco, umpalhaço sacolejando ao som dojazz, para ser lembrado como algobizarro entre uma bebida e outra,
ou o poeta está deliberadamentelendo para aquela audiência a fimde cativá-la. Merecemos o abutrebarbudo por sentar com o crupiê,e daqui a dois ou cinco ou dezanos, quando olharmos para nósmesmos por termos caído naarmadilha, aqueles que estãoagora envoltos na mais feérica dassatisfações, tenho certeza de queserão os de fraseado maisinarticulado em suascontribuições à prostituição e à
Pedaços de umcaderno
manchado de vinho
nenhuma correção ao falcão ou aorebolar de suas cadeiras, querida– correção ao destino do homem...morte, deus a morte éinacreditável... tenho visto asparedes verdes e o rosário e a
morte antes do Natal, uma portatrancada, desviada... gramadosirrigados; e sempre o sol, o sol...por quê?
Enfrentei um inferno mais terríveldo que qualquer conjecturapessoal possa conceber, eimagino que virão outros, deveriaimaginar que a risada estaria atrásde qualquer respiro, mas os livrosdizem que não, os livros falam decoisas monótonas, coisas muito
monótonas e de um jeito monótono– não há ninguém com uma faca noleprosário dos urros; nãodeixemos a vida para que osidiotas possam cuspi-la como sefosse um mingau, ou então para asgarotas entupidas de gim. Achoque hoje vou estourar uma janelae ouvir E. Power Biggs. Qual é asua desculpa?
Já expulsei as prostitutas daqui epassei um esfregão no chão da
cozinha. O próximo problema é oaluguel. Logo terei 39, daqui asete dias, e ainda vivo como umcigano. Penso que a poesia éimportante, se você não apersegue exaustivamente, se vocênão a enche de estrelas efalsidades. Poesia, pintura, areia,putas... comida, fogo, morte,bobagem... o ligar de umventilador... a garrafa.
...bem, quem você considera o
maior escritor de todos ostempos?
Não penso no maior escritor detodos os tempos. Penso em algunsmodernos, então esqueço. Não setrata de um conceito, mas sim deuma defesa contra a intrusão.
você acredita em Deus?
Não se Deus foi inventado esomente se Ele me permitir a
invenção. Deus deve nos inventarsem considerar a Si próprio, e sehá mesmo Um, é o queprovavelmente Ele faz. Umaquestão impossível.
Por que você escreve?
Escrevo para ter uma função. Semisso cairei doente e morrerei. Étanto parte de alguém como ofígado ou o intestino, e quase tãoglamoroso quanto.
A dor cria um escritor?
A dor não cria nada, assim comoa pobreza. O artista está láprimeiro. O que será dele estádiretamente ligado à sorte. Se suasorte é boa (falando literalmente),ele se torna um mau artista. Se suasorte é ruim, ele se torna um dosbons. Em relação à substânciaenvolvida.
morte é vitória.
Estou morto
Estou mortoMORTOum gatilho frente aos
distantes olhos da Chinae três velhos fumando na neblina;quase, quase, diz o canoe o cachorro salta sobre os galhos dourados.diante do mastro de Deus
esfregado abruptamente emalgodão e
azeite de oliva,as ondas se erguem altas
como filmes de celuloiderevelando o belo rosto de Satã.
talvez, claro, o delicado raciocínio das teclas
do piano:
talvez, mesmo o correr dos cavalosmontados por homenzinhos
em trajes marrons e verdes e
vermelhos e azuis de sedaaçoitando suas montarias
através do matoevocando nomes através do
lago,e aqui com a loira de peitos
fartos,o prêmio, eu espero o cavalo vencedor,as pernasescancaradas para o
campeão,mas como ela é simples eirracionalesperando por um númeropara testar minha fertilidade
atravésde um quilômetro de sujeiraquando
qualquer garanhãofaria o mesmo.
Não há vidas suficientes em um sóhomem para conquistar a Arte, ehá ainda menos homens em um sómundo para criticá-la. foi apintura; não foi minha culpa; ocenário estava mal. Estoumorrendo sem estar doente, estoumorrendo de uma existência friademais para resistir. Olho atravésde uma janela para a luz de um dia
terrível, que embrulha meuestômago. Ninguém mais se senteassim? Estarei completamentelouco?
ah, ser um armáriosustentando pedaços
de roupaum santuário de entranhas
quentes tão imortal quanto Rodin,e livreporque
está morto.
Caro E. T.: No que diz respeito àsua carta, sinto uma propensãooculta, um sentimento pelahumanidade, um sentimento desanidade e ciência e política, umaluta por progredir nas Artes, ou aomenos a esperança disso tudo.Admiro de verdade (nosmomentos de fraqueza) aperspectiva ampla e calorosa deum intelectual e desejo (nos
momentos de fraqueza) possuir talvisão. Mas o fato é que a épocaem que vivemos me parececretina, indecente e castradoracomo o assassinato de um velhocervo para conseguir um pedaçode bife vencido. O homem jáapodreceu e se radicou numburaco de anfigêneo e não quermais sair. Muito bem, euprovavelmente estaria descontenteem qualquer outra época, talvezmais do que estou agora. De todo
modo, qualquer coisa é perdoávelse você acredita em Deus, e euacredito no Deus de Mim Mesmo:o que encontra tanta cor num tijoloquanto numa rosa, superável masadamantino. Trappo! Smolzandosognado solenne.
Gostaria ainda de dizer que seuamigo que conserta óculos emalgum lugar (arrumou o meu,lembra?) tão revoltado e apesardisso tão revoltante com aquela
sofisticada confiança na calvícieatraente, a palidez da pele rosadae limpa, gostaria de dizer que nãoconsigo olhar nos olhos dele, oumesmo para o rosto ou qualquerparte daquela superfície fina emorta de sua figura vitoriosa. Eunão estava jogando (uma vez navida), comia apenas uma azeitonae pensava no grupo Ballet Russede Monte Carlo quando essescaras apareceram com chapéus depalha e começaram a dar socos
com soqueiras e pauladas e nãohavia nada a fazer senãomergulhar e acabei aterrissandosobre um canteiro de jacintos etentei me assemelhar a um botãoem flor, mas um dos caras medescobriu com uma lanterna dotamanho de um holofote depenitenciária, e eu cruzei com umadireita e ele com uma bola presa auma luva de couro, e quando medei conta despertei em uma celaque não era maior que o closet de
uma anã, não havia espaço paraler Rimbaud ou pra desfilar comminha cartola... Ah, México!
e o truque é ficar preparado paraos 50 ou 60 ou 70 ou 80 ou 90anos sim os olhos abertosenquanto as moscas acabampresas no papel e os grandesquadros são roubados e as belas efiéis esposas fogem com seusamantes infiéis, condenadas todasa morrer numa manhã qualquer,
sem abraços nem beijos, frias.
Houve então aquele dia em queDeus caiu do céu, na esquina daHaggerty com a 8th, despencandocomo uma pipa rasgada, caindo,caindo, a corrente de poderrompida... amarrada ao redor deSeu pescoço, e uma lança movidaa pistões perpassando-lhe ocoração.
Corri até o lugar aberto em que
Ele se estatelou como uma baleiaarpoada, gotas douradas de suorsobre a testa, e Ele piscou paramim, piscou-me o olhomagnificente e disse:
– Velho amigo, tudo não passa deuma enorme perda de tempo, nãoacha?
tudo o que sei é que acredito nosom da música e no correr de umcavalo. tudo o mais é ruído.
talvez a maior conquista doHomem seja sua habilidade paramorrer, e sua habilidade dedesconsiderar tal fato. por certo apoesia e a pintura não sãoimpedimentos, nem os mais altosobstáculos da mente sobre ascaveiras do realismo. sejamoshonestos de uma vez por todas, averdade não é o que de fatoimporta – frequentemente é deixara verdade de lado.
Você me enganou seu veado eledisse à procura da chave de roda,que já estava comigo. escute, Lou,eu disse, tudo o que eu faço éescrever poesia e beber e ouvirmúsica e trepar, não tenho outraescolha... não confio em gente quelê, ele disse. Vocês não passamde umas bichinhas que nãoconseguem acertar uma tacada.Você me entendeu mal, Lou: nãoestava interessado em acertar umabola de beisebol. e se eu tivesse
me interessado e achasse issoimportante, teria mandado essabola para a estratosfera e poderiainclusive lamber o seu rabo seachasse que valia a pena. Deixouum riso aparecer no rostoestúpido e jamais pôde perceber oquão perto da morte haviachegado...
precisamos é de um herói paraproteger os derrotados, umQuixote dos moinhos de vento,
aqui e agora, e depois depensarmos tê-lo descoberto, serátarde demais para vê-lo engajadocontra o inimigo, sorridente etocando o chapéu, como se nosconsiderasse um bando de idiotaspor acreditar nele, e realmenteéramos.
bêbado outra vez num quarto dotamanho de um pacote debiscoitos, sonhando com Shelley ejuventude, barbudo, um filho da
puta desempregado com umacarteira cheia de bilhetespremiados tão impossíveis dereembolsar quanto os ossos deShakespeare. todos odiamospoemas de comiseração elamúrias de um pobre sofredor –um bom homem pode vencerqualquer parada e saudar aprosperidade (assim nosdisseram), mas quantos homens devalor você consegue apanhar numjarro hermeticamente fechado? e
quantos poetas de qualidade vocêconsegue encontrar na IBM ouroncando sob lençóis de umaprostituta de cinquenta dólares?mais homens de valor morrerampela poesia do que todos os seuscampos de batalha de merda;então se eu cair de bêbado numquarto de quatro dólares: você jáferrou com sua história – deixeque eu me vire com a minha.
eles chegam devagar, os rostos
como os rostos de pescadoresnum barco que passa, epescadores com suas varas e iscase redes douradas, com seusinsultos, suas chamadas eacusações. sim, como se fossemeles mesmos peixes, penduradosnas pontas das linhas, seus olhossaltados lançando estranhospontos de luz debaixo dacadavérica película de medo.
Quando eu tinha 24 ou 25,
entregava sanduíches e limpavavenezianas e respondia aperguntas sobre os clássicos numbar na Filadélfia, junto àpenitenciária Leste. A maior partedos dias não deixou lembranças,mas nem por isso careceu desentido: eu me sentia em busca demim mesmo, e quase encontrei oque estava procurando certo diaquando caí em uma de minhasentregas, numa viela, como umgrande pássaro ferido, minha
barriga branca exposta ao sol, eas crianças começaram a aparecere a me dar cutucões e então umamulher disse:
– Está bem, agora deixem ohomem em paz! – e eu ri, íntima eserenamente, por ser incapaz aoponto da castração num diamaravilhoso de primavera, umjovem impresso nos dois lados doAtlântico, o sanduíche de alguémimerso na sujeira.
passe por uma escrivaninha comseu rosto, passe por caixõescheios de amor, passe pelo pardaldoente de sonhos.
eles removem os mortos à noiteem silenciosas macas enquanto osvivos dormem. a vida se tornamenos e menos vida assim quecada momento cai sobre outromomento, como folhas secas.
O capricho eleva a perdição à
estatura de conhecimento.
Certa vez em Paris vi uma porcatão boa quanto a mãe de qualquerum de vocês e o tesão da minhaalma indecente se acendeu eofereci a ela um cigarro e ummaço de vinho em flor, e nossentamos entre os jovens e férteis,e ela percebeu que eu estavamuito louco, e eu disse a ela, amovocê, mamãe, amo a juventudeque um dia esteve aí; ainda posso
vê-la, a morte não vai nosassaltar, porque eu posso verdebaixo d’água. E a gente bebeu eela, tendo aceitado o louco, o queera tudo de que se precisava, melevou até seu quartinho e, atravésdo fedor de sua idade, fiz um tipode amor que matou o restinho deamor que ainda havia em mim, equando Barbara escreveu de NovaYork, fiquei olhando para a tinta,e rasguei sua avidez e me volteiumas quantas vezes para minha
porquinha e disse, uma criança,nada além de uma criança.
se eu pudesse simplesmente lavaro significado das coisas como selava um machucado, deixando queo animal em minha sabedoriacomesse e vomitasse meu cérebromacio.
“Os poetas são confrontados coma tremenda tarefa de reconquistara confiança do público.”
Warren G. French, EPOS, Inverno1959.
Se alguma vez eu chegasse a ter aconfiança do público, faria umautoexame e me perguntaria ondee quando eu havia falhado. Nãoconsigo enxergar na poesia umveículo público, nem como, porextensão, um veículo privado parapoucos. É menos do que isso –quando um de meus poemas éaceito por uma revista que publica
aquilo que se chama de poesia dequalidade, me pergunto ondefalhei. A poesia deve se mudarcontinuamente para fora de simesma, para longe das sombras edas reflexões. A razão para quetanta poesia ruim seja escritareside no fato de que são escritascomo poesia e não como conceito.E a razão pela qual o público nãoentende poesia é porque não hánada para entender, e a razão pelaqual a maioria dos poetas escreve
é porque eles acreditam entender.Não há nada a ser compreendidoou “recuperado”. É simplesmentepara ser escrita. Por alguém.Algum dia. E não com muitafrequência.
um bom violino apoiado comagonia, pianistas bêbados embotecos ordinários; luzes, luzes,gatos nos becos; padresadormecidos, homens lustrandobombas.
e assim, peço desculpa aos mortospor viver, com cascos de esquifee livros de caveiras e histórias deabutres; eu deveria ter pintadocomo se fosse uma nuvem emdireção à margem daexterioridade, mas dei uma paradapara olhar um derradeiro protetorde joelhos de nylon, o ronronarvadio dos gatos, a blasfêmia dovinho e da comida. li sobreNapoleão e Cícero e planteicoisas que floresceram. Ah, bem,
quantos já não pararam diante darachadura... olhando para trás efazendo sinais de voo, mesuras ougestos de traição? olho paradentro do poço, para as faces dedeus, as ardentes máscaras daalucinação e me pergunto: comoposso ocupar minha cabeça comuma bateria arriada ou com ofuturo da Espanha? preciso fechara porta esta noite?
nossa Arte é nossa agonia
transformada em razão. Somos oprêmio de uma mente pervertida,pedaços sujos de argila que seassentam e esperam sobre umamesa imbecil numa escuridãoimbecil. nosso mundo dá voltassobre uma roda violada, mantidaem posição pelas magras vozes dapoesia...
Perdi 5 canetas esferográficas em2 meses e quebrei 3 unhas dosdedos do pé contra o pé da cama.
Se você acha que Cristo foicrucificado, volte outra vez; otelefone não toca há 7 semanas eeu estou aqui deitado com umabarba de 4 dias, subindo edescendo as persianas, subindo edescendo, tentando descobrir se émeio-dia ou meia-noite, e elescontinuam me mandando malas-diretas pelo correio oferecendolápides, lápides grudadas nopapel como mariposas numalâmpada, enquanto estou ocupado
em ouvir alguma ópera emitaliano que também anuncialápides.
...ser engolido por uma baleiadeve ser melhor do que serrasgado e mordiscado porbarracudas. não se trata da morte,mas sim do jeito de morrer. talvezseja por isso que os mergulhemosem flores, para amenizar aaflição, envolver e distorcer ofinal para que seja como um
começo, uma coisa controlada ecalculada. isto é a civilização, e,é claro, ela falha.
Estou aqui sentado, bêbado, meperguntando onde e como estareiamanhã. O cortiço não é lugarpara um homem que deseja aprivacidade de seus pensamentos.dizem que sou um poeta honesto eque manejo o pincel com destreza,e recebo cartas perfumadas demulheres distantes, mas estou
pronto para os corvos que sevoltam contra o sol da minharazão, enquanto escutoRachmaninoff no rádio precisojarretear amanhã, digo a vocêsque somos todos loucos edesajustados e que os figurões dauniversidade, que ensinam poesiadas janelas empoeiradas de umcampus tranquilo, não sabem nadaa respeito destas paredes, ou dassenhorias de South Hollywood, oudos rostos desgastados no cortiço,
onde as palavras de Rimbaud ouRilke significam menos do que umcentavo, onde todo o amor dahumanidade e a vida valem menosdo que rolos de papel que nosfazem as vezes de lençóis, menosdo que os ratos que nos conheceme com quem dividimos os becos,nossas pequenas e mudasderrotas.
Não forço a mão para escreveruma mentira em benefício da
criação de outro poema.
a morte se debate em minha mentecomo um morcego selvagemencarcerado em meu crânio.
como uma penteadeira amarelanuma velha pensão em NovaOrleans ou Atlanta ou Savannah,ou na Temple Street em LosAngeles, plantado com um cigarroe jogando com a insanidade e amorte. você pode me falar de rios
e da chuva e eu posso lhe falarsobre os corpos emaciados peladroga e sua agonia, sonhando comuma vida mais luminosa do que aque receberam, sem mulher ouemprego ou nação, tombados embares floridos de homossexuaistocando pianos desafinados, e oscaixas com caras apáticasassoviando em moedas fora decirculação.
A polícia pergunta, o que você
está fazendo aqui, aí junto àágua?, enquanto cuspo um dentepodre e contenho o sangue numdos lados. a polícia pergunta, porque você não está dormindo a umahora dessas?, enquanto os peixesatacam os peixes e os ossos deCésar continuam estáticos, apolícia pergunta, onde vocêmora?, e não, por que você vive?mas sim, onde? e eles me levampara sua cadeia, um negócio deaço e madeira. qual é seu nome?,
eles perguntam. fazem todasaquelas perguntas fáceis e eusuponho que é por isso que sãotão gordos e destemidos e limpos.
Meu jovem amigo é muito jovem efaz aquelas perguntas de jovem.Duvido que sequer tenha tido umarelação sexual. Mas isso não temimportância. Alguma puta vaiencontrá-lo. Não há escapatória.
Você acredita que a vida tem um
preço?, ele pergunta. Não entendobem a dúvida dele. Não acreditoque nada tenha um preço. Sou umsonhador. Acredito em possuirsem sentir dor. Não sou umrealista. Falta-me fibra, tenhopavor do tédio e da batalha.Prefiro escutar o prelúdio doSansão de Handel.
Você acredita em Deus?
Tudo é possível...
será que consigo estourar meusmiolos com uma 45 sem pensar, agrama está tão verde.
frio é o vento no meu coraçãode velho.
os ossos do meu amor estão entreminhas mulheres, lá entre minhasmulheres, e meu langor agora émuito precioso.
os mortos são tão velhos e os
vivos práticos demais.
rimas bestiais assaltam meucoração, congregam-se nele,batem seus pés lassos entre apraga e os escombros.
seu amor é Cuba com uma barba,uma multidão de dez centavosrespirando rum; seu amor ébeisebol de gravata-borboletatocando bandolim para Brahms;seu amor são 14 gatos agitados em
minha mente; seu amor é umbêbado de gim e loucos santarrõesvendendo panfletos na East First;seu amor é um traje sob medidanuma cela solitária; seu amor é onaufrágio dos navios, o torpedoda dúvida; seu amor é vinho epintura e a pintura de Picasso; seuamor é um urso hibernando noporão do Moulin Rouge; seu amoré uma torre em ruínas, destruídapelo raio de Eiffel; seu amorpercorre as colinas e escala as
montanhas e dispara russos para alua.
por que você se afasta?
a morte, por fim, é uma coisaaborrecida – não mais do que umfechar de persiana. não morremostodos de uma só vez, mas,geralmente, passo a passo, poucoa pouco, o jovem morre com mais
dificuldade e vive com maisdificuldade e não entende nada,mas ele é mais generoso e maisverdadeiro e mais bem preparadopara comandar do que o sábiocauteloso. quem pode sobreviverà sinceridade? nem mesmo umaaranha. mostre-me aqueles quesobraram e eu não lhe mostrareinada. o jovem precisa ainda serender ao fato, e o fato nada maisé do que a fuligem dos séculos. ojovem camarada é o mais
resistente. eu sou velho, assimvocê não pode me censurar comseu preconceito.
todos nós andávamos bebendo etinham nos recolhido das ruas. acela estava cheia de bêbados quenão cantavam ou que nuncahaviam escutado a maravilhosanona sinfonia de Beethoven. écomo uma espécie de monastério,só que Deus está bem longe daqui.os guardas passam de lá para cá,
me veem de pé. – Vá dormir –eles dizem. – Vá dormir. – Elesme lembram minha mulher.
por que eles sempre queremdormir? por que eu simplesmentefecho meus olhos nesse universobestial? sonho com uma canção...como esses homens roncamenquanto a lua pinta seus rostoscom a morte... pela manhãacordarão e se esticarão epraguejarão enquanto as gaivotas
giram e mergulham para arrancarseus olhos turvos a bicadas.
você só está tirando uma,camaradinha, ele disse, e eu lhedei uma porrada no olho com umtubo de platina, arranquei-o daórbita e o lancei a um abutre quepassava. sei que você pode fazermelhor do que isso, ele disse,enquanto eu lhe cortava a barrigacomo um tabuleiro de damas,você é o maior, ele disse, quando
você se senta para escrever asmontanhas se movem. esqueçaessa bobagem, eu disse. quero ovencedor do sexto páreo. escreva-me um soneto, ele gargalhou,escreva-me um belíssimo soneto!Voltei a cortá-lo e ele emborcoupara frente, então ele ergueu pelaúltima vez a cabeça horrenda eensanguentada: comecei comoacompanhante de cavalos aosdoze anos, ele sorriu, sabendo queeu estava encurralado, e eu lhe
digo uma coisa: é impossívelvencer os cavalos de corrida.
apaguei a luz e o deixeichafurdando em seu própriosangue. do lado de fora as luzesdos postes estavam acesas e aneblina cerrada e eu estavaenojado de tudo, especialmente dapoesia.
especialmente poesia. poesia.minha cabeça dói como um coco
rolando sobre as pedras. poesia. amaldita artilharia deles temdisparado pesadamente e desde aPáscoa de Cristo, e a sujeira caiem meus ouvidos, meus dentesdoem, meu fígado está negro(nenhum preconceito racial aqui),estou constipado (novamentenenhum preconceito racial aqui –preciso tomar cuidado uma vezque vivemos numa democracia eeu sou branco), mas pelo amor deDeus, você acha que vale a pena
viver? acha mesmo? não se tratadisso: meus dentes doem e meufígado está branco. não há nadaalém de estilhaços de metralha econfusão e ninguém sabe por quediabos ele está lutando. Aindaassim, todos eles seguem emfrente. seguem em frente. sempreem frente.
você quer um final?
escreva você mesmo. eu?
vou servir outra virita, virita não,birita. você serve e eu bebo. etente escrever tanto quanto eu semcair da sua cadeira. nesse meio-tempo vá para o inferno até queconsiga entender o aspectodesesperador de viver a arte semum bigode falso. eu sei, eu sei,não se trata disso, certamente nãoé isso: minha cabeça dói como umcoco rolando sobre as pedras etodas as loiras estão velhas, e asfolhas se partem sob meus pés.
Um ensaio errantesobre a poética e a
vida visceral escrito aolongo de seis cervejas
(grandes)
Nos dias em que meconsiderava um gênio e passavafome e ninguém me publicava eu
costumava gastar muito maistempo em bibliotecas do que façoagora. Era uma beleza pegar umamesa vazia onde o sol incidiaatravés da janela e sentir o sol nomeu pescoço e na minha nuca enas minhas mãos e então não mesentia tão mal com o fato de todosos livros serem monótonos emsuas capas laranja e verdes eazuis espalhados por ali comoobjetos de escárnio. Era umabeleza sentir aquele sol no
pescoço e então sonhar e cochilare tentar não pensar no aluguel e nacomida e na América e naresponsabilidade. Ser ou não umgênio me importava menos do queo fato de não desejar nenhumaparte daquilo tudo. A força animale a energia dos meuscompanheiros humanos meassombravam: que um homempudesse trocar pneus ao longo deum dia inteiro ou dirigir umcaminhão de sorvetes ou
concorrer a uma vaga noCongresso ou abrir as entranhasde um homem numa mesacirúrgica ou cometer assassinato,isso estava além da minhacompreensão. Não queria nemcomeçar. E continuo nãoquerendo. Cada dia em que euconseguia escapar desse modo devida tinha para mim um sabor devitória. Eu bebia vinho e dormiaem parques e passava fome.Suicídio era minha melhor arma.
Só de pensar nisso eu sentia certapaz; o pensamento de que a jaulanão estava completamente fechadame dava de fato um pouco deforça para aguentar dentro dajaula. A religião me parecia umjogo de vigaristas, um truque deespelhos, e eu sentia que sehouvesse alguma Fé, a fé deveriacomeçar a partir de mim sem asfacilidades dos auxílios pré-fabricados, deuses pré-fabricados... As mulheres
pareciam fazer parte de tudo isso:punham valor em si mesmas eextraíam daí um preço, mas porcausa da sensibilidade de meuolhar e da alma que eu possuíatodas pediam mais do que valiam.E tendo observado meu pai,aquele monstro brutal queabastardou minha experiênciasobre esta triste terra, percebi queum homem podia trabalhar a vidainteira e ainda assim continuarpobre; seus vencimentos se
consumiam na compra de coisasde que ele precisava, pequenascoisas, como automóveis e camase rádios e comida e roupas, pelasquais, como as mulheres, pediammais do que valiam e o mantinhampobre, e até mesmo seu caixão foium ultraje final à decência: todaaquela bela e lustrosa madeirapara os cegos vermes do inferno.
De outra parte, você poderiaficar rico e isso também nãosignificaria nada. Ria se quiser.
Pegarei todo o dinheiro que vocême mandar mas saberei queessencialmente não vou ter nada.Se os ricos são nossa raçasuperior quero abandoná-la agoramesmo. Já vi as caveiras dosmortos, cabeças de porcasdevorando maçãs podres que sãomenos feias; isto em comparaçãonão chega sequer a ser feio.Sentado àquela mesa nabiblioteca, passando fome,sentado ao sol. Eu sentia tudo: a
guerra de merda, a estupidez, amorte, o zumbido das moscas...
Então eu era jovem e estavaperdido; agora sou velho e estouperdido. Naquela época eu mesentava na biblioteca, oconhecimento de gerações alireunido e aquilo não valia nadapara mim, não havia uma voz nomundo que tivesse dito algumacoisa. Lá estava eu sentado entretodos aqueles livros e pensando, omodo como eles matam as
pessoas, deveriam usar chave defenda e alicate e despejar ácidoem seus olhos; deveriam quebrarsuas pernas agora mesmo;deveriam colocá-los em jaulascom tigres. O modo como elesmatam as pessoas, mal deixamque uma ou duas sobrevivam emum milhão, e quem está fazendoisso, e por quê?
E se eu deixasse a bibliotecateria de caminhar pelas ruas epassar por portas trancadas,
janelas que eram fechadas à noite.Mulheres que me viravam o rostoporque eu me vestia com traposmas mulheres que seriam capazesde dormir com qualquer porcoque tivesse um haras de cavalosde corrida ou fosse dono de casasde penhores. Teria de caminharpelas ruas de homens mortos quese moviam e falavam e tinhamnomes e orgulho e posses mas quena verdade já estavam mortos.Cada avenida de rostos era um
horripilante pesadelo – os rostosdepravados & cadavéricos &nojentos... Tal procissão medeixaria realmente tonto, não pelafome mas por saber que eu estavavivo e que teria de viver parasempre nesta vida, num mundo demortos.
A biblioteca, meu quartodurante o dia. Paredes afinal!Nada de bancos de metal oumadeira pintados de verde. Abiblioteca! Meu único lar. Eu
tinha começado a ler cedo, aoscatorze, escondendo um bico deluz debaixo das cobertas, porquemeu pai exigia que as luzesfossem apagadas às oito da noite,a fim de que ele pudesserecuperar as energias para o seupróximo dia sem sentido comoburro de carga contemporâneo.
Bem, comecei pelas salas deFilosofia e Religião e com opassar do tempo passei para asala de Assuntos Contemporâneos
com suas cópias do New YorkTimes, eu continuava uma apostafurada para a vida, e as lâminasde barbear e os canos de gás e aspontes e o raticida tomado porThomas Chatterton seguiamlutando pelo primeiro lugar.Novamente era o velho problema:assuntos mortos sobre homensmortos de um ponto de vistamorto, páginas e mais páginasdesperdiçadas! O velho jogoconservador, a velha piada sobre
um conhecimento que nuncachegou a existir, disfarçado poruma terminologia vistosa &atraente. A bem da verdade namaior parte do tempo elesfalavam de coisas que nadatinham a ver COMIGO; e que odiabo carregue o ego, mas o quepodia ser mais importante (euquase disse impotente) do que eu?Eu balançava de fato para cima epara baixo na gangorra da morte eeles falavam de bolinhos
esfriando na janela! Ou pior,seguiam por páginas e maispáginas com uma conversa fiadapretensiosa, e quando estavamprestes a TOCAREM ALGUMPONTO IMPORTANTE!, então,DEIXAVAM O ASSUNTO DELADO! Naquela época eupensava que isso poderia serintencional; agora me dou contada verdade: simplesmente nãotinham nada a dizer. Já naqueletempo eu suspeitava disso. Tinha
consciência da prisão de vidro daterminologia: aquelas palavraselegantes, longas e rebuscadasnão passavam de evasão, muletas,fraqueza. E então comecei a vertudo isso como um “palavrório demerda”: uma papagaiada inútilnuma terminologia inútil.
Ainda assim eu estavamergulhado numa área: querespostas pareciam e que forçaspareciam (mesmo débeis) existirna criativa arte da escrita –
romance, conto, poesia. E euusava mais o amor do que a razãopara descobrir (e que melhorferramenta de razão do queessa?). E desde então decidi que aPOESIA é a forma mais curta,mais doce, mais explosiva. Paraque escrever um romance se épossível dizer o mesmo em dezlinhas? Para que escrever dezromances quando você podeescrever 10.000? CRIME ECASTIGO, claro, não poderia ter
sido escrito em dez linhas, eembora eu discorde do final quefoi forçado por uma fórmulapressurizada de nossa sociedadehipócrita, segue sendo um beloato, e agradeço a esses poucosromancistas verdadeiros, mas elescertamente não podem salvar o1/10 de sabedoria que daí segue.As 3/4s de C. e C. são uma daspoucas coisas que mantêm vivoum jovem faminto na monotoniade nossas bibliotecas públicas.
Sherwood Anderson era bom atédescobrir que podia enganar ostolos fazendo pose: alguma coisadespontava primeiro em Faulkner(uma das maiores e mais visfarsas de nossa época,amplamente aceito) e mais tardeem Hemingway, e uma pose queele mais tarde considerou sua porlegitimidade. Por essas e outras apoesia é o grande cavalo naamplidão: não se pode negá-la; nofim é o seu número que vão
chamar. Avance.Então eu ficava lá deitado
nos bancos do parque e ia até abiblioteca, as bibliotecáriasencolhendo o nariz para minhasroupas, e eu enfrentava os artigoscríticos nos suplementos literáriosKenyon e Sewanee, e por algumavaga razão essas coisas pareciammuito legais quando você estavasem comer há dias. Suponho quese tratasse do sentimento deimpassibilidade, e eu gostava do
cheiro das páginas virgens deleitura e da mistura da linguagemdura e sutil como se elesrealmente soubessem o que estavaacontecendo e pudessem falarsobre aquilo tudo sob umafachada de gentileza ecompreensão. Uma linguagem tãoeficiente e musical! E quemaneiras maravilhosas deapunhalar! Eu lia essas revistastão oficiosas e inteligentes, queme davam alguns instantes de
prazer – três ou cinco minutos eera tudo –, para mais uma vez meSENTIR ENGANADO: asrevistas não tinham qualquercompromisso com a realidade,não falavam do que acontecia nasruas, sobre os bancos do parque,os rostos, a quase que completafalta de sentido da vida. Falavamde homens mortos que haviamconquistado segurança e suficientepermanência para que se falassedeles.
Escrevi contos e os finalizeià mão porque não tinha máquinade escrever e frequentemente mefaltava também um endereço fixo,e eu imaginava que um editormuito gordo e acalorado os lia edepois de uma boa gargalhada osjogava fora, com exceção de WhitBurnett da velha revista Story, queparecia interessado numa espéciede fascínio fora de moda, e eu osjogava fora de qualquer jeitoquando retornavam – até que ele
finalmente escolheu um. De todomodo eu não deixava de pensarvez ou outra na poesia. Era comose ela ficasse rodando em algumlugar do meu crânio. Acho quepensava nela enquanto seguia paraoeste na direção de Sacramentocom o pessoal da estrada de ferro.Acho que pensava nela enquantodividia a cela com o inimigopúblico número 1 CourtneyTaylor; acho que pensava nelaenquanto escrevia numa máquina
de escrever portátil sobre acabeça de um filipino ao tentarescapar de um quarto destruído echeio de bebidas em Los Angeles.Mas bem, você conhece aAmérica. A certa altura, nocaminho que vai do pátio daescola até sua vida atual, elesconseguem alcançá-lo. E então lhedizem, poesia é coisa de marreca.E não é que estejam sempreerrados. Certa vez, fruto da minhaloucura, resolvi fazer um curso de
Escrita Criativa no LA CityCollege. Eram todos unsmarrequinhas, doçura!Maravilhosos talentos jeitosos,risonhos, sem nenhuma garra.Escreviam sobre adoráveisaranhas e flores e estrelas epiqueniques de família. Asmulheres eram maiores e maisencorpadas do que os homens masescreviam igualmente mal. Eramcorações solitários e curtiam estarjuntos; gostavam da conversinha
miúda e íntima; gostavam de suasfúrias e de suas opiniões gastas emortas e nunca originais. Oinstrutor se sentava ao centrosobre um tapete feito à mão, seusolhos pareciam vitrificados porsua estupidez e falta de vidainterior, e eles se reuniam ao seuredor, sorrindo em direção ao seudeus, as mulheres com suasenormes saias babadas e oshomens com suas bundinhasmasculinas arregaçadas de
alegria. Eles se liam e soltavamrisinhos e chiavam e bebiam chácom biscoitos.
Ria!... Eu me sentava contra aparede, os olhos vazios e bêbadoe tentava escutar e percebia quemesmo quando discutiam uns comos outros aquilo não passava deuma espécie de trégua entrementes limitadas.
– Bukowski – o instrutor meperguntou um dia –, por que vocênunca diz nada? O que você acha?
– Que é tudo lixo – eu disse–, que tudo o que se diz nesta salanão passa de lixo.
E este foi o melhor poema dosemestre. 3 semanas depois, apósa sorte me sorrir nos dados nomictório do bar local, eu estavadormindo nas areias de MiamiBeach e trabalhando meio turnocomo funcionário de estoque daDi Prima’s.
É como aquela velha piadasobre a previsão do tempo: todo
mundo fala sobre poesia masninguém pode fazer nada arespeito. Bem, geralmente, e aindamais do que nas outras Artes, nósbrincamos e abusamos demais datradição. Não sei por que apalavra escrita não pode sercomposta como a pintura ou osom. Por certo que não temosdesculpa para nos jogarmos nascordas e deixar que as outrasArtes nos tomem a ação. Mas atradição já fez sua parte e também
os macacos estão encontrandouma maneira de chegarcautelosamente ao hurra! hurra! Atradição é jogo duro, doçura: sevocê está de ressaca, toma umsonrisal. Se quer escrever umpoema você relê o seu Keats e oShelley, ou se você quer parecermoderno, relê o seu Auden,Spender, Eliot, Jeffers, Pound eW. C. Williams e o seu E. E. C. Ojogo todo é podre. Não há sequer5 homens na face da Terra
capazes de escrever 4 linhasverdadeiras. O jogo continua nasmãos dos marrequinhas, dosadmiradores de estrelas, daslésbicas e dos professores deinglês.
Pode me chamar de cabeçadura se quiser, inculto, gambá,fique à vontade. O mundo memoldou e eu moldei o que pude.Já carreguei novilhosensanguentados até o caminhãofrigorífico e os pendurei pelas
cartilagens em ganchos suspensos;entrei no banheiro feminino comum esfregão enquanto vocêdormia; passei por poucas e boas;rezei para o painel de aposta dascorridas; tomei porrada nummictório por mexer com a garotade um gângster; casei com umamulher que tinha um milhão dedólares e a abandonei; rastejeibêbado nos becos de costa acosta; fui frentista, trabalhei numafábrica de biscoitos para
cachorro, vendi árvores de natal,cheguei até a ser capataz; dirigicaminhão, fiquei plantado, atrásde rabos num puteiro do Texas;vivi um ano num iate, tentandoaprender como dar a partida nomotor auxiliar e fazendo amorcom a mulher de um maluco ricode um só braço que seconsiderava um gênio do órgão eeu tinha que escrever o texto parasuas malditas óperas, e eupassava bêbado a maior parte do
tempo e ele também estavabêbado a maior parte do tempo eo arranjo funcionou até o dia emque ele morreu, mas por queseguir com essa conversa? Oassunto aqui é poesia.
O tema é estúpido.A poesia precisa se fazer, se
retificar. Whitman conseguiu issoàs avessas: eu tinha dito que parase conseguir grandes audiênciasprecisávamos antes ter grandepoesia. Nunca disse isso antes
mas agora estou suficientementealto para ao escrever isso dizerque Ginsberg tem sido a forçamais vivaz na poesia americanadesde Walt. É uma puta vergonhaque ele seja homo. É uma putavergonha que Genet seja homo.Não que se trate de vergonha serhomo mas sim que nós tenhamosque deixar que os homos nosensinem como escrever deverdade. Whitman, pelo que sei,costumava correr atrás de
marinheiros. Aquele homem viril,com aquelas suíças tão brancas,suíças de contemplação, comaquele rosto tão belo: correndoatrás de marinheiros!
Pode-se culpar os garotos dopátio do colégio por dizerem queos poetas são marrecas? Vocêsconseguem ver Whitman dando umbeliscão na perna de ummarinheiro idiota e depois umrisinho? Conseguem imaginar oresto?
Os que restam de vocês, osdois que sobraram, aproximem-se.Tenho consciência de que estouescrevendo um texto dos bons,mas não suficientemente bom.Mas estou ficando velho, bebodemais, e já é hora de um certorabugento cabeça-dura sesuperar...
faça por fimaqueles valentões do pátio da
escolabaixarem seus punhos e seus
tacos esuas pedraspara escutar a realforça de... E. E. Cummings em bronze.do lado de fora, na frente de
um prostíbulo edo secundário...o velho Ezra chegando em
casa aos100 anostatuado com hieróglifos
chineses e
sendo eleito governador deNew Hampshire.
E agora eu escuto a velha napeça vizinha balançar minhacriança no berço: squique!squique! squique!
É bom, e ainda assim é umavergonha o que fazem aos homens,e é uma vergonha que tenham feitoisso comigo, de modo cuidadoso enegligente, eu passei por isso. Eudiria que um poeta deve sercuidadoso com sua ocupação e
com seu pau e com seu ego se estádisposto a sobreviver para alémde um simples momento. Mas aprimeira coisa a fazer é cancelar asua assinatura da Kenyon Review evir aqui para a Ole onde você temque apertar os olhos paraconseguir ler e rirá porque somosincapazes de pontuar corretamenteou mesmo de usar a grafia certa.Você se sentirá muito melhor.Engordará 7 quilos e vai começara dormir com sua irmã ou com a
melhor amiga da sua esposa. Háchance para quase tudo acontecer.
Até mesmo terminar esteartigo.
Viu só?
Em defesa de um certotipo de poesia, de umcerto tipo de vida, de
um certo tipo decriatura com sanguenas veias que um dia
morrerá
Para alguns de nós o jogocertamente não é fácil porqueconhecemos o escárnio da maioriados funerais e da maioria dasvidas e da maioria das opções.Estamos cercados pelos mortosque ocupam posições de poderporque, de maneira a obter essepoder, é necessário que morram.Os mortos são fáceis de encontrar– estão por toda a parte à nossavolta; a dificuldade está em acharos que estão vivos. Repare na
primeira pessoa com quem cruzarna calçada lá fora – os olhos jánão guardam qualquer cor; omodo de caminhar é brutal,desajeitado, feio; mesmo oscabelos parecem brotar demaneira doentia. Há ainda outrostantos sinais de morte: um deles éuma sensação de radiação, osmortos emitem verdadeiros raios,o fedor de suas almas, que podemarruinar o nosso apetite para oalmoço caso o contato dure muito
tempo.
Encontrar Vida e mantê-la atéa morte
é que éem nossa sociedade de
fachada, covarde e cruelo problema, disse o gato,saltando para trás e pousando
sobre o própriocu.
Tivemos uns bons
professores nas Artes. E algunspéssimos. Mas ao longo dahistória das nações todos oslíderes dos séculos que nosantecederam, nossos líderespolíticos, foram péssimosprofessores e nos conduziramagora quase que a um beco semsaída. Nossos líderes de Estadoforam necessariamente vis,homens estreitos e estúpidos...porque para liderar as massas demortos os nossos chamados
líderes tiveram de usar palavrasmortas e pregar de um jeito morto(uma dessas maneiras de morrer éa guerra) a fim de serem ouvidospor mentes mortas. A História,por ser construída à semelhançade uma colmeia, deixou-nos nadaalém de sangue e tortura edesperdício – mesmo hoje depoisde quase 2.000 anos de culturasemicristã as ruas estão cheias debêbados e pobres e gente faminta,e assassinos e a polícia e o
aleijado solitário, e o recém-nascido que é lançado bem nocentro da merda que resta – aSociedade.
Não sei se o mundo um diapoderá ser salvo; seria precisouma reviravolta tremenda e quaseimpossível. Mas se não podemossalvar o mundo, que ao menospossamos saber o que ele é, qualé o nosso lugar nele.
Você pode encontrar milharesde salvadores do mundo. Quase
tantos salvadores quanto mortos.E, infelizmente, a maioria dossalvadores do mundo também jáestá morta. Esqueceram, em algumlugar, de salvar a si mesmos.
O que nos conduz neste exatomomento àquela palavra suja:POESIA. Tudo bem:
Os escritores de poesia,como membros de uma sociedadesobrevivente, são, pornecessidade, uma das engrenagensdessa sociedade à exata extensão
em que se envolveram com ela,dentro dela. Em realidade, se elessobrevivem bem – em termos de$$$$, dentro dessa sociedade,precisam necessariamente mantê-la com a sua poesia, ou se estãoem desacordo com a história ou asociedade são corruptos ouespertos o suficiente paragentilmente não mencioná-lo. Namaior parte das vezes fazem dapoesia um palco para coisasdesimportantes compostas com
grande sutileza. Um joguinho toloe de cartas marcadas. Boa partada nossa poesia ruim e aceitável éescrita por professores de inglêsmantidos pelo estado, por fortunasprivadas, por indústrias euniversidades. São professoresselecionados com cuidado parapreparar com cuidado os homensque manterão o jogo de alto nívelenquanto o jogo baixo, o doshomens e das nações de baixoescalão segue seu rumo. Este jogo
ocorre com cooperação completaentre os néscios da alta cultura...exceto por pequenas disputas depoder, amarguradas e aveadadas,entre eles mesmos.
Um homem com o mínimo dejuízo na cabeça ou de sentimentono coração jamais deveria ir paraa universidade, mesmo quepudesse pagar. Não há nada queele possa aprender por lá, senão oque aconteceu na história dascoisas e ele já sabe o que
aconteceu na história das coisascom uma simples caminhada aqualquer momento por qualquerquadra da cidade. Deixe-nos dizerentão que um homem vem aomundo com uma certa noção quelhe é própria e que ele retém umaparte dela à medida que elecresce em centímetros, empalmos, em anos. A universidadenão funciona porque não é maisdo que uma extensão da históriada morte. Ainda assim a
sociedade diz que um homem sema educação universitária, porquese recusa a levar a farsa adiante,deve atuar como um jogadorcoadjuvante ou secundário:entregador de jornais, cobrador,lavador de pratos, lavador decarros, zelador, qualquer coisaque o valha.
Então você pensa sobre issoe resolve falar. Das duas escolhasdadas: ser um professor de inglêsou um lavador de pratos, você
fica com a segunda. Talvez nãopara salvar o mundo, mas paracausar menos mal. Mas,considerando que você tenha ainclinação, reserve a si mesmo odireito de escrever poesia, nãocomo ela é ensinada, mas enquantoa força ou a falta de força queexiste nela entra em você durantea vivência de sua pequenaescolha. Se você tiver sorte écapaz até de escolher passarfome, pois mesmo lavar pratos
guarda em si a própria morte.Ontem uma revistinha
literária, de certa reputação,chegou na minha caixa de correio.E dentro dela havia uma longaavaliação de um professor deinglês, palestrante e poeta quetodos parecem temer, e quem,obviamente, escreve de um modoterrível e frígido. Escreve sobrenada com grande tenacidade e fazsua poesia ser acompanhada degrandes teorias “orgânicas” e de
uma terminologia inerme e morta,que, assim como sua arte, quaseparece dizer alguma coisa, sevocê dedicar bastante tempo acavoucar. Mas até os grilosparecem dizer alguma coisa sevocê cavoucar na linguagemdeles, e se pode chegar a ummonte de papagaiadas falandosobre isso. Dei a revistinha paraalguém que passava ali fora (opapel era muito duro para limpara bunda) ou eu teria chegado a
citações bem mais literais. Medesculpe. Mas no longo, adorávele temido artigo desse professor deinglês e poeta e erudito eramencionado o que esta criaturatão verdadeira e amável haviadito em uma de suas palestras,alguma coisa como:
“Agora, talvez, quem sabe,meus problemas, sejam
os seusproblemas, também.”
Tal declaração foi avaliadacomo sendo por demais profundae sutil, saturada de sabedoria, masé claro que não passava de umadeclaração roubada, mil vezesdita em qualquer esquina hámilhares de anos, e, neste caso,nada mais que uma fraude de doiscentavos. Os problemas dele nãosão os meus problemas. Eleescolhera entre ter problemas emorrer. Eu escolhi entre terproblemas e viver.
Apesar da banalidade, oartigo não terminava ali. Ao longodo resto do texto, o tal poetarecebia crédito por percepçõesincríveis enquanto escrevia frasesinsípidas e planas e sem vida...declarações impuras e bocejantes.E ele tem seguidores e atripulação inteira escreve damesma maneira – inscientes doponto principal: A VIDA –,acrescentando mais históriasmortas a uma história já morta,
mais truques medíocres a truquesjá medíocres, mais mentirasbanais a mentiras já banais... maisbocejos e imundície a uma alma jápobre e liquidada.
E então surgem os imbecis desempre, que orbitam no círculoexterno, loucos para fazer parte dacoisa, enquanto o círculo internosegue ludibriando todo mundo, atéque se chegue a uma poesia decretinos que está sempre falandode nada, nada, NADA...
eu & meeley//// pauzinhos/7---* & aquilo estava láeu estava lá eu
&a massa gwatammurrrra #9/ . 1/4///. . ./ .
Um poema como esse podeser considerado cheio de insightspor dizer quase qualquer coisa
que você pretenda que ele diga,porque quem pode provar quenão? Escute o seu grilo particular.Não sou contra a livre exploraçãonas Artes, mas sou contra sertomado por idiota por um homemdesprovido de capacidadecriativa. Estamos interessados nosverdadeiros excrementos e nodesespero da Arte.
Nossos dias nas cadeias enos manicômios e nos alberguesfazem com que possamos saber
melhor onde nasce o sol do quequalquer conhecimento prático deShakespeare, Keats, Shelley...Fomos contratados e demitidos,pedimos demissão, levamos tirose apanhamos; fomos arrastadosenquanto estávamos bêbados;cuspiram em nós porque nãojogamos de acordo com a históriadeles e porque esperávamos porum momento em nossos cubículoscom uma máquina de escrever ouaté mesmo sem ela, apenas o
papel de nossas peles, claro, e oque havia por baixo, e assim, éclaro, quando sentávamos paraescrever – espancados ecombalidos mas sobreviventes –não escrevíamos com exatidão,como uma POESIA pensadadeveria ser escrita ou como sequalquer pensamento devesse serescrito. Não cabíamos, é claro, naforma agradável e entorpecida desuas mortes. Não há nada queprovoque maior ódio nos mortos
do que ver algo vivo. Assim, dealguma maneira, fomospublicados nos poucos lugaresque tiveram coragem de fazê-lo. Eentão começou a gritaria dosmortos:
NOJENTO! FÉTIDO! ISTONÃO É POESIA! Vamos entregarvocês às autoridades postais.
Para muitos, a poesia deveriadizer apenas coisas seguras oumesmo nada, pois a poesia é ummundo seguro e um caminho
seguro para essas pessoas. Adelicadeza de sua poesia resideem falar apenas sobre aquilo quenão importa. A poesia no mundodeles é como uma conta bancária.A poesia é como a Poetry Chicago,que já está morta há tanto tempoque nem vale mais a pena atacá-la: seria como dar uma bofetadanuma velhinha de oitenta anosenquanto ela reza na igreja.
Mas acredito que aquelaspessoas cheias de morte,
insidiosas, pequenas e repulsivassempre estarão por ali. Eenquanto nós dizemos, deixem-nasviver, deixem que existam,deixem que sigam seus próprioscaminhos, deixem que nósrespiremos... eles virão para cimad e nós, irmãos, a históriaenrugando seus cérebrosuniversitários de gnomosrecurvados, com suas esposinhase suas cabeças ocupadas apenaspor jardinagem e versos antigos e
irreais do século XVII enquantoseus maridos neuróticossuavemente despojam algunspobres filhos da puta em nome doProgresso e do Lucro, eles, todoseles, banem nossos trabalhos,condenam nossos trabalhoschamando-os de irreais,ordinários, desagradáveis,perturbados, impiedosos, cegos...
Meu deus, meu deus, se eupudesse simplesmente arrancarmeu coração esta noite e fazer
com que o vissem! Mas aindaassim eles o tomariam apenascomo um damasco, um limãoseco, uma semente velha demelão.
As coisas mais comuns ereais são inconcebíveis para eles.Digamos meramente que épossível que um zelador quelimpa o banheiro das mulheresseja igual ou superior aopresidente dos Estados Unidos daAmérica, em sua inutilidade
indestrutível, ou que ele possa serum homem melhor do que o líderde qualquer nação semelhante quejá existiu dentro desta terrível evergonhosa história da morte. Istoé algo que eles jamais poderiamver com seus próprios olhos,porque foram ensinados a sóenxergar, reconhecer e aclamar amorte.
Nós, que escrevemos apoesia da Vida, muitos de nósestão ficando assaz cansados e
tristes e doentes, quase derrotados(mas não por completo). Masainda sabemos que nãoprecisamos de Deus para sermosDivinos, que não precisamos deversos paradisíacos para sermosSalvos, que não precisamos daguerra para sermos Livres, quenão precisamos de Creeleys paraadmirar, que não precisamos deGinsbergs que se desfaçam emextravagantes bizarrices, mastalvez precisemos de fato de
algumas pequenas lágrimas emnome de todas as garotas queenvelhecem, em nome da cervejaderramada, das brigas no gramadode uma casa qualquer, tendo comomotivo nada além da bebedeira denossos tristes amores. Defendo deverdade nossa poesia, vivemos naGeração das Armas Atômicas,defendo de verdade nossa poesiae o direito de recitá-la, nossodireito de escrevê-la. Semprocessos. Sem que a revista seja
caçada pela polícia como“obscena”. Sem que percamosnossos empregos de merda. Porfavor, entenda que não defendoqualquer coisa que eu escrevacomo sendo imortal; não peço pornenhuma preciosidade emespecial – embora tudo sejaprecioso o suficiente: quandocalço meus sapatos só vejo doispés lá embaixo. Mas digamos oseguinte: foram muito poucos oshomens que fizeram a escolha que
eu fiz, não importa se talentososou não, o certo é que cansamosdesse contínuo jogo da morte,tentamos atingir, entre tantosbraços e narizes e cérebros evidas rompidas, aquele pequenoelemento de sanidade e de luzsolar: VIVER? Sim, viver, algoque tocará a todos nós, vocês, osmortos-vivos, e nós, os vivos-vivos.
O mundo da poesia atraialguns cretinos da pior espécie.
Geralmente os maiores cretinos.As Artes com frequência servemde esconderijo para pessoas queprefeririam estar em outro lugar.Suas cuecas carimbadas e suascalcinhas sujas poderão prová-lo.Mas a Arte, mais do que a históriae as escolhas das nações, precisade tempo. Mas as patrulhas depolícia costumam indicar ondealguma coisa criativa estáacontecendo. E o mais bonitonisso tudo é que grande parte dos
melhores criadores não tem nadaou quase nada a ver com apolítica. Por essa razão aspatrulhas de polícia cuidam dascidades, e não a polícia nacional,que está bastante ocupada emoutro lugar. O principal problemaé que hoje em dia ser inocente nãobasta mais para nossas cortes. Épreciso dinheiro para combater ostruques da injustiça e o estadomental de nossos juízes emembros do júri. Caralho, você
pode dizer a um advogado o queestá pensando, mas ele deverenivelar o seu pensamento demodo a adequá-lo aosprocedimentos das leis mortas,escritas por homens mortos eprotegidas pelos mortos. Ninguémrealmente entende; foram todosafogados em meio à névoa aolongo de anos de irrealidade.
Costumo pensar nas Artesquando estou razoavelmentesóbrio e me parece que o tempo
queimará quase tudo o que já seproduziu, mesmo que as ARMASNUCLEARES não o façam. Olhopara o futuro e vejo que Van Goghserá eliminado como ummaravilhoso moleque otário cujofracasso final será atribuído àfalta de inocência, coração ediscernimento – justo pelo que éhoje reconhecido. Mas esta é amaneira como funciona o Tempo.Matisse, ao contrário, perduraráporque ele não vai nos cansar.
Dostoiévski vai durar, emborapartes de sua obra passem a nãoprovocar mais do que risadas,julgadas como criações de umexcêntrico e de um atormentado.O’Hara, nosso jovem romancista,logo desaparecerá, seguido deperto por Norman Mailer. Kafka,embora seja um verdadeirorealista, não sobreviverá quandonovas dimensões foremdescobertas. D. H. Lawrencepermanecerá, por razões,
entretanto, que não posso dizer nomomento. Meu cérebro não astem, não passa de uma sensação.Alguns dos primeiros contos deWilliam Saroyan vão perdurar.Conrad Aiken durará por umlongo tempo e então será engolidopela maré. Dylan Thomas não, eBob Dylan, sem dúvida, não. Nãosei, com certeza não sei de nada,ah, Cristo, tudo parece umdesperdício, não é mesmo? Camus,claro. Artaud, claro. Então
preciso voltar a Walt Whitman,aquela bicha que desejava eprovavelmente chupava o pau demarinheiros, e aí está sua cultura,o quê?
Mas se você acha que oTempo e a polícia são barrapesada por aqui, ouça esta cartade J. Bennet, editor da Vagabond,de 2 de dezembro de 1965,Munique, Alemanha: “...não estãoimprimindo todos os seus velhospoemas por aqui – poemas como
os seus são queimados. Trata-sede um elogio. Acabaram de fazeruma fogueira em Düsseldorf comas obras de Günter Grass,Heinrich Böll & Nabokov – umaorganização cristã feroz.Realmente botaram para quebrarem Berlim – colocaram fogo naantiga casa de Günter Grass.Grass apenas sorriu de um modoesquisito e seguiu escrevendo...”
Eles andam atrás de nósdesde sempre (veja o Lorca) ou
então andamos atrás de nósmesmos com nossas própriasfacas. Somos as borboletas de umverão desgraçado. E ainda assim,porra, este artigo segue sendo umadefesa da poesia contra aquiloque se chama de poesia e de vida.Muitos de nós não conseguem,mas com sorte e, ah, pelo amor dedeus, muitos de nós, de algumamaneira, conseguirão, o que nãosignifica dirigir Cadillacs, massim não dirigir um, e muitas outras
coisas. Escrevi este artigo porquetão poucos de nós, poetas fora dalei formulamos qualquer base ourazão para resistir. Os cabeças devento e os professores de inglêsfalam continuamente de umaplataforma de vida de totalausência e invalidez. Espero queessas poucas palavras vindas daquina de um balcão de bar tenhamchegado até alguém – que nossasvidas e poesias apenas emaparência fracassadas sejam
vistas como o caminho queescolhemos. Não somos, em grandemaioria, nem assassinos, nemfarsantes. Mas um diaescreveremos a palavra com tantabeleza, ó, tão perfeita e tão real,que vocês todos, seus macacos,sairão de seus jardins e começarãoa ser suficientes para que eu olhepara
aquilo que faz a
face e o corpo e oamor de vocês
e não me contrairei em
meu maldito catre alugado por horas de espasmos e dores e
horror
eu morro e rezo porvocês e por
mim
se pudesse desejar atodos vocês
idiotas mortos ecurvados
o punhado que meresta de vida
eu o mergulharia emvocês
e dormiria para sempre.
Antologia de Artaud
Antonin ArtaudAnthology,
publicado por Jack Hirschman.City Light Books, San Francisco;
255p. U$ 3.
É de louvar a generosidade e
a genialidade da City Lights porpublicar nossos imortais enquantoainda respiram. Isto bate qualquerqueima de fogos de artifício ouesconder o jogo ir lançandonomes aos poucos. Entre as quasequatro dúzias de títulos quepublicaram estão quase todos osclássicos com capacidade depermanência: Gasoline (Corso);Bottom Dogs (Dahlberg); HumanSongs (Kay Johnson – kaja);Selected Poems (Lowry); Meat
Science Essays (McClure); Poemsof Humor and Protest (Patchen);Poem from Jail (Sanders) e Koreain Hell: Improvisations (W. C.Williams). O Uivo, de Ginsberg,embora histórico (e que veio nahora certa para afrouxar nossasgravatas), contém uma energiavital triste e honesta, mas suapossível durabilidade artística étão suspeita como o musical“Guys and Dolls” – que tambémajudou a salvar minha vida. Um
pouco de tempo e tinta tambémforam perdidos nos “Bês” –Bowles, Buckley e Burns –, massempre há aqueles momentos emque não há nada na linha demontagem e as máquinas ficamparadas. Ponham para imprimir,por que não?
Contudo, o último, aantologia de Artaud, editada porJack Hirschman, é o livro queagora bate à porta, e o que virádepois dele: algo ainda mais
formidável? Ou uma desculpa? Aaposta é sua, ou minha, ou de todomundo. Na última vez que JackHirschman e eu nos encontramos,as coisas não correram muitobem. Foi culpa minha. Não, foiculpa DELE: não estava tãobêbado quanto eu. Apesar disso, ocretino fez um maravilhosotrabalho na seleção, e comexceção de um ou dois de seustradutores Artaud chega a nós –puro e sem gelo. O único jeito de
servi-lo.O público artístico é sempre
indecente. Admirará um homempelo modo como leva a vida e nãopelo que produz. Preferem, emespecial, os loucos, os assassinos,os drogados, os que passamfome... ainda que seja esseMESMO público artístico que oreverencia o que o levou a bebercomo louco e a perder o juízo,drogar-se à loucura, por nãopoder suportar a visão desses
otários e o seu modo de vida.Para eles Artaud agora deve sermais fácil de digerir... ele estámorto desde 4 de março de 1948.
Não sou um estudante deliteratura. Tudo o que sei é o queposso sentir. O livro está divididoem duas partes: “Antes de Rodez”e “Rodez e depois”. Não se podedividir um homem pormanicômios. Ou rupturas com osurrealismo. Seguimos a alma deum homem como a uma corda
rota. Que começa em qualquerlugar...
“Para Adolph Hitler”, napágina 105, é seguido por umaexplicação (apologia) por Artaudter produzido tal coisa. Trata-sede um velho jogo de Artaud:provar que NÃO é um antissemita.É um velho jogo de salão que setorna cansativo. Artaud escreveu eescreveu aquilo que lhe agradavaescrever. Escreveu o sangue negroe a flecha. Que vez ou outra um
judeu ou um ditador entrasse emcena ou tivesse seus testículosfatiados não preocupava Artaud.Pontos tediosos podem serelencados por eruditos estúpidosa fim de louvar ou criticar umhomem pelo que quer que seja.Artaud não se deixava incomodarpelo jogo das pressões históricasou mesmo pelas extravagantesejaculações de seu próprio ser-ego. Artaud disse o que tinha dedizer, não o que deveria dizer.
Isso, claro, é o que distingue osloucos dos homens da políciamotorizada.
“Toda escrita é merda deporco”, página 38, define paramim (ao menos) algo que semprepensei – que (junto com o mundo)os artistas, os escritores tambémsão intoleráveis, mais peso a ummundo já chumbado, mais dor auma dor já existente, maistoneladas de merda à merda com aqual já é quase impossível
permanecer vivo, mijar, o quequer que seja, vestir roupas e sairporta afora, ganhar as ruas. Aimbecilidade e o horror e aganância e o egoísmo de nossasditas melhores mentes daatualidade... a embriaguezdominante, esta glória aceita, estedente canino rompendo a camadade nossas almas presa aosgrilhões... é óbvio, ou deveria ser,que todos os olhos estão fechados,a perdição é tão ordinária quanto
dar corda a um relógio especialde bazar e esperar que todas asentranhas tênues e serpenteadasnão parem, não saltem fora. Quasesem exceção nossos escritores –quaisquer escritores – são ascriaturas mais fracas de nossaexistência, posando comomártires, videntes, diretores,deuses. Sua fraqueza é tamanhaque suas mentiras de ocasião setransformam em literatura.
Artaud, claro, por ser louco,
sabia disso tudo:“Todos aqueles que têm
vantagens em seus espíritos...”“... todos aqueles que são
mestres da linguagem...”“... todos aqueles para quem
palavras gastas têm umsignificado...”
“... todos aqueles que são oespírito dos tempos, e quenomearam essas correntes depensamento...”
O que Artaud está mostrando
são aqueles que rapidamentemordem QUALQUER isca parafazer mais sublimes os seus finsatravés da fraqueza e da morte.Suas células pensantes indo bemrápido para a cama com tudoperto em vez de ter tudo deverdade. Não posso culpar osmortais comuns por falharemporque estão cansados edesanimados; mas os culpo porfalharem e tentarem espalhar suaadorável lama por cima de mim.
“aqueles que são nervosos...”“aqueles que brandem
quaisquer ideologias quepertençam à hierarquia dostempos...”
“aqueles sobre quem asmulheres falam tão bem, quefalam das correntescontemporâneas de pensamento...”
“seus cretinos barbudos, seusporcos pertinentes, mestres dopalavrório falso, tecedores deretratos, panfleteiros,
colecionadores de trepadeiras quevão até o chão, entomologistas,praga da minha língua.”
*
Em “Van Gogh, o HomemSuicidado pela Sociedade”Artaud nos diz: “De fato, não háum psiquiatra que não seja umnotório erotomaníaco”.
Quando o analista de Artaudobjetou esta acusação, Artaud
respondeu:– Tudo o que eu preciso
fazer, dr. L., é apontá-lo comoprova.
– Você carrega o estigma desua lama, seu cretino sujo. – EntãoArtaud começou a explicar acoisa toda em detalhe. O pobre dr.L. atraiu um leão para si.
A percepção de Van Goghpor Artaud – um maluco falandode outro – é uma vituperaçãocontra a sociedade e a vida, uma
vida que Artaud sentiu Van Goghliberar em suas pinturas, deverdade: uma coisa tremida e decerta maneira horrenda epreocupante, girando commorcegos e sangue negro eenergia triturada, áspera efedorenta, paisagens cauterizadase fervilhantes, velas, cadeiras...
– Acho que ele morreu aos 37porque, pobre coitado, haviachegado ao fim da históriasombria e revoltante de um
homem estrangulado por umespírito maligno – diz Artaud.
Ao dr. Gachet, com quem VanGogh se tratava, foi atribuída boaparte da responsabilidade pelosuicídio de Van Gogh. Artaudtinha isso em mente em suacondenação aos bons Médicos e àMedicina, como teria qualquerhomem inteligente que tivessepassado algum tempo em hospitaisou instituições. Está cada vezmais claro que o primeiro impulso
da Medicina é ganhar dinheiro. Osegundo? Torturar o paciente,matá-lo, sempre que possível. Seum paciente morre há outra camavazia e mais uma oportunidade delucrar – incluindo aí os serviçosfunerários (e, às vezes, os homensdo clero).
Artaud diz, “eu mesmo passeinove anos num asilo de loucos enunca tive tendências suicidas,mas sei que cada conversa quetive com um psiquiatra durante a
visita matinal me deu vontade deme enforcar, já que sabia que nãopodia lhe dar um talho nagarganta”.
Artaud não tem papas nalíngua porque é um dos rarosArtistas que não se ocupou deenganar os outros ou a si mesmo.Sua clareza, suas frasesirritadiças, seu desgosto diante daMentira não são mais do que oresultado de um homem feito empedaços pela Vida, pelo horror
massivo da percepção de que seuscamaradas, seus companheirosArtistas não passam, em certosentido, de “merda de porco”.
Quando um homem dosgrandes, um homem verdadeiroaparece não há ninguém capaz deentender a mais simples de suasfrases – as massas são o pesadeloda Vida, os Artistas e osintelectuais são um pesadeloainda pior do que as massas(porque então, na última chance
de entendimento, ele percebe queas chamadas melhores mentes ealmas não compreendem nada –que entendem MENOS, de fato,do que as massas). O amor éimpossível. As mulheres, pornatureza, deixam-se atrair pelaMentira. De tal maneira queacabam ao final se casando parasempre com a Mentira. É o modoque a Natureza encontrou paramanter esse horrendo cremeflutuante em funcionamento, os
cistos abertos, o arranjo para queesses bocós se agarrem uns aosoutros a fim de que os futurosbocós agarrem uns aos outros afim de que... Quanto mais forte forum homem, mais ele estarásozinho – é uma questão dematemática. E se tiver que passara vida em hospícios ou emfábricas de aviões, isso em nadaalterará sua dor... ou suagrandeza.
Este livro grosso, são 255
páginas, bem vale os três dólaresque estão pedindo por ele. Alémdisso, estão encartadas váriasfotos de Artaud, e também algunsde seus desenhos. Os desenhostêm seu charme – sim, amor – e osuco da vida os agita. Não tenhocomo deixar de sugerir que você ocompre. Certamente quando atristeza pegar você, quando avelha luta contra a correnteza oderrubar, a leitura de algumasdessas linhas irá recompor seu
sangue para aguentar o resto dajornada. Artaud foi um dos maisbelos loucos que este mundo játeve. Tente encontrar algocomparável nas ruas ou mesmo aíno quarto com você, ou no quartoao lado. Você não conseguirá. ACity Lights Books e JackHirschman já o encontraram. Ahonra está por toda parte. Tudo oque você precisa fazer é tocá-la.
Um velho bêbado quea sorte abandonou
Papa Hemingway,de A. E. Hotchner,
Banton Book, 355 páginas, com16 páginas de fotos, U$ 1,25
RESENHADO POR CHARLESBUKOWSKI
Se ainda não há, logo haverámais livros sobre acima abaixodentro e fora de Hemingway doque os que foram feitos – e sefazem – sobre D. H. Lawrence.Alguns homens aguçam acuriosidade da multidão porescândalos, sendo que boa partedessa multidão não está em nadapreocupada com o que estehomem criou, apenas com o queele fez, como fez, com os cabelosno peito, a orelha cortada para
uma prostituta, o suicídiocometido no barco, o serhomossexual; nada próximo aoque eles criaram, a multidão querolhar para os pentelhos de seuscus, para a cama onde fazem sexo,para suas caixinhas de remédio,suas roupas sujas. É uma multidãopredatória e fútil, mas é umamultidão que vai COMPRARessas coisas, assim como eucomprei, este livro da editoraBantom. E a primeira coisa que
você faz, é claro, é olhar as fotos.E, sim, claro, o velho não parecemuito bem. É isso o que acontecequando você escreve livros comoaqueles? Ele poderia muito bemter sido o corretor de uma casa depenhores. Material quente para osrapazes sedentos de escândalo.Especialmente aqueles que nãoconseguem escrever nada quepreste e precisam de um protetor,um financiador, uma desculpa.Veja só eles – descendo os
degraus do coliseu romano emNimes, 1949. Hemingway pareceum rabino artrítico e Mary umacorista cega. Mas há fotos piores,fotos de sobra para o pessoal darapinagem. Vamos à história, àbiografia...
Hotchner conheceuHemingway em Cuba, 1948, emHavana, para ser mais preciso, asoldo da Cosmopolitan, paraconseguir, ou ao menos tentar, queE. H. escrevesse um artigo sobre
“O futuro da literatura” – o artigonunca saiu, mas Hotchner deu umjeito de ir ficando por lá, até osuicídio de Hem, e o que temosaqui são pedaços, reunidos, dasandanças de Hotch atrás de seuPapa pela Espanha, por Paris,Cuba, Key West, Ketchum, eassim por diante. Há conversas,descrições, e assim por diante.Hotchner não é um grandeescritor, é claro, mas seu estilo ésuficiente para fazer com que
você siga em frente sem muitadificuldade ou sem perder o fio dameada. Hotchner adaptou algunsdos textos de Hem para a tevê e ocinema. Em outras palavras,Hotch fez uma grana em cima doErnie, e o Ernie também levou asua. Hotchner frequentementeatuava como intermediário nanegociação dos direitos. Hemtinha uma aptidão para escolheros amigos apropriados; aprendeuisso muito cedo e permaneceu fiel
a este aprendizado. Por outrolado, reuniu alguns sicofantas,lambedores de rabo que odrenaram quase sem qualquer tipode retorno, seja em caráter, sejaem reverência. O mundo estápoluído por esses sanguessugasque atacam e seguem grudados novencedor, no campeão, eHemingway não foi exceção –eles se aferraram a ele e pegaramcarona no barco. Vez ou outraconseguia descolar um deles, mas
logo aparecia outro para tomarseu lugar. O nome de Hem, suaimagem, foram expandidos paramuito além das proporções de seutalento. Certa vez, em Cuneo, elefoi reconhecido pela massa e, senão fosse a intervenção de umesquadrão do exército, teria sidoesmagado. Esta adulação violentaé uma doença causada pelo fatode que a multidão não tem nenhumtutano, nem alma, nem nada, e estáà procura de alguma coisa em que
se agarrar em meio ao vazio. Hemera o cara certo. Um garanhão.Bom de punhos e armas e trago emulheres e guerra, e, além disso,escrevia, escrevia o quê?, eassistia a touradas e apanhava unsenormes duns peixes. Ao cometersuicídio deixou a rapaziada namão. Por pouco tempo. Sempresurge um outro. Outro garanhão.Ou outro Van Gogh. Ou outroArtaud. Ou outro Céline. Oumesmo um Genet. Um trago puxa o
outro... vamos deitar e rolar!Naquele momento da vida de
Hemingway, Hotchner encontrouum homem que já não podia maisescrever como o jovemHemingway escrevera. (minhaopinião.) Do outro lado do rio eentre as árvores e Paris é uma festanão possuíam a secura do estilode Hemingway. E além do estilo oconteúdo também pareciaineficaz, frouxo, insípido. Ambosos livros eram difíceis de ler
porque esperávamos mais. Em Ovelho e o mar, que enganou opessoal do Nobel e muitas outraspessoas que conheço,Hemingway, percebendo suasfalhas (minha opinião), tentouretornar ao estilo telegráfico deseus primeiros textos. Conseguiurecuperar o estilo, isto é, aestrutura, mas o conteúdo voltou afalhar. Para a maioria daquelesq u e leem literatura, parecia umbelo retorno, mas para aqueles
q u e escrevem literatura e quetambém a leem os sinais estavamali: Hem estava acabado. Lado alado com Ava Gardner e GaryCooper; admirado na América,amado na Espanha em Paris emCuba; sentado em noites de vinhoa uma mesa cheia de vagabundasele falava e falava e falava,apenas um velho bêbado falandodo passado, vendo a sorte lhefugir também num par deacidentes de avião e na morte do
seu parceiro Cooper. Quesituação! Ele conheceu TootsShor, Leonard Lyons, JimmyCannon, todos os vencedores.Falou de um campeãoaposentando-se quando estavapronto. Falou de Ted Williams, deDiMag. Ele tinha uma lista. Oresto foi um rápido declínio.Primeiro ao pensar que ficariacego. As disputas por dinheiro. Avelha lavação de roupa suja. Suamente se perdendo, imaginando
coisas. Entrando furtivamente eminstituições sob outro nome; ouainda, quase sendo levado para lá.Choques elétricos. O mundoconhece a história. A espingarda.Ketchum, 1961, à idade de 61.Pouco tempo atrás. Parece queHemingway está morto há muitomais tempo. Talvez seja verdade.
A tragédia é uma situaçãoamericana em que um homemdeve ser vencedor. Nada menosdo que isso é aceitável. E quando
o vencedor desce, ele não salvanada. O vencedor não leva nada.Hotchner termina o livro assim:“Ernest havia entendido tudo: oHomem não foi feito para perder.O Homem pode ser destruído, masnão derrotado”.
Não, Ernest entendeu tudoerrado: O homem foi feito para aderrota. O homem pode serdestruído e derrotado. Enquanto oHomem for feito apenas paraascender e não para cair, o
Homem será derrotado, edestruído e derrotado e derrotadoe derrotado e destruído. Somentequando o Homem aprender asalvar o que puder é que serámenos derrotado e menosdestruído. A lição queHemingway nos deixa é a de umhomem que viveu bem, mas de umjeito ruim, que enxergou na vitóriao único caminho possível. Viveupara a guerra e para o combate e,quando esqueceu como lutar,
desistiu. Mas ele não nos deixoualguma obra da juventude quetalvez seja imortal? Mas algumacoisa se move às escondidas porlá. Alguma falha. Ah, mas quem seimporta? Tomemos uma em suamemória!
Notas de um velhosafado
Open City,12-18 de maio de 1967
Bem, você sabe o queacontece quando uma dupla depoliciais me para quando saiopara comprar charutos? Quero
mudar toda a estrutura penal dasociedade. Não me entenda mal –não estou dizendo que ummotorista bêbado deve estaracima das leis. Certa vez fuiatingido por um bebum ao volante.E as companhias de segurotambém não gostam deles. Mas oque estou dizendo é que há muitoscasos em que um homem conseguechegar em casa sem fazer mal auma mosca e ele é interceptado emandado para a cadeia pelo
simples fato de que as cadeiasestão lá para serem usadas. Equando os agentes estão soltospelas ruas, fazendo rondas, équase como se fossemOBRIGADOS A PRENDERALGUÉM.
Sempre me sinto culpadoquando sofro uma abordagem deum policial porque ele éENSINADO a sentir que SOUCULPADO. Então lá estão a culpae o complexo de Édipo: o
distintivo, o quepe, a arma, osruídos do rádio, as luzesvermelhas, a face bem-alimentadae inalterável. É uma cena deverdadeiro terror. E nós nemsomos tão MAUS assim. Devehaver um jeito melhor do que avoz que não vai entender, que nãose importa em entender o que querque outra pessoa diga.
Meu conselho aos leitores daOpen City é ficar dentro de casapor um momento. Fiquem sóbrios,
tranquem as portas e deixem queeles façam a ronda pelosbulevares, para lá e para cá,deixando que seus faróis elanternas iluminem a lua. Não hánada lá fora, de qualquer maneira.E nós podemos curtir uns ótimostragos em casa, enquanto relemosTolstói ou escutamos a 4a sinfoniade Mozart. Amém.
Há uma semana fui paradonas ruas. Arrancado do carro pordois policiais motorizados que
disseram que minhas luzes defreio não estavam funcionando.Como eu já tinha tomado umascervejas, fui submetido a váriostestes de equilíbrio. Não fuiamparado e nem me fizeramresponder perguntas, exceto: deonde eu estava vindo e aondeestava indo?
Já ter recebido umacondenação por dirigirembriagado fez com que asituação ficasse ainda mais tensa.
Não tenho muita certeza sepodemos sobreviver com ou sem apolícia. É uma questão paramentes mais poderosas do que aminha. Os franceses têm um dito:“Quem cuida dos que cuidam?”.Para mim, a coisa é mais simples:“Para quem os guardastrabalham?”. Ou então me vem àmente uma fala que ouvi certa vezde um comediante: “OSESCROQUES? ONDE ESTÃOOS ESCROQUES? É A POLÍCIA
QUE SÓ ME ARRUMACONFUSÃO!”.
*
A última parte dos testes é ouso da lanterna. Eles colocam ofoco bem nos seus olhos. Suponhoque seja para verificar se aspupilas estão dilatadas porentorpecentes. Mas o estranho foique, após focar a lanterna nosmeus olhos, o policial se afastou e
lançou o feixe da lanterna nosolhos do seu companheiro. E mepareceu que o policial sob a luzestava bastante assustado. Vamossupor que esse camarada tivessefumado uns três ou quatrobaseadinhos antes de subir na suamoto? Que flagra, não? Já podiaver a cena:
– Certo, parceiro, você estáchapado! Tenho que prendervocê!
– Mas, Marty, a gente é do
mesmo batalhão, cara! A gentecostuma queimar uns toda noite!Deixe de bobagem! Só dei unspegas!
– É o que todos dizem!– Não seja um fodido, Marty!– Não rola, cara. Em
primeiro lugar sou polícia, depoisseu amigo...
Mas não foi o que aconteceu.O agente baixou a lanterna e medisse:
– Tudo bem, o senhor pode
seguir. Passou nos testes. Mas émelhor ir direto para casa.
Foi o que fiz. Depois de umarápida parada na loja de bebidasda esquina.
*
Tudo bem, você diz. E daí?Do que se trata, afinal? Qual é asolução divina para o confrontoentre bêbados e policiais? Vocêsabe, esses policiais são um
pouco diferentes quando estãodebaixo do chuveiro, ou jogandobola com os filhos, ou cortando agrama. Também sofrem deconstipação, insônia, medo, amor,dor de dente, com divórcios etudo o mais, como de resto todosnós.
A diferença entre um homemque faz o mal e aquele que não o fazé muito pequena.
Eu diria que uma das teoriasde Prevenção ao Crime é preveniro crime antes de ele acontecer.
Em outras palavras, um homempode ser punido se dirige bêbadonão porque tenha infligido algumdano a outra pessoa e/oupropriedade, mas porque ele écapaz de fazê-lo. E também soucapaz de presumir que a linha quesepara o estar bêbado do nãoestar bêbado é bastante tênue eque muitas vezes esta linha estámuito mais próxima dasobriedade. E ainda que umhomem consiga provar, novamente
segundo os parâmetros deles, quenão estava bêbado, o dano já teráocorrido, pois ele teve de pagar afiança e os custos com advogado,sem falar no massacre sobre seusnervos; e a depressão, apreocupação, a surpresa e a perdade tempo também não poderão serreparadas.
Em outras palavras, porseguir a teoria de que ummotorista bêbado possa, emprobabilidade, infligir dano e/ou
dor, ele acaba preso e multadopesadamente, pois é condenadopelo mal que poderia ter feito.Bem, vamos estender agora estateoria a outras áreas da vida ativae já veremos que toda criaturahumana deveria ser presa porquecada uma delas pode ser capaz decometer algum tipo de crime, emmaior ou menor grau, contra asociedade.
Vamos analisar agora o casode um motorista bêbado que não
tenha infligido nenhuma dor/perda– embora ele mesmo tenha sofridona carne a dor e a perda impostapela lei sob o nome de justiça. Emoutras palavras, A LEI INFLIGEDOR ONDE ANTES NÃOHAVIA DOR NENHUMA. Alémda multa e da cadeia, há ainda aperda da habilitação ou mesmo doemprego desse homem, e muitasvezes se torna difícil encontrar umnovo emprego em função da“ficha suja”.
Se pretendemos viver nummundo melhor (e quem ésuficientemente sofisticado paranão desejar algo assim?), aeliminação das doresdesnecessárias é um bom começo.Querem dar umas boas risadas?Querem saber o que eu acho queos policiais deveriam fazer comos bêbados? Deveriam levá-lospara casa em vez de mandá-lospara a cadeia. Enfiem os bebunsinveterados debaixo das cobertas,
arrumem uma saideira e digampara ficar em casa o resto danoite. Ridículo? Por quê? Pagomeus impostos para ser assistido,não molestado.
Se necessário, se o bêbado semostrar furioso e beligerante,arrume-se um jeito de trancá-loem casa, onde ainda pode usar obanheiro e contar com um telefonepara ligar para aquela tia em NewHaven. Isto é muito melhor do quea cadeia. E daria uma desafogada
nos tribunais. Assim deixaríamosos juízes livres para tapar osburacos nas ruas ou algo dogênero. Posso ver o dia, o grandedia em que não haverá maiscadeias. Posso ver o dia em quequase todos os homens, sem usaro senso comum, rejeitarãoprejudicar/machucar/matardeliberadamente seussemelhantes. Claro, haverásempre um lobo fora da matilha.Mas este lobo se integrará cada
Ensaio sem título emUm tributo a Jim
Lowell
A Grande Arte, a Criação,está, no geral, duas décadas oudois séculos à frente de seu tempoem sua relação com oestablishment e o estado policial.A Grande Arte não é apenas
incompreendida mas tambémtemida, pois para fazer um futuromelhor é preciso afirmar que opresente é ruim, muito ruim, e istodificilmente agrada àqueles queestão no controle – pois ameaçaseus empregos, suas almas, seusfilhos, suas esposas, seus carrosnovos e seus roseirais, para dizero mínimo. “Obscenidade” é apalavra que eles usam paraproteger sua própria podridão,para atacar as obras e as posições
de vanguarda dos homenscriativos. A livraria de JimLowell foi atacada quase aomesmo tempo que a de SteveRichmond, aqui na Costa Oeste,de modo que o câncer se espalhapor toda a nação e é como alguémme disse: “É apenas o Uivo outravez”. O que só demonstra que nãochegamos muito rápido a lugarnenhum. O problema com essesataques é que os próprios juízesestão somente um pouquinho mais
sintonizados na atualidade e nosignificado da criação pura doque os próprios policiais. As“revistinhas” não circulam tãopouco porque os escritoresescrevam tão mal, mas porque nãohá leitores suficientes paraentender, desfrutar, digerir umaescrita avançada. O artistacriativo sempre é assediado, deforma contínua, pelas autoridadese pelo próprio público – VanGogh era vaiado por crianças que
jogavam pedras na sua janela. Eteve sorte de ter uma janela. Eteve sorte de ter um ouvido.Hemingway teve sorte de ter umaespingarda. Tenho sorte nesteinstante por ter esta máquina deescrever, este quarto, porescrever isto aqui, por lhes falardisso. Não estou pedindo que setenha piedade do artista, não estoupedindo financiamentos públicos,não peço sequer compreensão;peço apenas que nos deixem em
paz na alegria e no horror denossas obras, e se as venderempor milhões de dólares depois quemorrermos, depois que tivermossido carregados de nossos quartoscheios de baratas e ratos efantasmas, isso não nos interessa.Mas peço que nos deixem em paz– já deixamos que vocês ficassemcom as melhores mulheres, oscastelos, os carrões, ostelevisores, a guerra, os filés, ossapatos de 45 dólares, os funerais
de 5.000 dólares, os jardins decactos de mais de um quilômetro,os Van Goghs originais – apenasnão venham nos incomodar comsua “obscenidade” e tratem deperseguir as bancas de jornais efotos de peitos e rabos, páginaapós página, carne nua, tola eestúpida, carnes com rostosvazios para os garotinhos docolegial baterem uma, paraalimentar os velhos pervertidosque estupram crianças, são esses
que vocês devem perseguir,ataquem esta indústria de milhõesde dólares SE PRECISAMATACAR ALGUMA COISA, masnos deixem em paz, NOSDEIXEM EM PAZ. Daqui a cemanos estes livros que vocês estãoconfiscando serão ensinados emsuas universidades se os seuslíderes não forem tolos osuficiente para nos mandarempara o inferno. Acredito que,quando alguém persegue algo,
persegue seu próprio medo,persegue a própria consciência (equão pouco há a perseguir),persegue, tomado de raiva, aperdição de sua própria alma.Não peço que vocês entendammuito. Por favor, não meobriguem a fazê-los entender.Estou ocupado com outra coisa nomomento.
Notas de um velhosafado
National UndergroundReview,
15 de maio de 1968– Uou!Eu vinha tendo visões nos
últimos dias. Apareciam mais
quando eu estava na seca, sembeber, esperando algum dinheiroou alguma coisa acontecer, e asvisões eram bem reais – emtecnicólor e com trilha sonora –,costumavam brilhar no tetoenquanto eu estava deitado nacama, num estado de semi-inatividade. Tinha trabalhado emfábricas demais, passado pormuitas cadeias, bebido muitasgarrafas de vinho barato paramanter qualquer tipo de sangue
frio ou inteligência diante deminhas visões:
– AH, SUMAM DA MINHAFRENTE, SUAS PUTAS! ESTOUIMPLORANDO! SUMAMDAQUI! VÃO FODER COMIGO!OH, MEU DEUS, JESUS,TENHA PIEDADE!
Estava em São Francisco.Então ouvi uma batida na porta.Era a velha que tocava o local,Mama Fazzio.
– Sr. Bukowski – ela disse
através da porta.– AAAAAAAIII!– O quê?– Argh. Ummmf...– O senhor está bem?– Ah, claro.– Posso entrar?Fiquei de pé e abri a porta,
suor gelado escorrendo atrás deminhas orelhas.
– Sabe...– O quê?– O senhor precisa de alguma
coisa para manter a cerveja e ovinho gelados, o senhor não temuma geladeira. Até mesmo umapanela com água e gelo seriamelhor do que nada. Vou arrumaruma panela com água e gelo parao senhor.
– Obrigado.– E lembro que quando o
senhor esteve aqui há dois anoscostumava ter também um toca-discos. O senhor estava sempreouvindo sinfonias. Não sente falta
da sua música?– Claro.Então ela se foi. Tive medo
de me deitar na cama e as visõesvoltarem. Sempre surgiam umpouco antes de eu dormir. Ou nomomento anterior ao que seria omomento em que outras pessoasestariam dormindo. Coisashorríveis: aranhas devorandobebês gordos em suas teias, bebêsde pele branca como leite e olhosazuis da cor do mar. Então
apareciam os rostos, a um metro,com os buracos das bocetassecundadas por círculosvermelhos, brancos e azuis.Coisas desse tipo. Me sentava emuma cadeira de madeira, deespaldar duro e ficava olhandopara a ponte da baía de SãoFrancisco. Então escutei um somestrondoso nos degraus. Algumabesta se arrastava na minhadireção? Abri a porta. Ali estavaMama Fazzio, oitenta anos de
idade, empurrando e sacolejandouma antiga vitrola verde demadeira, daquele tipo à corda, e oaparelho devia ter o dobro dopeso dela, sem falar nadificuldade que seria subirqualquer coisa por aquela escadaestreita, e eu estava ali plantadoquando disse:
– Jesus Cristo, pare aí, não semexa!
– Pode deixar que dou conta!– A senhora vai se matar!
Venci os degraus e agarrei oaparelho, mas ela insistia em meajudar. Levamos a vitrola para omeu quarto. Parecia aindafuncionar.
– Aí está. Agora o senhorpode ouvir a sua música.
– Sim. Muito obrigado. Tãologo eu arranje alguns discos.
– Já tomou café?– Estou sem fome.– Desça para tomar café um
dia desses.
– Obrigado.– E se não tiver dinheiro para
o aluguel, não se preocupe.– Farei o possível para
pagar.– Perdoe-me, mas minha filha
estava me ajudando a limpar o seuquarto quando encontrou algunspapéis escritos. Ela ficoufascinada com os textos. Ela e omarido querem que o senhor vájantar na casa deles.
– Não.
– Eu lhes disse que o senhorera um sujeito engraçado. Disseque o senhor não iria.
– Obrigado.Depois que ela se foi, dei
algumas voltas na quadra equando retornei havia uma enormepanela cheia de gelo, com seis ousete garrafas de cerveja boiando emais duas garrafas de um bomvinho italiano. Mama apareceucerca de três ou quatro horasdepois para tomar uma cerveja.
– O senhor vai jantar com aminha filha?
– A senhora conquistou meucoração, Mama. Só dizer a noite.
Ela havia me levado naconversa. Marcou uma noite.
Passei o resto daquela noitebebendo e dando corda na vitrola,vendo o prato de feltro rodarvazio em diferentes velocidades,depois encostei minha cabeça nosfrisos de madeira da caixa de some fiquei escutando o chiado. O
aparelho todo tinha um cheiroagradável, sagrado e tristonho; oobjeto me fascinava comosepulturas e retratos dos mortos, ea noite seguiu bem. Já demadrugada, descobri um únicodisco nas entranhas do aparelho eo coloquei para tocar:
He’s got the whole worldIn His hands[1]He’s got you and me, brotherHe’s got the little babiesIn His hands
He’s got everybodyIn His hands...
Aquilo me assustou tanto queno dia seguinte, apesar da ressaca,fui em busca de um emprego econsegui um trabalho comofuncionário de estoque numa lojade departamentos. Comecei no diaseguinte. Uma velhusca da seçãode cosméticos (parecia estarnaquela terrível idade para asmulheres – entre 46 e 53) não
parava de gritar que precisava dascoisas IMEDIATAMENTE. Achoque havia uma nota estridente navoz dela que denunciava suainsanidade. Eu lhe disse:
– Mantenha a calcinha nolugar, baby, logo vou estar aí paraaliviar você de todas as tensões...
O gerente me demitiu cincominutos depois. Dava para ouviros gritos dela no aparelho:
– Nunca na vida ouvi umGAROTO DE ESTOQUE TÃO
DESBOCADO!!! Quem ele pensaque é?
– Muito bem, agora seacalme, sra. Jason...
No jantar as coisas tambémforam confusas. A filha tinha umaótima aparência e o marido eraum italiano enorme. Ambos eramcomunistas. Ele tinha um empregonoturno dos bons, num lugar bemelegante, e ela ficava por ali,lendo livros e alisando aquelaspernas deliciosas. Serviram-me
vinho italiano. Mas nada daquilofazia sentido para mim. Sentia-meum idiota. O comunismo não faziamais sentido para mim do que ademocracia. E por várias vezesnaquela noite, também à hora damesa, um pensamento me veio àmente: eu sou um idiota. Será quetodos conseguem ver isso? Quehistória é essa de vinho? Essaconversa? Não estou interessadoem nada disso. Isso não tem nadaa ver comigo. Será que enxergam
através da minha pele, será quepodem ver que não sou nada?
– Gostamos dos seus textos.Você nos lembra Voltaire – eladisse.
– Quem é Voltaire –perguntei.
– Oh, meu Deus – disse omarido.
Eles passaram quase todo otempo falando e comendo,enquanto eu bebia o vinhoitaliano. Tive a impressão de que
se sentiam incomodados por meter ali, mas, uma vez que eu jáesperava por isso, não meimportei. Quero dizer, não muito.Ele tinha que sair para o trabalhoe eu fiquei por ali.
– Posso estuprar a sua mulher– eu lhe disse. Ele gargalhouescada abaixo.
Ela se sentou em frente àlareira, mostrando as pernasacima do joelho. Sentei-me numacadeira, fiquei olhando. Não
comia ninguém há dois anos.– Tem um cara muito sensível
– ela disse – que sai com umaamiga minha. Eles ficam sentadose conversam por horas e horassobre o comunismo e ele nunca atoca. É muito estranho. Ela estáconfusa e...
– Suba um pouco mais o seuvestido.
– O quê?– Eu disse, suba um pouco
mais o vestido. Quero ver um
pouco mais das suas pernas. Finjaque eu sou Voltaire.
Ela me mostrou mais umpouquinho. Aquilo mesurpreendeu. Mas foi mais do queeu podia aguentar. Avancei emsua direção e arregacei seuvestido para além de seus quadris.Então a arrastei para o chão emontei nela de um jeito doentio.Tirei a calcinha dela. Estavaquente na frente do fogo, muitoquente. Então, depois que tudo
acabou, voltei a ser o mesmoidiota:
– Sinto muito. Perdi a cabeça.Quer chamar a polícia? Comovocê pode ser tão jovem se a suamãe é tão velha?
– É minha avó. Ela gosta deme chamar de “filha”. Vou até obanheiro. Já volto.
– Claro.Me limpei na cueca e, quando
ela voltou, conversamos fiado porum tempo e depois eu abri a porta
para ir embora e acabei entrandonum closet cheio de casacos eoutras coisas. Nós dois rimos.
– Mas que merda – eu disse.– Sou mesmo maluco.
– Não é não.Saí, desci a escada, retornei
às ruas de São Francisco e depoispara o meu quarto. E lá na panelahavia mais cervejas, mais vinho,flutuando na água e no gelo. Bebitudo, sentado na cadeira demadeira junto à janela, as luzes
todas apagadas, olhando parafora, bebendo.
A sorte estava do meu lado.Um rabo que bem valeria cempratas e pelo menos dez dólaresem bebida. Isso bem poderiaseguir para sempre. Já me viacada vez mais sortudo. Maisvinhos italianos de qualidade,mais daquele rabo italiano dequalidade; cafés da manhã grátis,nada de aluguel, o fluir e oincandescer da maldita alma
tomando conta de tudo. Cadahomem era um nome e umamaneira de ser, mas que horríveldesperdício era tudo isso ao final.Eu tinha que fazer diferente. Seguibebendo e não me lembro decomo fui parar na cama.
Pela manhã as coisas nãoestavam tão ruins. Restava aindauma garrafa de cerveja choca pelametade. Bebi. Então voltei a medeitar na cama, comecei a suar,fiquei ali estendido por um longo
tempo, comecei a ficar sonolento.Desta vez foi um abajur que
se transformou num rosto muitogrande e vermelho e depois voltoua ser um abajur. Aquilo seguiuindefinidamente, como um filmerepetido, e eu suava e suava semparar, pensando que, a cada vez,aquele rosto pudesse se tornarinsuportável para mim, o que querque fosse aquela coisainsuportável. Então ela VOLTOUa reaparecer!
– AAAAAAAAAAAAIIIII!AIIIII! JESUS! JESUSFODEDOR! ME SALVE, OH,SENHOR JESUS!
A batida na porta.– Sr. Bukowski?– Hein?– Tudo bem com o senhor?– Hein?– Eu disse, “Tudo bem com o
senhor?”– Oh, sim, estou bem!Mama Fazzio entrou.
– O senhor bebeu tudo.– Sim, a noite passada foi
uma daquelas quentes.– Ainda não arrumou uns
discos?– Só aquele com “He’s got the
little babies in His hands[2]”.– Minha filha quer que o
senhor vá jantar com ela de novo.– Não posso. Estou com um
rolo. Preciso resolver o negócioprimeiro.
– Do que o senhor está
falando?– Sacramento, lá pelo dia 26
deste mês.– O senhor está com algum
problema?– Ah, não, Mama, nenhum
problema.– Gosto do senhor. Quando
voltar, venha morar com a gente.– Claro, Mama.Escutei a velha descer a
escada. Então me joguei nocolchão. Como o vento uiva na
boca do cérebro; como é tristeestar vivo com braços e pernas eolhos e um cérebro e um pau ebolas e um umbigo e todo o restoe estar esperando e esperando eesperando que tudo isso morra, deum jeito tão estúpido, sem quehaja nada que se possa fazer, nadaa fazer, de fato. Uma vida de TomMix com uma prisão de ventre derachar. Eu estava quase dormindo.
– AAAAAAAAAAAAIIII!UIIIIII! NOSSA SENHORA MÃE
DE DEUS!– Sr. Bukowski?– Auauglaglagla.– O que está acontecendo?– Hein?– O senhor está bem?– Ah, sim, claro.
*
Chegou finalmente a hora dedar o fora de São Francisco.Estavam me deixando louco. Com
seu vinho de graça e todo o resto.Estou em Los Angeles agora, ondenão dão nada de mão beijada, eestou me sentindo um poucomelhor...
EI! Mas que diabos éISSO??? ...
[1]. Algo como “Ele tem o mundointeiro ao alcance de Suas mãos”, epor aí vai. (N.T.)[2]. “Ele tem os bebezinhos em Suasmãos”, substituindo “o mundointeiro” (whole world) da letraoriginal. (N.T.)
A noite em queninguém acreditou queeu era Allen Ginsberg
Berkeley Tribe,19-25 de setembro de 1969Dirigi até Venice só para ver
esse cara e não o encontrei e eu jáestava um pouco bêbado e acabei
batendo primeiro na porta errada:– Estou procurando o Hal. Ei,
ele já se arrumou com umaputinha! Você não é nada má,garota, nada má!
Forcei minha entrada, ela mebarrou com o braço.
– Ei, pare!– Pare o quê? Quero ver o
Hal.– Qual é o seu problema?
Não tem nenhum Hal aqui.– Norse. Hal Norse.
– Mora um andar acima.Você está no andar errado.
– Bem, e que tal, já que estouaqui, se eu entrasse e a gentecurtisse junto? O que me dizdisso, belezura?
– Ei, você perdeu a noção?Cai fora!
Putas. Sempre acham que suaboceta é algo especial. Subicorrendo as escadas debaixo dechuva. Apertei a campainha deNorse. E ele não estava.
Sempre quis ser umcompositor de músicas. Agoraque eu não tinha nada a fazer,comecei a compor uma canção(sobre mim mesmo):
Ah, você não tem salvaçãodi da da
Ah, você não tem salvaçãoda da da da...
Ah, diabos. Isso era daCarmen, e eu odeio Carmen.
Esqueci onde havia
estacionado meu carro e seguicaminhando a esmo debaixo dachuva. Cheguei num bar. Entrei.Para uma noite chuvosa, o lugarestava bastante cheio. Mal pudearrumar um lugar. Havia umamulher sentada por ali. Nada demais, mas resolvi tentar a sorte.
– Olá, belezura, sou escritor.Um grande escritor!
Ela virou o rosto porcompleto na minha direção. Podiaver o ódio tomando forma sob sua
carne.– ESCUTE, CARA! – ela
gritou, permitindo que todo o barouvisse: – VOCÊ QUER, PORFAVOR, PARAR DE MEENCHER O SACO?
O atendente ficou à espera domeu pedido.
– Uísque duplo com gelo.Um sujeitinho de aspecto
seboso, de terno e gravata,caminhou na direção dela.
– Olá, Helen, querida!
– Oh, Robbie! Robbie! Faztanto tempo que a gente não se vê,TANTO TEMPO!
Robbie retirou uma rosa desua lapela e lhe estendeu. Entãolhe deu um beijo na bochecha.
– Ah, Robbie!!Onde diabos eu tinha me
metido? Num ninho de atores?Todos atuavam como seestivessem em frente às câmeras.Era como estar sentado noBarney’s.
– Quem é esse cara? – eleperguntou a ela. Estava falando demim.
– Sou Allen Ginsberg – eudisse –, e ela não quer falarcomigo.
Ela voltou a me olhar.Parecia que o tempo estavasujeito a raios e trovoadas.
– SEU IDIOTA! PENSAQUE EU NÃO SEI COMO É OALLEN GINSBERG?
– Escute, por que você fica
gritando desse jeito? Você estáme deixando numa situaçãodesconfortável. Isso não estácerto.
– VOCÊ ESTÁ MEENCHENDO O SACO! ESSA ÉA RAZÃO! VOCÊ NÃO PARADE ME ENCHER O SACO!
– Escute – eu disse,inclinando-me na direção dela –,por que você não mete o dedo nocu e rasga?
– Robbie! Ouviu só o que ele
me disse?– Não, querida, o que foi que
ele disse?– ELE ME DISSE PARA
ENFIAR O DEDO NO CU ERASGAR! QUE CRETINO!
Virei meu uísque.– Escute, senhor – disse
Robbie –, não sei quem o senhoré, mas acho que está a fim de umlábio inchado!
Lábio inchado? Deus, issoparecia uma fala do James
Cagney. 1935?Então resolvi devolver na
mesma moeda, algo na linhaCagney:
– Certo, boneca, se estiver afim de dançar, estarei lá foraesperando!
Imaginei que fosse sair dali eseguir caminhando até encontrarmeu carro, sem problema, maslogo ouvi os passos dele àsminhas costas.
O bar inteiro começou a se
levantar e segui-lo até o lado defora.
– ACABE COM ESSEFILHO DA PUTA, ROBBIE!
– ENSINE A ELE UMALIÇÃO, ROBBIE!
– ACABE COM ELE,ROBBIE! SE VOCÊ NÃO FIZERISSO, NÓS FAREMOS!
Ah, Senhor, tende piedade daminha pobre Alma, pensei.Cinquenta anos de idade. Venhotendo desmaios. Mal consigo
amarrar os sapatos, me vêm unspretos, o mundo gira. Estoufodido. Por que o Norse nãoestava em casa? Por que continuome metendo nessas confusões? Emqualquer bar, em qualquer lugar,em qualquer tempo...
Robbie me deu um empurrãoe eu cambaleei um pouco, as mãosainda baixas ao lado do corpo.Então ele me acertou. Direto nonariz. Era bom estar embriagado.Não doeu nada. Então me acertou
na altura do meu cavanhaquefalhado. Nada também. Sorri.
Então lancei um golpe. Emcâmera lenta. Um soco fajuto. Semforça. Só para dar uma alegradano espetáculo. Nem de longe umgolpe direto. Um soco pesado efedorento de 115 quilos decerveja.
Robbie gritou como seestivessem lhe arrancando umdente sem anestesia.
Então ele se contorceu,
dobrou-se ao meio, indo umpouco para trás, depois caiu defrente, sobre os joelhos. Logo selançou ao chão como um homemque fosse mergulhar sob umaonda. E ficou estendido. Naquelecimento molhado e sujo. Por ummomento me senti como um jovemJack Dempsey, mas sabia queaquilo não era de verdade.Robbie era louco. Havia algumacoisa errada com ele... Ó, Cristomisericordioso, ele era ainda
mais covarde do que eu! O mundoera um lugar esplêndido, apesarde tudo!
Ao se levantar, tinha umaspecto estranhamentedesmazelado. Uma das pernas dacalça tinha se rasgado e dava paraver o joelho esfolado e sujo desangue através do buraco.
– Quer um pouco mais,mamãezinha? – perguntei, comofaria um cara durão.
– Chupa aqui! – ele silvou.
Me pareceu uma boaresposta. Desci mais um golpe.Era como se ele estivesseesperando por isso. Eu nãoconseguia entender aquilo. Jáestivera em lutas mais duras comgarçonetes.
Ele voltou a cair.– Ele está tentando matar o
Robbie!Então:– ELE ESTÁ TENTANDO
MATAR O ROBBIE!
Então:– PEGUEM ELE! PEGUEM
ELE! PEGUEM ELE! – gritava avadia que sabia qual era aaparência do Allen Ginsberg.
Mesmo assim ninguém semoveu. Ficamos olhando Robbiecom a face voltada para baixo,como se estivesse morto. A chuvacaía sobre suas costas naqueleestacionamento vagabundo. Abripassagem entre duas ou trêspessoas, cruzei correndo o
estacionamento e comecei acorrer na direção da calçada. Obar ficava bem junto à praia.
Cinco ou seis deles vieramatrás de mim.
Dei a volta em torno doabrigo de um banco, os pésafundando na areia, e eles no meuencalço, latindo como cachorrosatrás da raposa, diminuindocontinuamente a distância que nosseparava, e só havia uma maneirade fugir: correr em direção à água
(Ginsberg. Eles não fariam issocom o Ginsberg). Corri na direçãodas ondas, do beijo delicioso eardiloso da Morte, e conseguichegar até a areia molhada, olheiao redor, e ali estavam eles:
Quatro ou cinco caras e duasou três mulheres, incluindo ela:
– PEGUEM ELE! ACABEMCOM ELE! ELE TENTOUMATAR O ROBBIE!
Recuei na direção do mar, aágua já invadindo meus sapatos,
envolvendo as barras da minhacalça.
– VOU MATAR OPRIMEIRO VEADO QUECHEGAR PERTO DE MIM! –gritei.
Continuaram se aproximando.Sete ou oito deles. Homens emulheres misturados. Recueiainda mais. Uma onda me acertounas costas e me derrubou.
– COVARDE! – alguémgritou.
– UM DE CADA VEZ! –gritei de volta. – Encaro UM DECADA VEZ! É SÓ O QUE PEÇO!UMA CHANCE JUSTA!
– CERTO! SAIA DAÍ!LOUIE VAI DAR UM JEITO EMVOCÊ!
(Louie? Aquilo não me sooumal.)
Saí morrendo de frio, a calçaencharcada e pesada, pernas emeias e sapatos gelados, cheiosde areia e sujeira e morte.
Caminhei na direção deles.– Quem é o Louie? –
perguntei.– Sou eu – disse um gordão,
destacando-se, fumando umcharuto e parecendo bastanteestúpido. Era baixo, devia ter ummetro e cinquenta e uns oitentaquilos. Não parecia muito durão.
– Vou acabar com a sua raça,filho da puta! – eu disse.
Avancei. Parti direto paracima dele. Hemingway teria se
orgulhado de mim. Depositei todaa minha força para atingi-lo nomeio da sua barriga gigante.
Jogou o charuto para o lado eentão...
ME VIROU.Voei pelo ar. Aterrissei
pesado. Direto sobre minhabunda, depois sobre minhascostas.
Me levantei e corrinovamente na direção dele.
MAIS UM GIRO!
Cada vez que eu melevantava e corria na direçãodele, novamente ele me virava.
As aterrissagens recaíamsobre minha bunda, minha cabeça,minhas costas. Chegou até aacender um novo charuto. Aquilome emputeceu. Mas quanto maisirritado eu ficava, com mais forçaeu avançava – e cada vez pareciamais fácil para o gordo Louis mejogar de costas no mar.
Resolvi lhe dar um
verdadeiro golpe de touro à modaTijuana.
E a última das viradas foi amaior de todas. Minha cabeçapareceu bater contra uma pedraescondida sob a areia. Então ooceano e as estrelas e a agoniaderam a impressão de se misturarperfeitamente.
Mais uma vez me levantei ecorri contra Louie. Desta vez,porém, no último momento, fiz umdesvio, seguindo para leste, e
comecei a correr ao longo daágua...
– OLHEM! ELE ESTÁFUGINDO!
– AH, SEU COVARDE!– ATRÁS DELE!E lá foram eles atrás de mim.
Homens, mulheres, o GordoLouie, e até mesmo o atendente dobar com o avental sujo.
Quem estava cuidando dobar? Foi o pensamento queprimeiro me ocorreu.
Quem se importa? Foi osegundo.
O problema de fugir de seteou oito pessoas é que hánormalmente três ou quatro quecorrem mais do que você.
– PEGUEM ELE!– MATEM ELE!Venice, Califórnia. Quem
eram essas pessoas? Ondeestavam os hippies? Ondeestavam as Crianças das Flores?Onde estava o AMOR? Que
diabos era tudo aquilo?Então começou a chover,
subitamente e com força. Era umatormenta gelada e maléfica,impiedosa com a humanidade.
– Jesus, ESTÁ CHOVENDO!– DEIXEM ELE IR! QUE SE
FODA!A espécie humana era
demente – preferiam ficar secos ame dar porrada. Tinham medo degotas de água, mas nenhum receiode mergulhar numa banheira cheia
delas.Gostei bastante daquela
chuva, especialmente por vê-losdar meia-volta e correr emdireção ao bar. Corri pela areiafofa em direção ao calçadão. Masaté mesmo para mim a chuvaestava muito forte – era quasecomo se fosse um bloco compactode água. Minha roupa seencharcou como se fosse umesfregão. Podia sentir minhacueca pesada e pendendo,
ensopada em volta do meu pau,escapando da minha bunda.
Corri por um dos lados darua, encontrei uma casa velha,parei junto à varanda.
Um cara veio até a porta.Uma mulher atrás dele. Lá dentrohavia uma tevê. Um aquecedorligado. Uma luz amarelada equente.
– EI, CARA! O QUE ESTÁFAZENDO AÍ NA MINHAVARANDA?
– Paz, irmão – eu disse. –Está chovendo. Só estou aqui parame secar um pouco. Não vim comnenhuma má intenção.
– Você não tem direito deestar na nossa varanda – falou amulher por sobre o ombro.
– Tudo bem, assim que pararde chover eu vou embora.
– Queremos que você váagora – disse o homem.
– Escutem, não estou fazendonada de mais...
– Saia da nossa varanda! –disse o homem.
– Sim, saia da nossa varanda!– disse a mulher.
– Vão pro diabo que oscarregue – eu disse em voz baixa.
– Está atrás de confusão, nãoé?
– Sim, estou atrás deconfusão.
Esperei que ele saísse. Masele foi lá para dentro e pegou otelefone. Ia chamar a polícia.
PIEDADE!Abandonei a varanda e
retornei para a chuva gelada edesumana. Corri até o fim daquadra, segui na direção leste ecaminhei ao longo da chuva.Quando conseguem derrubá-lo,realmente fazem questão demantê-lo no chão. Sentia-me piordo que uma pulga na virilha de umcachorro.
Quer dizer que isso eraVenice? O novo Village de Los
Angeles, mas onde estavam osescritores, os pintores, os hippies,os vagabundos? Quando chovia,todos tinham um lugar para ir. Euera um condenado. O único a estardebaixo daquela chuva.
Então, enquanto caminhavasem direção, avistei um carro queparecia o meu. Impossível. Meaproximei. Era... aquele Cometazul de merda, 1962. O meucarro! Bem, daqui a quatroprestações. O MEU CARRO! Eu
tinha alguma coisa...Será que ainda estava com as
chaves depois de toda aquelaluta? Outra noite eu havia chegadoaté o carro em circunstânciassemelhantes. Zona Leste de LosAngeles, uma briga com trêsrapazes mexicanos. Consegui ficarcom a carteira, mas perdi aschaves.
Vasculhei os bolsos – aliestavam elas. Úmidas, cheias deareia, milagrosas chaves.
Abri a porta e entrei. O motordeu a partida, emboraresmungando um pouco. Fiquei alisentado, esquentando o motor,enquanto o carro da polícia davaas caras. Vi-o dobrar a esquina ese aproximar do homem com suavaranda extremamente possessiva.Engatei a marcha e comecei aandar.
Quando cheguei em casa, tireiminhas roupas, me enxuguei,coloquei um quimono japonês que
John Thomas havia me dado eabri uma garrafa de cerveja.
O telefone tocou. Atendi.– Puteiro do Bukowski.– Hank?– Sim.– É o Hal, onde você estava?
Tentei falar contigo pelo telefone.– Fui às corridas.– E que tal?– Jogo duro, muito duro.– E como saiu?– Terminei empatado.
– Ouvi notícias do Stangos.Ele mandou a Penguin 13 pelocorreio. Recebeu uma cópia?
– Sim.– Parece que tem uma boceta
na capa. Era para ser umapedreira, mas parece uma boceta.
– Uma boceta num mensário.Queria que eles tivessempublicado uma de verdade.
– Vai sair no dia 29 de junhonos Estados Unidos. Mas já saiuna Inglaterra... blá, blá, blá...
Nikos diz que é a melhor dasérie... blá, blá... establishment,blá, blá, grupos universitários,blá, blá, logo depois dos nossosrabos e blá, blá... Beiles escreveuuma boa crítica blá, blá, blá que aLondon Magazine recusou e blá,blá, blá, e depois mais blá, blá,blá num jornal da África do Sul eblá, e eles também se recusaram ablá, blá, blá, mas segue o acordoe eles estão atrás de nós e blá,blá.
– É isso aí.Ele ainda falou um pouco e
depois desistimos. Terminei acerveja e abri outra, e começou achover FORTE mais uma vez...Os salva-vidas das pessoascaindo dentro de cânions, fendasna terra, insegurança que ascompanhias de seguro jáconheciam, que os arquitetos econstrutores já conheciam... Emquinze minutos eu teria de ir embusca de uma dúzia de cervejas,
mas antes seria preciso trocar oquimono japonês. Uma dúzia decervejas, três charutos e um LATimes.
O telefone tocou.– Por onde você andava,
Hank? Estava tentando falar comvocê. Sua filhinha quer falar comvocê.
A garotinha estava comquatro anos e a mulher a colocouna linha, e eu ri e tomei minhacerveja enquanto ela falava muito
seriamente comigo. Coisas muitobem-estruturadas também. Coisassérias. Tudo era bastante sério eao mesmo tempo muito engraçadoenquanto eu a escutava junto coma chuva, o som contínuo dassirenes do lado de fora. De ummodo vago, pensei em coisasestranhas como no BATALHÃODE ABRAHAM LINCOLN e emonze girinos mortos sob o varalem 1932. Então ela me disse atélogo. Foi preciso um longo tempo
para poder dizer até logo.Depois de encerrada a
ligação, tirei meu quimono e mepreparei para enfrentar aimundície da rua.
Deveríamos queimaro rabo do Tio Sam?
Deveríamos queimar o rabodo Tio Sam?
Ou ele queimará os nossos?Terei 50 em agosto, portanto nãoconfie em mim. São 20 anos mais30, e eu me pergunto em quem osgarotos com menos de 30 vão
confiar quando tiverem mais de30? Mas talvez você deva confiarem mim um pouquinho – estoudesempregado, chego a ter até umcavanhaque ralo, bebo todas asnoites até o amanhecer, escrevomeus poeminhas e meus contossujos, ainda em busca do alvo,talvez errando, levantando aomeio-dia em busca de umantiácido, topando com aquarelascobrindo o chão junto comgarrafas de cerveja vazias e o
Programa de Corridas da semanapassada. Berkeley Tribe me mandauma cópia de seu jornal todas assemanas, então devem saber queestou aqui. Além do mais, bebocom todo mundo e os escuto.Minha porta está aberta tanto paraa Esquerda quanto para a Direita,para brancos e negros e amarelose vermelhos e homens e mulherese sapatões e homos variados. Nãofico palestrando; eu aprendo. Euera contra a guerra quando ser a
favor era moda. Acreditava quedeveríamos ter permanecido forada Segunda Guerra Mundial e ocurso da história se revelariasemelhante ao que temos agora.Esta é uma declaração forte e,claro, pode ser discutida.Continuo sendo contra a guerra.Independente de a guerra sercontra a Esquerda ou a Direita,para mim nunca deixa de ser umaguerra. Entre os intelectuaisamericanos uma guerra “boa” é
aquela travada contra a Direita;uma guerra “ruim”, contra aEsquerda. Isso é fácil demais. Alição é não se deixar iludir. Sevocês estão dispostos a sacrificarvidas humanas por uma Causa,sigam em frente. Troquem aconstituição por uma nova oufaçam a antiga funcionar. Digam:“Nós morremos. Agora é isso quequeremos”. No momento em queum inimigo é removido em umaguerra, isto cria um vazio de
desequilíbrio e um novo inimigose forma. Se você destrói aEsquerda, a tendência é que vocêse torne a Esquerda; se vocêdestrói a Direita, a tendência éque se torne a Direita. Tudo nãopassa de mercúrio, de umagangorra, e grandes homens sedeixaram enganar e aprisionarpelas mudanças no equilíbrio.Políticas, guerras, causas – pormilhares de anos acabamostransformados em sacos de merda.
Já é hora de aprendermos apensar.
Ainda nos anos 30, ecaminhando direto para a SegundaGuerra Mundial, havia um fortesentimento revolucionário nestepaís. Franco estava prestes adominar a Espanha – escritoresforam fisgados pela “nobre causa”– Hemingway, Koestler, que seconverteu mais tarde – de fato,Darkness at Noon foi um dosprimeiros sinais de conversão.
Depois houve também LillianHellman; Irwin Shaw, oqueridinho dos intelectuais e ochuchu da New Yorker – vejam oconto “Sailor Off the Bremen”...e, claro, havia Steinbeck e DosPassos – que se converteramdepois. Mesmo William Saroyan,que disse que nunca iria à guerra,acabou enquadrado, foi, eescreveu um péssimo romancesobre isso – The Adventures ofWesley Jackson . Houve dúzias,
centenas de outros. Você nempoderia ser considerado umescritor se não fosse a favor daguerra. E, claro, antes da guerrahavia uma depressão. As pessoas,tanto jovens quanto velhas,costumavam se encontrar emgaragens escuras e conversarsobre revolução. Formou-se ABrigada Abraham Lincoln para irà Espanha deter “a escalada dofascismo. Parem-na agora!”. Bem,a Brigada estava pobremente
armada e eles gritavam àsmultidões: “Junte-se ao Partido!Junte-se à Brigada! Precisamosdetê-los agora! Nossas vidasestão em jogo!”. Em SãoFrancisco acontecia o mesmo. Osbailes do Partido Comunista erambem frequentados. Nenhumhomem poderia ficar de fora, elesdiziam. Qualquer homem que nãoestivesse minimamente envolvidonem poderia ser consideradoparte sensível e pensante da
espécie humana. Temposempolgantes para alguns. Masonde foram parar? O que houvecom a Esquerda depois que Hitlerfoi derrotado? O que aconteceucom Irwin Shaw, Hemingway,Dos Passos, Steinbeck, Saroyan, agalera toda? Bem, houve aqueleromance estúpido do Steinbeck,The Moon is Down, e aqueleromance estúpido de Hemingway,Além do rio e entre as árvores , enão faço a menor ideia se essas
coisas foram escritas depois,durante ou um pouco antes daguerra – fazem parte do processo.Dos Passos desistiu. Os outrosdescobriram que já não podiamescrever. Camus passou a fazer ocircuito de palestras nasAcademias até que um acidente decarro o salvou desse tipo de vida.
Meu ponto é que já ouvigritaria similar a essa que agoratoma as ruas antes, e tudo isso nãodeu em nada. Houve traições e
viradas em abundância. Aspessoas tinham comida em suasbarrigas. As pessoas tinham feitodinheiro na guerra. A Rússiaaliada passou a ser a Rússiainimiga. Joe Stálin, agora que omundo tinha sido salvo, dava umade Hitler com seu povo. Mais umavez – como sempre – osintelectuais tinham sidoenganados. A realidade superou ateoria. A ganância e a mesquinhezhumanas se tornaram história. A
proclamada bondade do homemrevelou-se um belo golpe.Traição. Documentos. Conversapara boi dormir. Irwin Shawpercebeu isso e colocou no papel– seu melhor livro, embora eu jánão lembre mais o título. JoeMcCarthy fez sua aparição atempo. As meias sujas de Adolph.Tivemos o assunto exaurido pelaindústria cinematográfica. ADireita estava de volta. Mascomo? Não tinham sido destruídos
na Segunda Guerra? Cada homemera suspeito. “Vocês nuncaparticiparam do PartidoComunista? Não éramos a maioriade nós?” Mas ninguém nuncadisse isso. Eles recebiam suasordens de cima e, como bonsmeninos, obedeciam. E agora ascrianças judias que salvamos dosfornos fazem parte da Direita.Comandam Panzers e guerras-relâmpago e ataques aéreos contraa ESQUERDA. É desconcertante.
Agora mais uma vez osintelectuais gritam “Revolução”.Um banco é incendiado. A IBMsofre um atentado, uma companhiatelefônica também, e outroslugares... Policiais sãoapedrejados; seus carrosqueimados; policiais são mortos,policiais matam – sempreacontece. Então nós temos os 7grandes de Chicago e um velhoinacreditável, senil, como juiz. SeKunstler não tivesse avisado a
rapaziada para parar num discursorecente, aquilo poderia teracontecido. Mas Kunstler sabiaque poderia ter ocorrido ummassacre e que a Revolução teriaterminado ali mesmo. Garantiu aeles mais um dia. Bem, vocêspodem se perguntar, qual é o meuPROPÓSITO? Bem, sou umfotógrafo da vida, não um ativista.Mas antes de se decidir por umaRevolução tenham certeza de quevocês têm uma boa chance de
vencer – com isso, me refiro auma vitória pela violência. Antesde isso acontecer vocês precisampromover alguma revoluçãodentro dos ranques da GuardaNacional e da força policial. Istonão acontecerá em nenhum grau.Então é preciso fazer isso atravésdos votos. E suas chances sãodizimadas pela presença dos doisKennedy. A essa altura já hámuitas pessoas temendo por seusempregos, há muitas pessoas
comprando carros, aparelhos detevê, casas, créditos estudantis.Crédito e propriedade e umtrabalho de oito horas são grandesamigos do Establishment. Sevocês precisam comprar coisas,usem apenas dinheiro, e sócomprem aquilo que tenha realvalor – nada de bugigangas ouengenhocas. Tudo o que vocêspossuem deve caber dentro deuma mala; só então suas mentespoderão estar livres. E antes que
vocês enfrentem as tropas nasruas, DECIDAM e SAIBAM oque estão fazendo, quemcolocarão no lugar dos que aíestão e por quê. Slogansromânticos não farão o serviço.Tenham um programa definido,com palavras claras, pois sevocês VENCEREM terão umaforma de governar decente eadequada. Pois tenham em menteque em todos os movimentos háoportunistas, gente ávida de
poder, lobos sob vestesRevolucionárias. São esses oshomens que derrubam uma Causa.Estou do lado dos que querem ummundo melhor, para minha filha,para mim mesmo, para vocês, masé preciso ter cuidado. Umamudança no poder não significauma cura. Entregar o poder àspessoas não é uma cura. O podernão é uma cura. O grande esforçode suas mentes não deve ser comodestruir um governo, mas sim
como criar um governo melhor.Não sejam mais uma vezenganados e aprisionados. E sevocês vencerem, tenham cuidadocom um governo que seja maisAutoritário e que acabe por deixá-los numa situação mais opressivado que a anterior. Não souexatamente um patriota, masapesar de todas as enormes efodidas injustiças ainda se podeexpressar uma opinião e protestare agir num amplo espectro social.
Digam-me, poderia eu escreverum texto contra o governoDEPOIS que vocês assumirem?Poderia ficar nas ruas e parques edizer a vocês o que eu penso?Espero que sim. Mas sejamcuidadosos se for para perdermosesse direito em nome da Justiça.Peço que me apresentem seuprograma para que possa escolherentre o de vocês e o deles, entre aRevolução e o governo existente.Será que não me colocarão para
cortar cana? Isso me deixariabastante chateado. Por acasoconstruirão novas fábricas?Passei minha vida inteira fugindode fábricas. Teriam meus escritos,minha música, minhas pinturasque levar em conta o bem-estar doEstado? Deixariam que eu ficasselargado em parques e cubículosbebendo vinho, sonhando, mesentindo bem e tranquilo?Deixem-me saber o que têmreservado para mim antes que eu
saia por aí queimando bancos.Preciso de mais do que colareshippies, uma barba, um turbanteindiano, maconha legalizada. Qualé o seu programa? Estou cansadode todos os mortos. Não vamosdesperdiçá-los mais uma vez. Se épara enfrentar a baioneta dasTropas Estaduais, digam-me o quevou ganhar para isso.
Digam-me.
O cristo prateado deSanta Fé
Recebi uma carta de Marx,que havia se mudado para SantaFé. Dizia pagar a passagem detrem e que iria bancar minhasdespesas se eu ficasse lá por unstempos. Ele e a esposa tinham umacerto com um psiquiatra rico e
não precisavam pagar aluguel. Opsiquiatra queria que elesmudassem a gráfica deles para lá,mas as máquinas eram muitograndes para passar pelas portas,então o psiquiatra se ofereceupara contratar alguém paraderrubar uma das paredes e pôr asmáquinas lá dentro e depoiserguer a parede de novo. Achoque era isso que preocupava Marx– ter sua preciosa gráfica trancadalá dentro daquele jeito. Então
Marx queria que eu fosse até lá edesse uma olhada no psiquiatra elhe dissesse se o psiquiatra eraboa gente ou não. Não sei bemcomo aconteceu, mas eu andavame correspondendo com essepsiquiatra rico, que era tambémum péssimo poeta, havia algumtempo, mas nunca o virapessoalmente. Também estava mecorrespondendo com uma poeta,uma poeta não muito boa, Mona, equando dei por mim o psiquiatra
tinha se divorciado da mulher eMona tinha se divorciado domarido e então Mona se casoucom o psiquiatra e agora Monaestava lá e Marx e sua mulherestavam lá e a ex-mulher dopsiquiatra, Constance, aindaestava na área. E era para eu ir atélá e ver se estava tudo bem. Marxachava que eu sabia das coisas.Bem, eu sabia. Podia dizer a eleque não estava tudo bem, nãoprecisava ser nenhum gênio para
se dar conta disso, mas acho queMarx estava tão envolvido nasituação, além do lance de nãopagar aluguel, que não conseguiaver. Jesus. Bem, eu não estavaescrevendo. Tinha escrito umashistórias obscenas para asrevistas de sacanagem e elastinham sido publicadas. Eu tinhauma porção de histórias obscenaspublicadas pelas revistas desacanagem. E então estava na horade reunir material para mais uma
história obscena e eu estava certode que havia uma história obscenaem Santa Fé. Então disse a Marxpara mandar o dinheiro...
*
O nome do psiquiatra eraPaul, caso alguém estejainteressado.
Eu estava sentado com Marxe sua mulher – Lorraine – e bebiauma cerveja quando Paul entrou
empunhando um copo de uísquecom soda. Não sei de onde saiu.Ele tinha casas espalhadas portoda a costa. A porta ao nortedava para quatro banheiros comquatro banheiras e quatroprivadas. Parecia que Paul tinhasimplesmente caminhado ao longodos quatro banheiros com quatrobanheiras e quatro privadas com abebida nas mãos. Marx nosapresentou. Havia uma hostilidadevelada entre Marx e Paul, porque
Marx tinha permitido que algunsindianos se banhassem em uma oumais das banheiras. Paul nãogostava de indianos.
– Veja, Paul – perguntei,dando um gole na minha cerveja–, me diga uma coisa?
– O quê?– Eu sou louco?– Custa caro para descobrir.– Deixa para lá. Eu já sei.Então Mona surgiu de dentro
dos banheiros. Estava segurando
um menino nos braços, do seuoutro casamento, um menino deaproximadamente três ou quatroanos. Os dois estavam com carade choro. Fui apresentado a Monae ao menino. E então elesseguiram para outro lugar. Namesma hora Paul saiu com seucopo de uísque.
– Eles promovem leituras depoesia na casa de Paul – disseMarx. – Todos os domingos. Fuipela primeira vez no domingo
passado. Ele manda as pessoasfazerem uma fila única em frente àporta. Então os convida a entrar,um por um, e faz com que seacomodem e lê as coisas deleprimeiro. Ele tem um monte degarrafas espalhadas por todaparte, os caras ficam secos poruma bebida, mas ele não servenada. O que você acha dum filhoda puta desses?
– Bem – eu disse –, nãovamos nos precipitar. Pode ser
que, por baixo dessa casca, Paulseja um homem muito bom.
Marx me encarou e nãorespondeu. Lorraine apenas riu.Fui buscar outra cerveja, abri agarrafa.
– Não, não, veja bem – eudisse –, pode ser por causa dodinheiro. Todo aquele dinheiroestá causando algum tipo debloqueio; a bondade dele estátrancada, não consegue sair,entende? Talvez, livre de um
pouco desse dinheiro, ele pudessese sentir melhor, mais humano.Talvez isso seja o melhor paratodos...
– Mas e os indianos? –perguntou Lorraine.
– Daremos um pouco paraeles também.
– Não, não é isso. É que eudisse para o Paul que deixariaeles virem aqui tomar banho. Eeles também podem cagar.
– É claro que podem.
– E eu gosto de falar com osindianos. Gosto dos indianos. MasPaul disse que não quer eles porperto.
– Quantos indianos vêm aquipor dia tomar banho?
– Ah, uns oito ou nove.– Alguma moça jovem?– Não.– Bem, não precisamos nos
preocupar tanto com os indianos...
*
Na noite seguinte, Constance,a ex-mulher, apareceu. Tinha umcopo de bebida nas mãos e estavaum pouco alta. Ainda estavamorando em uma das casas dePaul. E Paul ainda a visitava. Emoutras palavras, Paul tinha duasesposas. Talvez até mais. Ela sesentou ao meu lado e senti suascostelas encostarem nas minhas.Tinha uns 23 anos e era muitomais bonita do que Mona. Falavacom um sotaque meio francês,
meio alemão.– Acabo de chegar de uma
festa – ela disse –, quase morri detédio. Uma gentinha de merda,bando de fingidos, simplesmentenão pude aguentar!
Então Constance se viroupara mim.
– Henry Chinaski, você ésimplesmente igual ao que vocêescreve!
– Doçura, eu não escrevo tãomal assim!
Ela riu e eu a beijei.– Você é uma moça muito
bonita – eu disse a ela –, você éuma daquelas vadias de classeque eu não vou pegar nem depoisde morto. Há uma lacuna tãogrande, social, cultural, deformação, todas essas besteiras...tipo idade. É triste.
– Eu podia ser sua neta – eladisse.
Eu a beijei de novo, pondo asmãos em seus quadris.
– Não preciso de netas – eudisse.
– Tenho bebida na minhacasa – ela disse.
– Pro inferno com essa gente– eu disse –, vamos para sua casa.
– Muito bem – ela disse.Eu me levantei e a segui...Sentamos na cozinha para
beber. Constance estava usandoum desses, bem, como sechama?... um desses vestidos deestilo camponês, verde... um colar
de pérolas brancas que davavoltas e voltas e voltas nopescoço, e a curva de seusquadris se alongava no lugar certoe seus seios brotavam do lugarcerto e seus olhos eram verdes eseu cabelo era loiro e ela dançavaao ritmo da música que vinha dosalto-falantes – música clássica –,e eu fiquei lá sentado bebendo, eela dançava e girava com o copona mão e eu levantei e a agarrei edisse:
– Jesus, Jesus, NÃO POSSOAGUENTAR!
Beijei-a e toquei todo o seucorpo. Nossas línguas seencontraram. Seus olhos verdespermaneceram abertos e olharamdentro dos meus. Ela se afastou.
– ESPERRE! Eu já volto!Me sentei e tomei outro
drinque.Então ouvi a voz dela:– Estou aqui!Fui até a outra peça e lá
estava Constance, nua, estiradasobre um sofá de couro, os olhosfechados. Todas as luzes estavamacesas, o que só melhorava ascoisas. Ela era muito branca, dospés à cabeça, apenas os pelos desua boceta tinham um tomalaranjado, diferente do loiro doscabelos. Comecei tocando seusseios e os mamilos ficaram durosimediatamente. Coloquei a mãoentre suas pernas e deslizei umdedo para dentro dela. Beijei todo
o seu pescoço e orelhas, quando apenetrei, fui de encontro à suaboca. Sabia que finalmente iriaconseguir. Estava quente e elaestava gostando, remexia seucorpo em movimentos sinuosos,como uma serpente. Finalmente euhavia recuperado minhamasculinidade. Minha hora haviachegado. Todos aquelesfracassos... foram tantos... aoscinquenta anos... essas coisaspodiam deixar um homem
inseguro. E, afinal de contas, oque restava de um homem se elenão pudesse dar conta do recado?De que serviam os poemas? Ahabilidade de foder uma mulherbonita era a maior das Artesconcebida pelos Homens. Todo oresto era besteira. Imortalidadeera ser capaz de foder até que amorte chegasse...
Então olhei para cima, entreuma estocada e outra. Na parede àminha frente havia um Cristo
prateado em tamanho natural,pregado a uma cruz prateada emtamanho natural. Seus olhospareciam estar abertos, e Ele meolhava.
Parei por um instante.– Que foi? – ela perguntou.É apenas um objeto, pensei, é
só um pedaço de prata penduradona parede. Não é nada além disso,um pedaço de prata. E você não éreligioso.
Os olhos Dele pareciam estar
se abrindo, palpitando. Aquelespregos, os espinhos. O pobreSujeito fora assassinado, agoranão passava de um naco de pratana parede, olhando, olhando...
Minha pica amoleceu e eu saíde dentro dela.
– O que houve? O que houve?Vesti minhas roupas.– Vou embora!Saí pela porta dos fundos.
Ouvi o clique da fechaduraquando a porta bateu atrás de
mim. Jesus! Estava chovendo! Umaguaceiro colossal. Era daquelaschuvas que você sabia que não iaparar tão cedo. Gelada paraburro! Corri para a casa do Marx,que era logo ao lado, e bati naporta. Bati de novo e de novo e denovo. Não abriram. Corri de voltapara a casa de Constance e bati naporta, e bati e bati.
– Constance, está chovendo!Constance, meu AMOR, estáchovendo, estou MORRENDO
DE FRIO AQUI FORA NESSACHUVA E MARX NÃO QUERME DEIXAR ENTRAR! MARXESTÁ BRABO COMIGO!
Ouvi a voz dela do outro ladoda porta.
– Vá embora, sua... sua filhoda puta ordinárrio!
Corri de volta para a porta deMarx. Bati, bati, bati. Nada. Tinhauma porção de carrosestacionados ali em volta. Conferias portas para ver se algum estava
aberto. Todos trancados. Haviauma garagem, mas era feita apenasde tabuinhas de madeira; deixavaentrar chuva. Paul sabia comoeconomizar dinheiro. Paul jamaisseria pobre. Paul jamais ficariatrancado do lado de fora, nachuva.
– MARX, PELO AMOR DEDEUS! EU TENHO UMAFILHINHA! ELA VAI FICARTRISTE SE EU MORRER!
Enfim, o editor da Overthrow
abriu a porta. Entrei. Peguei umagarrafa de cerveja e sentei no meusofá-cama depois de tirar a roupa.
– Você disse ‘pro infernocom essa gente!’ quando saiu –disse Marx. – Você pode falarassim comigo, mas não pode falardesse jeito com Lorraine!
Marx continuou batendo namesma tecla – você não podefalar com a minha mulher dessejeito, você não pode falar com aminha mulher desse jeito, você
não pode – tomei mais trêsgarrafas de cerveja e elecontinuou repetindo a mesmacoisa.
– Pelo amor de Deus – eudisse –, vou embora amanhã cedo.Você está com a minha passagemde trem. Não tem nenhum tremfuncionando a essa hora.
Marx resmungou mais umpouco e depois dormiu e eu tomeimais uma cerveja, a última danoite, e pensei, será que
Confissão de um velhosafado
Nasci ilegítimo – isto é, forade um laço matrimonial – emAndernach, Alemanha, no dia 16de agosto de 1920. Meu pai eraum soldado do exército deocupação americano; minha mãeera uma camponesa alemã,
simples e ignorante. Trouxeram-me para os Estados Unidos comdois anos de idade – primeiroBaltimore, depois Los Angeles,onde desperdicei a maior parte daminha juventude e onde vivo hojeem dia.
Meu pai era um homem brutale covarde que me surravacontinuamente com uma tira decouro de afiar navalha, porqualquer motivo que fosse. Minhamãe estava de acordo com o
tratamento que me era dado.‘Crianças devem ser vistas, masnão ouvidas’, era a máximapreferida do meu pai.
Davam-me infindáveis tarefasna casa e no jardim, e se eu não ascumprisse com cem por cento deperfeição levava uma surra. Astarefas, aparentemente, nuncaeram cumpridas com perfeição.Eu levava uma surra por dia. Aossábados, era obrigado a cortar agrama duas vezes – uma vez em
cada direção –, aparar e debruaras áreas exteriores, depois tinhaque molhar os dois gramados eregar todas as flores. Enquantoisso, meus amigos estavamjogando futebol americano ebeisebol nas ruas, rindo edescobrindo uns aos outros.
Meu pai inspecionava ogramado quando o serviço estavaterminado. Ele se ajoelhava,deitava a cabeça na grama e aexaminava minuciosamente, à
procura do que chamava de‘pelos’. Se encontrasse um ‘pelo’,uma folha de grama maior do queas outras, eu recebia a minhasurra. Ele sempre encontrava um‘pelo’.
Eu só abria a boca para dizersim ou não. Depois dos cinco ouseis anos de idade, deixei dechorar quando apanhava. Odiavatanto aquele cara que meu únicojeito de me vingar dele era nãochorar, o que fazia com que ele
me batesse ainda mais forte. Aslágrimas corriam dos meus olhos,mas eram lágrimas silenciosas. Assurras sempre aconteciam nobanheiro – talvez porque a tiraestivesse lá. E quando eleterminava, dizia “Vá para o seuquarto”.
Entrei cedo no submundo.Minha bunda e a parte de trás
das minhas coxas estavam semprecobertas de marcas e hematomas.Quando eu era chamado para o
jantar – comer sempre era algopenoso para mim –, eles medeixavam sentar numa almofada,ou se a surra tivesse sidoexcepcionalmente forte às vezesme deixavam usar duasalmofadas.
Eu tinha que dormir debruços por causa da dor. Emboratenha nocauteado meu pai com umsoco, numa bela noite, quandotinha dezessete anos, e o tenhaenterrado vários anos depois, o
hábito de dormir de bruçospermaneceu.
Não quero fazer destaconfissão uma choradeira; gostode rir como todo mundo – agora.Ou quem sabe não seja engraçado,olhando para trás, me ver deitadode bruços na cama, ouvindo osdois roncar ou foder, e pensando,‘Que chance um cara de um metroe vinte de altura pode ter?’ Hojeeu tenho um metro e oitenta e trêse outros monstros tomaram o lugar
do meu pai.Na escola não foi muito
diferente. Como não tinhanenhuma prática em esportes derua, mal sabia a diferença entreuma bola de beisebol e uma bolade futebol americano. Minhaprimeira tentativa foi na hora dorecreio. Beisebol. Lançaram abola e eu não consegui acertar atacada. Jogaram a bola de futebole eu não consegui pegar. Nãoentendia nem a metade do que eles
falavam. Eu era um ‘veadinho’.Eles me seguiam em bandosdepois da aula e me insultavamdurante todo o caminho de casa.Não havia lugar para mim entreeles.
Até na sala de aula eu era dosmais atrasados. Ainda estavalutando contra a figura paterna, etambém contra a figura materna.Aquilo que me incomodava nasala de aula, eu decidia nãoaprender. Às vezes era a cara do
professor; às vezes erasimplesmente a monotonia doprocesso de aprendizagem. Merecusava a aprender as notasmusicais, as regras da gramática.Me recusava a aprender álgebra.Apenas mais tarefas estúpidas.
Na maioria das vezes eutirava ‘4’ ou ‘D’, mas às vezestirava um ‘F’. Estava semprelevando a culpa por alguma coisa– nunca me diziam exatamente oquê – e quase sempre ficava de
castigo depois da escola.Eu não tinha amigos, mas isso
não parecia me fazer falta.Então em algum ponto, à
medida que os anos passaram,ocorreu uma mudança; começouem algum momento entre o ensinomédio e meus dois anos na LACity College. Passei a ser o caramais durão do pedaço. Deve tersido depois que saí do CountyHospital. Tive que ficar afastadopor seis meses. Tinha espinhas do
tamanho de maçãs espalhadas portodo o meu rosto e costas – aoredor dos olhos, no nariz, atrásdas orelhas, no couro cabeludo.Aquela vida intoxicante tinhafinalmente explodido para fora demim. Lá estavam – todos os gritoscontidos – irrompendotransformados.
Os médicos me furaram comuma enorme agulha. Foi a únicacoisa que lhes ocorreu fazer, mefurar com uma agulha. Eu podia
sentir o cheiro de sebo queimadoquando a agulha esquentava. Elespicavam aquelas bolas imensas,fazendo jorrar sangue para todosos lados.
– Nunca vi um caso assim –disse um dos médicos. – Olha otamanho desses troços! Uma superAcne Vulgaris!
Então cinco ou seis deles seamontoavam à minha volta paraolhar o tamanho dos troços.
Idiotas. Foi aí que coloquei a
categoria médica na minha listanegra. Para falar a verdade, nadaescapava da minha lista negra. Eunão odiava os médicos comoodiava o meu pai; simplesmenteos achava um bando de idiotas.
– Nunca vi um cara aguentarisso no osso! Ele nem treme ouesboça qualquer reação. Nãoconsigo entender.
Quando voltei para a escola,alguma coisa em mim tinhamudado. Eu tinha enfrentado
chumbo grosso. Nada maisimportava. Em vez de ficarconfuso e sentir medo damultidão, eu tinha metransformado num “garoto durão”.Outros garotos durões tentaramfazer amizade comigo. Eu osmandei cair fora.
Descobri que podia darótimas tacadas no beisebol. E ofutebol americano era uma beleza.Especialmente quando jogávamosem meia-cancha nos
estacionamentos vazios e nas ruasasfaltadas – e a gente costumavamesmo jogar nas ruas nos anos 30.
Do dia para a noite passei deveadinho a super-homem, e entãoperdi o interesse. Esportes eramtão estúpidos quanto qualqueroutra coisa, talvez até mais.
Descobri uma pequenabiblioteca no cruzamento dasavenidas La Cienega e WestAdams. Comecei a retirar livrosnesta biblioteca sem nenhuma
orientação. Para ver se um livroera bom eu abria na primeirapágina e observava o aspecto daimpressão no papel. Se meparecesse bom, eu lia umparágrafo. Se o parágrafo fossebom, eu lia o livro. Foi assim quedescobri D. H. Lawrence, ThomasWolfe, Turguêniev – não, Wolfefoi um pouco mais tarde, nabiblioteca grande que ficava nocentro –, mas na bibliotecapequena também descobri o velho
Upton Sinclair, Sinclair Lewis,Górki e o grande FiódorMikhailovitch Dostoiévski. Tudoisso antes de alguém me dizer queeles eram mais do que a ponta deestoque das porcarias queentulhavam as bibliotecaspúblicas. É claro, apenasDostoiésvski e alguns contos doTurguêniev permaneceramgravados em mim.
Bem, se você ainda estiverme acompanhando, deixei meus
queridos pais e me mudei para umapartamento na esquina da Thirdcom a Flower, onde vivi às custasda minha sorte – que na épocaconsistia na capacidade de ganharcompetições de copo e de me darbem nos jogos de dados. Tambémtinha sorte nas disputas comestranhos a dez dólares a rodada.
Fui despejado doapartamento da Third com aFlower por um velho que eradono do lugar. Ele chegou para
mim e disse:– Meu filho, você está
destruindo o meu apartamento.Ele tinha mau hálito. E o
lugar, ratos.– Você está destruindo o meu
apartamento e não está deixando opessoal dormir à noite. Tem ummonte de camaradas velhos aquique só querem um pouco desossego. Você vai ter que semudar.
Merda. Eu conhecia esses
velhotes. Só havia dois tipos: osque adoravam Deus e os queadoravam o vinho. E os queadoravam Deus eram os quereclamavam.
*
Encontrei um apartamento naTemple Street, que na épocaficava no bairro dos Filipinos,bebia pesadamente, seguia tendosorte com as apostas. Meu quarto
mais uma vez se tornou ponto deencontro de jogadores, mas asenhoria era durona, não pareciase importar nem um pouco, eradona de uma parte do bar queficava no térreo e tenho quasecerteza de que encaminhavaalguns jogadores para o meuquarto. Eu bebia enquanto jogavae isso me deixava relaxado obastante para ter sorte. Meuesquema era sempre o mesmo – eudominava o jogo durante um certo
tempo todas as noites, e assim queconseguia a quantia que queria,começava a cambalear para lá epara cá fingindo estar bêbado efurioso.
– Muito bem, todos para fora!Pelo amor de Deus, vocês não têmnenhum lugar para dormir? Issoaqui não é igreja nem bordel! Eumoro aqui!
Depois vociferava mais umasérie de xingamentos e dizia aeles, atirando um copo cheio de
uísque contra a parede:– Eu disse “todos para fora”!Eles se enfileiravam e
marchavam em direção à porta.– A próxima rodada começa
amanhã às seis da tarde. Não seatrasem.
Eles iam embora. Eu aindaera o garoto durão. Ou o garotobufão. Não sabia ao certo.
Fui ficando cada vez melhor,até que numa noite acabeibrigando com um cara que eu
achava que era meu amigo. Eleera fuzileiro naval, mas apesardisso tinha uma cabeça boa, quaseconseguia acompanhar meu ritmocom a bebida, mas tinha certoapreço por Thomas Wolfe eTeddy Dreiser. O problema eraque Wolfe era um bom homem queescrevia mal e Dreiser era umhomem inteligente que de fato nãosabia escrever.
Uma noite, depois que osjogadores foram embora, nos
sentamos com uma garrafa deuísque e tentamos discutir oassunto. Eu também disse a eleque Faulkner era para criancinhas.Tchékhov, não – um joguete dasmassas abastadas. Steinbeck, umtécnico. Hemingway, apenasmeia-boca. Ele gostava de todoseles. Era um imbecil. Então eudisse que Sherwood Anderson eramelhor que todo esse malditobando. Isso mexeu com ele.
Foi uma boa briga. No final,
todos os espelhos e móveis doquarto estavam caídos no chão.
Você consegue imaginar omotivo de uma briga ser o sentidoda literatura e não uma bocetaqualquer? Somos tão loucosquanto os outros.
Não sei quem venceu a luta.Provavelmente foi ele. Masquando acordei na manhã seguintee olhei em volta, achei que nãoseria justo pagar sozinho a contados estragos. Juntei meus
trocados, saí e peguei um ônibuspara New Orleans.
Achei o Bairro Francês umembuste e fiquei no lado oeste daCanal Street, dormindo com osratos. Por alguma razão, decidime tornar um escritor. Comecei aescrever contos, manuscritos àtinta, e a enviá-los para aHarper’s, para The Atlantic ou paraa New Yorker . Quando osmandavam de volta, eu rasgava asfolhas.
Escrevia de seis a dez contospor semana, bebia vinho efrequentava bares de quinta.
Ia de cidade em cidade,trabalhando longas horas emempregos tediosos e miseráveis –Houston, Los Angeles, St. Louis,Frisco duas vezes, Nova York,Miami, Savannah, Atlanta, FortWorth, Dallas, Kansas City, eprovavelmente mais algumas quenão lembro mais.
Trabalhava nos matadouros,
nas equipes das ferrovias,despachando pequenoscarregamentos, recebendopequenos carregamentos.Trabalhei até para a CruzVermelha (bravo!), fui gerentenuma distribuidora de livros.Além disso, fui uma espécie deleva e traz beberrão no últimobanco de um bar na FairmountAvenue, na Filadélfia, saindo parabuscar sanduíches para a moçadade peso. Uma cerveja ou um
uísque de gorjeta, geralmente umacerveja.
Conheci alguns vagabundosda pesada. A maior virtude dessescaras, além do terrível mau hálito,era que no meio do seu bandoerrante de homens você às vezesencontrava uma pérola. Masdecidi não me juntar a eles.
Tornei-me um bêbado comooutro qualquer, pensando emsuicídio, me enfurnando por dias afio em quartinhos minúsculos com
as venezianas fechadas, meperguntando o que acontecia láfora e o que havia de errado comaquilo – sem saber se culpavameu pai ou a mim mesmo ou aeles.
Eu era pacifista numa épocabelicista. Não sabia quais guerraseram benéficas e quais eramnocivas – ainda não sei. Eu erahippie quando os hippies nãoexistiam; eu era beat antes desurgirem os beats.
Eu era um movimento deprotesto, sozinho.
Fazia parte de uma espéciede submundo, como um espiãoclandestino, e sequer existiamoutros espiões.
É por isso que eu nãoconseguia ver as coisas comclareza, entender o que estavaacontecendo. Eu já tinha feito detudo. E quando Tim Leary disse“caia fora” 25 anos depois de eujá ter caído fora, não consegui
sentir nada. O grande “caia fora”de Leary significou ser demitidode seu cargo de professor emalgum lugar (Harvard?).
Eu era a contracultura quandonão existia a contracultura. Eu erao jovem safado. Meu corpo de 1metro e 83 e 97 quilos de puromúsculo passou a ser umesqueleto de 63 quilos. Fui preso,dividi a cela com CourtneyTaylor, o grande vigarista einimigo público número um da
época. Um injustiçado, é claro.Eu, não o Taylor.
E saí, fui de novo para aFiladélfia, voltei para aquelaspensões, era despejado uma vezpor semana.
Caminhando pela rua às noveda manhã, ouvia as velhinhascochicharem em suas cadeiras debalanço:
– Está vendo aquele moço?Já está bêbado! Botei ele para forad o meu apartamento! Meu Deus,
fiquei tão feliz de me livrar dele!Aquelas senhoras de
antigamente, seus maridosmorreram cedo de tanto trabalharpara que elas pudessem usarcalcinhas de renda. Aquelassenhoras de antigamente, que hojeem dia ficam horrorosas decalcinha de renda, me culpam portudo o que acontece, porque nãome entreguei de corpo e alma aum ofício medíocre qualquer.
– Você trabalha? – elas
sempre perguntavam quando eubatia à porta.
– É claro – eu dizia, nosentido de que meu trabalho erasobreviver, e era um trabalho demerda. Então elas deixavam vocêficar ali a primeira noite e nasparedes havia placas com dizerescomo “JESUS TE AMA!”.
*
De repente eu estava no
Village, em Nova York – o antigoVillage, um lugar ordinário, cheiode impostores, como suponho queo novo Village seja agora. Oartista deve estar em constantemovimento, um passo à frente dovulgo.
No Village, passei por umafarmácia e na prateleira dasrevistas estava a então famosarevista Story, editada por WhitBurnett e Martha Foley. Se vocêchegava à Story isso significava
que você era uma espécie degênio legítimo e aprovado. Euhavia tentado a Story algumasvezes, junto com as investidas naAtlantic-Harper’s-New Yorker .Apanhei a revista para dar umaolhada, então vi o meu nome nacapa! Eles haviam publicado umtexto meu. Aos vinte e quatro. Eutinha mudado de endereço tantasvezes que a correspondência nãochegou a tempo ou se perdeu.Peguei a revista, fui em direção
ao caixa e paguei.Na mesma época eu havia
conseguido um emprego, muito acontragosto. Cuidava do estoquede uma distribuidora de livros erevistas. Alguns dias depois meuchefe chegou com uma cópia daStory. Ele disse:
– Ei, veja que coisaengraçada. Olha, tem um caranessa revista com o mesmosobrenome que você!
– Não – eu disse –, sou eu
mesmo.– Ah, corta essa! Você
escreveu essa história?Alguns dias depois fui
chamado ao departamentopessoal. Eu tinha faltado dois outrês dias por motivo deembriaguez. Fui recebido por umavadiazinha jovem e bonita.
– Você é Charles Bukowski?– Sim.– Você escreveu aquele conto
na Story?
– O que importa?– Estamos promovendo você
a chefe da seção de remessa delivros.
– Você é quem sabe – eudisse a ela.
Eu sabia que isso era umamanobra estúpida. Ser escritornão tinha nada a ver com serqualquer outra coisa.
Eu não era um bom chefe deseção. Chegava bêbado e batia nabunda dos operários com o cabo
do martelo, enquanto elespregavam as caixas de madeira.Mas eles gostavam de mim. Issonão estava certo – um bom chefedeve ser temido. O mundo todofunciona na base do medo.
Minha função era contar onúmero total de livros enviadosnas caixas, assinar a nota fiscal,largar ali dentro e dizer: “Podepregar!”. Eu apenas fingia contar.Era tão fácil e tão tedioso. E elessabiam das coisas melhor do que
eu. Eu simplesmente fechava osolhos, fingia que estava contando,assinava a nota e dizia: “Ok, podepregar!”.
Eu era experiente o bastantepara saber que logo todosperceberiam que eu estavacagando para o trabalho, entãopedi demissão antes que alguémme dedurasse.
Mas antes que eu deixasse acidade uma coisa muito estranhaaconteceu. Conheci meu ídolo! Eu
conheci o grande Whit Burnett, otodo-poderoso editor da Story.Mas ele não me reconheceu.Porque não sabia como eu erafisicamente. Mas eu o reconhecipor conta das inúmeras fotografiasdele que tinha visto. Eucaminhava na direção norte, e ele,na direção sul. Estava passandopelo maior editor do mundo. Eletinha uma expressão de sofrimentonos olhos, mas pude perceber queera um sofrimento superficial e
reservado, ainda que seus olhosfossem bonitos. Mas ficou claropara mim que nós éramos muitodiferentes. Encolhi a barriga ecomecei a gargalhar na frentedele. Meu ídolo haviadesmoronado. Foi uma risadaverdadeiramente idônea, semmalícia. Ele me encarou por uminstante, depois seguiu andando.
Bem, houve mais um sucesson a Portfólio de Caresse Crosby.Eu estava lado a lado com Henry
Miller, Genet, Sartre, Lorca,muitos outros que já esqueci,porque meus dois exemplaresforam roubados por amigos.
Então larguei tudo. Parei deescrever. Desisti. Enchi a caradurante dez anos. Me estabelecinovamente em Los Angeles.Trabalhava o suficiente parasobreviver, mal e porcamente.Bebia o suficiente para medestruir, ou quase. Tornei-me ogrande comedor das prostitutas da
Alvarado Street.Bem, como quis a sorte, tive
que conhecer a mulher mais bonitae mais feroz de todas – Jane; onome era antiquado, mas ela erauma selvagem mistura de sangueindiano e irlandês. Era irritadiça ecolérica, mas tinha pernas lindas euma bunda ótima, e havia algodiferente nela – uma presença deespírito –, quero dizer, quase tudoo que ela dizia era absolutamenterelevante, e nunca houve alguém
que trepasse tão bem quanto ela.Não sei dizer o que fazia com
que fosse tão boa de cama. Achoque era a mistura equilibradaentre amar e odiar, tudo ao mesmotempo – ela nunca iludia você –, eentão finalmente se entregar a umasubmissão total e definitiva. Alémdisso tudo, ela tinha uma bocetamuito gostosa.
Lembro-me da primeira noiteem que a conheci, da primeiranoite em que a levei para minha
casa. Big Johnny, o figurão dasvendas, me disse:
– Ninguém consegue domaressa aí, Hank, mas se alguém forcapaz, acho que é você.
Ela estava bem vestida,roupas caras, especialmente ossapatos, e não parecia ser umapessoa difícil. Comprei duasgarrafinhas de bourbon, váriosmaços de cigarro, e pegamos umtáxi em direção à minha casa, queestava bastante limpa, para variar.
Tudo correu bem por algumtempo. Ela sentou no sofá, cruzouaquelas belas pernas e euconversei com ela, pensei emcomo iria fodê-la, dei a ela umadas garrafinhas de bourbon,peguei a outra para mim e disse:
– Beba no gargalo.– Você acha que é o sr. Van
Bilderass, não é mesmo?– Não, na verdade não. A
vida foi bastante dura para mim.– Corta essa! Você acha que
é o sr. Van Bilderass!Os olhos de Jane se
arregalaram. Ela pegou suagarrafinha de bourbon, ergueu-aacima da cabeça.
– Espere! – eu disse.– O que foi?– Jogue essa porcaria em
mim – e trate de acertar e menocautear! Caso contrário, vouatirar de volta na sua cara. E nãovou errar! Agora, vamos, atire!
Ela me olhou e pousou a
garrafa.Transamos algumas vezes
naquela noite. Foi muito bom.No fim das contas, moramos
juntos de seis a oito anos noinferno.
Estou tentando ser sucintoaqui, fazendo um apanhado detudo o que aconteceu, mas comovocê vai enfiar 49 anos em quatroou cinco mil palavras? Entãotenho que contar coisas aleatóriassobre Jane – como na primeira
noite em que a estava comendo eparei no meio de uma estocada edisse:
– Puxa, não sei o seu nome!Qual é o seu nome?
A resposta dela:– Porra, que diferença isso
faz?Certa noite, com a minha
Jane, estava tão bêbado que haviacaído do sofá, ficando junto a ela,olhando para seus tornozelos finosnaqueles sapatos de salto alto,
aquelas panturrilhas, perfeitas,aqueles joelhos, perfeitos, e elaali na minha frente. Eu haviabebido duas vezes mais do queela e acabara de cair do sofá. E,deitado de barriga para cima,olhando para aquelas pernas,proferi a imortal sentença:
– Doçura, eu sou um gênio eninguém além de mim sabe disso.
E ela respondeu com aimortal sentença:
– Ah, levanta do chão e senta
direito, seu imbecil!Um dia, também tive de
enterrá-la. Como meu pai. Comominha mãe. Enterrei-a dois anosdepois de nos separarmos.
Mas antes disso, fui à alabeneficente do County Hospital(meu antigo lar) e me colocaramnum porão escuro, e meusdocumentos sumiram.
– Os documentos – disse aenfermeira-chefe – foram para otérreo e eu estava no andar de
cima.Então fiquei perdido em
algum lugar naquele aposentosubterrâneo, um corpo semdocumentos, morrendo, sangrandosem parar pela boca e pelo cu.Todo aquele vinho barato e a vidadesregrada escoando para fora –rios de sangue. Então alguémachou meus documentos e depoisde três dias no porão fuiconduzido a uma área maisiluminada. Mas aí descobriram
que eu não tinha crédito no bancode sangue.
– Sr. Bukowski – aenfermeira-chefe me disse –, se osenhor não puder comprovar quetem crédito, não poderá recebersangue.
O que significava que eu iriamorrer.
Aparentemente tudo o queeles faziam pelos moribundos eenfermos era deixá-los alideitados para morrer. Eu os via
retirando os mortos de todos oslados. Assim eles liberavamespaço para os corpos novos quechegavam. O problema era a faltade espaço. E não tinhaenfermeiras, nem médicos.Quando aparecia um médicoresidente era praticamente ummilagre.
Então descobriram que meupai possuía crédito no banco desangue na época em quetrabalhava. Além disso, eu estava
emporcalhando toda a ala com omeu sangue, e estava demorandodemais para morrer. Umaenfermeira apareceu como umanjo caído do céu e enfiou umaagulha na minha veia, pendurou abolsa. Recebi sete litros e meiode sangue e sete litros e meio deglicose de uma só sentada.
Achei um apartamento naKingsley Drive, arrumei umemprego como motorista decaminhão e comprei uma velha
máquina de escrever. E todas asnoites depois do trabalho eu meembebedava. Despejavarapidamente oito ou dez poemas.Não sei como deixei de escrevercontos. Estava escrevendopoemas, mas não sabia por quê.De algum modo, descobri J. B.May e sua revista Trace, que naépoca era a única forçaconcentrada no recente cenárioemergente das revistas depequeno porte. E os ‘pequenos’
naquela época eram um terrenomuito mais agradável para aescassa literatura autêntica e dequalidade que era produzida.Agora os pequenos mudaram,materializaram-se em um bandode operários com aparelhos demimeógrafo baratos que setornaram um depósito de literaturae poesia medíocres. Os pequenose os grandes agora operam damesma forma: ambos publicamlixo e só estão interessados em
fama e grupos de influência edinheiro, custe o que custar. Aboca do cavalo finalmenteencontrou o cu e está comendo aprópria bosta.
Escrevi mais poemas, troqueide trabalho e de mulher, enterreiJane, e então eles começaram ame perseguir. Pequenos livrossurgiram no mercado: Flower, Fistand Bestial Wail . Run With theHunted. Longshot Poems for BrokePlayers. Meu estilo era muito
simples e eu dizia tudo o que tinhavontade. Os livros esgotavam-serapidamente. Eu eracompreendido por prostitutas deKansas City e professores deHarvard. Quem sabe mais do queeles?
As coisas estavam mudandodepressa. Whit Burnett havia seaposentado. A Story acabara. Onovo grande editor do nossotempo era Jon Edgar Webb daLoujon Press Books, organizador
da revista The Outsider. Logominha foto estava na capa da TheOutsider – a caneca lascada egasta, e os poemas e cartas dentro.Eu era o novo conceito poético –bem diferente da poesia culta emeticulosa – eu escreviavisceralmente. Alguns odiavam,outros amavam. Eu não estavanem aí. Apenas bebia mais eescrevia mais poemas. Minhamáquina de escrever era umametralhadora e estava carregada.
O novo grande editor, o velhoJon Webb, sempre lançavaedições de qualidade. Meus doislivros, It Catches My Heart in ItsHands e Crucifix in a Deathhand,foram impressos num papel quedeve durar 2.000 anos. Sabe, issoé assustador. Os livros esgotaram-se rapidamente, comprados porcolecionadores, que agora pedemde 25 a 75 dólares por exemplar,enquanto Webb e eu estamos namaior merda, aflitos para saber de
onde virão nossos próximostostões. Webb finalmente ficoudesesperado e esperto o suficientee publicou uma série de cartas deHenry Miller para um pintor, umpintor francês, se não me falha amemória. Miller escreveualgumas coisas muito boas, mas ascartas não eram grande coisa, emtermos de literatura. De qualquerforma, Webb começou logo desaída a vender os exemplares por25 dólares cada. Os
colecionadores que se virem comessa.
Mas voltando um pouco notempo. Você ainda está acordado?Saíram apenas quinhentosexemplares assinados do livro ItCatches. Webb queria imprimir2.500 do Crucifix. Eu não tinhanenhum poema pronto, então fuiescrevendo na máquina emandando direto para a prensa –todos os poemas do Crucifix, comexceção de um, não foram
enviados às revistas. Foram diretopara o livro. Por um lado isso eraum inferno.
Webb dizia:– Preciso de mais poemas,
Bukowski.– Maldição! Me dê um pouco
mais de tempo!Era um inferno, mas também
era emoção pura, e sempre gosteide coisas emocionantes.
Desta vez, a parada era emNew Orleans, e o último poema
estava pronto, e o livro estavasaindo da gráfica, e então veio ogolpe – eu tinha de assinar 2.500malditas folhas! As folhas eramroxas e formavam uma pilha demais de dois metros de altura.Parecia que eu nunca ia terminar.E Webb queria que todas asfolhas fossem assinadas com umacaneta especial, de pontaprateada, e cada página levavacinco minutos para secar. Enchi osaco de assinar meu nome e a
data, então passei a incluirdesenhos, escrever umas coisas.Fiz isso para não enlouquecer,mas os desenhos e escritos apenastornavam o processo mais lento, eeu só fazia beber e beber e bebere insultar a mulher que haviamarranjado para ficar comigo.
Alguns dias depois eu aindaestava enterrado lá, semprebêbado, assinando aquelas 2.500páginas com tinta prateada. Fiqueide saco cheio do nome Charles
Bukowski. Passei a odiar o filhoda puta.
Enquanto isso, uma mulher euma criança pequena, minhaprópria filha, esperavam por mimem Los Angeles. Depois que todasas páginas haviam sido assinadas,resolvi tirar cara ou coroa. Aresposta foi: voltar para mulher efilha. Obedeci.
Mas havia Jon Webb, ogrande editor, e se não era um dosmeus livros, era alguma outra
coisa. Ele gostava de me ter porperto. Gostava de discutir comigo.Eu não gostava de discutir. Umavez me arranjaram o cargo depoeta-residente no chalé daUniversidade do Arizona, o quenão foi nada fácil, já que merecuso a ler meus textos empúblico, pois sentia que aquilonão passava de babação de ovo eadulação pública, que debilitavao que quer que houvesse sobradoda minha alma. (Quando eu torrar
meu último centavo vou querer lere eles não vão querer me ouvir.)
O chalé não era ruim. Tinhaar-condicionado, e fazia um calorde quase quarenta graus todos osdias. Eu não sabia que Tucson eratão quente.
O chalé ficava um poucoatrás do passeio do campus, masmesmo assim alguns dosestudantes sempre conseguiamavistar um tipo estranho, malvestido e de aparência nada
poética, perto do meio-dia, saindopela porta com um enorme sacocheio de garrafas vazias, paradepois jogar as garrafas dentro deuma lixeira com a inscrição“Univ. of Ariz.” E, após descartaras garrafas, pontualmente, vomitardentro da lixeira. Me disseramque alguns grandes escritoreshaviam habitado aquela cabana.Não vou citar nomes, mas haviaalguns livros desses caras ali e eutentei lê-los e essa era uma das
razões do vômito matinal.Também havia um rádio, mas emTucson eles não tocam músicas deorquestra à noite, então tinha queouvir os últimos hits de rock, e,somando a isso os livros dos“grandes escritores” e a bebida,acho que eu estava mais doentenaquele chalé do que estive emqualquer outro lugar. Corria anotícia de que tinha um loucomorando ali. Ninguém seaproximava, o que era
maravilhoso. Contudo, oprofessor que havia registradominha residência me ligou dohospital (onde estava tratando deuma úlcera) (isso pareceinventado, mas é verdade), edisse:
– Assim que você forembora, Bukowski, vamosarrebentar essa cabana com umabola de demolição.
– Obrigado, senhor – eu disse–, mas antes não se esqueça de
salvar todas as grandes obras queestão aqui.
– Não esqueceremos – eledisse.
O filho da puta era maluco.Bem, saí de lá depois de uma
discussão iniciada por Webb arespeito dos “hippies”. Porra, eunão era muito chegado noshippies. Eu era um solitário. Eveja algumas das coisas que elesestavam apenas começando adescobrir: a guerra, o efeito
imbecilizante de se trabalhar dequarenta a quarenta e oito horaspor semana em algo que não segosta, a emboscada que era ocasamento. Mas os hippies não mediziam nada. Suas descobertaseram tardias, e eles gostavam dese amontoar em grupos, andar deum lado para o outro e bazofiar. Eas drogas? O que havia desagrado naquilo? Era apenas algoque me davam, normalmente degraça: metadona, boletas
vermelhas e amarelas, LSD. Nãofazia diferença. Eu mandava ver esaía do mesmo jeito que haviaentrado.
É certo, eu estava insensívelàquilo tudo. Não havia nenhumas e ns a ç ã o realmente excitante.Apenas um brilho, ou, com LSD,um espetáculo controlado.
Cheire cocaína, fume haxixe.Tudo passava e eu tinha queencarar o mundo de novo. Omundo estava sempre lá quando
você aterrissava. Essa era agrande descoberta. Quanto maisvocê subia, maior era a queda, evocê tinha que sobreviver dealguma maneira, e isso era difícil,porque depois que passava oefeito você ficava nas últimas eeram complicadas as atividadesdo ganha-pão: atendente de loja,ajudante de garçom, lavador depratos, ajudante de lava-carros. Ese tivesse ficha na polícia, eraainda pior.
O inferno está sempre àespreita.
Havia armadilhas por todaparte: mulheres, drogas, bourbon,vinho, uísque, cerveja – atémesmo a cerveja –, charutos ecigarros. Armadilhas: trabalhar ounão trabalhar. Armadilhas: ter ounão ter talento; tudo o levava a serengolido por uma teia de aranha.Desprezei o uso de agulhas pelamesma razão que desprezeialgumas mulheres supostamente
bonitas – o custo era muitosuperior ao benefício. Eu nãoqueria pegar pesado.
Sendo assim os hippies eseus brados de AMOR AMORAMOR não me diziam muitacoisa. Pareciam mais uma ordem,e eu não gosto de ordens. Ignorei.Então Webb começou a meter opau nos hippies aquela noite nacasa dele em Tucson. Seu cabeloque costumava ser de um brancomaravilhoso estava então pintado
de vermelho. E o velho homem, ogrande editor, continuavaclamando por suas pílulas.
– Lou, eu já tomei meucomprimido de hoje?
Uma porcaria qualquer –algum tipo de vitamina ousuplemento de ferro – e então ovelho começou a meter o pau noshippies.
– Bukowski, você sabe queos hippies não prestam!
– Eles não me agradam, Jon.
São fracos. Eles têm instinto derebanho. Se misturam com gentede segunda linha. Não passam deum bando de falsos e insensíveis,fazem o que dizem para eles fazer.Mas aí penso nos pequenoshomens de negócios, com seusternos e gravatas, batalhando dasoito da manhã às cinco da tarde, eos hippies são contra isso, e achoque eles estão certos neste ponto.Um hippie tem mais vida do queum corretor da bolsa de valores.
– Olha, Bukowski, quero quevocê escreva um artigo anti-hippie para mim.
– Bem, não sei.– Quero dizer, esses jovens
não assumem nenhumaresponsabilidade, eles não seesforçam, não fazem nada, nãoquerem fazer nada: eles não dãoapoio à sociedade!
O grande editor Webb soavacomo o pai que eu haviaenterrado. Veja. Os jovens de
agora nascem em um mundo emque a primeira coisa que seaprende é que existem coisaschamadas bombas de hidrogêniosendo estocadas por diversasnações, em quantidade suficiente aessa altura para matar o mundotodo trinta vezes – com exceçãodos ricos que estarão seguros emseus abrigos subterrâneos e dosrapazes prontos para partir emsuas espaçonaves, a versãomoderna da Arca de Noé. Haveria
um segundo dilúvio, conforme osvelhos agitadores da PershingSquare costumavam nos alertar,mas desta vez seria fogo em vezde água.
Sendo assim, quem, aosdezoito anos de idade, iria querertrabalhar para uma montadora deautomóveis, girando parafusosenquanto em menos de trintasegundos suas bolas poderiamvoar pelos ares para sempre? Háa p e n a s um ser humano
responsável por cada detonador.E um dia desses, talvez amanhã,será que um imbecil não vaiaparecer e... pelo simples aspectomatemático da coisa, não serácapaz de apertar o botão?
Por que não deixar seucabelo crescer e fumar unsbaseados? Relaxe. Viva cadamomento como uma dádivamilagrosa.
Eu era assim antes dainvenção da Bomba. Eu era um
hippie segundo a premissaanterior aos próprios hippies – sevocê vai morrer, para que seapegar a inúteis posses humanas?
E então Webb disse:– Quero que você faça um
artigo anti-hippie.Este era um homem que havia
transformado dois dos meus livrosde poemas em itens decolecionador; um homem quehavia lido meus poemasincansavelmente e ainda assim
não sabia quem eu era.– Não posso escrever um
artigo contra os hippies, Jon. Elesnunca me fizeram nada. Nuncasequer pensaram em fazer. Outrosjá fizeram. Por exemplo, eu já fuipreso. Você também.
Webb havia sido um ladrãode diamantes antes de se tornarum editor respeitado. Tinha idopara a cadeia. Ainda que eletenha, muito tempo atrás, escritoum livro precoce e em edição
barata sobre o assunto, o caso nãodeveria ser trazido à tona. Agoraele precisava manter o bom nomecom as fábricas de papel, entreoutras. Se você mencionasse ofato de que Jon Webb estiverapreso, estava na lista negra daLoujon Press para o resto da vida.Um pobre sujeito, em uma resenhasobre o Crucifix, cometera certavez o erro de mencionar queWebb havia cumprido pena.
O grande editor estalou os
dedos olhando para mim.– Basta! Esse crítico já era.
Para sempre!Webb também liquidou Mike
McClure porque ele apareceu natelevisão vestido como umabichona, com sombra escura sobos olhos.
– Agora chega – disse Webb,virando-se para mim –, McClurejá era!
Bem, eu voltei para LosAngeles sem ter escrito o artigo
contra os hippies, antes que Webbacabasse comigo também. Achoque se um dia ele ler isto aqui,uma bala, noite dessas, entrarávoando por minha janela.
Mais livros meus foramlançados. A maioria das ediçõestinha poucos exemplares e eraconhecida apenas no cenárioUnderground. Mas os professoresuniversitários começaram a baterà minha porta, trazendo seuscorpos frouxos e seus gentis
rostos brancos e pequenasembalagens de seis latas decerveja. Eles ficavam altos muitorápido, com umas duas latinhas, eeu ficava ouvindo o que falavam.Nunca me dei bem comprofessores de inglês quando elestentavam me ensinar alguma coisa.
As pessoas seguem batendo àminha porta, falando comigo; semserem convidadas, elas chegam eeu ouço, ofereço a elas o quetenho de bebida e elas vão
embora. Mas essas horas não sãodesperdiçadas – um homemaprende com outro homem – e senão aprende, deixou de ouvir osom do primeiro trompetista efodeu com toda a parada!
Tanto os professores como osvagabundos eram sempre muitofrancos – descarregavam tudo oque tinham, o que não era obastante.
Um dia John Bryan decidiu
montar um jornal Undergroundintitulado Open City. Fuiconvidado a escrever uma colunasemanal. Nomeei a coluna “Notasde um velho Safado”. E escreviacontos sob essa bandeira. Um porsemana, durante quase dois anos.Depois das corridas de cavalo,ganhando ou perdendo, na sexta-feira ou no sábado eu compravatrês ou quatro embalagens de seislatas de cerveja e liquidava acoluna ouvindo Mahler, que faz
Beethoven e Bach parecerem unsveadinhos.
Bryan publicava tudo o queeu entregava a ele. Foi umperíodo muito curioso da minhavida – todos me tratavam como seeu fosse um gênio, então eu tinhaque entrar na dança e escrever ostroços. Não era algo difícil: paraser um gênio é preciso apenas sê-lo. “Vai comprar ou pagar paraver?”, costumavam me perguntarnaqueles bares escuros da
Filadélfia. “Vou comprar”, eurespondia.
Entretanto, eu era obrigado acomparecer às reuniões doUnderground. Em geral, ou euchegava bêbado, ou nem chegava.A equipe não parecia ser muitoanimada. Eram estranhamentecalmos e apáticos e bem-nutridospara a idade que tinham. Ficavamlá sentados, fazendo piadinhasinteligentes contra a guerra, oupiadas sobre maconha. Todos
entendiam as piadas menos eu.Candidatem um porco àpresidência. Que diabos eraaquilo? Essas coisas os deixavamexcitados. E me deixavammorrendo de tédio.
Eu achava que se fosse haveralgum momento de COMBATE,tínhamos que estar devidamentearmados com os equipamentosmais modernos, devidamentetreinados, tínhamos que matar asmarionetes do governo, fazer o
serviço bem feito. Eu sequer eraum revolucionário, mas sabiacomo um verdadeirorevolucionário deveria pensar. Nofim os garotos terminaram fazendoo papel de grandes Românticos emasturbando uns aos outros.
Eles amarelaram. Não tinhamcolhões. Cederam quase de bomgrado aos caprichos do Sistema.
Em uma das reuniões todosestavam animados com o lance deChicago. Todos falavam ao
mesmo tempo. Chicago ainda nãoaconteceu. Levantei o braço,bêbado, e finalmente meautorizaram a tomar a palavra:
– O Sistema é muito maisesperto do que vocês pensam.Eles usarão apenas a forçanecessária para conter vocês. Nãoacredito que vá haver tiros demetralhadora ou assassinato emmassa em Chicago. É claro,haverá sangue derramado, muitosangue, e vocês vão levar umas
boas palmadas. Mas vocês nãopercebem que eles estãopreocupados com a propagandaao redor do mundo e que Chicagoé, em última instância,Washignton, D.C.? Não percebemque eles estão manipulando vocêse que os veem como criançasmalcriadas? Se você não forbonzinho, o Papai dá umaspalmadas. Se você fizer pior, oPapai bate mais forte! Vocês estãosob o comando, o comando deles.
Vocês subestimam a inteligênciado Sistema. Estão equivocados.Eles estão jogando com vocês,não se esqueçam disso! Vocêsmostraram todas as cartas e o quetêm, logo de cara, e eles esperamcom o royal flush nas mãos,sorrindo. Vocês podem vencê-los,mas terão que mudar de estratégia.Do contrário, farão picadinho devocês.
Eu ia continuar falando, masum rapaz mexicano, um jovem
professor de matemática de umaescola secundária do leste de LA,apoiou-se no balaústre e gritou:
– Você não sabe do que estáfalando, Bukowski! Chicago seráum EXTERMÍNIO em massa!CENTENAS DE PESSOASSERÃO ASSASSINADAS BEMNA SUA FRENTE!METRALHADAS, SIM! VOCÊVAI VER!
Obviamente, isso nãoaconteceu – a revolução; e o
porco não foi eleito presidente,foi posto na cadeia, e o jornalUnderground fechou, e Deusdesceu as escadas do paraísojogando flores ao vento.
O jornal fechou, HaightAshburry tornou-se um mito.“Quando for a São Francisco, useuma flor no cabelo.” O BerkeleyBarb[1] tinha rixas internas. Anotícia se espalhou: “OUnderground está morto”.
Mas eu me dei bem – a Essex
House reuniu as colunas do OpenCity e lançou em brochura Notasde Um Velho Safado . O trabalhoque eu havia feito por prazer epraticamente de graça estavasendo recompensado comdinheiro vivo. Me senti como umjovem Hemingway. Deve ser umamaravilha ser um escritorverdadeiramente bom, mesmo queisso signifique um tiro deespingarda no fim da linha.
E talvez seja por isso que eu,
Bukowski, ainda estou aqui, nãomenos sagrado do que Gandhi, e,doçura, talvez um pouco menosmorto, disparando histórias quetalvez só as pessoas interessadasem sexo possam entender. Eubebo; minha cabeça tomba sobre amáquina de escrever; ela é o meutravesseiro.
Eu sou o Underground,sozinho. E não sei o que fazer.
Então escrevo essas palavrase me embebedo de novo.
Lendo e batalhandopor Kenneth
Era mais um eventobeneficente para Kenneth Patchen,e eu tinha dito ao F. que nãoestava muito a fim mas ele disseque ia ter um monte de garotascom vestidos colados por lá,então eu disse, “Está bem, escreva
o endereço aí pra mim”. Então elecruzou a porta de tela e foiembora. A porta da frente estavaemperrada.
Eu não conseguia entender oF. Era o segundo eventobeneficente de Patchen; eu tinhaido ao primeiro na zona oeste deLA. Tinha dito às pessoas antesde começar a ler que não achavaque um poeta com problemas nacoluna merecesse nada além doque qualquer outra pessoa com
problemas na coluna, e mesmoassim ele estava me convidandode novo e eu estava aceitando irde novo – desta vez era emHollywood Hills. Meu carro nãose sai muito bem em subidas entãotelefonei para Cornelia e Corneliavestiu seu traje vermelho decalças justas e pegamos o carrodela e Cornelia foi dirigindo.
– Marlon Brando mora poraqui – ela me disse. – Eucostumava dirigir até aqui em
cima. Uma vez parei o carro e deiuma olhada no lixo dele. Marlon éa minha paixão secreta.
– Que merda – eu disse.Seguimos cuidando os
números e fomos subindo mais emais a montanha e as casas eramcada vez mais luxuosas e fuificando mais nervoso. É fato que àmedida que uma pessoa fica maisrica ela se torna cada vez menoshumana, então comecei a ficardeprimido.
– Acho que nos enganamos –eu disse.
Ela seguiu dirigindo em suaroupa vermelha e justa, pensandoprovavelmente que talvez pudesseencontrar um homem rico dotadode um pouco de gentileza, ou atémesmo sem esta virtude. Achamosa entrada e dobramos. Uma longapassagem e ao fundo, sobre umasaliência no rochedo que davapara o cânion, estava a enormecasa. Entramos no piso térreo e
então descemos uma grandeescadaria de mármore. O teto eraalto, branco e adornado com telasde mau gosto, todas pintadas pelomesmo artista, uma mistura do quehavia de pior em Picasso com oque havia de pior em Orozco. Aspessoas estavam reunidas empequenos grupos de dois ou trêsindivíduos e pareciam estar tão àvontade quanto pedras tumulares.A maior parte das pessoas estavado lado de fora, em volta da
piscina, segurando copos combebidas chocas e acendendocigarros. Vi um poeta que euconhecia, George Dunning.George mudava constantementeseu estilo de escrever e não eragrande coisa, mas ele lia bem emvoz alta e fingia ser um gênio, noque algumas pessoas acreditavam.Sua esposa acreditava. Eleescrevia enquanto ela trabalhava.George mudou de estilo, masseguiu com a mesma mulher.
Apresentei Cornelia e ri dosinsultos de Dunning, e depoisCornelia saiu andando em direçãoao grupo em volta da piscina paraexplorar aquele território. Suabunda ficava muito bem naquelacalça vermelha apertada e elaestava vestindo uma blusa comfranjas na parte da frente quebalançavam de um lado para ooutro, deixando à mostra parte deseu ventre e umbigo.
Em seguida avistei a poeta
Vanna Roget, que estava na casados quarenta, mas ainda possuíaum corpo muito bonito. Tinhanariz e mãos grandes, mas tambémuma bunda grande e gostosa. Elasentou no sofá e eu me aproximeie sentei ao seu lado. Dei a elauma das minhas cervejas. Tinhalevado seis cervejas.
Vanna havia acabado de sairdo fora que levara do seu amantenegro; alguns poetas brancostinham uma antipatia velada por
ela por conta disso, mas eu nãoligava, ela tinha uma bundagostosa. É claro, eu estava comCornelia, mas pensei que seCornelia resolvesse fugir com opresidente de uma fábrica desutiãs ou de bolas de golfe eupoderia fugir com aquela bunda.Vanna escrevia poesias decentes,mas não sabia se expressaroralmente. Eu estava sempretentando fazê-la falar, quebraraquele silêncio, por isso sempre
tentava chocá-la.– Meu Deus – eu disse –,
minhas bolas estão fervendo hoje.Estão parecendo carvõesrecheados de leite de coco.
Vanna apenas me olhou comaqueles enormes olhos azuis elevou sua garrafa de cerveja àboca.
– Uma chupada – eu disse –,chupar. Chupar. Acho que voumelar minha cueca agora mesmo.
Fiquei olhando a cerveja
entrar em sua boca.– Eu lamberia seu cuzinho
mesmo sujo, só para meter minhavara dentro de você.
– Bukowski, você só faladesse jeito porque acha que é umgrande poeta.
– Deixa eu dar umalambidinha e vai ver só.
Vanna apenas me olhou.As pessoas estavam subindo
as escadas em direção à casa.Cornelia me viu e se aproximou.
Apresentei-a a Vanna. Elas seolharam daquele jeito que asmulheres se olham, sabendoimediatamente tudo o que eu haviafeito ou queria fazer ou pretendiafazer com cada uma delas.
A leitura de poesias estavacomeçando. Dunning foi primeiro,com um sorriso benevolente eletirou o chapéu, pousou-o no chão,colocou todos os seus trocados alidentro. Então começou a ler,ALTO. Ele berrava. Dunning era
maluco sem ser interessante. Masele acreditava em si mesmo, o queera uma patologia comum entreescritores, bons ou maus. Naverdade, os maus escritoresgeralmente têm mais fé em simesmos do que os bons. Dunningprosseguiu furiosamente. Eraconstrangedor, por um lado, comoencontrar sua mulher na cama comum macaco; mas não dava paraficar brabo. Havia simplesmenteum sentimento de que você estava
sendo logrado e não havia nada afazer. O mundo está cheio deDunnings e de macacos, maisDunnings do que macacos.
Em seguida veio um muitomedíocre e leu uma coisa quechamava de uma peça“extravagantchi”. É provável quesua mãe gostasse daquilo, ou umamigo debilitado. Era tãomeiguinho que nem valia a pena.O poeta estava crente de queestava agradando a todos, mas
estava agradando apenas a simesmo. Ele terminou e serecolheu.
Outros tentaram efracassaram. Então a poeta judiaque havia perdido o emprego porler um poema erótico para seusalunos se levantou e leu doispoemas ruins e um bom. O bomnão era grande coisa, só quedepois dos dois primeiros poemase de Dunning e do Meiguinho edos outros era como engolir areia
em vez de merda.Chegou a minha vez. F. me
apresentou. A essa altura, eu jáagonizava. Eu disse:
– Espere... preciso de umabebida...
Corri em direção ao bar, masnão havia nenhuma garrafa à vista.Uma senhora loira estava sentadano bar, sem beber nada, e meencarou como se toda a minhasagacidade houvesse ido por águaabaixo.
– Vadia de merda – eu disse–, vá chupar a pica de umcachorro...
Voltei ao tablado e comecei aler. Primeiro disse a eles queaquele lugar me lembrava umaigreja católica e que eu haviaabandonado a Igreja Católica aosdoze anos de idade, depois li trêspoemas, um sobre uma dançarinade strip tease, um sobre umninfomaníaco e outro sobre umhomem que queria lamber o cu de
uma mulher. O poema sobre adançarina de strip tease não erasobre mim.
Havia outros. Ninguémcolocou dinheiro algum no chapéupara Patchen, todos aquelescretinos cheios da grana ficaramlá com as mãos enfiadas nosbolsos. Então um cara quelecionava em uma universidadelocal levantou. Ele foi o pior danoite. A esposa leu junto com ele.Era uma peça teatral, uma peça
para duas pessoas. Eraincrivelmente infantil e nãoterminava nunca. Voltei para o bare descobri que o uísque estavacamuflado na parte inferior, ouísque e a vodca e o gim e...Estava começando a prepararduas doses de bom uísque comágua quando uma jovem morenaentrou na parte de trás do bar. Elaparou bem perto de mim, meencarando com os olhoscastanhos. Ela estava a fim, não
deixou nenhuma dúvida quanto aisso. Me senti como se estivessesendo encurralado. Olhei em voltae de fato estava.
– Sr. Bukowski – ela disse –,seus poemas foram realmentenotáveis. E divertidos. Aquelesoutros não escrevem nada, vocêacabou com a raça deles. Eusimplesmente adoro você...
– Você tem um corpo muitobonito – eu disse – e você éjovem e eu gosto dos seus olhos...
– Sou sua... – ela disse. –Quero que você me coma.
– O quê? – perguntei.– Você ouviu bem.– Agora? – perguntei.– Não, mais tarde...– Com licença – eu disse.Peguei meus dois copos e
escapuli dela. Seguiu sorrindopara mim. Fui em direção aCornelia e lhe entreguei um doscopos. O professor e a esposaainda estavam lendo a peça.
Pouco depois, terminaram. Aúltima pessoa a ler foi a dona dacasa ou a mulher do dono da casa.Ela não era tão ruim quanto oprofessor, mas as atrocidades queas pessoas apresentaram em nomede Patchen é algo de que nunca meesquecerei. A madame terminoude ler e as pessoas começaram air embora, a maior parteignorando o chapéu para Patchen.
Fui para trás do bar ecomecei a servir as seis ou sete
pessoas que estavam por ali. Paracada bebida que eu preparavapara alguém, preparava outra paramim e bebia. Então comecei avociferar injúrias sobre os ricoscretinos e a poesia ruim e osjoguinhos egoístas realizados emhomenagem a Kenneth P. Algunsacharam engraçado. Bem, elesriram. Olhei em volta e Corneliaestava ali atrás comigo, meajudando a servir as bebidas.Logo nós bebemos todos no
cansaço e apenas Cornelia e euficamos por ali. Parecia queestávamos sozinhos na casa.Decidi que seria uma boa ideia selevássemos um uísque e dei aCornelia a quinta garrafa para elapôr na bolsa, mas então o dono dacasa apareceu e desceu correndoas escadas de mármore dizendo:
– Essa não! Essa não! Essanão!
Ele tinha cabelos grisalhos euma barbicha grisalha e arrebatou
a garrafa. Bem, não havia nadamais a fazer senão ir embora.Quando chegamos à rua me deiconta de que havia esquecido umvalioso livro de Patchen dentro dacasa. Toquei a campainha e deixeiCornelia encarregada de falar. Asenhora rica atendeu a porta.
– Esquecemos um valiosolivro de Patchen aí dentro – disseCornelia.
A senhora rica estavairritada. Entramos e pegamos o
valioso livro de Patchen. Entãosaímos de novo. Tínhamosestacionado o carro no final dapassagem e era uma longacaminhada até lá. Havia arbustose grama e pedras por todos oslados. Era uma longa subida etropeçamos diversas vezes.
– Estou cheio de batalhar porPatchen – eu disse. – Nunca mais.
Cornelia se jogou naextremidade coberta de grama,abriu os braços e as pernas.
– Venha – ela disse –, vamosfoder.
– Não – eu disse –, aqui não,pelo amor de Deus.
– Olha, Bukowski, temos asestrelas e a lua e a terra, vamosfoder.
Ajudei-a a se levantar.Caminhamos mais alguns metros eCornelia se jogou novamente nochão.
– Vamos lá, Bukowski,vamos foder. Dá um trato na sua
menina. Enfia essa vara em mim,paizinho, põe esse salame prafora...
Levantei-a de novo. Ela sejogou no chão mais uma ou duasvezes e então chegamos ao carro.Cornelia dirigiu. Não me lembroda viagem de volta, só lembro quedeitei na cama e em seguidaCornelia estava em cima de mim...
– Esse lance do Patchen – eudisse – está ficando chato. Nãotenho mais saco.
– Me beija – ela disse –, mebeija COM FORÇA!
– Afinal de contas, Patchenmora em Palo Alto.
– Me beija... me beija ou vouGRITAR!
Eu a beijei. Na boca, e entãomais embaixo e mais embaixo.Foi ficando melhor. Logo euestava em cima dela e com o paudentro, pensando nela ao desfilarcom seu pijama vermelho e emseus longos cabelos escuros e
naqueles intensos olhos castanhosque olhavam e olhavam eolhavam... Esqueci completamenteKenneth Patchen. Esqueci até apeça horrorosa do professor.Esqueci até que eu era poeta.Então terminamos e eu deitei debarriga para cima, ouvindo osgrilos cantarem, sentindo o suorno meu pescoço e na minha testa.Havíamos salvado uma noiteruim. Os ricos podiam ficar comseu uísque e Kenneth Patchen
A cena de Los Angeles
OS POETAS, OS LOUCOS; OSEMPOBRECIDOS
E OS RICOS DE ALMA; OSINSÍPIDOS, OS
CRETINOS, OS BÊBADOS E OSMALDITOS...
Nasci em Andernach, na
Alemanha, no dia 16 de agosto de1920, filho ilegítimo de umsoldado do Exército de OcupaçãoAmericano. Aos dois anos deidade fui trazido para os EstadosUnidos e depois de dois meses emBaltimore fui levado para LosAngeles, e quando atingi amaturidade vaguei ao acaso pelopaís, de um lado para o outro, decima para baixo, de dentro parafora, mas sempre voltava para LosAngeles e aqui estou hoje,
morando em um casebre caindoaos pedaços, bem próximo àpobretona Sunset Strip. Se alguémé um especialista na cena, sou eu,ainda que por concessão, e a cenafoi se processando através de diase noites de vinho e cerveja euísque, talvez o desespero tenhadeformado um pouco a minhaperspectiva, mas eu estava aqui,estou aqui, e falo daqui...
A cena da Alvarado Street,por si só, merece ser descrita,
ainda que meu material seja dequinze anos atrás. Imagino quetenham ocorrido mudanças, masque as mudanças não tenham sidorápidas. Ou será que foram?Parece que foi ontem que euestava sentado num bar de striptease na Sunset e as garotasesfregavam suas bocetas em mim.Mas aquela área entre a 3rd e a8th Street na Alvarado e os baresque se estendem por essas ruasnão mudaram quase nada. É a área
dos pobretões, ali em frente aoparque, onde eles ficam sentadosà espera da sorte, à espera damorte. É o segundo pior lugar deLos Angeles.
Eu abria e fechava aquelesbares, brigava dentro deles,conhecia mulheres dentro deles,terminei na velha prisão deLincoln Heights uma porção devezes. Há um grande grupo depessoas ali que vive de ar e deesperança e de garrafas
recicláveis e da boa vontade deseus semelhantes. Moram empequenos quartos, sempre atrasamo aluguel, sonhando com apróxima garrafa de vinho, apróxima bebida grátis no bar.Passam fome, ficam loucos, sãoassassinados e mutilados. Até quevocê tenha vivido e bebido entreeles jamais conhecerá o povoabandonado da América. Eles sãoabandonados e abandonaram a simesmos. Juntei-me a eles. E entre
essas pessoas existem mulheres, amaioria delas vive de rapina, masaqui e ali surgem mulheres deverdade, inteligentes, alcoólatras,loucas. Vivi num vaivém com umadelas durante sete anos; comoutras por períodos mais curtos.O sexo era bom; elas não eramprostitutas; mas algo nelas haviase perdido, alguma coisa na vidatinha feito com que fossemincapazes de amar ou de seimportar com alguém. Batidas
policiais em nossos quartos nãopagos eram bastante comuns.Tornei-me tão violento e tãodesbocado quanto qualquer umadaquelas mulheres que enchiam acara de vinho. Algumas delas euenterrei, algumas odiei, algumasamei, mas todas meproporcionaram acontecimentosviolentos o bastante, embora amaior parte daquilo tenha sido deuma ruindade capaz de preenchera vida de vinte homens. Aquelas
mulheres infernais acabaram melevando ao County Hospital,direto para a lista de casosgraves, e quando saí de láabandonei a Alvarado Street, masse você quiser experimentar umpouco disso, creio que a mesmalinhagem ainda cultiva o desejode morte lá por aquelas bandas...
Depois de um casamentoinfeliz decidi, bem, que se dane,que podia mesmo ser um escritor,isso parecia ser a escolha mais
fácil, você diz qualquer coisa queder na telha e eles dizem, ei, issoé bom, você é um gênio. Por quenão ser um gênio? Existem tantosgênios medíocres. Então me torneium gênio.
Meu primeiro instinto foificar longe de escritores, artistas,criadores, receando que elespudessem me desencaminhar coma visão equivocada de suasambições. Afinal de contas, umbom escritor precisa fazer apenas
duas coisas direito: Viver eescrever, e o trabalho já estáfeito. Em Los Angeles é possívelviver em completo isolamento, atéeles encontrarem você. E beberemcom você dias e noites, e falarempor dias e noites. E quando elesvão embora, outros chegam. Agente não se incomoda com asmulheres, mas os outros sãodefinitivamente devoradores dealma.
Um dos primeiros a me
encontrar foi M. J., o famosopoeta beat dos anos 50,principalmente fora da cidade deNova York, bem, no Brooklyn. M.chegou batendo na porta. Ele jánão era nenhum garotinho e estavaescrevendo havia bastante tempo.Eu era ainda mais velho e haviarecém começado a escrever. Bem,isso foi justo. Eu estava deressaca.
– Bukowski, você tem carro?– Sim, mas deixa eu pegar
uma cerveja primeiro. Você queruma?
– Não, estou em abstinência.– O que aconteceu?– Escute só, apanhei duas
noites seguidas. Apanhei emFrisco e na noite seguinte estavalá no Barney’s Beanery e meenvolvi em outra briga. Esse caranão era amador. Me deu uma surratão feia que me caguei nas calças.Tive que me limpar com jornal.Não tinha onde dormir... quero
que você me leve até Venice...– Tudo bem.– De repente consigo morder
um vintão.No caminho M. me falou de
como eles nos “deviam”. Nóshavíamos saldado a nossa dívida,ele disse. Pode crer, Henry Millercostumava espremer esses ricaçosquando estava começando. Todosos artistas tinham esse direito.
Eu achava que seria legal setodos os artistas tivessem direito
à sobrevivência, mas acreditavaque todas as pessoas tinham essedireito, e se um artista nãoconseguisse se manterfinanceiramente estava na mesmacondição de qualquer outrapessoa com o mesmo problema.Mas não contrariei M. Ele já nãoera jovem, mas ainda era umpoeta importante. Mas por algummotivo havia sido excluído docircuito de poetas. Haviapolíticos no meio artístico assim
como em qualquer outro meio. Eratriste. Mas M. tinha ido a muitoseventos literários, caído emmuitas roubadas, bajulado muitosNomes só porque eram Nomes;havia feito muitas exigências nomomento errado e da maneiraerrada. Durante o percurso elesacou um caderninho vermelho de“mordíveis”. Todos aquelesnomes eram bons alvos paraespremer.
Chegamos a Venice, desci do
carro com M. e fomos em direçãoa uma casa de dois andares. M.bateu na porta. Um garotoapareceu.
– Jimmy, preciso de vintedólares.
Jimmy saiu, voltou com anota de vinte dólares, fechou aporta. Entramos no carro, fizemoso caminho de volta, bebemos atarde toda e a noite toda enquantoM. falava da cena da poesia. Eleesquecera que estava sóbrio. Na
manhã seguinte tomamos umacerveja de café da manhã e nostocamos para Hollywood Hills.Outra casa de dois andares. M.teve que bater na janela. Uma casacheia de gatos e filhotes de gatos,o cheiro de cocô dos felinospredominava. M. conseguiu maisvinte dólares e nós voltamos. Ebebemos mais um pouco.
Eu encontrava M. de vez emquando. De tempos em tempos elepromovia uma leitura de poesias
aqui na cidade. Mas não ia muitagente. Ele lia bem, e os poemaseram bons, mas a mandinga erabraba. M. estava marcado. Osmordíveis estavam se esgotando.Então achou uma garota que oacolheu. Fiquei feliz por M. MasM. era como todos os outrospoetas: apaixonava-se por suasmulheres, talvez até demais. Logoestava de novo nas ruas, às vezesdormia no meu sofá, reclamandoda sorte. Como ninguém mais
publicava seus livros, passou amimeografar seus própriosexemplares. Tenho um aqui: Todosos Poetas Americanos Estão naPrisão. Ele escreveu umadedicatória para mim:
LAFev. 1970Para Charlie:Com a Graça dos DeusesÀs vezes ainda conseguimos
fazer chover.
Mostre para mim ele gritou,Mostre
para mim. Cara eu estoutentando encontrar.
Fique calmo. Está aquicara. Na palma da mão dele
haviauma pequena mancha de
sêmen. Eu nãogozo com a mesma frequência
que você eledisse. Aí cara você quer ver
o
meu pau, Aqui está eleestendido como
uma árvore desfolhada sobum sol de
aspargos.Com amor,M.
Então M. começou a compormúsicas. Tenho um livro com asmúsicas dele em algum lugar.
– Vou ir ver Janis Joplin emostrar minhas músicas para ela –
ele disse.Senti que aquilo não ia dar
certo, mas não podia dizer nada aM. Ele era tão Romântico, tinhatantas esperanças. Ele voltou.
– Ela não quis me receber –ele disse.
Agora Janis está morta e M.,pelo que sei, andava rodopiandoum esfregão no Brooklyn,trabalhando enfim – para o irmão.Espero que M. volte, volte paravaler. Pois apesar de todos os
seus problemas e achacadas ebajulações há poetas bem pioresque estão no topo agora. Talveztodos os poetas americanosestejam na prisão. Ou ao menos amaior parte deles...
Então surgiu N. H. da cenabeat de Paris, a cena de Tânger,Grécia e Suíça, o pessoal deBurroughs... N. apareceu juntocomigo e mais outro poeta em umarecente série da Penguin ModernPoets. De repente ele estava na
praia de Venice, apodrecendo naareia, sem escrever; queixando-sedo fígado deteriorado e sendovigiado por uma mãe idosa queele mantinha bem escondida.Muitas vezes quando eu ia visitarN. rapazes jovens batiam à porta.Embora seu fígado estivessedeteriorando, estava claro que seupau funcionava às mil maravilhas.N. supostamente era bissexual,mas nunca vi nenhuma mulher porperto.
– Bukowski, eu não consigomais escrever. Burroughs não falamais comigo, ninguém quer mever. Acabaram comigo. Estou nalista negra. Estou arruinado.Tenho seis livros prontos eninguém quer saber deles.
Mais tarde N. alegou que euhavia feito sua caveira na BlackSparrow Press, uma editora depoesia moderna americana. Nãoera verdade, mas essa era amentalidade de N. Todas as
minhas visitas a ele resumiam-sea ouvir suas reclamações sobrecomo ele havia sido forçado asair da cena por meio dechantagens. Na realidade eu haviapedido à Black Sparrow que opublicasse, pois achava que elemerecia.
– Você nunca fez nada pormim, Bukowski.
Gostamos de pensar que acriação faz sua parte, mas N.esqueceu que eu havia escrito um
prefácio elogiando-o por seutrabalho em uma edição especialda revista Ole dedicada à suaobra. A mania de perseguição deN. chegou a tal ponto que umavez, depois que N. C. e eu ovisitamos durante uma hora,tivemos que sair correndo para oelevador e, quando a porta sefechou, rolamos no chão de tantorir. Ficamos com medo de sairpela porta da frente, receando queele nos ouvisse e ficasse
magoado, então fomos até osubsolo e rolamos no chão duranteuns cinco minutos no escuro, rindoem meio a aquecedores e teias dearanha.
N. H. ainda era um excelentepoeta. Mas era triste ver o modocomo os caras iam ficandodoidos. Suponho que todos nósficaremos doidos. A poesia, aprosa, subindo pelas paredescomo cobras; nossos espelhossuicidas revelando cabelos
grisalhos e formas grisalhas etalentos grisalhos. N. haviaperdido seu apoiador europeu. Ascoisas não estavam muito boas.Os poetas o visitavam uma vez enunca mais apareciam. A editoraFree Press ofereceu a ele umemprego de crítico, mas N. nãolevou adiante. Culto, talentoso,inteligente, ele estava seacabando. Ele admitia isso. Eudisse a ele que ele podia seencontrar de novo.
Certa vez, um outro poeta eeu o visitamos e sugerimos umarodada de bebidas, mas N. disseque havia sido convidado parauma festa, um convite especial.Gostaríamos de acompanhá-lo?Por que não?, perguntamos. Eletinha o endereço. Quandochegamos lá, era um eventobeneficente em nome de alguém,um dólar de entrada. Entramospela porta dos fundos e ficamospor ali ouvindo a banda. Achei
uma imensa jarra de vinho ecomecei a beber. Conversei comalgumas mulheres, beijei umadelas, circulei.
O poeta que estava comigome perguntou:
– Você acha que alguém aquisabe que você é o CharlesBukowski?
Era uma indagaçãointeressante. Esqueci-mecompletamente de N. e do meudesejo de que ele voltasse a
produzir. Me aproximei de umagarota.
– Você sabe que eu sou oCharles Bukowski?
– Charles quem? – elaperguntou.
O poeta que estava comigoriu. Perguntei a várias pessoas sesabiam que eu era CharlesBukowski.
– Nunca ouvi falar. Quem éesse cara?
– Charles Bukowski. É
aquele pano de prato do TinyTim?
Bebi o resto do vinho e,quando o evento terminou, corripara o fim da escadaria ebloqueei a saída.
– Agora ouçam, isso é paravocês ficarem sabendo que eu souCharles Bukowski. Agora antes queeu deixe vocês passarem quero quedigam, “Eu conheço você, CharlesBukowski!” Vamos, digam!
– Corta essa, cara, deixa agente ir embora!
– Porra, meu, deixa a gentesair!
– Vamos, Charles, não sejaotário – disse N.
– Muito bem, digam! – eugritei. – Digam que eu sou CharlesBukowski e que vocês me conhecem!Digam!
Havia 150 pessoasamontoadas ali dentro. Então opoeta ao meu lado disse:
– Bukowski, a polícia está acaminho!
Saí dali o mais rápido quepude, correndo pelas ruas deVenice West, N. e o poetacorrendo atrás de mim. Sim, assimcomo N., eu também havia vistodias melhores. Mas ouvi dizer queele estava preparando um granderetorno, estava indo para Frisco elançando uma revista, perdi ofolheto mas creio que ele estejapublicando Ginsberg, Ferlinghetti,McClure, Burroughs, todos essescaras. Finalmente ele havia se
afastado da Rose Avenue, aliperto daquele estacionamento, oshippies cretinos sentados nosbancos de cimento, passandofome, vagabundeando, tentandoroubar coisas daquela loja judaicade conveniência e esperando TimLeary dizer a eles “Caiam fora”.De quê? Leary não está lá. Só asgaivotas e a espera e nenhumacriação...
...ah, havia também MadJack, o pintor. Uma mulher estava
tomando conta dele, uma mulherjovem que morava numa casamuito grande. Jack tinha todo oporão só para ele, suas telasespalhadas pelo chão de cimento.Acho que eram bem boas, feitascom pinceladas de tinta indianapreta e tonalizadas com essasbolhas amarelas aplicadas comum pincel. Havia centenas delas equase todas eram parecidas.
Jack sempre levava umagarrafa de vinho no bolso, vinho
do porto, e estava sempre bêbadoou se embebedando. Raramentetomava banho e o muco queescorria do nariz secava formandocrostas pretas sobre seu lábio esua boca. Até a barba era suja eele falava gritando, sempre algomelodramático e um poucoestúpido. Eu tinha que beber paraaguentá-lo. Entretanto, comodisse, suas telas eram boas e eurelevava muita coisa em funçãodisso. Suponho que sua garota
pensasse da mesma maneira. Éprovável que ele chupasse muitobem. Ou foi o que me contou.
Eu costumava ir até lá eencher a cara a noite inteira,fumar uns baseados também, etomar umas boletas. Não sei queboletas eram, misturávamos tudo,e tinha um piano e eu não sei tocarpiano, mas tocava mesmo assim.Tocava como se fosse bateria,durante horas e tirava uns sonsesquisitos que acho que nunca
ninguém conseguiu tirar de umpiano antes.
Uma noite saímos todos parabeber e ficamos gritando uns comos outros na rua e na loja debebidas, a garota estava junto, eum cara voltou conosco, ele nosachou interessantes, mas o caracomeçou a se gabar porque tinhamatado vários caras na guerra, eeu disse a ele que isso não era umgrande mérito, que era algosupervalorizado e que era muito
mais desafiador matar um carafora da guerra.
– Você não gosta muito demim, não é mesmo? – perguntou.
– Nem um pouco – eu disse.Ele foi embora. Voltou
vestindo um cinto com coldre.Chegou perto de mim. Sacou aarma e colocou o cano na minhabarriga.
– Vou matar você – ele disse.– Tenho uma veia suicida –
eu disse. – Vá em frente.
– Você está com medo.– Um pouco. Morrer não é
fácil. Atire. Não acho que vocêtenha coragem, matador.
Ele pôs a arma de volta nocoldre. Nunca mais o vimos...
Mad Jack estava semprepassando pela minha casa parapegar uns trocos, dez centavos,quinze centavos. O suficiente paradescolar uma garrafa de vinho. Nofim ele ficou um pouco chato –apesar das pinturas. Certos tipos
de gênio podem ser incrivelmenteenfadonhos. Na verdade, todos osgênios são enfadonhos na maiorparte do tempo, até que estejamprontos para mergulhar em suaarte. Os que são articulados eexpressam opiniões interessantessão sempre os embusteiros. Detodo modo, passei a evitar Jack.Então fiquei sabendo que tinhafeito uma exposição e vendidoalguns de seus quadros por 6.000dólares. Ele viajou para o Canadá
e bebeu todo o dinheiro no mesmobar em uma semana. Em seguidavoltou a bater à minha porta,mendigando centavos. Soube quesua garota o expulsou de casa eque ele está morando com a mãe.
Um dia ele vai ficar rico comseus quadros, mas vai continuarandando por aí com tatu saindopelo nariz e com uma garrafa devinho no bolso, e todas as coisasmiúdas, tolas e melodramáticasque ele faz serão vistas como
supremas e preciosasdemonstrações de brilhantismo...
E havia o grande T. J. naregião de Echo Park. Acho queele não escreve um poema novohá dez anos, sempre lê osmesmos, de forma repetida, nasleituras poéticas. T. J. temproblemas... De qualquer modo,ele é um homem imenso, umaespécie de mito... costumavadesfilar em Venice West na épocaboa, você sabe, as garotas peladas
em banheiras, os Holy Barbarians,de certa forma toda a cenademente que teve que desaparecerporque era baseada mais naencenação da criação artística doque na criação artísticaverdadeira, mas tudo é válido,como postos de gasolina ecarrocinhas de cachorro-quente epiqueniques de domingo, mas nãovamos ficar amargurados; dequalquer maneira, T. J. costumavaentrar em um desses lugares e
derrubar cinco caras no chão comum movimento de braço. Entãoprocurava uma mesa para montarum jogo de xadrez e se tivessealguém na mesa ele o atirava nochão também. Depois se sentavacalmamente, acendia o cachimboe começava o jogo com seuparceiro.
Hoje você pode encontrar T.J. no Echo Park revirando latas delixo atrás de seu prato especial. Oapartamento dele é cheio de lixo,
não se tem nem onde sentar.Normalmente há uma fita tocando.No meio do lixo estão milhares delivros, alguns ele leu. É um peritoem Adolf Hitler. As paredes estãocobertas de fotografias e recortese provérbios e mulheres nuas epinturas. É uma bagunça grotesca,o reino de T. J.
– Se eu não estiver feliz – elediz –, a vida não vale a pena.
O trabalho dele de dez anosatrás é uma das melhores coisas
produzidas em nosso tempo. Éclássico e erudito e avança semarestas e contém sabedoria eintensidade. T. J. não trabalha. T.J. não faz coisa alguma. Comosobrevive? Pergunte a ela.Pergunte a L.
Os estranhos seguemaparecendo. Todos querem bebercomigo. Não posso aturar a todosou ser gentil com todos, ou achá-los todos interessantes. Mas todosos tipos são iguais em um aspecto:
repudiam nossos atuais valores eestilo de vida, e falam sobre isso,alguns deles quase com violência,mas é reconfortante saber que naAmérica ainda existem pessoasque não caíram na vala comum.
Nem todos que chegam sãoartistas (com a graça do nossobom Deus), mas alguns sãosimplesmente estranhos. L.W., porexemplo, está na vadiagem hácinco ou seis anos, morou empensões, igrejas, rodou de carona,
e tinha algumas históriasinteressantes sobre a Estrada.
Ele veio me ver. E era umbom ator. Encenou algumas desuas experiências passadas,interpretando papéis de diferentespersonagens. Era intenso e sério,mas muito bem-humorado porquea verdade em si costuma ser maiscômica do que séria. L. W.costumava chegar às quatro datarde e ficar até à meia-noite. Umavez conversamos durante treze
horas seguidas e fomos tomar caféda manhã no Norm’s, às cincohoras da manhã.
L. W. era um artista que nãotinha outra forma de escape parasua arte que não a expressão oral.Usei em benefício próprioalgumas das histórias que L. W.me contou. Não foram muitas.Uma ou duas. Mas ele entrava nomodo repetição, especialmentequando havia outras pessoas porperto. Eu tinha que ouvir as
mesmas histórias duas ou trêsvezes. Os outros riam como eurira da primeira vez. Elesachavam L. W. o máximo.
O que me impressionava eraque L. W. contava as históriascom as mesmas palavras, semmudar uma vírgula. Bem, todosnós fazemos isso, não é? Comeceia me cansar de L. W. e ele sentiu.Não o vejo há algum tempo.Duvido que volte a vê-lo. Fomosúteis um para o outro...
Havia outros. Eles seguemchegando. Todos com sua maneirapeculiar de conversar ou de viver.Recebi alguns sujeitos bacanas,aquelas figuras de Los Angeles, esuponho que continuarãoaparecendo. Não sei por que aspessoas trazem a si mesmas emminha direção. Nunca vou a lugaralgum. Quando me aparecemsujeitos enfadonhos, me livrodeles rapidinho. Eu só estariamaltratando a mim mesmo se
fizesse o contrário. Minha teoria éque se você é gentil consigomesmo, será sincero e gentil comos outros, até certo ponto.
Los Angeles está repleta depessoas estranhas, acredite emmim. Tem muita gente por aí quenunca pegou uma freeway às setee meia da manhã ou bateu umcartão de ponto ou mesmo teve umemprego e nem pretende ter, nãoconsegue, não quer, preferemorrer a viver de maneira
convencional. Em certo sentido,cada um deles ou cada uma delasé genial à sua maneira, lutandocontra o óbvio, nadando contra acorrente, enlouquecendo, curtindomaconha, vinho, uísque, arte,suicídio, qualquer coisa que fuja àequação comum. Ainda levará umtempo até que eles emparelhemconosco e nos façam ficar quites.
Quando você vir o edifícioda prefeitura no centro da cidadee todas aquelas pessoas finas e
bem vestidas, não fiquemelancólico. Existe umaverdadeira multidão, uma raçacompleta de pessoas malucas,famintas, bêbadas, excêntricas eincríveis. Já vi muitas delas. Souuma delas. Haverá mais. Estacidade ainda não foi tomada. Amorte antes da morte é uma coisadoentia.
Os estranhos seguirão firmes,a guerra não terminou. Obrigado.
Notas sobre a vida deum poeta idoso
Depois de uma centena deempregos e anos de vadiagem medei conta de que estivera nomesmo posto há onze anos.Comecei a perceber isso quandonão conseguia mais levantar osbraços para além da minha cintura
depois de um dia de trabalho.Estava esgotado. Cobravam-me opreço. Busquei vários tipos decura, diversos médicos. Nadafuncionou. Eu era a única coisaque funcionava – oito horas, dezhoras, doze horas por dia. Nesseemprego eu não tinha escolha. Eraobrigatório fazer hora extra e elesacrescentavam as horas de umaem uma. Você nunca sabia quandoseu horário terminava.
O trabalho estava me
matando. Durante dez anos euhavia suportado, indignando-meapenas com a rotina, com amonotonia do trabalho. Mas nodécimo primeiro ano meu corpocomeçou a morrer. Decidi quepreferia andar descalço e morarnuma favela a morrer seguro. Umhomem pode ter segurança numacadeia ou num hospício. Aoscinquenta anos, tendo que pagarpensão alimentícia, pedidemissão. Estranhamente, isso
deixou muitos dos meus colegasde trabalho furiosos; elespreferiam que eu morresse juntocom eles em vez de morrersozinho.
Desde os 35 anos eu vinhaescrevendo poemas e contos.Decidi morrer no meu própriocampo de batalha. Sentei-me emfrente à minha máquina deescrever e disse, agora sou umescritor profissional. É claro quenão foi assim tão fácil. Quando
um homem trabalha no mesmoemprego durante muitos anos, nãoé dono do seu tempo. Quero dizer,mesmo com uma jornada de oitohoras, o dia está tomado. Some otempo que leva para ir e voltar dotrabalho, mais o trabalho em si,mais comer, dormir, tomar banho,comprar roupas, carros, pneus,baterias, pagar os impostos,copular, receber visitas, ficardoente, sofrer acidentes, terinsônia, ter que se preocupar com
a roupa suja e com assaltos e comas condições climáticas e todo oresto que não dá para mencionar,não sobra TEMPO ALGUM parase gastar consigo mesmo. E,quando é preciso fazer hora extra,muitas vezes algumas dessasnecessidades têm que ficar defora, até mesmo dormir, e, maiscomumente, copular. Que porra éessa? E tem semanas em que setrabalha cinco dias e meio, seisdias, e no domingo é esperado que
você vá à igreja ou visite osparentes, ou os dois. O cara quedisse “O homem comum vive umavida de silencioso desespero”tinha um pouco de razão. Mas otrabalho também acalma oshomens, dá a eles alguma coisapara fazer. E impede a maioriadeles de pensar. Homens – emulheres – não gostam de pensar.Para eles o trabalho é uma dádiva.Dizem a eles o que fazer e comofazer e quando fazer. Noventa e
oito por cento dos americanosacima de 21 anos estãotrabalhando, mortos-vivos. Meucorpo e minha mente me disseramque dentro de três meses eu seriaum deles. Eu me opus.
Eu tinha uma máquina deescrever e nada para fazer.Resolvi escrever um romance.Escrevi em vinte noites, bebendomeio litro de uísque por noite. Aeditora Black Sparrow Pressdecidiu publicar o romance,
Cartas na rua. Também vendi doisou três capítulos para revistas,para saírem como contos. Umanova e estranha vida estava seconfigurando.
Meu primeiro erro foi acharque poderia escrever muitas horaspor dia todos os dias. É possívelescrever dessa forma, masresultará em material medíocre eforçado.
Outros escritores começarama aparecer, a bater na porta,
trazendo suas embalagens decerveja. Eu nunca os visitava, masmesmo assim eles vinham. Eubebia com eles e conversava, maseles não me acrescentavam muitacoisa e pareciam sempre chegarna hora errada. Tambémapareciam mulheres, e elasgeralmente ofereciam algo maisproveitoso do que as conversasfiadas sobre literatura. Mausescritores têm um pendor parafalar sobre o ofício de escrever;
bons escritores falam sobrequalquer coisa, menos sobre isso.Pouquíssimos bons escritoresapareceram.
Recebi algumas propostaspara leituras de poesia e aceitei.Não gosto de ler poesias, era umsacrifício terrível, mas euprecisava sobreviver e essa erauma maneira rápida de pagar pelasobrevivência, mais ou menoscomo roubar uma loja deconveniência. Sentia que o
público não estava interessado empoesia; estava interessado empersonalidade. Que aparênciatinha o poeta? Como falava? Oque acontecia depois da leitura?Ele se parece com seus poemas?O que você achou dele? Comovocê acha que ele é na cama?
Certa vez, depois de ler numevento beneficente para Patchenem uma luxuosa residência emHollywood Hills, uma garota mecercou no bar quando fui me
servir um drinque duplo. Erabonita e esbelta e jovem e cravouseus grandes olhos castanhos emmim enquanto se punha na minhafrente e disse, “Bukowski, seuspoemas, sua leitura foi muitomelhor do que as outras. Quero irpara a cama com você. Deixe-meir para a cama com você!” Bom evelho K. Patchen, que Deus otenha, nós dois podíamos ter sidobeneficiados aquela noite, mas eudesviei da garota, informando-a
de que tinha vindo acompanhado,e, mesmo que não tivesse, não erado meu feitio ir para a cama como poema ainda quente.
A maioria dos poetas lê mal.São ou muito vaidosos ou muitoestúpidos. Leem ou muito alto oumuito baixo. E, é claro, a maiorparte de suas poesias é ruim. Maso público nem liga. Querem verpersonalidade. E riem nomomento errado e gostam dospoemas errados pelas razões
erradas. Mas maus poetas gerammaus espectadores; decadênciachama mais decadência. Noinício, tive que fazer a maior partedas minhas leituras embriagado.Tinha o medo, é claro, medo deler para eles, mas a repulsa eramais forte. Em algumasuniversidades, eu simplesmentesacava a garrafa e bebia enquantolia. Acho que funcionava – osaplausos eram satisfatórios e aleitura não me doía tanto, mas eu
não era convidado a voltar. Só fuiconvidado uma segunda vez emlugares onde não bebi durante aleitura. Grande dimensão dapoesia eles tinham. Entretanto, vezque outra, um poeta se depara comuma plateia mágica e tudo fazsentido. Não consigo explicarcomo isso acontece. É muitoestranho – é como se o poetafosse a plateia e a plateia fosse opoeta. A coisa flui.
As festas depois das leituras
podem levar a grandes alegriase/ou desastres. Lembro-me deuma ocasião em que, depois deuma leitura, o único quarto queestava disponível para mim era nodormitório feminino, então fomostodos para lá, os professores ealguns dos alunos, e depois quetodos haviam partido eu aindatinha um resto de uísque e umresto de vida e olhei para o teto ebebi. Aí me dei conta de que,afinal, eu era O VELHO
SAFADO, então saí do meuquarto e andei por ali batendo nasportas e pedindo para entrar. Nãotive muita sorte. As garotas foramsimpáticas, riram. Andei por alibatendo nas portas e pedindo paraentrar. Logo eu estava perdido enão conseguia achar meu quarto.Pânico. Perdido em um dormitóriofeminino. Demorei o que mepareceram muitas horas paraachar meu quarto de novo.Acredito que as aventuras que as
leituras proporcionam são o quepodem possivelmente transformá-las em algo mais do que um meiode sobrevivência.
Uma vez o cara que foi mebuscar no aeroporto chegoubêbado. Eu não estavacompletamente sóbrio. Durante otrajeto, li para ele um poema desacanagem que uma mulher haviaescrito para mim. Estava nevandoe as estradas estavamescorregadias. Quando cheguei a
um trecho particularmente eróticomeu amigo disse “Ai, meu Deus!”e perdeu o controle do carro e nósgiramos e giramos e giramos, e eudisse a ele enquanto estávamosgirando, “Acabou, André, nãovamos escapar dessa!” e saqueiminha garrafa e então caímosnuma vala e ficamos presos.André saiu para pedir carona;aleguei velhice e fiquei no carroenxugando minha garrafa. E quemnos recolheu? Outro bêbado.
Tínhamos latas de cervejaespalhadas pelo chão e um quintode uma garrafa de uísque. Aquelaacabou sendo uma leitura e tanto.
Numa outra leitura, em algumlugar em Michigan, deixei ospoemas de lado e perguntei sealguém queria fazer uma queda debraço. Então enquantoquatrocentos alunos formavam umcírculo à nossa volta, fui para ochão com outro aluno ecomeçamos. Eu venci e então
todos nós saímos e enchemos acara (depois que peguei meucheque). Creio que nunca maisrepetirei essa performance.
Claro, há vezes em que vocêacorda na casa de uma mulher, nacama com ela, e se dá conta deque você se aproveitou de suapoesia ou que alguém seaproveitou dela. Não creio queum poeta tenha mais direito a umdelicioso corpo jovem do que ummecânico de oficina, se tanto. É
isso que estraga o poeta:tratamento especial ou sua própriaconcepção de que é especial. Éclaro, eu sou especial, mas nãocreio que isso se aplique a muitosdos outros...
Durante mais de um ano tivesucesso como escritor. Cerveja,cigarros, aluguel, pensãoalimentícia, comida...sobrevivência. Levantar ao meio-dia, ir para a cama às quatro damanhã. Quatro noites por semana
o proprietário e a proprietária domeu apartamento desciam e mepegavam e eu ia à casa deles ebebia litros de cerveja de graçaenquanto contava histórias e ouviahistórias e cantava músicasantigas e fumava e ria. Eu tirava olixo e recolhia a lixeira paraajudar no aluguel. Recebi algunsroyalties. As revistas de sexogostavam das minhas eternashistórias obscenas. Então veio arecessão. As revistas de sexo
cortaram os valores pela metade eo pagamento só saía depois dealguns dias da publicação. Noentanto os preços aumentaram e asnoites ficaram mais longas. Aliberação feminina chegou aosescritórios dos editores e certascriaturas, tais como mulheresordinárias, deixaram de existir,assim como não poderiam existirnegros ordinários ou algo erradocom a revolução ou com o rock oucom os índios americanos. Não
que eu dissesse o contrário, maseram tempos de limitação àcriação livre e isso me atingiu, eos editores estavam apreensivos eas casas editoriais mais ainda. Asreservas minguaram e a caixa decorrespondência estava semprevazia. Nada a fazer a não serencher a cara e seguir escrevendo.Se um escritor conseguir semanter por tempo suficiente e setiver qualquer coisa que seja, elevai sobreviver. É claro, em
tempos difíceis um escritor temque ser sua própria agência dearrecadação. Isso toma tempo,mas se isso não é do seu feitio, ounão é do seu feitio pedir dez ouvinte dólares por algo quenormalmente se faz de graça, vaiacabar rodopiando um esfregão.As revistas de sexo sãorelativamente fáceis – você sóexerce uma suave e decentepressão – apenas o suficiente paraque eles saibam que você tem
conhecimento de que eles estãovendendo revistas e lucrando comas suas histórias, e se elesquiserem mais histórias boassimplesmente terão que pagar. Osmercados europeus de traduçãodificultam mais as coisas. Emgeral é preciso ameaçar alguémde morte para conseguir aqueleadiantamento previsto no contratopor um livro de contos ouromance. Passei por mausbocados com os alemães. A
distância é o suficiente para fazercom que eles se sintam seguros,dane-se o contrato.
Tive muitos problemas comuma editora que lançou um livrode contos traduzidos. Tinhaouvido falar que o livro haviarecebido boas críticas em um dosjornais mais importantes daAlemanha, e o tradutor, que erameu amigo, havia me dito que olivro estava vendendo bem. Euqueria apenas o adiantamento de
quinhentos dólares estipulado nocontrato. Devo ter escrito umasquatro ou cinco cartas e nãoobtive resposta. Eles chegaram ame mandar dez livros, oito embrochura e dois de capa dura.Uma bela edição, mas nenhumdólar. Lembrei-me de comooutros escritores haviamreclamado das editoras e de comocostumava achar aquilomesquinho; escritores superioresa mim – Céline, por exemplo.
Agora eu entendia Céline, tantocomo artista quanto como máquinade reclamar e agência decobrança. Me embebedei eescrevi uma soberba carta de dezpáginas. Expliquei minhacondição como ser humano eescritor: Eu cagava, comia, bebia,fumava, trepava, rasgava lençóiscom as unhas do pé, dirigia omesmo carro há onze anos, levavaas latas de lixo para a rua,acariciava os seios da
proprietária do meu apartamento,me masturbava, era covarde ealcoólatra, detestava tevê, odiavabeisebol, futebol, basquete, nãoera homossexual, não tinha grandeadmiração por Hemingway, sabiaque era quase brilhante sem serbrilhante, gostava de músicaclássica, nunca tinha visto umjogo de hóquei no gelo, e haviaconhecido o grande Whit Burnett,o editor que descobriu Saroyan eBukowski, eu havia encontrado
esse grande editor numa rua deNova York, e assim por diante, eassim por diante... então, àmedida que avançava, comecei aficar agressivo, fui ficandoagressivo pouco a pouco, sendoda Alemanha e de Hollywood ede Los Angeles, isso me veionaturalmente, o quanto estavaenfurecido, que estava a ponto deentrar num avião para a Alemanhae CONFRONTÁ-LOS – CARA ACARA! – sim, sim, VOCÊS
ENTENDERAM? CARA ACARA! – seus covardes nojentos.NEM O ESPAÇO PODERÁSALVÁ-LOS DE BUKOWSKI!!!Eu iria receber meu pagamento,ou matar alguém. Era simplesassim. Honra. Eu era alemão.Nascido em Andernach. Eu estavafarto. Paguem para ver, senhores.Vou lhes dar três semanas paraenviar uma resposta que contenhadinheiro de verdade. Nenhum diaa mais. Protejam-se como
puderem. Etc., etc.Atenciosamente, CharlesBukowski...
O cheque chegou em umasemana. Não sei como elesconseguiram mandar tão rápido.Deviam acreditar que todos osmeus contos eram históriasverdadeiras. Eles são apenas meiaverdade. Invenção misturada coma verdade é igual a Arte. Dequalquer modo, eles pagaram...
E os professores são
complicados. Os professoreschegam batendo na porta. São deuma linhagem melhor que osprofessores de antigamente, masainda carecem de certo tato. Elesdizem, abrindo uma latinha decerveja, “Estou trabalhando vocêna minha cadeira de Literaturaamericana moderna. Causa grandeagitação.”
O que um escritor deve dizerdiante disso? Especialmente umescritor cujo melhor livro vendeu
apenas seis mil cópias numaeditora underground? Mailersequer se daria ao trabalho decuspir na minha cara, ainda que denós dois eu seja o melhor. Entãovocê abre a cerveja e não diznada, bebe um pouco, e pensa, aívai, pode ser que eu me sintamelhor depois de tomar algumas.Caracóis azuis no pôr do sol.
E sempre há os difamadores,aquelas pessoas desprovidas decriatividade, cujo único desejo é
ver você desabar, que quaseexigem que você desabe, antes dahora, para que se sintam bem.Eles também aparecem sem serconvidados, com suas preciosasembalagens de cerveja, e medemseus sinais vitais e falam sobre oseu velório, quem fará o discurso,quem dirá o que, quem irá carregaro caixão, o que as pessoasrealmente pensarão de você. E asmulheres, ó meu Deus, asmulheres, elas vão expor você pra
valer... Ele não tinha alma, batiaem mim todas as noites, açoitavameu rabo com um chicote deespinhos, não me deixava falarcom ninguém nas festas, umhomem terrivelmente ciumento, vil,repulsivo, mesquinho, semasturbava todas as manhãs antesdo café, torturava sapos...
Os melhores difamadores nãoescrevem absolutamente nada.Você os alimenta com todo ovigor de sua escrita e eles
admiram isso, mas o fato de quevocê os inspira também faz comque eles sintam prazer diante desua decadência. Uma mortefulminante seria fácil demais. Elespreferem ver você se tornarlentamente um imbecil que salivapelo canto da boca, deixandomarcas de baba no peito e nacadeira... Seu pior momento seráo maior triunfo deles. Mas sei queestamos todos familiarizados comesses versejadores, esses vermes,
rábulas sanguessugas que extraema luz e então gritam de júbilo eprazer quando a única luz que jáviram se extingue na vida como aprópria vida ou finalmenteesmorece assim como eles...
Relendo essas páginas agora,vejo que talvez eu tenha sido umpouco presunçoso, mas perceboagora que essa peça é destinadaprincipalmente a escritores e quesomos mimados, sensíveis eexagerados, mas acho que o
exagero gera a Arte, de algummodo. Gritamos quando devíamosbocejar. Eis o xis da questão.Nada é o bastante. Queremos umnovo pacto. Nascidos paramorrer. Que porra é essa?
Bem, é difícil para todos nós.Will Rogers costumava dizer,“Nunca conheci um homem dequem não tivesse gostado”. Eudigo, nunca conheci um homem dequem tivesse gostado realmente.Will Rogers ganhou muito
dinheiro; eu vou morrer pobre.Mas como gosto de dizer: todosnós morremos pobres, se nãoarruinados.
Escrever é, por fim, a únicamaneira que tenho de viver, e seme queimarem na fogueira não meconsiderarei um santo. Apenasacreditarei que era assim quetinha que ser. É só uma questão defazer o que se quer fazer: nem umhomem em mil está fazendo o quequer fazer. Minha derrota será
meu triunfo. Não há refugo. Soutudo o que posso ser nestemomento. E agora, foda-se essepapo sobre escrever. Isso é paracharlatões. Acabei me envolvendonesse deslize só para fazer vocêse sentir bem. Esqueça. Quem vaiganhar a quarta corrida no TurfParadise quarta-feira à tarde?
Sobre a matemáticada respiração e do
estilo
Pretendia começar esse textocom um pequeno ataque ao gênerofeminino, mas como a poeirabaixou um pouco no front localserei mais ameno, mas há 50 milhomens neste país que dormem de
barriga para baixo por medo deter suas partes íntimas decepadaspor mulheres de olhos e facasafiadas. Irmãos e irmãs, eu tenho52 anos e um rastro de fêmeas nasminhas costas, o bastante parapreencher cinco vidas. Algumasdas moças alegaram que eu astroquei pela bebida; bem, eugostaria de ver qualquer homemenfiar o pau numa garrafa. Claro,você pode colocar a língua alidentro, mas a garrafa não esboça
qualquer reação. Rá, rá, que soemas trombetas, vamos voltar aoassunto.
O assunto. Estou a caminhodo prado, dia de abertura datemporada no Hollywood Park,mas deixem eu falar a vocês sobreo assunto. Para abordar o assuntode maneira correta, há de se tercoragem, encontrar a forma, vivera vida, e pegar o rumo certo.Hemingway agora recebe ataquesda crítica, feitos por gente que
nem sabe escrever. Há centenasde milhares de pessoas que achamque sabem escrever. São oscríticos, os pés no saco e os quesó sabem macaquear o que já foifeito. Apontar para um bomescritor e dizer que ele é umaporcaria ajuda a compensar seufracasso como artistas, e quantomais um sujeito melhora, mais eleé invejado e, consequentemente,odiado. Você tem de ouvi-losvaiando e avacalhando Pincay e
Shoemaker, dois dos melhoresjóqueis de todos os tempos. Temum baixinho que fica do lado defora do prado local, vendendojornais, e ele diz: “Compre seujornal, leia sobre Shoemaker, oEmbusteiro”. Este é um cara quemontou mais vencedores do quequalquer outro jóquei vivo (e eleainda monta e monta bem), e aíestá um jornaleiro vendendojornais por dez centavos edizendo que Shoe é uma fraude.
Shoe é milionário, não que issoseja importante, mas ganhoudinheiro com seu talento e poderiacomprar todos os jornais dessebaixinho todos os dias pelo restoda vida dele e pelos próximos milanos. Hemingway também é alvodo escárnio dos jornaleiros domeio literário. Eles não gostaramdo fim que ele escolheu. Eu acheiadmirável. Ele produziu suaprópria eutanásia. E produziu umpouco de literatura. Grande parte
estava muito apoiada no estilo,mas era um estilo que o tornouconhecido; um estilo que arruinoumilhares de escritores quetentaram reproduzi-lo de qualquermaneira que fosse. Quando umestilo está estabelecido ele é vistocomo uma coisa simples, mas umestilo não se desenvolve apenasatravés da técnica, desenvolve-seatravés da sensibilidade, é comodar uma pincelada em uma tela, ese você não está completamente
comprometido em vivenciá-lo, oestilo se esvai. O estilo deHemingway estava de fato seesvaziando, rumo ao fim, de formaprogressiva, mas isso porque elebaixou a guarda e deixou que aspessoas fizessem o que fizeramcom ele. Ele, que nos deu mais doque o esperado. Há um poeta desegundo escalão, um conhecidomeu, que veio à minha casa essestempos. É um homem culto, e éinteligente, e deixa as mulheres o
sustentarem para que os outrossaibam que ele é bom em algumacoisa. É um homem bastanteatraente, que está ficando umpouco balofo, parece bastanteletrado e carrega umas cadernetaspretas com ele e lê para vocêpassagens escritas ali. Esse rapazme disse, “Bukowski, possoescrever como você, mas vocênão pode escrever como eu”. Nãorespondi à altura porque eleprecisa desse tipo de
autoafirmação, mas na verdadeele apenas pensa que podeescrever como eu. Talento podeser a habilidade de dizer algoprofundo de maneira simples, oumesmo de dizer algo simples demodo ainda mais simples. Ah, porfalar nisso, se você quiser focarsuas lentes em um escritor desegunda linha, é o cara que dáuma festa ou faz alguém dar umafesta em homenagem a ele todavez que lança um livro.
Hemingway buscou nastouradas forma e sentido ecoragem e fracasso e movimento.Eu vou às lutas de boxe e corridasde cavalo pelo mesmo motivo. Háum sentimento nos pulsos eombros e têmporas. Há umamaneira de assistir e registrar quese torna a linha e a forma e a açãoe o fato e a flor, e o cãopasseando e a calcinha sujaembaixo da cama, e o som damáquina de escrever neste exato
instante, este é o melhor som, omelhor som do mundo, quandovocê está registrando tudo do seujeito, do jeito certo, e nenhumamulher bonita vale mais do queisso e nada que você possa pintarou esculpir vale mais do que isso;é a arte suprema, colocar aPalavra no papel, e a razão daimportância está toda ali, é aaposta mais elaborada jamaisfeita e poucos ganham.
Alguém me perguntou:
– Bukowski, se você fossedar um curso sobre escrita o quediria para os alunos fazerem?
Respondi:– Mandaria todos eles para o
hipódromo e os obrigaria aapostar cinco dólares em cadacorrida.
O cretino achou que eu estavabrincando. A raça humana possuigrande habilidade para a traição epara a trapaça, para modificaruma posição. O que sujeitos que
querem ser escritores precisam éser postos numa situação da qualnão poderão se esquivar commanobras covardes e vis. É porisso que grupos de pessoas emfestas são tão nojentos: toda ainveja e egoísmo e canalhice vêmà tona. Se você quiser descobrirquem são seus amigos pode fazerduas coisas: convidá-los para umafesta ou ir para a cadeia. Vocêlogo descobrirá que não temamigos. Se você acha que estou
divagando, segure seus peitos ousuas bolas ou as bolas de outrapessoa. Tudo isso é relevante.
E como suponho (não vi nadaainda) que esteja sendo exaltado ecriticado nesta edição devo dizeralgo sobre as revistasindependentes, embora talvez játenha dito isso em outro lugar? –no mínimo diante de uma fileirade garrafas de cerveja. Revistasindependentes são propagadorasinúteis de talentos inúteis. Nos
anos 20 e 30 não haviaabundância desse tipo depublicação. Uma revistaindependente era umacontecimento, não umacalamidade. Era possível ver atrajetória dos autores, iniciandonas revistas independentes eseguindo ao longo da história daliteratura; quero dizer, elescomeçavam ali e evoluíam, setornavam alguma coisa.Tornavam-se livros, romances,
coisas. Agora nas revistasindependentes as pessoascomeçam pequenas e seguempequenas. Sempre há exceções.Por exemplo, lembro de ter lidoTruman Capote pela primeira veznuma revista independentechamada Decade, e pensei, aí estáum cara com um pouco deperspicácia, estilo e uma energiaverdadeiramente original. Mas, noduro, é preciso admitir, asgrandes revistas de sucesso
publicam textos muito superioresaos das revistas independentes –especialmente em prosa. NaAmérica qualquer cretino cagaincontáveis poemas medíocres. Egrande parte deles sai nas revistasindependentes. Trá lá lá, outrapublicação. Abram a mão, vejamo que vocês estão fazendo! Eurecebo uma porção de revistasindependentes pelo correio, semme inscrever, sem pedir. Dou umafolheada nelas. A aridez e a
vastidão do nada. Acredito que omilagre do nosso tempo reside nofato de que tantas pessoasconsigam escrever tantas palavrasque não significam absolutamentenada. Experimente fazer issoqualquer hora dessas. É quaseimpossível escrever palavras quenão façam sentido algum, mas elesconseguem, e insistem nisso,contínua e impiedosamente. Editeitrês números de uma revistaindependente, Laugh Literary and
Man the Humping Guns. O materialrecebido era tão fraco que o outroeditor e eu fomos obrigados aescrever a maioria dos poemas.Ele escrevia a primeira metade deum poema, e eu terminava. Aí eufazia a primeira metade de outro eele terminava. Então pensávamosnos nomes: ‘Vejamos, comovamos chamar esse chupador depica?’.
E com o advento domimeógrafo todos passaram a ser
editores, todos com grandeoriginalidade, pouquíssimo gastoe nenhum resultado evidente. AOle foi uma prematura exceção eposso conceder mais uma ou duasexceções se você me munir defatos. Quanto às revistas commelhor qualidade de impressão(não mimeografadas) é precisodestacar a The Wormwood Review(cinquenta edições publicadas)como o trabalho mais notável donosso tempo nessa área. Sóbria e
sem choramingos ou desvarios oureclamações ou desânimo ouinterrupções, e sem escrevercartas pretensiosas e arrogantes(como faz a maioria) sobre serpreso por andar bêbado debicicleta em Pacific Palisades ousobre comer o cu de um doseditores da National Endowmentfor the Arts num quarto de hotelem Portland, Malonesimplesmente seguiu firme em suacompilação, com um talento
preciso e vivaz, edição apósedição. Malone deixa suasedições falarem por si mesmas epermanece invisível. Ele não virábater à sua porta numa noitequalquer com uma garrafa enormede vinho do porto barato dizendo,‘Olá, sou Marvin Malone,publiquei seu poema Catshit in aBird’s Nest no meu último número.Acho que vou fazer a festa. Temalguma coisa por aqui que eupossa foder?’.
Um vasto clube dos coraçõessolitários de medíocresincansáveis, isso é o que asrevistas independentes setornaram, com editores aindapiores do que os escritores. Sevocê é um escritor seriamenteinteressado em criar arte em vezde tolices, haverá, em qualquerépoca, poucas revistasindependentes às quais você podeescrever, cujo trabalho de ediçãoé profissional, e não pessoal.
Ainda não li a revista em quesairá este texto, mas sugiro, juntoc o m Wormwood, alguns terrenosdecentes: The New York Quarterly ,Event, Second Aeon, Joe Dimaggio,Second Coming, The Little Magazinee Hearse.
– Você nasceu para serescritor – ela diz. – Se dedicasseà escrita toda a energia quededica às corridas de cavalo vocêseria ótimo.
Penso em algo que Wallace
Stevens disse certa vez: “Sucessocomo consequência do esforço éum ideal de trabalhadores daroça”. Ou se não foi bem isso, foialgo muito parecido. A escritachega quando quer. Não há nadaque você possa fazer em relação aisso. Você não pode tirar maisescrita de um mortal do que eletem para dar. Qualquer tentativanesse sentido deixa a alma empânico, torna o verso difuso edissonante. Há relatos que dizem
que Hemingway acordava cedotodas as manhãs e perto do meio-dia já tinha o trabalho concluído,mas embora eu não o tenhaconhecido pessoalmente acho queHemingway era um alcoólatra quequeria se livrar logo do trabalhopara poder encher a cara.
O que tenho visto acontecernas revistas independentes com osmais novos e vigorosos talentos éuma primeira apariçãointeressante. Penso, ah, aqui está
finalmente um escritor deverdade. Talvez tenhamos algo debom agora. Mas o mesmomecanismo se repete todas asvezes. O novo e vigoroso talento,tendo estourado, começa aaparecer em todo lugar. Eledorme e acorda com a malditamáquina de escrever a todo ovapor. Seu nome está em todos osmimeógrafos do Maine ao Méxicoe seu trabalho vai enfraquecendoe enfraquecendo e enfraquecendo
e continua sendo publicado.Alguém lança um livro dele (oudela) e promove leituras nauniversidade local. Eles leem seisou sete bons poemas do início dacarreira e depois todos os outrosruins. Então temos uma outrarevista independente qualquer.Mas o que aconteceu foi que emvez de se esforçarem para criarum poema eles se esforçam paraconseguir tantas aparições emrevistas independentes quantas
forem possíveis. Torna-se umacorrida por exposição em vez decriação. Essa difusão do talentonormalmente ocorre entreescritores na casa dos vinte anos,que não têm experiência osuficiente, que não têm estofo.Não há como escrever sem vivera vida e escrever o tempo todonão é viver. Assim como bebernão faz um escritor e brigartampouco – e embora eu muitotenha feito essas duas coisas – não
passa de falácia e de romantismogasto supor que essas ações farãode qualquer pessoa um escritormelhor. É claro, há épocas em quevocê tem que brigar e épocas emque tem que beber, mas essesmomentos são realmenteanticriativos e não há nada quevocê possa fazer quanto a eles.
Escrever, enfim, pode atévirar um trabalho, especialmentese você está tentando pagar oaluguel e a pensão alimentícia
com esta atividade. Mas é omelhor trabalho e o único trabalhopossível, e é um trabalho quepotencializa seu talento para vivere seu talento para viver retribuipotencializando seu talento paracriar. Um alimenta o outro, é tudomuito mágico. Pedi demissão deum emprego tremendamentetedioso aos cinquenta anos (me foidito que eu teria segurança peloresto da vida, ah!) e me sentei emfrente a uma máquina de escrever.
Não há melhor maneira. Hámomentos de completo terror emque você acha que vaienlouquecer; há momentos, dias,semanas sem uma palavra, sem umsom, como se tudo tivessedesaparecido. E então tudo vem evocê fuma, e bate e bate nasteclas, que rugem sem parar. Vocêpode levantar ao meio-dia, podetrabalhar até às três da manhã.Algumas pessoas vão lhe encher osaco. Não vão entender o que
você está tentando fazer. Vãobater na sua porta e sentar numacadeira e consumir seu tempo semlhe acrescentar nada. Quandomuitas pessoas nulas aparecem eseguem aparecendo você tem queser cruel com elas, pois elas estãosendo cruéis com você. Você temque botá-las para correr. Algumaspessoas que são interessantes porsi só trazem energia e luzpróprias, mas a maioria não temserventia alguma, nem para você,
nem para elas mesmas. Tolerar osembotados não é sinal dehumanidade, apenas aumenta seupróprio embotamento e elessempre deixam um pouco dessepeso com você quando vãoembora.
E então, é claro, há asmulheres. As mulheres preferem irpara a cama com um poeta do quecom qualquer outro ser, mesmoum pastor alemão, embora eutenha conhecido uma senhora que
declarava com grande satisfaçãoque havia trepado com opresidente Kennedy. Eu não tinhacomo saber. Então, se você é umbom poeta, sugiro que aprenda aser também um bom amante, poisse trata de um ato criativo em simesmo, ser um bom amante, entãoaprenda. Aprenda como fazer acoisa direito, porque se você forum bom poeta terá muitasoportunidades, e ainda que nãoseja o mesmo que ser uma estrela
de rock as mulheres virão comoconsequência, então trate de nãodesperdiçá-las como os roqueirosas desperdiçam com suasperformances mecânicas emedíocres. Faça as mulheresperceberem que você estárealmente ali. Assim, é claro, elascontinuarão comprando seuslivros.
E basta de conselhos por ora.Ah, sim, ganhei 180 dólares noprimeiro dia da temporada, perdi
oitenta ontem, então hoje é o diaque fará a diferença. São dez paraas onze. O primeiro páreo será àsduas da tarde. Tenho que começara fazer minha seleção de cavalos.Tinha um cara lá ontem com umamáquina cardíaca ligada a ele eestava sentado numa cadeira derodas. Estava fazendo apostas. Secolocarem o cara num asilo elemorre em uma noite. Vi um outrocara, cego. Deve ter tido um diamelhor do que o meu ontem.
Tenho que ligar pro Quagliano econtar a ele que terminei estetexto. Aí está um verdadeiro filhoda puta. Não sei como conseguetocar as coisas e ele não quer medizer. Eu o vejo nas lutas de boxecom uma cerveja na mão, umaaparência bastante tranquila. Ficome perguntando qual é o esquemadele. Ele me deixou encucado...
Notas de um velhosafado
28 de dezembro de 1973
1.
– Você me liga amanhã? – elaperguntou.
– Claro – ele disse, e então
desligou.Ela dissera que eles tinham
um instrumento novo no clube quepermitia que uma mulher olhassedentro da sua vagina. As mulheresficaram séculos sem saber comoeram suas vaginas. Um homempodia simplesmente olhar para oseu troço, estava todo para foraali na frente. Se as mulherespudessem se relacionar com suasvaginas, grande parte da doideiramental acabaria. Ela era mesmo
uma mulher muito inteligente.Enquanto ela se relacionava comsua vagina, ele tirava a roupa e iapara a cama sozinho.
2.
Acabei de comer polvo commanteiga derretida, mas olhandono espelho meus olhos ainda estãotão loucos e dementes quanto achuva de agosto. Talvez não sedevesse comer polvo com
manteiga, não enquanto se escutaRachmaninoff. Talvez exista ummolho especial. Como cidadãoamericano eu deveria mecontentar com hambúrgueres erock. Pensar é mais perigoso doque foder, e bons cidadãosamericanos pensam muito pouco.
Talvez a manteiga estivesserançosa. Os bracinhos tinhamgosto de cordas de esfregão. E euseguia apaixonado pela Zsa ZsaGabor.
3.
Estamos juntos na cama.– Preciso mijar – ela diz.– Tudo bem – eu digo, e a
solto.Ela senta em frente à máquina
de costura. ZRRRRR! ZRRRRR!ZRRRRR!
– Puta que pariu!Ela larga a tesoura. ZRRRR!
ZRRRR! Eu a ouço cortando otecido com a tesoura. É quinta-feira à noite, faz frio lá fora, é
dezembro. Bom, deveria fazerfrio. ZRRRRR! ZRRRR!ZRRRRRRRR! Ela estátrabalhando há vinte minutos. Estáusando um suéter laranja e calçasverdes. Eu a conheço há três anos.Vivemos juntos a maior parte dotempo. ZRRR! ZRRRRR!ZRRRRR! Ela tem vários pedaçosde pano, azul com floresamarelas, verde com floresvermelhas. Parece estar fazendoblusinhas. Kissinger está na Síria,
falando docemente com uma dasmãos, ameaçando com a outra. Ocachorro está dormindo sobre umcasaco vermelho no chão. Fazmeia hora que ela estátrabalhando. ZRRR! ZRRRRR!ZRRRRR! Quando é que ela vaimijar?
4.
Cretinos nesse bar alemão naGlendale Boulevard, sexta à noite,
esses alemães vagabundos, elesnão poderiam ser nem o mijoembaixo da bota de um nazistamorto. Germano-Americanos deGlendale e Burbank encenando aversão do filme... com vozesgrossas e roucas, esses atendentesde armazém, esses vendedores dearaque de uma rede qualquer delojas de varejo.
Minha garota pede umsanduíche de dois dólares e dezcentavos e a cerveja preta custa
cinquenta centavos a caneca. Eu,eu ganho menos de três mil porano – o que não é ruimconsiderando que acordo aomeio-dia.
Esse bar, essas caras alemãsamareladas de uma sexta à noitede gente aborrecida, o jukeboxtocando como no refeitório de umcolégio. Os homens incomodam asgarçonetes, mas não há mais nadapara os homens fazerem. Vêmsentar nesse lugar sem mulheres.
Eu já fui assim, mas nuncaimplorei desse jeito, nem nuncavou implorar. Pago a conta: setedólares e dez centavos. Deixo umdólar de gorjeta como se fosse umcidadão respeitável e chegamosaté o estacionamento. Resistênciaàs vezes é mais importante do quea verdade.
5.
A ideia de que o sofrimento
só pertence aos nobres e aostalentosos e aos inteligentes, aossensíveis e aos ousados e aoscriativos – não há merda maior doque essa. Eles invadiram os baresontem, com uma ordem daSuprema Corte nos bolsos;ancorados na mais alta corte naterra eles varriam as garotas decima das mesas como moscas,como guardanapos usados, todasaquelas pobrezinhas gritando, ospeitos imensos balançando em
pânico, os traseiros enormes evoluptuosos retorcidos desurpresa, eles as varriamseminuas para dentro de carros evans para serem fichadas,fotografadas e presas. Quedesperdício. Que desperdício debelezas nota dez. Falando deindecência – os policiais eram acoisa mais indecente daquelanoite. Uma pobre moça não podemais ganhar seu dinheirohonestamente. Tudo o que estavam
fazendo era dar uma noiteexcitante àqueles homenssolitários. Só posso crer que oscaras na Suprema Corte nãoconseguem mais levantar aspirocas.
6.
Criei a imagem de eternobêbado em algum lugar na minhaobra e há pouca realidade por trásdisso. Mesmo assim, sinto que
meu trabalho disse outras coisas.Mas o único tema que parecesobreviver é o do eterno bêbado.Recebo telefonemas, geralmentepor volta das três e meia damadrugada:
– Bukowski?– A-hã.– Charles Bukowski?– A-hã.– Cara, eu só queria falar
contigo!– Você está bêbado, amigo.
– E coelhos também cagam. Edaí?
– Escuta, não sei quem vocêé, mas você não sai ligando paraas pessoas às três da manhãbêbado, especialmente paraestranhos. Isso não se faz.
– Sério?– Sério.– Nem para o Bukowski?– Não, principalmente para o
Bukowski – e desliguei.Esses garotos acham que têm
uma alma gêmea só porque ficobêbado e ligo para pessoas às trêsda manhã. Eles têm de ser maisoriginais do que eu. Lembro queuma vez fiquei tão fodido eespantei tantas mulheres queliguei para a moça das horas efiquei ouvindo a voz dela porcinco ou dez minutos: “Agora sãotrês horas, trinta minutos e vintesegundos, agora são três horas,trinta minutos e trinta segundos...”E você sabe que voz ela tem. Da
próxima vez que pensar em meligar, ligue para a moça das horase, se possível, não me encha osaco.
7.
Um dia desses um amigo quetinha acabado de sair da prisãodepois de cumprir dezenove anosveio me visitar e me disse que amaioria dos caras estava lá pordelitos sexuais e não por desvios
de dinheiro e golpes contra arepública. Ele dizia ser umescritor. Ao menos escreveubastante enquanto esteve naprisão. Me escreveu através domeu editor e recebi as cartas daprisão. E as respondi e ele erauma criatura lisonjeira, ficava mefalando que as minhas histórias desacanagem ficavam passando decela em cela e que os garotosestavam adorando – menos umcara que achava que eu não fazia
ideia de como usar a línguainglesa adequadamente – e eurespondi: diga àquele cara que eleestá certo e que essa é a melhorcoisa em meus textos. Outrospresos começaram a me escrever,e eu descobri mais duas coisas:havia muitos homens na cadeia e amaioria deles eram escritores.Meu amigo, o presidiário, disseque também tinha cartas deWilliam Saroyan (outro grandecara) e que minhas cartas e meus
livros ainda estavam rodandofreneticamente, inclusive minhascolunas em jornais underground,santo Deus, eu era demais.
Ele veio com sua velha e comoutro preso que tinha acabado desair, que também trouxe sua velha.Ele trabalhava como carpinteiropor 15 dólares e 75 a hora, e elestinham vindo do norte para ir àDisney e me ver. Tinham quatrolatas de cerveja quente e eledisse:
– Deus do céu, você realmenteé tão feio quanto nas fotos.
Eu sabia disso, mas não sabiaque um bom homem podia manteruma ereção por uma hora e meia etrepar com uma mulher três vezespor dia. Ele nunca mencionounada sobre a língua. Mesmoassim, alegou que a maioria doscrimes eram sexuais, ele tinhacartas do William Saroyan eficava se inclinando sobre alareira e abrindo e fechando o
zíper enquanto olhava para aminha namorada. Ele parecia umaautoridade no assunto.
8.
Certa noite, vi Katherine H.e m Glass M. Será que algum diaseremos capazes de nos darmosconta de que este tipo de atriz é ode péssimas atrizes e de que estetipo de peça é o de péssimaspeças? Esnobismo e preciosismo,
tanto na atuação como na escrita,são as únicas coisas que osmantiveram longe – as duas coisasque os mantiveram longe dasmassas. O diabo sabe que nãotenho nenhum amor pelas massas,tendo vivido tanto tempo entreelas, seguramente, sob as piorescondições. Seja como for, podemser mais pobres de alma e dedisposição, mas não são piores etalvez sejam até menos medíocrese mais gentis e mais reais do que
Katherine H. e T. Williams e doque Glass M.
É uma moeda de duas caras –ou duas coroas, mas estando elesligados um ao outro, nãoconseguem ficar longe um dooutro. As massas não gostam deK. H. pela razão certa: ela é umamá atriz, uma falsificação barataque se afastou por meio damutilação e do exagero de tudo oque é real. Mas como seus narizesestão enfiados todos os dias na
merda e eles estão muitocansados, não têm alternativasenão considerá-la a grande damada alma e do alheamento, e já queos críticos têm medo dos pomponse das guirlandas intelectuais e dassombras fantasmagóricas (sem aslâminas de barbear de JoeNamath), de G. K. Chesterton eGeorge Bernard Shaw e do velhoTolstói e de Gogol e Shakespearee Proust, têm medo de avançarcontra o repulsivo e o óbvio,
porque se admitirem que isso nãopassava de lixo, então a fraude e aincompetência teriam seu fim eeles, também, teriam deacompanhar as massas aosparques de diversões nas tardesde domingo, ou teriam de sepreocupar com o Super Bowl oucom a privada ou com o suorfedorento sob suas axilas.
Levarei séculos para tirar asHepburns e os críticos docaminho, e isso é que é o mais
triste, é mais do que triste: asnossas vidas mal chegam a umséculo, e o que nos mata não sãoos Hitlers e os Nixons, mas osintelectuais, os poetas, osacadêmicos, os filósofos, osprofessores, os liberais, todos osnossos amigos – ou, melhor, seusamigos.
Sempre gostei mais dasconversas dos caras da prisão doque das dos caras dauniversidade; acho que os caras
das ferrovias têm bem maiscolhões e luz e bem menos tédiodo que aqueles que ganham400.000 dólares por semana parauma temporada de um mês emVegas. Por que isso? Não sei.Acho que nem Deus poderesponder. Só sei que fomosenganados por séculos, e isso vailonge, até Cristo cheira mal,Platão cheira mal, e não estoufalando de seus sovacos.
Acho que tudo que podemos
Notas de um velhosafado
28 de fevereiro/1o março de 1974
Por volta desta hora, todas asnoites, o homenzinho ali de baixochega em casa do trabalho eassobia alegremente. Ele não
pode entrar no apartamento eassobiar, tem de ficar lá fora nopátio e assobiar e aí todos ospassarinhos cantam. Se tem umacoisa que não suporto é afelicidade de um idiota, umafelicidade infundada.
Esta quadra inteira é cheia deidiotas. Não posso sair do meuapartamento sem sercumprimentado por um deles.Porque esta manhã eu queria botaro meu carro aqui para dentro e o
zelador estava lá.– Estou lavando o meu carro
– ele me disse, e é claro que eleestava lavando o carro. – Usoágua quente – ele continuou –, tiramelhor a sujeira.
Ele tem uma caragenuinamente inglesa e umsotaque genuinamente inglês. E sevocê quiser saber o que é umacara genuinamente inglesa, venhaver o zelador.
E o síndico e sua esposa
estão sempre zanzando por aquiesfregando e varrendo, limpando,arrumando, enfeitando. Nuncaficam bêbados, nunca vão a umacorrida, nunca gritam um com ooutro. Ele até entra noapartamento, mas ela está semprena rua perambulando, espiando,sondando.
– Está um dia lindo – ela mediz o tempo todo.
Ou então:– Bem, acho que o sol não
vai sair hoje!– Não – eu digo –, acho que
não vai.Tive uma semana de merda.
Passei a maior parte do tempo nosestacionamentos do Safeways &Von’s esperando as mulheressaírem dos carros para que eupudesse ver suas pernas. Foi umasemana muito ruim. Mais e maismulheres estão usando calças.Sabe como é, fico sentado lendo omeu jornal e vejo uma mulher
entrando com o carro. Fico naposição perfeita, ao lado da portapela qual ela vai sair, minha visãoé ilimitada. Vejo que é bastantejovem e frustrada, desatenta,pensando em alguma coisa – nopreço do bacon, ou se devecomprar tangerinas. Imagino queverei uma perna, a saia se erguerquando ela sair do carro, a visãode um joelho, de nylon, de umaroupa íntima, de um flanco. Euespero. A porta se abre e ela sai,
está de calças. Foi assim asemana inteira. As mulherespararam de usar vestidos.
Volto para casa e não consigoescrever. Os poemas pararam, oscontos pararam. Aposto noscavalos e perco. Vou de umaponta do tapete até a outra. O carado apartamento de baixo tocaacordeom. Tem uma carta nacaixa de correio.
“...Estive remoendo ossonhos da noite passada. É claro
que você já imaginou tudo e antesque o seu impulso de escreverpasse para sempre eu vou contar.Nós éramos três, você, eu e minhairmã. Você disse que ia se deitarcom ela – ela estava usando umchapéu vermelho sobre o cabelo,cor de carvão. ‘Não’, eu disse,você me olhou e pegou a mãodela. Ela estava quieta e altiva.Diabos, eu disse que iria olhá-los... Ninguém se opôs, então meempoleirei ao lado da cama para
olhar. Não houve envolvimentocarnal (i.e. vocês não treparam),mas um longo e lindo beijopossessivo. Virei minha cabeça.A cena muda. Agora estamos ostrês no meu quarto e eu estoudeitada numa cama estreita, muitoestreita – só tem espaço para umapessoa – você acabou de chegardo alfaiate e está usando um ternonovo que não está muito bem-acabado, pois há vários alfinetesnas bainhas. Você também está
usando um chapéu irlandês, quearremessa orgulhosamente aochão. Sinto-me como umapaciente pronta para a cirurgia – airmã fica lá enrolada numa toalhamostrando as coxas cheias deveias azuis.
“Logo vocês dois vão para acama de casal dela, com umacolcha de penas de ganso, cujorevestimento exterior é de seda,mas nesse meio-tempo você seinclina – você é três vezes maior
do que a vida, um Laird Cregar...se você se lembra dele – edespeja um beijo bem na minhaboca e coloca algumas moedas naminha mão – ‘Suma daqui comesses centavos’, eu digo, meucoração a se partir pelo que virá –‘Ah, minha adoração!’ (não possoevitar isso, estou lendoDonleavy), você diz, ‘Isso nãosão centavos, os cavalos têm sidobons, olhe de novo’, e de fato asmoedas têm sinais dizendo que
são de dez e vinte dólares. Tinhamais coisa, mas é confuso.”
Jogo a carta fora, mijo,retorno e me espalho no sofáverde. Minha garota era dançarinaprofissional, minha namorada nãoé essa da carta. Agora minhanamorada não dança mais, ela éatendente em um bar ali naAlvarado Street e vai conheceralcoólatras glamorosos e eu vouacabar ficando sozinho outra vez.Olho para o teto. Supostamente
sou um escritor. Não consigo maisescrever. Era isso que elesestavam esperando. Bukowski, ogaroto durão, chega à inaptidão eà derrota e ao desespero. Nãoreceberei mais cartas odiosaspelo correio.
Bem. Os homens mudam e amudança nem sempre funciona.Tolstói foi ao encontro de Deusno fim da vida e ficou monótono.Górki, depois da revolução, nãotinha nada sobre o que escrever.
Dos Passos virou um capitalistacom cara de barbeiro e morreunas colinas aqui em cima. Célineficou doente e esqueceu como seri. Shostakovich nunca mudou,escreveu sua quinta sinfonia edepois a escreveu de novo e denovo em todas as sinfoniasseguintes. Mailer tornou-se umjornalista inteligente, assim comoCapote. Pound ficou cada vezmais obscuro e beberrão. Spenderdesistiu, Auden desistiu, Olson
apelou para a multidão. Creeleyficou raivoso e tenso. AbrahamLincoln odiava os negros eFaulkner usava espartilho.Ginsberg se exauriucompletamente e foi superado. E ovelho Henry Miller já se foi hátempos, fodendo lindas japonesasno chuveiro.
E eu me levanto porque aágua está fervendo e sirvo umaxícara de café. (Minha namoradatem uma casa grande e eu fico
aqui grande parte do tempo.Assisto tevê com o filho dela dedoze anos. Ele vê bem mais tevêdo que eu, mas aguento bem.
– Quantos comerciais vocêviu hoje, garoto? Uns cem?
– Ah – ele responde –, maisdo que isso.
Ele vê filme atrás de filme.– Agora – digo – o irmão vai
sair e entrar com uma faca.O irmão entra com a faca.– Agora o cofre vai estar
vazio – diz ele.O cofre está vazio. Depois
que você viu um filme, viu todos.É sempre a mesma coisa. Minhanamorada fica na outra salaescrevendo dúzias de poemasnovos.)
Bebo o café, depois tomobanho.
– Um dia vou falar sobrevocê para eles – diz minhanamorada. – Vou contar que vocêtem medo do escuro, que você
toma cinco banhos por dia, masnão usa sabonete, que você temuma faca presa na porta.
Creio que ninguém vá seinteressar.
Eu me seco e visto umaroupa. Acabou o papel higiênico.Tenho que voltar para o Von’s.Desço a escada. Tem alguémvarrendo.
É ela, a síndica, limpando.Ela está de branco, está sempre debranco.
– Está esfriando cedo danoite agora, não é? – ela mepergunta.
– É sim – respondo.Posso ir a pé até o Von’s. É
só ir até a Oxford e pegar aesquerda na Western. Estoumorando num flat agora, um tipoespecial de flat. Eles passamaspirador nos tapetes todos osdias e nunca vão dormir sem lavaros pratos. Desodorizam o ar eouvem três noticiários por noite.
Nenhum deles tem filhos oucachorros ou insônia e quandobebem eles bebem muitodiscretamente e jogam as garrafasfora furtivamente. Às dez da noitetudo fica absolutamentesilencioso. Passo por umapartamento térreo com umagrande janela de vidro de frentepara a rua. Chamo-o deapartamento das irmãs Dolly. Asirmãs Dolly ficam sentadas nafrente da janela o dia inteiro,
conversando e tomando chá ecomendo biscoitinhos. Usammuito blush, suas caras sãoestúpidas e duras e seus cabelosgrisalhos são pintados devermelho e elas usam unhaspostiças de dez centímetros;pintam os lábios com batomvermelhíssimo. Elas me olhamquando eu passo e lhes acenocomo um cavalheiro caipira. Elasacham que sou um apresentadorde circo aposentado. Não fazem
nem ideia de que sou um outrorarenomado escritor que perdeu amão. As três irmãs me veem euma delas abre um largo sorrisopara mim, parece o beijo da mortede um leproso. Quando o sol sepõe, uma grande cortina roxa éestendida ao longo do vidro. Asirmãs Dolly têm medo de serestupradas.
O Von’s está bem vazio, ostrabalhadores ainda não saíramdos seus empregos. Pego um
carrinho, resolvo pegar algumasoutras coisas, já que preciso depapel higiênico. Passo ao outrocorredor e lá está ela: salto alto,saia curta, blusa branca, o cabelopreso bem alto na cabeça. A saianão é apenas curta e justa, mastambém tem uma fenda em cadaum dos lados, até em cima. Ameia-calça é decorada com umaparte de cima falsa, de tom maisescuro, como se fosse uma meia-calça à moda antiga, que nem
aquelas que as mulheres usavamquando eram mulheres. Mas é sóuma meia-calça comum. A partemais escura pode ser vista no topoda fenda da saia. Ela tem 38, umrosto bastante comum e feio, doisbrincos de pérola penduradas emlongas e grossas argolas,bochechas magras e flácidas, bocapequena e achatada e muda, masela é alta e seu corpo se move eas fendas mostram tudo e ela securva e pega uma lata e por um
momento eu vejo a ponta de suacalcinha. Ela se endireita. Sabeque eu estou olhando para ela,mas não dá nenhuma mostra disso.Eu a sigo, tentando não ser óbvio.Sua saia é branca com listrasrosa. As cores entram no meucérebro. Por que ela usa uma saiacom fendas, me pergunto. Não seiresponder. Na seção de carnes,fico ao seu lado. Ela está pertodas costeletas de cordeiro,olhando os pedaços.
– Com licença – digo.– Sim – ela diz.– Você não é a secretária de
Henry Miller?– Henry Miller?– Sim, o escritor.– Não, não sou secretária
dele.Ela se vira e volta a olhar
para as costeletas de cordeiro. Écomo se minha mão não meobedecesse. Sinto-a se movendoem direção à nádega mais
próxima de mim e não consigodetê-la. A mão toca suavemente anádega sob a saia de listras rosa eos dedos a beliscam gentilmente eentão a soltam. Empurro ocarrinho. Alguns metros adiante,paro e olho para trás. Ela aindaestá perto das costeletas decarneiro, mas sua face adquiriuum tom de vermelho ardente. Nãovolto a olhar. Corro até o caixa epago. Tenho meu papel higiênicoe uma lata de carne moída
salgada. A fila não era longa.Logo estou do lado de fora ecompro um LA Times. Precisoconferir os resultados dascorridas. Viro para leste emdireção à Oxford e volto paracasa. As irmãs Dolly estão nopleno ato de fechar a cortina roxa.Está anoitecendo. Consigo voltarpara o meu apartamento sem falarcom ninguém. Penduro o papelhigiênico e me esparramo no meusofá verde. Não há nada a não ser
o teto lá em cima. A vida de umescritor é insuportável.
Uma vez eu estava numafesta, ela me disse, e me foderam.E eu estava dormindo e chegou umcara com a namorada e ele tinhauma garrafa de óleo de tartaruga.Eles me levantaram do chão e mebotaram na cama, de barriga parabaixo, e ela segurava o óleo detartaruga e ele a pica, e elesestavam me botando na cama, e eufazia uuur, sabe... Eu estava
dormindo.E ela puxou uma perna para
um lado e ele puxou a outra para ooutro, e então ele pega esse óleode tartaruga e espalha pela minhaboceta. E isso me acorda umpouco, e eu digo aaaan, tôcansada, tô com sono... e ele nãome ouve, então bota o pau em mime começa a me foder, masbrocha... porque não comeuninguém a noite inteira. Ele foi aprimeira pessoa a tirar a roupa,
mas tudo o que faz é ficar bêbadoe brigar. E então ele vai paraessas orgias, fica bêbado earranja brigas com todo mundo,não come ninguém e aí resolveque vai me foder porque eu tôdormindo.
Então ele passa esse óleo detartaruga na minha boceta ecomeça a me comer e diz pranamorada “me dá mais óleo detartaruga” e ela diz “querido, vocêtem o suficiente”. E ele diz “não,
me dá mais,” e ele põe mais ecomeça a me foder de novo. Eentão brocha de novo e diz “me dámais óleo de tartaruga” e ela diz“querido, você tem o suficiente”,e ele pega dela e põe mais e fodemais e continua brochando e elescontinuam fazendo isso.
Finalmente, ele acaba indoembora com o pau mole. E vocênão pode dizer mais nada... a essahora eu acordei e você não sabe oque dizer sobre o óleo de
tartaruga... ele fica deslizando,sabe. E eu só digo ah ah ah e elefaz ummm ummm ummmm e elafica dizendo “querido, já basta deóleo de tartaruga”, e então...finalmente... Brad estava nochão... Brad é meu namorado... eela vai até o Brad e sacode ele ediz “Brad, Brad, está na hora deir...” porque nós tínhamos vindocom eles e Brad diz “aan, sim, tá,tá...” e então volta a dormir e essecara faz ah ah ah e eu digo oh e
ele diz “me dá mais óleo detartaruga”, e ela diz “querido,você já tem o suficiente” e saipela porta, fecha e então ele pegauma garrafa inteira de óleo detartaruga e espalha em cima demim.
Ela devia ir foder alguém,mas também não fode maisninguém. Ela só fica zanzandopela festa pelada e instiga essasbrigas que ele arranja. Então elesentram numa briga e ela briga com
ele e ele briga com outraspessoas. Então finalmente nósestamos banhados em óleo detartaruga e eu acordo e esse caracai no sono em cima de mim e elepesa uns noventa quilos. Esse talóleo de tartaruga custava 25contos a garrafa e ele dormindoem cima de mim. E o pau dele ficamole de novo e começa aaparecer do meio da minha bundaporque ele meio que tá ficandopequeno e tá mole, sabe, e é
horrível porque esse negócio táescorrendo por tudo, e ele botouaté no meu cabelo e ele ficaroncando na minha orelha... elefaz SHIIIIIIU... e o Brad está nochão, e está roncando, só que ooutro está roncando mais alto.
Então finalmente ela voltapara o quarto e diz “Brad, levanta,a gente está indo” e o Brad diz“Ah, tá”, e finalmente levanta eacha tudo menos suas meias,alguém roubou as meias, e
finalmente ele tira esse cara decima de mim e a gente se veste eentra no carro e eles entram nafrente e a gente entra atrás e decara o Brad dorme no meu colo eo sol está nascendo e a gente temque voltar lá para casa em OrangeCounty e esses dois... começam abrigar... e logo, logo eu começo arir, e ela dorme e durante aviagem inteira esse cara falasobre ser um golpista em FortLauderdale, Flórida, e eu já fui a
três festas dessas e esse caranunca teve uma ereção. Fiz umboquete nele uma vez. Chupei opau dele por vinte minutos e essecara não ficou de pau duro atégozar. Quando fica duro, elesimplesmente goza. E goza tãopouco que engoli sem nenhumproblema. Foi muito fácil, nemescorreu pelos cantos da minhaboca, não saiu pelo meu nariz,nem me fez lacrimejar.
Esse cara é um perdedor... rá,
rá... ele tem um pau pequeno, rá rárá rá rá rá... e essa é uma históriaverdadeira, e agora ele estádeixando a barba crescer e entrano banco em que eu trabalho e nãofala mais comigo... Por que não?Você acha que eles estão braboscom a gente? Rá rá rá rá rá... paupequeno.
Notas de um velhosafado
22 de março de 1974
Você gosta mesmo de merda,não é? Percebi isso com o tempo,que você gosta mesmo da palavra“merda” e de cagar...
Não, não, não. Eu não gostoda palavra “merda”, ela meio queme irrita. Não gosto de gente quediz “MERDA!”, raramente usoessa palavra.
Não, o que estou dizendo éque a simples ação de cagar é dealguma forma agradável paravocê.
Só para mim?Bom, não sei. Você parece
gostar bem mais do que a maioriadas pessoas, elas não se referem a
isso tanto quanto você.Elas não admitem tanto
quanto eu.Não admitem?Quer dizer, você me encontra
e diz “Me dá um jornal”, isso épara você poder aproveitar.Quero dizer que você está lendoalguma coisa e sai um pedaço demerda e você está lendo...
Mas não chego nem perto deprestar tanta atenção na merdacaindo quanto você. Para mim, ela
simplesmente sai.Você quer dizer que não olha
e a admira depois?Não.Mas é uma sensação de perda
enorme. Você vai dar a descarganaquela merda e nunca mais vaivê-la. Você nunca mais vai ver amesma merda.
Não tenho essa sensação deperda quando dou a descarga...Penso, ai, isso fede...
Tento memorizar cada tipo de
merda que já fiz. Porque cadaformato é diferente, é como umquadro. A merda nunca sai domesmo jeito. Quantas vezes umapessoa normal caga durante avida? Incontáveis vezes, semdúvida. Mas cada uma éinfinitamente diferente das outrasque você já viu. Cada merda édiferente, os tamanhos sãodiferentes, o número de pedaços,a sensação que dá, os lugares emque você caga, a temperatura, o
tempo, a pessoa com quem vocêestá ou não morando, se estádesempregado ou não, existemtantas variáveis envolvidas. Eainda tem uma coisa a mais: vocêpega o papel higiênico e ele podeser de várias cores, pode serverde, pode ser azul, pode seramarelo, roxo e assim por diante.E aí você pode pegá-lo e limpar ocu e você olha para o papel epensa, ah, ainda estou sujo. Tenhoque me limpar mais, alguém pode
sentir o cheiro de merda. Eenquanto você limpa o cu, vocêpensa talvez alguém não se limpetão bem quanto eu. Ou talvez eunão limpe o meu cu o suficiente.Olha, vou deixar você falar maisum pouco, mas não curto muitoesse lance de merda. Para, para,para... eu estava indo passear pelosupermercado, sabe, comocostumo fazer, e entrei nocorredor do papel higiênico etinha uma velha lá, de uns 92
anos, e ela está procurando opapel higiênico com o melhorpreço.
Mas todo mundo faz isso.Mas, quando você tem 92
anos, você pode morrer amanhãde manhã então por queeconomizar três centavos? Querdizer, é maravilhoso poder cagaraos 92 anos, então por que nãocomprar o mais caro ecomemorar? Gaste os trêscentavos. OK, eu estou viajando.
Viu? Você viaja nessahistória da merda. Eu disse quevocê adorava merda. Você estádefinitivamente apaixonado pelamerda. Percebi isso. O que vocêacha do que os psicólogos dizemsobre quem curte merda... vocêsabe, quando você é uma criançae seus pais ficam exigindo coisasde você, a merda era a coisa naqual você podia se apoiar, a únicacoisa que era sua.
Eu não sei se alguém poderia
se apoiar na merda.E não importa o que eles
fizessem, você podia ir lá e essenaco de merda pertencia a você eera uma coisa definitiva elindamente sua.
Bom, deixa eu te dizer umacoisa, os psiquiatras e psicólogosnunca tiveram pais como os meus.Porque quando eu cago, penso,essa merda pertence à minha mãee ao meu pai porque eles medisseram o quanto se sacrificaram
para me alimentar, o quanto elesse sacrificaram para me darroupas e o quão doloroso foi paraeles me criar, então quando vejo aminha merda, vejo que essa é amerda deles, não a minha.
Dá para a gente sair damerda?
Tudo bem, é difícil, mas agente vai sair da merda, só que eupreciso dizer que li uma coisainteressante. Você sabe que acidade de Nova York tem
despejado merda no oceano portanto tempo e eu li nesse artigoque essa merda formou uma bola eessa bola foi aos poucos seaproximando de Nova York a unsoito quilômetros por hora e osentendidos não tinham ideia decomo fazer ela parar... Eles nãopodiam falar com ela, não podiambombardeá-la, não podiampulverizá-la, rezar não ajudou.Nesse exato momento tem umabola de merda gigante se
aproximando de Nova York e nãohá nada que se possa fazer sobreisso. Quando li esse artigo nãofiquei exatamente triste, porque sealguma cidade merece se afogarem uma montanha de merda, essacidade é Nova York.
Eu achei que a gente ia sairda merda.
Tudo bem, vamos sair damerda. Ela pode esmagar umapessoa, mas a gente pode fugir.
Tem certeza?
Prefácio inédito a “7on style”
de William Wantling
Circa 1974
Tenho me correspondido comBill Wantling desde os dias daRevolução do Mimeógrafo, desde
os dias de Blazek e Ole, quandoconheci seu trabalho e trocamosumas cartas. Escrevi tantas cartasa Wantling que ele me colocoucomo personagem em uma novelausando partes da minhacorrespondência para compor asminhas falas. Eu era um atorfracassado morando emHollywood e tomava umas boletase bebia demais (na verdade eumoro no Hollywood Boulevardcom a Western, numa zona de
prostituição, mas nunca fui muitode atuar.) Os anos se passaram, ascartas ficaram mais escassas, vivicom diferentes mulheres, mas Billcontinuou com sua esposa, Ruthie,que era seu porto seguro, seuamor, sua garantia desobrevivência. Nós doisfinalmente tivemos algum sucessocom nossos textos; eu até comeceia pagar o aluguel com os meus;Bill continuou a trabalhar nasmesmas coisas de antes, e foi
descoberto na Inglaterra e naNova Zelândia – o trabalho delenão tinha a covardia e o lustro quea grande maioria do públicoconsumidor de poesia nos EstadosUnidos exige – e as coisas nuncaforam fáceis pra ele, por isso elecontinuou a escrever bem.
Com Ruthie baldeando água,cuidando das vendas e buscando ojantar na zona portuária, Billacabou indo parar nauniversidade. O Bill soldado
também ajudou. Me assustou pracaralho o fato de Wantling passarpor toda essa coisa deuniversidade, porque ele tinha umjeito enérgico e natural de pôruma frase no papel e achei que aacademia fosse afetar isso. Nemtanto. De qualquer jeito, não foilonge o bastante para adquirir umacátedra. Então lá estava ele esteano, subitamente promovido ainstrutor – contrato de um ano, nãorenovável. Foi assim que o
encontrei. Ele mexeu os pauzinhosno departamento de inglês parame trazer a Illinois State parafazer uma palestra. Conseguiu mearranjar quinhentos dólares e,como os cavalos estavam indomal, eu fui.
No avião, fiquei com medo,digo, pensando no que poderiaacontecer. Eu tinha uma políticade evitar escritores o máximopossível; eles enfraquecem unsaos outros, indo a festas juntos,
fofocando juntos, reclamandojuntos. Quase todos os escritoresque conheci acreditam ser geniaise subestimados quando o fato éque eles simplesmente escrevemmuito mal. A maioria dosescritores não são pessoasagradáveis, e durante a viagem deida pensei, bem, Jesus, vai ser amesma coisa de sempre. Vouconhecê-lo, não vou gostar dele, eaí vou começar a não gostar dosseus poemas. Bill sempre disse,
analise o escritor, não o homem.Mas sou sentimental e não consigoevitar fazer as duas coisas. Etambém, pensei, não saberei o quevestir. Não gosto de lojas deroupas. Estava usando um casacoque havia comprado há quinzeanos, um par de calças baratasque não me serviam direito,sapatos já sem solas e umsobretudo do meu falecido pai,dois números acima do meu. Alémdisso, meu cabelo não para no
lugar, não costumo cortar ocabelo, fazer penteados, apenasdou a tesoura para uma mulher devez em quando e digo vá emfrente. Quando há uma mulher porperto.
Em Chicago tive que pegarum daqueles aviões a hélice nosquais todos os passageiros abordo fazem piadas durante o voo.Mas você pode beber nelestambém. E o avião balança e asaeromoças batem em você com os
quadris como se prometessemmais. Isso está mal escrito, nãoestá?
Bem, fui o último a descer doavião. Uma rajada de vento queveio por trás jogou todo o cabelona minha cara. Ao me recompor,lá estavam eles, Bill e a Ruthie.Não me lembro exatamente daconversa, da conversa quequebrou o gelo, mas achei os doismuito gentis. Gostei deles de cara.Bill comentou que nunca tinha
conhecido ninguém que sevestisse como eu, mas disse issoquase como um elogio. Entramosno carro e pegamos a estrada.
– Sua voz é tão suave – disseRuth.
– E você não é de falar muito– disse Bill.
Bill tinha as vibrações, boasvibrações, você podia senti-las decara, ele era cercado por elas,energia, energia pura eabençoada. Paramos num lugar
para tomar uma cerveja eseguimos direto para a casa deRuthie. Eles estavam seseparando. Ele havia me escrito:“Estraguei tudo com Ruthie,enfim, ela estava aturando asminhas merdas & vômitos &drogas há nove anos, não aguentoumais”.
Tinha um negócio às duashoras na universidade, parte doshow. Fui para lá e tive contatocom uns estudantes e voltamos. A
palestra era às oito. Tomamosmais umas cervejas e percebi queBill gostava de escutar, não eramuito de falar; como eu. Então onegócio foi meio silencioso, masnão foi aquele tipo de silêncio,sabe; era antes um silêncioagradável – sem desconforto, sempressão, sem tentativas de puxarconversa. Ficamos na casa do Billdurante um tempo. Ele tinha umapartamento de frente naBloomington Gun, Main Street,
Bloomington. Era espaçoso eiluminado. Veio mais cerveja, apedido meu. O professorencarregado da palestra chegou;ele estava entusiasmado, umpouco infantil mas simpático;efusivo mas sincero. Bill meofereceu umas pílulas nocorredor, mas recusei.
– Estômago sensível, cara,esse negócio acaba comigo.
O professor me aconselhou anão beber muito mais, e saímos
para jantar. Sugeri algum lugar emque pudéssemos tomar maiscerveja. Durante toda a conversae a preparação para a palestra eupodia sentir a presença de Bill;sentia-o ali o tempo todo, os raiosbrilhando, os raios bons e sólidosde sua energia, de sua alma, seassim preferir. Ele tinha um jeitosimples de dizer as coisas, mastudo o que ele dizia facilitava oandamento do jogo, fazia aconversa agradavelmente humana.
Existem várias maneiras pelasquais um homem pode expressarressentimentos, preconceitos,insanidades, mesquinharias,inveja; Bill não demonstrou nadadisso. Não quero fazê-lo parecerum deus. Era simplesmente um serhumano muito bom e eu gostavadele, muito.
Fizemos a leitura, eu li,voltamos para casa. Parte dopúblico acompanhou. Estudantes,uns professores, outros
desconhecidos. As bebidasvieram junto. As alunas eramótimas, todas as armadilhasestavam lá. Sempre me sintoaliviado depois de uma leitura; éum trabalho sujo para mim, ésuado. Comecei a beberpesadamente, o alívio tomou contade mim e comecei a “bater papo”.Era esperado, parte doprocedimento, mas a parte maisfácil – eu já tinha pegado meucheque. Tirei sarro da cena
literária...– Ah – eu digo –, você leu
Lawrence? Não, não, Josephine,não o cara da Arábia, o cara queordenhava vacas e mulheres...
E continuei. Me poupou deresponder perguntas sobre aminha pessoa. Certa hora, no meioda noite, estendi a mão e pegueium punhado do cabelo de Bill:
– E esse junkie de merdaaqui, para que serve?
Todo mundo ficou quieto.
– Vocês sabem – eu disse –,tem um poema que Bill escreveuque realmente me deixaarrepiado... Bill, aquele em que asua menina se oferece para fazeralguns truques para vocêconseguir uma drogas, e você ficabrabo, chora e ela diz, “Nãochora, papai, é só mais um jeitode foder com um otário”.
Então continuamos a falarsobre as coisas do Bill e todosnos sentimos melhor...
*
De manhã Ruthie tinha quetrabalhar, então Bill e eu ficamossozinhos em casa. Nós doisestávamos de ressaca, Bill maisdo que eu. Demos um jeito deengolir uma cerveja quente eentão sugeri que a gente tentassefazer uns ovos cozidos. Billdeixou-os cozinhar demais.Depois que comemos, ele, desúbito, correu para o jardim e
disse:– Bukowski... – e então
vomitou.Ele estava nas últimas. Por
fim, conseguiu comer um pouco depão molhado no leite.
– A gente devia pegar maisleve, cara – eu disse a ele –, meuobjetivo é viver até o ano 2000.
– Puta, o meu também – eledisse –, sonhei que ia morrer noano 2000.
Ele sabia até a hora e os
minutos do dia. Entrei e tomei umbanho; banhos quentes me ajudamquando estou de ressaca. Depoistomei mais uma cerveja. Billainda parecia mal; eram aspílulas, aquelas merdas. Foiescurecendo e escurecendo.Ruthie telefonou e disse que umtornado estava a caminho. Pareciaque já era meia-noite e o ventosoprava, soprava. Tomei maisuma cerveja e cancelamos o voo.Ruthie veio para o almoço, e Bill
disse:– Bukowski é resistente, um
filho da puta resistente, tem ocorpo de um cara de dezenoveanos.
Dois poetas vieram para aleitura da noite seguinte; umamoça e um cara de uns trinta epoucos anos. Eles começaram afalar, falar sem parar... e não erauma boa conversa. Comecei aapreciar cada vez mais o jeitocalmo de Bill. Bill saiu do
banheiro.– Bukowski, você se
masturbou quando tomou banho?– Não.– Que bom, assim eu não
tenho que lavar a banheira.Ruthie voltou para o trabalho.
O professor voltou e levou ajovem poeta para algum evento. Ocara continuou falando.
Bill saiu do banheiro.– Escuta, cara, você não
parou de falar desde que chegou
aqui. Faz uma hora.– Bem, é melhor do que ficar
resmungando. Tudo o que vocêsfazem é ficar sentadosresmungando.
Eu achava que resmungar erabem melhor.
Bill tinha que dar aula. Oprofessor e a jovem poetavoltaram. Bill pendurou umnegócio nas costas.
– Que diabos é isso, Bill? –perguntei.
– Carrego meus livros efolhas aqui dentro. Vou debicicleta para a aula.
– Ah, vamos, eu te levo –disse o professor, – tem umtornado se formando lá fora.
– Está tudo bem, consigo irsozinho.
Ele veio até mim.– Não sei dizer adeus – ele
disse.– Então não diga – respondi.Houve um leve aperto de
mãos e ele cruzou a porta em suabicicleta. Isso foi no dia 3 deabril. Bill Wantling morreu aomeio-dia e quinze do dia 2 demaio de 1974.
Eu estava sentado,escrevendo um poema, quando otelefone tocou. Ruthie me deu anotícia. Depois que ela terminoude falar, liguei para a minhagarota que trabalhava comoatendente num bar.
– Wantling morreu – eu disse
–, Ruthie acabou de me ligar.Wantling morreu.
As lágrimas escorriam dosmeus olhos, eu tremia.
– Desculpa – eu disse –, jálhe falei o quanto gostava dele.
Desliguei. Era verdade. Billtinha sido um dos poucos homenscom quem pude me relacionar. Euestava acostumado com a morte,conhecia a morte, escrevia sobrea morte. Saí e peguei umasbebidas e enchi a cara. Na manhã
seguinte eu estava bem; assuntoliquidado; foi o choque inicial queme confundiu.
No fim Bill estavaconcentrado no Estilo. Ele sabia oque era estilo, ele era estilo, eletinha estilo. Uma vez ele meperguntou numa carta, “O que éestilo?”. Não respondi a pergunta.Eu tinha escrito um poemachamado “Estilo”, mas acho queele pensou que aquele poema nãorespondia totalmente à pergunta, e
ainda assim eu a ignorei. Agorasei o que é estilo, depois deconhecer Bill.
Estilo significa guerrear semescudo.
Estilo significa não ter umafrente de batalha.
Estilo significa a maisabsoluta naturalidade.
Estilo significa um homemsozinho com um bilhão de homensem volta.
Jaggernauta
Eles abriram no dia 9 noFórum e fui para o prado nomesmo dia. O prado fica em frenteao Fórum e olhei para lá quandocheguei e pensei, bem, é aí quevai ser. A última vez que os tinhavisto tinha sido no Santa MonicaCivic. Estava quente no
hipódromo e todo mundo estavasuando e perdendo. Eu estava deressaca, mas me saí bem. O pradoé um lugar aonde ir, assim vocênão tem de ficar encarando asparedes enquanto enlouquece, outoma veneno de formiga. Vocêaposta e espera e espera e olhapara as pessoas e quando vocêolha para as pessoas por um bomtempo começa a perceber comoaquilo é horrível, porque elasestão em todo lugar, mas acaba
sendo suportável porque de algumjeito você se acostuma, sentindo-se mais parte do rebanho do quese tivesse ficado em casa lendoEzra, ou Tom Wolfe ou a seçãofinanceira do jornal.
As corridas já não são mais oque costumavam ser: cheias debêbados escandalosos echaruteiros, e garotas sentadas nasbancadas laterais, mostrando aspernas até as calcinhas. Acho queos tempos são muito mais difíceis
do que o governo nos diz. Ogoverno deve as calças para osbancos e os bancos emprestaramdemais para os homens denegócios que não podem pagarporque as pessoas não podemcomprar as coisas que elesvendem porque um ovo custa umdólar e elas só têm cinquentacentavos. A coisa toda pode iralém e você vai encontrarbandeiras vermelhas nas chaminésdas fábricas e camisetas do Mao
passeando pela Disneylândia, outalvez Cristo volte pedalando umabicicleta de ouro com a roda dafrente doze vezes maior do que ade trás. De qualquer jeito, aspessoas estão desesperadas nohipódromo; ele se tornou oemprego, a sobrevivência, a cruzno lugar do jogo de azar. E amenos que você saiba exatamenteo que está fazendo numa pista decorrida, como ler e jogarinterpretando o placar,
reavaliando os prognósticos esendo capaz de discernir entre oque é o dinheiro dos amadores e odinheiro de verdade, você não vaiganhar, não vai ganhar senão umaentre dez idas ao jóquei. Pessoasnos seus últimos recursos, naúltima parcela do segurodesemprego, com dinheiroemprestado, dinheiro roubado,dinheiro desesperadamentedegradante, estão sedesmantelando para sempre ali,
vidas inteiras pelo esgoto, mas oEstado ganha quase sete por centoem cada dólar, então tudo bem.Estou melhor do que a maioriaporque estudei melhor o assunto.As corridas são para mim o queas touradas foram paraHemingway – um lugar paraestudar a morte e os impulsos, oseu próprio caráter ou a falta dele.À altura do nono páreo, eu estavacinquenta dólares na frente, boteiquarenta no meu cavalo e fui para
o estacionamento. Dirigindo, ouvio resultado da última corrida norádio – meu cavalo tinha chegadoem segundo.
Entrei em casa, tomei umbanho quente, fumei um baseado,fumei dois baseados (duasbombas), bebi vinho branco, BlueNun, tomei umas sete ou oitogarrafas de Heineken e meperguntei qual era a melhormaneira de abordar um assuntosagrado para muitas pessoas, as
pessoas que ainda eram de algumaforma jovens. Eu gostava dapegada do rock; gostava de sexo;eu gostava da pegada e daanimação do rock, mas aindaassim tirava muito mais de Bee eMahler e Ives. O que faltava aorock eram as camadas de melodiae de acaso que nãonecessariamente precisavam secomplementar depois do início,como um cachorro que tentassemorder o rabo por ter comido
pimenta forte. Bom, eu ia tentar.Terminei o Blue Nun, me vesti,fumei outro baseado e saí. Eu iachegar atrasado.
Peguei a respectiva. E oestacionamento estava lotado. Deiuma volta, em busca da rua maispróxima para estacionar – a pelomenos um quilômetro e meio dedistância.
Saí do carro e comecei aandar. Manchester. A rua estavacheia de casas atrás de barras de
ferro com guardas. E casasfunerárias. Outras pessoastambém caminhavam por ali. Masnão muitas. Já era tarde. Eucaminhava e pensava, merda, émuito longe, tenho que voltar. Mascontinuei caminhando. Lá pelametade da Manchester (no ladosul), encontrei um clube de golfeque tinha um bar e entrei. Tinhamesas. E golfistas, golfistassatisfeitos, que bebiamvagarosamente. Havia um campo
de golfe ao ar livre, mas essescaras estavam num jogo de lançarbolas à distância, num circuitocom iluminação elétrica. Atravésdo vidro atrás do bar, ainda sepodia ver uns caras lá fora,tacando as bolas sob o luar.Minha garota estava comigo. Elapediu um bloody mary e eu pedi umhi-fi. Quando estou mal doestômago, a vodca dá umaaliviada, e sempre estou mal doestômago. A garçonete pediu para
ver a identidade da garota. Elatinha 24 e ficou contente com opedido. A atendente tinha umacara pálida e estúpida e serviudois drinques minguados. Aindaassim o lugar era legal eagradável.
– Olhe – eu disse –, por que agente não fica aqui e seembebeda? Fodam-se osSTONES. Posso inventar umahistória qualquer: fui ver osSTONES, me empedrei no bar de
um clube de golfe, vomitei,quebrei uma mesa, tricotei umatoalha de palmeira, me arrumeium câncer. O que você acha?
– Pode ser.Quando as mulheres
concordam comigo sempre faço ocontrário. Paguei e saímos.Faltava ainda uma boa pernada.Então começamos a atravessar oestacionamento. Carros desegurança iam e vinham. Osgarotos se inclinavam contra os
carros, fumando baseados etomando vinho de terceira. Havialatas de cerveja por todos oslados. Algumas garrafas deuísque. A nova geração já não eramais a favor das drogas e contra oálcool – eles me alcançaram:usavam de tudo. Com 27 paísesprestes a dominar a tecnologia dabomba de hidrogênio, não faziaquase nenhum sentido cuidar dasaúde. Meu ingresso e o da garotaeram para lugares separados.
Indiquei-lhe onde ficava seuassento e fui para o bar. Ospreços eram razoáveis. Tomei unsdrinques rápidos, peguei ocanhoto do meu ingresso, fiqueicom ele na mão e fui em direçãoao barulho. Um cara grande,encharcado de vinho barato, veiocorrendo na minha direção dizerque tinham roubado a carteiradele. Fiz a gentileza de lhe daruma cotovelada no estômago e elese curvou e começou a vomitar.
Tentei achar minha seção emeu corredor. Estava escuro ebrilhante e barulhento. Olanterninha falou alguma coisasobre o meu lugar, mas nãoentendi nada e o mandei embora.Sentei num degrau e acendi umcigarro. Mick estava lá, comalgum tipo de pijama, e cordinhasamarradas nos tornozelos. RonWood estava na guitarra-base nolugar do Mick Taylor; BillyPreston arrasava nos teclados;
Keith Richards estava na guitarra-solo e ele e o Ron conduziam umacadência animada, como umalinha secundária, mas Keith tinhaum toque mais sólido, emborafosse fácil deixar que Ron fizesseuns ataques e uns giros à vontade.Charlie Watts seguira o ritmo eparecia estar alegre, mas seucompasso começava a cair. BillWyman, no baixo, era overdadeiro profissional, mantendotudo integrado sobre o maldito
Fórum-Tâmisa.Quando a música terminou, o
lanterninha me disse que meulugar era do outro lado da fila N.Outro número começou. Andeipara lá e para cá. Todos oslugares estavam ocupados. Senteiperto da fileira N e fiquei vendo oMick. Sentia sua nobreza e graça,seu desespero, e ainda algumaforma de poder: levarei seusfilhos para o quinto dos infernos.
Então uma mulher com pernas
grandes passou e esfregou oquadril contra minha cabeça. Umalanterninha. Uma virilha, depois aoutra. Sorte dupla. Mostrei-lhemeu ingresso. Ela tirou um garotoda última cadeira. Fiquei mesentindo culpado, mas me sentei.Um balão imenso em formato depau saiu do meio do palco, deviater uns vinte metros de altura. Orock é o máximo, o pau também.
Essa geração adora paus. Napróxima geração veremos grandes
bocetas, caras pulando dentrodelas como se fossem piscinas,saindo delas cobertos de azul evermelho e branco e dourado,brilhando por uns dez quilômetrosao norte de Redondo Beach.
Seja como for, Mick pegouesse pau bem embaixo (e os gritosaumentaram muito) e então Mickcomeçou a mexer o pau na direçãodo palco e começou a subir porele (aproveitando o momento),avançando em direção à cabeça,
chegando mais e mais perto, atéagarrá-la. A resposta foisinfônica, muito além desinfônica.
A próxima parte começou. Ocara do meu lado voltou a semexer. Esse cara se balançava ese sacudia e rolava e dava voltase caía e pulava, independente doque estava ou não tocando. Eleconhecia e adorava sua música.Uma espécie de inseto da batidainterior. Cada batida interna era
para ele a grande batida.Seletividade não era seu negócio.Eu sempre atraía um tipo desses.
Fui até o bar para tomar outrabebida e depois de tirar outra vezo garoto do meu lugar de dozedólares e cinquenta centavos, láestava o Mick, havia posto o pénum gancho e agora se segurava auma corda e ficava se balançandoem cima das cabeças do público,de um lado para outro, e nãoparecia muito seguro lá em cima.
Eu não sabia o que ele tinhatomado, mas pelo bem de seu rabobissexual e das cabeças sobre asquais ele iria cair, fiquei felizquando o levaram de volta para opalco.
Mick se cansou depois dessa,resolveu trocar de pijama eacionou Billy Preston, que tentoutomar conta e roubar a cena doJag, e quase conseguiu, ele estavadescansado e cheio de disposição,queria enterrar e substituir o
herói; ele era legal, dançou quenem um irlandês, todo pintado depreto, até gostei dele, mas davapara ver que ele não tinha aqueleapelo final, assim como dava paraadivinhar que Mick também sabiadisso, enquanto passava gelo nosovaco e na bunda e na cabeça nocamarim. Mick voltou e acaboucom Preston. Eles quase sebeijaram, balançando os cus.Alguém jogou fogos de artifíciona multidão. Eles explodiram bem
direitinho. Um cara ficou cegopara o resto da vida; uma garotateria catarata no olho esquerdopara sempre; um cara jamaisvoltaria a ouvir com um dosouvidos. Tudo bem, isso é mesmoum circo e é mais limpo do que oVietnã.
Buquês voam. Um delesacerta Mick na cara. Mick tentaestourar um balão enorme quepousa no palco. Ele não consegue.As pessoas ficam decepcionadas.
Mick corre, pula, chuta a bunda deum violinista. Este esboça umsorriso de volta, gentilmente,cheio de sabedoria: tipo, opagamento é bom.
O palco tem o peso dequarenta elefantes e tem o formatode uma estrela. Mick chega naponta da estrela, chega em cadaparte do público e aí afasta omicrofone da boca e dá para veros lábios dele formarem um somsilencioso: VÃO SE FODER.
Eles respondem.A ponta da estrela se levanta,
Mick perde o equilíbrio, rola atéo centro do palco, perde omicrofone.
Tem mais. O melhor deve virno final. Será Sympathy for theDevil? Será como no SantaMonica Civic? Corposcomprimidos entre as fileiras ejovens jogadores de futebol dandoum pau nos roqueiros? Paradeixar a imunidade e o corpo e a
alma do Mick intactos? Fiqueipreso lá no meio de canelas epentelhos e corpos leitosos ecabeças de algodão-doce. Nãoqueria mais nada daquilo. Saí. Saíquando todas as luzes seacenderam e a cena sagradaestava por começar e deveríamosentão amar uns aos outros e àmúsica e ao Jag e ao rock e àsabedoria.
Saí antes. Lá fora as pessoaspareciam entediadas. Havia uma
enorme quantidade de garotinhassem peito vestindo jeans ecamiseta. Seus homens nãoestavam em lugar nenhum. Elasestavam sentadas nos para-choques, a maioria dos para-choques presos a trailers. Asjovenzinhas loiras sem peito,usando jeans e camiseta. Estavamentediadas, chapadas,indiferentes, mas não pareciammaldosas. Garotas de bundinhasapertadas, com bocetas e amantes
e menstruações.Então caminhei até o carro. A
garota estava dormindo no bancode trás. Entrei e dei a partida. Elaacordou. Eu ia ter que mandá-lade volta para Nova York. A coisanão estava rolando. Ela se sentou.
– Eu saí cedo. Aquela merdaestá finalmente chegando ao fim.
– Bom, os ingressos foram degraça.
– Você tem que escreversobre isso?
– Não sei. Não consigo ternenhuma reação. Não consigo ternada que se aproxime de umareação.
– Vamos comer alguma coisa– ela disse.
– Sim, vamos fazer isso.Segui na direção norte em
Crenshaw, procurando por algumlugar legal onde a gente pudessetomar um drinque e onde nãohouvesse nenhum tipo de música.A garçonete poderia até ser
Escolhendo cavalos
Como vencer nas pistas, ou pelomenos sair ileso
Primeiro, vamos ao que nãose deve fazer:
Clareza mental é essencial.Não chegue em uma corridadepois de enfrentar um
engarrafamento. Chegue cedo e seacomode calmamente para fazer oseu trabalho ou chegue para asegunda, ou terceira, ou quartacorrida. Tome uma xícara de café,sente-se e respire fundo algumasvezes. Entenda que você não estána Disneylândia, que não estádoando dinheiro para caridade eque apostar nos cavalos é umaarte e que há muito poucos artistasà sua volta.
Não vá à pista acompanhado.
Se você tiver de se preocuparcom o bem-estar deles e com suasorte, ou se eles querem umcachorro-quente, ou uma coca, ouuma dose de uísque, isso só vaiatrapalhar as suas chances de seconcentrar e fazer as apostascertas.
Uma vez na pista, não senteao lado dos falastrões e dosconselheiros. Esses caras sãovenenosos. Não sabem nada e sãosolitários. Querem conversar.
Pensam que somos todos pessoasboas e que estamos juntos nessa eque podemos ganhar da pista. Nãohá nenhuma verdade nisso. Aspessoas apostam umas contra asoutras. O pagamento aproximadopara cada dólar é de dezesseispor cento; metade vai para aspistas, a outra metade para oEstado da Califórnia. Aorganização distribui o restante dodinheiro aos portadores dosbilhetes premiados.
Não vá às corridas com odinheiro curto ou com granaemprestada, ou com o dinheiro doaluguel, ou da comida. Tentechegar com uma grana inesperada,um dinheiro de imposto creditado,alguma coisa do gênero. Tenha umdinheiro que você pode perder, sóassim terá alguma chance deganhar. Não vá às pistas paratentar resolver seus problemas.Este é um jogo cruel, um jogoimpiedoso. Dê uma olhada nas
fisionomias à sua volta depois doterceiro ou quarto páreo.
Não aposte em exatas ou emcombinadas ou qualquer tipo deaposta para atrair trouxas queofereça muito por muito pouco.Isso só aumenta a pressão e levavocê para o fundo mais rápido; edepois que as pessoas estão nofundo elas entram em pânico efazem apostas loucas eimpossíveis, tentando resolver umsonho com outro. Perdem
qualquer noção do que dinheiro é.São capazes de apostar de
vinte a cinquenta dólares emexatas; mas quando entram numsupermercado não pagam $1,75por um bom bife – preferemcomprar um hambúrguerengordurado. Gastam cinquentacontos em bilhetes de dobradinhas(um bilhete de exata é aquele emque você tem de dizer quem serãoos dois primeiros cavalos dopáreo), mas fodem com os
motores dos carros porque trocaro óleo e o filtro pode custar oitopratas.
Agora eis a última coisa quenão se deve fazer, e se vocêprestar atenção isso pode lhepoupar muito dinheiro. Fique deolho no glorioso segundo. É umcavalo que na última corrida ounas últimas corridas chegou muitoperto do vencedor ao fim dopáreo. Esse é o cavalo favorito demuitos jogadores porque parece
uma ótima barbada. Osprofissionais chamam esse tipo decavalo de ventosa ou cu de líder.Ele parece bom quando dispara,diminuindo muito a distância, masraramente vence.
Se você olhar o histórico,pode ver que ele perde corridas a8/5, 5/2, 4/5, 6/5, e assim pordiante. Eles vão insistir nessajogada, pensando que certamentevão conseguir desta vez. Para queisso aconteça é preciso muita
sorte: uma arrancada rápida eforte e uma faixa livre para passarde todos os outros cavalos.
A pior aposta depois dessa éo cavalo peso-leve – um com 50ou 47 quilos abaixo do peso. Ora,perder peso não faz um cavalocorrer mais rápido, não de modosignificativo...
Certo, agora você está nojóquei. Você tem um programa eum prognóstico e as cotações doplacar. Muito bem. A primeira
coisa que você tem que fazer éavaliar os cavalos. Compreaquele jornal de Pasadena, quetem o grande quadro de consensosobre os dezessete maioresfavoritos. Você dá cinco pontospara o vencedor, dois pontos pelacolocação, um por ter participado.Some os pontos. Então ao ladodas linhas matinais você anota aavaliação. (Linha matinal é achance que um cavalo tem deganhar segundo o estudo de seu
histórico). Certo, ao lado daslinhas matinais você anota aavaliação.
Vamos pegar o quarto páreo,de 15 de abril, para éguas jovens,de três anos de idade, criadas naCalifórnia.
Cavalos C:Consenso
M: LinhaMatinal
Count theTake 1 3
Cathy2 2
CharmerQueeki 7 30TongaRhythm 3 10
Miss PungJeun 8 30
Enyo 6 8CenturiesCherub 9 30
LuckyColoullar 4 4
Jane Young 6 6
A multidão foi direto em
A multidão foi direto emLucky Coloullar. Ele abriu em 2/1quando liberaram as apostas,subiu para 7/2, e aí voltou para2/1. Em outras palavras, aspessoas estavam considerando aquarta escolha do consenso comoa favorita. Cathy Charmer comShoemaker abriu em 9/2 e duranteas apostas caiu e retornou à sualinha matinal, quando estava comosegunda favorita nas apostas.Count the Take abriu em 4 a
chegou a 7/2 em uma linha matinalde 3 e ganhou com facilidade.
Lucky Coloullar, a apostatomada fora de contexto, malterminou a prova. É tudo umaquestão daquilo que é razoável.No momento em que a multidãobota o olho em alguma coisa, elamorre. A multidão está sempreerrada: é por isso que a maioriados carros nos estacionamentosdas pistas tem mais de quatroanos.
Na quinta corrida a multidãomergulhou em Dorset Cay,fazendo com que o cavalo queseria apenas o sexto do consensonuma disputa de nove cavaloschegasse a 4/1. O cavalo nuncateve chance. Sempre que as chancesde um cavalo estão abaixo daavaliação consensual, ele é umaaposta ruim que quase nunca ganha.E quase sempre tem um cavalodesses em cada corrida.
Se você simplesmente cortar
esse cavalo de cada corrida, suaschances de ganhar aumentamproporcionalmente às chancesdaquele cavalo. Esse é o seulimite na aposta. O vencedordessa corrida foi Approval,carregando 55 quilos e saindocom 7/2 na linha matinal de 7/2como segunda escolha doconsenso.
Vamos para a sétima corrida,basicamente uma corrida de doiscavalos, todos os outros sem
grandes chances. Muito bem, aquiestá o plano: Messenger of Song,a escolha consensual dosdezessete melhores favoritos, temuma linha matinal de 2 pelaavaliação do hipódromo. Asegunda escolha do consenso, FlyAmerican, tem uma linha matinalde 8/5. Quando o placar abre, oMessenger of Song está com 8/5 eo Fly American com 2/1. Quandoas apostas são encerradas, FlyAmerican, a segunda escolha pelo
consenso, está pagando o mesmode antes da abertura, e Messengerfecha a 9/5. O Fly American,sendo o único cavalo que fechouabaixo da escolha consensual, é asua aposta furada, e para cobrir olance mínimo! Ele termina emsegundo, muito atrás deMessenger a 9/5. Lógica. Lógicabásica.
Conheço um cara das antigasque vai para o prado e compraapenas o programa. Sem
prognóstico, sem jornal, sem nadamais. Tudo o que ele faz é apostarem um ou dois cavalos que estãopagando perto do que é esperado.Nada fora de contexto. Semsubestimar ou superestimar, só ajogada justa. Ele se dá bem.
Não há barganhas nas pistas.Cavalos que levam 6 na linhamatinal e fecham a 10/1 ou 12/1ou 13/1 não ganham. Cavalos com10 ou 12 na linha matinal, quefecham a 5 ou 9/2 ou 4 ou 7/2
também não ganham. O dinheiro daaposta tem de fechar com as chances(uma diferença mínima paramenos é preferível) e com aavaliação consensual do cavalo.Todas as outras escolhas estãofora de contexto e não são boas.
É claro, qualquer tipo decavalo pode vencer e algumasvezes vence, mas estamos falandodo que acontece na maior partedas vezes e do que tende a seguiracontecendo. Já assisti a milhares
de corridas de cavalo, e o queimporta são os resultados geraisde todas essas corridas. O queacaba com as pessoas são ostrinta minutos entre cada corrida ea lembrança da corrida passada.A última corrida é a que lhesparece verdadeira, porque se deumais recentemente, e ainda queseja uma corrida bizarra, com umresultado bizarro, para essaspessoas a verdade aparente é oque importa.
Apostar em cavalos demaneira adequada requer grandeforça de caráter. Tenho um ditado:Um homem que consegue vencernas corridas é capaz de fazerqualquer coisa que decida fazer.Um sujeito como Hemingwayencontrou momentos de verdadenas touradas e nas guerras. Euencontro momentos de verdade ecompletude e estilo nas corridasde cavalo e nas lutas de boxe.Tudo depende do que compõe o
cenário para você.Encontro grandes falhas em
meu caráter nas corridas. Àsvezes acho que sou muito bom echego lá e descubro que não tenhoa completude que imaginava. Econhecimento sem completude épior do que não ter conhecimentoalgum.
Ah, preciso incluir mais umacoisa porque é importante, pois sevocê fizer suas apostas de acordocom as minhas recomendações há
um tipo específico de corrida emque as coisas funcionarão demaneira oposta. E é uma corridapara éguas jovens, de dois anos,que nunca correram antes. Nestetipo de corrida, a égua que fechaabaixo de sua linha matinal eabaixo da avaliação consensualvence. Essas éguas vencem 95 porcento das corridas que disputam,mas você raramente encontra umadessas no programa quando vai àpista. Mas abra o olho quando a
encontrar.A razão por que não me
importo em compartilhar essessegredos é que conheço a naturezahumana. Você não vai assimilar oque eu disse, vai pensar que é umembuste. Cada homem e cadamulher têm de cometer seuspróprios erros. Nada que eudisser poderá salvá-lo. Vocêainda vai ir até lá e quebrar acara. E às vezes haverá corridasque não farão sentido ou um dia
inteiro de corridas que não farãosentido.
Tem um amigo meu que umavez levou sua mulher às corridas.Ele passou a noite em claro sepreparando. Conhecia todas asarmadilhas, tinha muitaexperiência, mas justo naquele dia,o único dia em que levou a mulhercom ele, foi um dos dias bizarros.Ela ganhou um páreo a 22/1 naprimeira corrida porque o cavalotinha o mesmo nome do cachorro
da sua Tia Edna. Não entrou nosegundo, mas apostou no terceiroporque o nome do cavalo eraparecido com uma música que seuirmão cantava quando ficavabêbado. O prêmio foi de 62,80.Ela pulou alguns e então, perto dofinal, apostou num cavalo quepagou $78,40 porque “era o nomedo meu primeiro amor”.
Então no caminho, de voltapara o estacionamento, ela sevirou para ele e disse:
– Você e todos os seusmalditos números e cálculosmatemáticos. Eles não servempara nada!
E, claro, naquele dia elaestava certa. Eles estão separadosdesde então.
Seria preciso muito maispáginas para ajudá-los a seinteirar de uma realidadeverdadeiramente sensata sobrecomo jogar nos cavalos. Mas tentese lembrar de algumas coisas que
eu disse: fiquem próximos dalinha matinal, levemente abaixo, sepossível, e alinhados com oconsenso dominante. Pode ser quevocê esteja lá, e todos os outroscavalos estarão fora do páreo,com exceção de dois e aí você vaise perguntar: qual deles? (Apropósito, quando falo em apostarfalo em apostar para ganhar.Apostar por apostar ou apenaspara se mostrar é um jogo que nãoleva a nada. Se for assim, você
pode ficar em casa e trocar seudinheiro de um bolso para o outroe depois rasgar uma nota de cincopratas. Dá no mesmo.)
Pois bem, vejamos, se osseus dois cavalos tiverem ótimaschances, aposte nos dois. Masdigamos que você tenha 9/5 contra8/5, é melhor você pegar o certo.Então, em ordem de importância,você deve separá-los da seguinteforma: escolha o cavalo quecorreu à frente ou fora de
compasso em sua última corrida eacabou ficando um pouco atrás nachegada. Pegue o cavalo maispesado. Pegue o cavalo com oíndice de velocidade mais baixona última corrida. Pegue o cavaloque pareça ter o pior jóquei. Estessão quatro pontos. Se vocêconseguir acertar em três dessesquatro pontos, terá um provávelvencedor. Se conseguir acertarnos quatro, terá um bailegarantido.
Se ficar empatado, tipo 2 a 2,escolha o cavalo que tiver a piorposição posterior na distância. Seas posições posteriores foremmais ou menos equivalentes, entãoescute os garganteadores – elesestão sempre à disposição. Escutequal cavalo eles estão alardeandoaos quatro ventos. Aposte nooutro.
E não vá às corridas todos osdias. É como trabalhar numafábrica, você ficará esgotado e
aborrecido e estúpido. E lembre-se, qualquer imbecil pode entrarnas pistas de corrida assim comoqualquer imbecil pode se sentarnum banco de bar e fingir que estávivendo.
Ah, sim, antes de encerrar,tem mais uma coisa que devodizer. Os cavalos normalmentevencem quando seus númerosbaixam em relação à sua últimacorrida. Um cavalo que baixadigamos, de 12/1 para 6/1 é uma
aposta muito melhor que umcavalo que estava a 2/1 na últimacorrida e agora está fechando a 6.Na verdade, um cavalo cujosnúmeros estão na descendente é,em geral, uma boa aposta, umaótima aposta, se ele fechar dealguma maneira perto de sua linhamatinal.
Meu melhor conselho sobreas pistas de corrida é: não vá.Mas se você resolver ir, ao menosentenda que o uso simples da
Malhação
Nina e eu havíamos chegadobasicamente ao fim da linha. Elaera 32 anos mais nova do que eu,e havia outras incoerências, masnos encontrávamos duas ou trêsvezes por semana. Tínhamosmuito pouco contato físico –alguns beijos esporádicos e
encontros sexuais ainda maisesporádicos – então era um fim delinha ameno, muito menos crueldo que a maioria. Nina eraboleteira e eu era alcoólatra, maseu tomava suas pílulas e elatomava as minhas biritas; nãoéramos preconceituosos emrelação a essas coisas.
Nina tinha 24 anos, erapequena, mas tinha um corpopraticamente perfeito e cabeloslongos, de um ruivo imaculado.
Ela tinha saído da estrada: umfilho aos dezesseis anos, depoisdois abortos, um casamento, umarápida passagem pelaprostituição. Empregos degarçonete, subempregos,benfeitores, seguro-desemprego ecupons de alimentação do governomantiveram-na inteira. Mas elaainda tinha muita coisa a seufavor: aquele corpo, humor,loucura e crueldade. E ela saíapor aí e andava por aí e trepava
por aí debaixo daqueles longoscabelos ruivos. Nina era o tiro natesta da psique; ela podia matarqualquer homem que quisesse. Elaquase me matou. Mas outrastambém chegaram perto.
A primeira vez que vi Karynfoi quando fui até a casa dela comNina. Elas eram amigas, e Karyntinha umas boletas. Nina tinha trêsou quatro médicos que lhe davamreceitas, mas ela acabava com oscomprimidos rapidamente. Karyn
morava num apartamento de 350dólares por mês em Los Angeles.Nina apertou o botão do interfonee nos anunciou; ouviu-se umbarulho e a porta se abriu.Pegamos o elevador para o sextoandar. Karyn nos recebeu. Elatinha 22 anos, era ainda menor doque Nina, que já era bem pequena– em altura, bem dizer – (ambasas garotas eram grandes ondedeveriam ser grandes e pequenasonde deveriam ser pequenas). Era
como se elas tivessem sidoesculpidas à mão para deixar oshomens loucos. As duas pareciamcrianças que de repente haviam setornado mulheres, mas que aindapermaneciam crianças de algumaforma. Era uma sacanagem com oshomens, e era uma sacanagem danatureza também, porque paracada uma que a natureza talhavacom aquele molde, cinco miloutras eram feitas feias oudeformadas ou esquisitas ou tortas
ou cegas ou tinham lordose oumãos grandes demais ou peitos demenos e assim por diante. Não erajusto, mas quando você olhavapara elas não pensava em justiça,pensava em sexo e amor, em rirjunto com elas e brigar com elas ecomer em restaurantes com elas ecaminhar pelas ruas com elas nofinal da tarde ou às três da manhãou a qualquer hora.
Karyn tinha cabelos negros ecompridos, olhos azuis que quase
pareciam bondosos e lábios quefaziam você pensar em beijar,beijar e quase nada mais. Sóbeijar pareceria o suficiente, masobviamente não seria. Seu únicodefeito era o nariz arrebitado,muito pequeno e redondo, assimcomo o nariz de Nina me pareciamuito pontudo e muito longo.Ainda assim, com cada uma delas,os olhos finalmente pousavam nonariz e lá ficavam. Meu corpo seexcitava, como se em meio a toda
aquela beleza a falha fosse opróprio esplendor – como se semaquelas falhas a beleza nãopudesse ser tão bela.
Então lá estava eu, aoscinquenta e seis anos, na ZonaOeste de Los Angeles às 3h45 datarde, com duas das mulheresmais lindas da América – ou dequalquer outro lugar, diga-se depassagem. E com duas dasmulheres mais absurdamentedifíceis do mundo – elas eram
conscientes dos próprios corpos ede como os outros reagiam a essescorpos, e era muito difícil paraelas seguirem sendo humanas comtudo acontecendo dessa maneira.No entanto, ambas tinham brilhointerior e jogo de cintura; nãohaviam sucumbido totalmente àaparência. Isso era desconcertantee mortal e maravilhoso.
Não aconteceu muita coisanaquela primeira noite, Ninalevantou os vinte dólares para as
pílulas – anfetaminas – algodefinitivamente caro, mas naverdade fui eu que levantei osvinte dólares; saíram da minhacarteira, então não foi carodemais – ao menos não para Nina.Ela pegou as pílulas,“psicotrópicos” suaves, e cada umde nós tomou uma delas. Atelevisão de Karyn estava ligada –cinquenta polegadas, tevê a cabo,colorida. Elas conversaram sobrealguns assuntos. Na maior parte
do tempo sobre a carreira demodelo. Karyn tinha conseguidoum trabalho que pagava cinquentadólares a hora. Ela nos trouxealgumas das fotografias menospicantes. Eram razoáveis. Demosuma olhada. Escolhi a minhafavorita, sacudi no ar, beijei,devolvi. Então Nina falou sobresua experiência como modelo. Nogeral tinha corrido tudo bem. Masela detestava aquelas posesginecológicas – por Deus, como
odiava. A boceta dela não eracomo a maioria das outras – aboceta dela era realmente umagraça. Por Deus, tinha umas quepareciam ter bolsas peludaspenduradas sobre o cu. Uma coisahorrível. A boceta de Nina era ok.Assenti com a cabeça: sim, sim.Só que um dia, Nina continuou, amãe tinha mexido em sua bolsa eencontrado essas fotografias, e asfotografias estavam bem boas,mas a mãe não entendeu. Tinha
alguma coisa a ver com a época –que Mamãe simplesmente nãoentendia. Mamãe havia realmentedesaprovado uma em especial –Nina nua, os cabelos soltos,revoltos e ruivos, cabeça viradapara o teto, braços abertos e elaestava mijando no chão.Realmente sexy; muito, muitosexy. Mamãe chiou. Nina foiobrigada a bater nela. Foihorrível. Mas a velha não tinhanada que ficar fuçando na bolsa
dela. Não é mesmo?Então Karyn saiu por um
instante e voltou com umamontoado de blusas e meio queperguntou, será que essas servemem você, querida? E Nina selevantou e as experimentou, e elanão estava usando sutiã. E Karyne eu ficamos ali, vendo-aexperimentar as blusas,mostrando-nos, de vez em quando,seios muito brancos e volumosos,como os de uma mulher grávida
de noventa quilos, que pareciamter sido soldados ao corpo de umacriança. Meu Deus. Ela parou emfrente ao espelho abotoando edesabotoando.
– De qual você gosta, Hank?– Ah – eu disse –, de todas.– Não, sério, Hank, qual
delas?– Acho que gosto mais da
roxa – eu disse –, a roxa... aquelacom as tirinhas que balançam, astirinhas de couro.
Seja como for, ela pegou oitoou dez blusas e depois fomosembora..
*
Não me lembro dos dias oudas semanas. O fim da linha entremim e Nina estava cada vez maispróximo, e eu estava satisfeitocom isso. É sempre bom saberque você pode viver sem umapessoa que julgava jamais ser
capaz de viver sem. Mas eu tinhaencontrado outras namoradas,nenhuma tão bonita, mas todas, emessência, mais amáveis. Minhasnovas namoradas eram executivasindependentes, e um pouco dadureza do mundo nos negócios ashavia contaminado, mas não eratão ruim quanto a dureza queacometia as mulheres dotadas deirresistível beleza. E então Ninaligou de novo.
– Alô – eu disse.
E ela disse:– Hank, quero que você me
leve até a casa de Karyn.E eu disse:– Claro, estou passando aí...
*
Foi tudo muito rápido.Quando chegamos à porta doapartamento de Karyn, Ninagritou:
– Ah, não, sua vadia!
Ela estava na minha frente nocorredor, indo em direção à portado apartamento e então se virou ecorreu na minha direção. OuviKaryn gritar:
– Agarre ela, Hank!Como estava bêbado e sob o
efeito de anfetaminas, fui emfrente. Agarrei Nina. A sensaçãoera boa. Ela se debateu; aquiloera quase sexual. Era sexual. Elavestia uma calça jeans justa e umablusa de malha fina, gasta,
rasgada, transparente. Segurei-a enós lutamos. Então Karyn, que erauns seis quilos mais magra e pelomenos três centímetros maisbaixa, correu e agarrou Ninapelos cabelos, aqueles quilos equilos de vibrante cabelo ruivo,fios capazes de abafar tudo,formidável líquen e melancolia,luz do sol exuberante, cabelourrante de fogo, longo e volumoso– Karyn segurou ele todo nasmãos e arrancou Nina de mim,
lançando-a ao chão.Karyn caiu por cima de Nina,
ainda segurando seu cabelo. Entãoelas rolaram e Nina ficou em cimapor alguns instantes. Ela estavacom as mãos no pescoço deKaryn, mas a pressão não eraforte o bastante, ou estava maldirecionada. Então Karyn, com umpuxão de cabelo, girou Nina emontou sobre ela novamente eprendeu seus braços com osjoelhos. Então puxou a cabeça de
Nina para cima com uma dasmãos e começou a esbofetear seurosto repetidamente, dizendo:
– Vadia, vadia, vadiadesgraçada! Puta! Cretina! Ruivade merda! Vadia, vadia, vadia!
Então ela escorregou as duaspernas para trás e agarrou Ninapela nuca e encostou a boca na deNina, beijando-a com selvageria,movendo sua boca freneticamentedentro da boca de Nina. Então elase afastou e voltou a beijar, se
afastou e voltou a beijar. Fiqueiduro e vidrado no que ocorria.Era a coisa mais mágica e maisintensa que já tinha visto. As duaseram tão lindas – nenhum pingo delesbianismo em qualquer umadelas. Nina empurrava Karyn, masnão conseguia se livrar dela. Ninachorava e seu rosto estava cobertode lágrimas. Karyn continuoubeijando e xingando Nina. Entãoela parou com os beijos e puxoude novo o cabelo de Nina com
uma mão e estapeou seu rosto,bem forte, repetidas vezes. Entãoagarrou a cabeça de Nina com asduas mãos e beijou-a de modocruel e incansável. Elas estavamno chão da cozinha e a luz eraforte e os longos cabelos negrosde Karyn se misturavam aos maislongos e ainda mais volumososcabelos ruivos de Nina, à medidaque elas se beijavam. Ambasvestiam calças jeans justas, e seuscorpos rolavam e se debatiam um
contra o outro enquanto lutavam.E lá estava o nariz arrebitado deKaryn roçando o grande efascinante nariz de Nina. Toqueimeu pau e gemi.
Então Karyn se levantou numsalto e puxou Nina pelos cabelos.Nina gritou. Karyn começou arasgar a blusa de Nina. Os seiosficaram expostos. Ela estapeouNina novamente, três ou quatrovezes, brutalmente. Nina pareciaatordoada e mal podia reagir.
Karyn puxou-a para junto de si, asduas mãos na bunda de Nina porsobre a calça jeans justa. Então abeijou de novo. Suas cabeçasbalançavam de um lado para ooutro à medida que cambaleavampela cozinha. Então Karyn soltou-a e começou a esbofetear Ninaviolentamente, mais forte do quenunca, com as duas mãos. Ninachocou-se contra a pia, seuscabelos bagunçados eesvoaçantes. A luz elétrica se
refletia em seus cabelos, quebalançavam no ar. Cabelos quepareciam mais ruivos do quenunca, mais longos, maisvolumosos, mais incríveis. EntãoKaryn agarrou-a e a beijounovamente, inclinando-a sobre apia, o espelho refletindo ambas.
Karyn deu um passo paratrás, desabotoou a própria blusa,tirou-a, e lá estavam seus seios,explodindo, carne em movimento.Então ela abaixou a calça jeans,
tirando-a por cima dos sapatos desalto alto. Estava sem calcinha.Sua bunda era tão fenomenalquanto o resto do corpo. Então elaestapeou Nina mais uma vez coma mão direita. Desafivelou o cintode Nina, abriu o zíper de suacalça jeans e escorregou-a atéembaixo.
Ela arrancou o que haviasobrado da blusa de Nina, depoistirou sua calcinha. Nina pareciaatordoada. As duas estavam nuas
em seus sapatos de salto, olhandouma para a outra. Não sei quemtinha o corpo mais bonito – Ninatalvez. Os seios eram maiores eos quadris mais largos e os lábiosum pouco mais carnudos. Ambastinham a pele muito branca. Ocontraste era entre os longoscabelos pretos de Karyn e oslongos cabelos ruivos de Nina.Abri o zíper e comecei a acariciarmeu pau livremente.
De repente Karyn agarrou
Nina pelos cabelos e a arrastouem direção ao quarto. Deve terdoído, mas Nina parecia terperdido a capacidade de lutar.Gritava e era puxada peloscabelos ruivos emaranhados. Euas segui. Karyn estava arrastandoNina com uma mão. Quandochegou ao quarto, pôs as duasmãos no cabelo de Nina e puxou-apara trás violentamente. Nina caiuno chão. Ela caiu de costas notapete ao lado da cama. Karyn
jogou-se sobre ela, os corposgrudados, se contorcendo; elaagarrou a cabeça de Nina ebeijou-a com ainda mais força doque antes, espremendo os lábiosde Nina, entrando em sua boca,lambendo seus dentes. Mais umavez os cabelos ruivos e pretos seconfundiram; era incrivelmenteindecente e maravilhoso. Deus, ouquem quer que tenha criado essasmáquinas carnais, deve tê-lasplanejado assim. Pensei em
catedrais e assassinatos emilagres. Fui abençoado com avisão daquilo.
Então Karyn saiu de cima deNina e a puxou para a cama.Pensei que talvez Karyn fossechupar a boceta de Nina, mas nãochupou. Mais uma vez ela deitou ocorpo sobre o de Nina e começoua beijá-la com mais e mais força,cada beijo, de alguma forma, maisviolento que o anterior. EntãoKaryn soltou-a, curvou-se para
trás, ergueu a cabeça de Ninapelos cabelos e bateu em seurosto de maneira brusca com amão que estava livre, dizendo:
– Levante as pernas!LEVANTE AS PERNAS, SUAPUTA, ANTES QUE EU MATEVOCÊ!
Então ela soltou Nina. Aspernas de Nina se levantaram eKaryn começou a beijá-la denovo, puxando seu cabelo,beijando, beijando, e ao mesmo
tempo ela esfregava sua boceta naboceta de Nina, esfregando,esfregando, preto contravermelho, seios roçando em seios.Era o cúmulo da beleza e daexcitação. Eu não podia acreditar.De tempos em tempos, Karynparava de beijar e esbofeteavaNina com uma mão enquantopuxava o cabelo dela com a outra,gritando-lhe desaforos. Entãobeijava Nina de novo epressionava a boceta contra a
dela. Nina manteve as pernaslevantadas. Fiquei de pé ao ladodelas, me masturbando. Meu pau éapenas mediano, mas pareciaenorme, acredito, porque o caráterabsurdo das circunstâncias medeixou tremendamente excitado.Então Karyn começou a gemer.Estava quase gozando. Tambémgemi, olhando aquelas bocetas seesfolando: as pernas de Nina paracima com seus sapatos de saltoalto, todo aquele cabelo
enroscado de cima a baixo,aqueles corpos entrelaçados, tudoentrelaçado. Karyn gemeu,chegando cada vez mais perto doclímax. Comecei a sussurrar,tocando meu pau, em total sintoniacom o pré-clímax de Karyn.Quando Karyn começou a gozar,gozei, apontando meu pau paraelas, desejando de algumamaneira derramar esperma sobreelas – seus corpos, seus rostos –qualquer parte delas. Mas
enquanto me movia em direção aelas, o líquido jorrou e pingousobre o tapete. Karyn demoroumais no seu orgasmo. Não sei seNina gozou, mas seu corpocomeçou a se contorcer mais emais, como que reagindo ao deKaryn. As pernas de Ninatombaram e Karyn permaneceu aliem cima dela. Eu entrei nobanheiro, peguei um pedaço depapel higiênico e limpei minhaporra do tapete.
*
Várias semanas se passaram.Não vi mais Nina. Fiquei com aexecutiva que morava em MarinaDel Rey. Ficava lá a maior partedo tempo. Ela era uma alma boa –decente, mas um poucoperturbada, como qualquer pessoaem nossa sociedade – e criativa osuficiente, raramente aborrecida,e acima de tudo furiosa com oshomens e com o que os homens
tinham feito a ela – aquela velhahistória. Mas tinha um bomapartamento e um corpo ótimo;seus olhos eram a melhor parte –abatidos, mas ainda esperançosos– grandes e castanhos, brilhando obrilho bom das flores, um brilhobom como qualquer coisa boa.Mas o tempo acaba por entrar naequação, assim como as jornadasde trabalho de oito horas e osbazares de domingo e os amigos(dela). Eu não tinha amigos. Mas
que se foda tudo isso – o queestou tentando dizer é que váriassemanas se passaram até que Ninatelefonasse. Nina tinha um jeitopeculiar de falar ao telefone – avoz monótona e reticente. Faziavocê enxergar o cabelo, o corpode novo, a mente de novo, tudo oque a compunha e me fazia sentircoisas que nenhuma outra mulherera capaz de me fazer sentir.
– Hank – ela disse –, o quevocê está fazendo?
– Nada. Absolutamente nada.– Preciso de um favor.– Ok.– Quero uma carona até a
casa da Karyn.– Tudo bem.– Ela tem umas boletas. Não
são muito boas, mas dão para ogasto, e não tem mais nenhumafarmácia a que eu possa ir.
– Passo aí daqui a pouco.– Preciso de quinze minutos.– Tudo bem.
– Só uma coisa – ela disse.– O quê? – perguntei.– Pegamos o negócio e damos
o fora. Não quero nada daquiloque aconteceu da outra vez. Foiterrível.
– Tudo bem.Desliguei.
*
Quando cheguei à casa dela,Nina estava de calça jeans e
blusa, mas sem sapatos. Elafrequentemente andava descalça.Ou não gostava dos sapatos, ounem sabia o que estava fazendo.Nunca perguntei. Mas a coisamais incrível em Nina era que nãoimportava se estivesse de saltoalto ou de pés descalços, suabunda era uma maravilha. A maiorparte das mulheres ficava com abunda mais bonita de salto alto.Nina não. Aquilo não importava.Não com uma bunda daquelas. E
não tinha problema se engordava– a bunda ficava mais bonita – ouse emagrecia – a bunda ficavamais bonita. A cada dia sua bundaficava mais bonita.
Quando cheguei, ela estavaimensa e perfeitamente lá, comuma fita azul amarrada aosvolumosos cabelos ruivos. E oscabelos irradiavam VERMELHO;você não conseguia tirar os olhosdeles. Debaixo daquilo tudo elaparecia cool, quase indiferente – a
mulher mais provocante na faceda terra, e ainda assim ela nãoestava no cinema, ou mesmo naBroadway. Não estava levandomilionários à bancarrota.
De certo modo ela sabia, masao mesmo tempo não sabia – queera a mulher mais sexy do mundo.Eu estava feliz que ela nãosoubesse totalmente, ou eu nãoestaria por perto. De qualquerforma, entramos no carro e fomosem direção à Zona Oeste de Los
Angeles.– Muito bem, seu cretino –
ela disse –, não se esqueça do queeu disse.
– Do quê?– Não quero que seja como
da última vez. Pegamos as pílulase vamos embora.
*
O sol estava a pino e o ventoateando fogo aos seus cabelos.
Milagres de fato acontecem e namaioria das vezes acontecem emsilêncio. Então para mudar isso,liguei o rádio e ela colocou os pésno painel e começou a estalar osdedos no ritmo da música. Depoiscomeçou a cantar acompanhando aletra. Sua voz era aguda emelodiosa, levemente desafinada,uma voz alegre e cheia de graça.
Então ela puxou um fósforodo bolso de sua blusa, riscou-ocontra o osso saliente do pé e
acendeu o cigarro que estava emsua boca. Fumou metade docigarro, jogou-o pela janela e pôsum chiclete na boca. Mascou ochiclete. Então virou a cabeçapara o lado e olhou para mim. Eem sua boca crescia uma bola dechiclete roxo e foi ficando maior emaior e eu olhei para a bola eolhei para os olhos dela e ochiclete fez: ‘SPLOOTTT...’
*
O elevador nos conduziu aoandar de cima. Karyn abriu aporta.
– Só vim pegar o esquema,Karyn – disse Nina. – Depoisvamos embora.
Elas deram alguns passos emdireção ao interior doapartamento. Karyn virou-se edisse:
– Você vai pegar o esquema,puta, mas antes vai pegar outracoisa, puta, puta, puta... essa sua
boceta com a mesma cor doscabelos da sua cabeça, puta!
Nina virou de costas e correuna minha direção, correu emdireção à porta.
Agarrei Nina e não a deixeipassar. Meus dois braçosenvolviam seu corpo, segurandoos braços dela ao lado do corpo.Karyn se aproximou e aesbofeteou enquanto eu asegurava. Os tapas foram ligeiros,mas machucaram.
– Sua puta de merda, vocênão vai escapar de mim!
Então Kary agarrou Ninapelos cabelos e a beijou comrapidez cinco ou seis vezes. Meupau endureceu, me abaixei umpouco e o esfreguei na parte detrás da calça jeans de Nina. Karynestapeou-a de novo, desta vez umpouco mais forte, e colocou aboca na boca de Nina. Dei umpasso para trás, abri meu zíper eapertei meu pau nu contra a calça
jeans de Nina, contra aquelabunda.
Então Karyn saltou para trásdizendo:
– Tire a roupa dela, Hank!E começou a tirar sua própria
roupa. Desafivelei o cinto deNina, depois abri o zíper de suacalça jeans. Ela estava sedebatendo e era bastante difícil.Fiquei puto, subi as mãos eagarrei seus dois seios e aperteibem forte. Nina gritou. Tirei a
calça jeans de Nina. À essa altura,Karyn já estava nua e ela colouem Nina. Senti meu pau entrar nabunda de Nina, bem no início dorego. Lembrei todas as vezes quetinha ficado olhando aquela bundadurante tardes, manhãs, noitesinteiras – meu pau entrou: vitóriae glória. Karyn golpeou o rostodela com a mão fechada. OuviNina gemer. Meu pau foi maisfundo. Não me mexi. Apenasdeixei meu pau deslizar e
expandir. Karyn puxava o cabelode Nina com as duas mãos,beijando-a ferozmente na boca,abrindo a pequena boca de Ninacom a sua, chupandoincansavelmente sua alma. Ocabelo de Nina caiu no meu rosto,na minha boca. Comecei a movermeu pau para dentro e para forado seu cu. Havia um rádio ligadoem algum lugar, a todo volume.Então ouvi uma sirene, umaambulância. Passou. O contato do
cabelo de Nina contra o meu rostoera bem mais áspero do queparecia. Comecei a estocar meupau no cu de Nina. Foi o momentoda minha vida, o momento detodos os momentos. Então meupau escorregou do cu para aboceta de Nina. Eu estava em casae meti com tudo. Sua bocetaestava molhada e pronta. Euestava dentro de Nina, entrando esaindo, violentamente, comdevoção e ainda assim com total
deleite. Nina estava espremidaentre Karyn e mim. Quando estavaquase gozando, estendi a mão eagarrei a bunda de Karyn e a abriaté onde podia. Então me estiqueipor sobre o ombro de Nina,encontrei o rosto de Karyn, suaboca, e a beijei, abrindo suabunda e enchi a boceta de Nina deporra. Terminei de gozar, soltei-as e saí dali. Karyn e Ninacontinuaram.
*
Karyn carregou Nina até oquarto e colocou-a sobre a cama.Então abriu as pernas de Nina ecomeçou a chupar sua boceta...
*
Depois, todos nos vestimos.Sentamos na cozinha e bebemosalgumas cervejas e fumamos umcolombiano. Deu-se a transação
dos comprimidos e eu marchei emmais vinte dólares. Karyn nosmostrou suas fotos pornográficasmais recentes, e então fomosembora. Entramos no meu fusca67, fiz o retorno, coloquei o carrode volta na direção da parte dacidade onde moram os bonscamaradas pobres – EastHollywood. Tínhamos algunsSherman’s, e Nina acendeu umpara cada um de nós. Rodamosdurante algum tempo, e finalmente
estávamos passando pelaFountain. Liguei o rádio. Ninacolocou os pés no painel emelhorou todos os hits. Então umlongo comercial entrou no ar; não,foi uma série de pequenoscomerciais. Tentei outra estação,e outra, e outra. Só comerciais.Desliguei o rádio. Passamos porum posto de gasolina. O dia aindaestava claro. Então Nina começoua cantar:
Ruivas,Todos gostam das ruivas.Vou dizer ao mundo que ela
é aminha garota.Todos gostam das ruivas.Vou dizer ao mundo que ela
é aminha garota.É uma ruiva, e ela é aminha garota...
Rodamos ao longo da
Fountain até a Western, entãodobrei à direita na Western,passei os motéis, a loja de tacos ea Pioneer Takeout, passei oHollywood Boulevard, depoisentrei à esquerda na Carlton.Difícil encontrar vaga comosempre, mas embiquei e desci docarro.
Nina ficou parada meolhando.
– Ei! – ela disse. – Que porraé essa! Eu não quero ir para o seu
apartamento. De onde você tirouque eu quero entrar lá?
– Para onde você quer irentão?
– Quero ir para a casa doElbert. Me leve para a casa doElbert.
*
Elbert era um porto-riquenhode um metro e meio de altura ecom um pau de 25 centímetros que
fingia ser descendente da realezaargentina. Ele havia acabado dese formar em odontologia e faziapróteses dentárias. Seuapartamento era cheio de prótesesdentárias, com paredes cobertasde quadros vagabundos, frases-feitas e ditos insípidos. (Ninahavia me mostrado o lugar certanoite, enquanto Elbert fora assistira um jogo de basquete dos Lakers– num daqueles programas demachos). Elbert era praticamente
retardado, mas Nina me disse queele ‘fodia que era uma beleza’.Ela também mencionou aquantidade de ouro que havianaqueles dentes falsos.
Levei-a até o apartamento deElbert e ela desceu. Deu a voltano carro, inclinou-se para dentroda janela e me deu um beijinhominúsculo, úmido, com um leveroçar de língua.
– Tchau, paizinho – ela disse.Então fiquei olhando-a
atravessar a rua em direção aoapartamento de Elbert, aqueleslongos cabelos ruivos escorrendocostas abaixo até quase a alturadas nádegas – aquela bunda queoscilava para cima e para baixo epara cima e para baixo,acompanhando seus passos.
A natureza sempre seria maisperfeita do que a arte. Era de fatouma merda ser velho, e senti umador no que havia sobrado daminha alma.
Então Nina subiu em direçãoà escadaria que dava para osegundo andar do prédio e para oapartamento de Elbert.
Eu a amava. Mas não havianada que pudesse fazer. Sim,havia uma coisa: dei a partida nocarro e fui embora.
Na esquina da Franklin com aVermont ficava um velhojornaleiro doido. Ele pulou nafrente do meu carro abanando umjornal para mim. Pisei no freio,
desviando dele por pouco. Eleficou ali parado e olhamos umpara o outro através do para-brisa. Aquele jornaleiro: o rostoera impassível; ele parecia VanGogh, girassóis, cadeiras, osirlandeses. Ele saiu da frente esegui em direção à minha casaonde iria ficar muito bêbado,muito em breve, enquanto Elbertveria bem tratada aquela sua varade 25 centímetros.
Como tudo aconteceu
Chovia lá fora, mas não davapara ouvir a chuva, a Sala deInterrogatório era à prova de som.Sanderson estava sob a quente luzbranca. Era como uma cena defilme. Havia dois agentes. Um eragordo, malvestido, sapatos gastos,camisa suja, calças amassadas –
era Eddie. O outro era magro,vestia-se com apuro, os sapatosreluziam, as calças estavampassadas, a camisa engomada elimpa – era Mike. Sandersonvestia camiseta, calças jeansvelhas e um par de tênis batidos.
Eddie caminhava de um ladopara o outro sobre o pisocimentado. Mike estava sentadonuma cadeira. Ele encaravaSanderson. Sanderson estavasentado em frente à mesa de
interrogatório. O gravador estavaligado.
Eddie parou de caminhar,colocou-se em frente a Sanderson.
– Por que você escreveuaquelas cartas para o presidente?
Sanderson sacudiu a cabeçacom enfado.
– Já disse a vocês: este paísestá em perigo, o planeta todo estáem perigo.
Eddie inspirou, dava para vera enorme barriga entrando uns
dois centímetros para dentro.Depois expirou e a barriga voltoua crescer dois centímetros, talvezmais.
– É verdade que você foicondenado duas vezes por abusosexual infantil?
– Foi um tal de Harold L.Sanderson.
– Não banque o espertinho!Duas vezes, certo?
– Duas vezes.Mike inclinou-se para frente.
O lado esquerdo de seu rostocontraiu-se uma vez. Então parou.
– Você se importa com ofuturo do planeta, não é,Sanderson? Você quer aquelasmenininhas por perto, não quer?
– Gosto de crianças...Mike fez menção de levantar
da cadeira.– Seu nojento, não brinque
com isso!Eddie empurrou Mike de
volta para o lugar.
– Fique calmo. Estamostentando chegar a outra coisa.
– Simplesmente odeio lidarcom essas aberrações. É isso queele é, uma aberração, um maluco.
– O Oswald também era. E aseu modo, John Wilkes Booth.Temos ordem de investigar esseaí de cabo a rabo.
– Não estou tentando matar opresidente. Estou tentando salvá-lo.
– Cala a boca! – disse Mike.
– Você só vai falar quandoalguém fizer uma pergunta.
– Você sabe como osprisioneiros chamam esses caras?– Eddie perguntou a Mike. –Chamam de papa-anjos e têm umamaneira própria de lidar comeles.
– Ei – perguntou Sanderson –,me consegue um cigarro?
Eddie tirou um de seu maço epraticamente enfiou na boca deSanderson. Depois jogou seu
isqueiro em cima da mesa.– Acenda você.As mãos de Sanderson
tremeram ao acender o cigarro.Eddie caminhava para um
lado, girava, depois voltavanovamente para a frente deSanderson.
– Ok – ele disse –, vamosrepassar a história. Apenas porformalidade.
Sanderson tragou o cigarro.– Bem, o mundo foi invadido.
– Invadido por quem? –perguntou Eddie.
– Baratas? Pulgas?Prostitutas?
– Extraterrestres.– Extraterrestres?– Sim, eles estão por toda
parte, estão só esperando.– Ok, papa-anjos – perguntou
Mike –, onde eles estãoesperando?
– Bem, eles se apossaram decorpos de animais, pássaros,
peixes, até mesmo insetos, e estãoescondidos neles.
Mike soltou um risinhoirônico, olhou para Eddie.
– Ei, você tem um cachorro,Eddie. Está ciente de que ele é umextraterrestre?
– Se for, o filho da puta deveser louco por comida de cachorro!
– Você notou – continuouSanderson –, você notou que seucachorro parou de perseguirgatos? Notou que os gatos
pararam de pegar pássaros?Notou que as aranhas não comemmais moscas?
– Não notei – disse Mike.– Nem eu – disse Eddie.– Vocês notaram que o falcão
não mergulha mais para capturar alebre?
– Ouça, papa-anjos – disseMike –, somos nós que fazemos asperguntas por aqui. Já disse antespara você só falar quando a gentemandar.
Sanderson olhou para baixo.– Você manteve uma
daquelas garotinhas no seu trailerdurante três dias – disse Mike. –Estou com vontade de dar umaboa surra em você...
– Muito bem, Mike – disseEddie –, nosso assunto agora éoutro.
Depois olhou paraSanderson.
– Então as aranhas pararamde comer as moscas? Por quê?
– Porque cada uma delas éum extraterrestre disfarçado.Diferentemente dos terráqueos, osextraterrestres não destroem unsaos outros. E extraterrestres nãoprecisam de comida. Elespossuem mecanismos internos desobrevivência que não dependemde fontes externas.
– Ah – disse Mike –, comoum zoológico onde você nãoprecisa alimentar os animais?
– Se você verificar com o
pessoal do zoológico, descobriráque a jiboia não come mais ratose camundongos.
– Verificaremos amanhã demanhã – disse Eddie. – Por ora,me explique como meu cachorrodevora toda a ração? Se ele é umextraterrestre?
– Isso é uma fachada para quevocês tenham a ilusão desegurança até que chegue a horade atacar.
Eddie deu mais uma
caminhada ao longo do piso decimento. Mike balançou-se umavez na cadeira, então voltou a seacomodar. Eddie parounovamente em frente a Sanderson.
– E os corpos humanos? – eleperguntou.
– O que têm eles? –perguntou Sanderson.
– Também foram invadidos?– Só alguns. Sabe os sujeitos
daquela seita, que afirmam quepodem viver apenas de ar? Bem,
eles são extraterrestres.Mike se recostou na cadeira e
suspirou.– Bem, esse cara é louco de
pedra...– Pois é – disse Eddie –,
acho que isso é trabalho para umpsiquiatra. Terei de fazer essarecomendação. Mas por ora, porformalidade, continuaremos ointerrogatório.
Eddie deu sua caminhadinhaao longo do piso, voltou.
– Agora me diga, Sanderson,se o que você está dizendo éverdade, como é que você sabe detudo isso?
– Eu não sei. Não entendo.Mike se inclinou para frente,
encarou Sanderson.– O seu corpo foi invadido
por um extraterrestre?– Tudo o que sei é que nós
confiamos na Fonte.Mike estendeu a mão e
agarrou a camiseta de Sanderson
logo abaixo da gola.– Não me venha com
respostas evasivas! O seu corpofoi invadido por um extraterrestre,papa-anjos?
– Não sei...– De repente você ‘não sabe’
mais de nada!– Solte ele, Mike! Até parece
que você está começando aacreditar na história dele.
Mike o soltou.– Só quero arrancar alguma
coisa desse louco.Eddie caminhou para o outro
lado, para variar. Quando voltou,Sanderson perguntou a ele:
– Pode me dar outro cigarro?Eddie enfiou outro cigarro na
boca de Sanderson.– Então extraterrestres fumam
cigarros?– Não sei.– Basta – disse Eddie –,
agora basta. Se essa invasãoextraterrestre está prevista,
quando vai ocorrer? E não mediga que você não sabe ou vou melembrar daquelas menininhas eencher você de porrada!
– Mas eu sei.– Você sabe?– Sim.– Quando?– Em menos de uma hora.– Puta que pariu! – disse
Eddie fingindo pavor. Ele riu.Mike riu. Então pararam.
Eddie inclinou seu imenso
corpo para perto de Sanderson.– Como você sabe disso,
Sanderson?– Não sei. Confio na Fonte.– Ei – disse Mike –, agora
voltamos para o círculo viciosodo ‘não sei’.
– Acho que esse cretino viumuito filme de ficção científica –disse Eddie. – É um dessesmaníacos por Star Wars, StarTrek, E.T., só isso.
– É – disse Mike –, e papa-
anjos ainda por cima.– Escute, cara – ele
continuou, batendo forte com odedo no meio do peito deSanderson –, o que leva umhomem a molestar uma garotinha,afinal? Me diga, o que levaalguém a fazer uma coisa dessas?
– Não fui eu que fiz aquilo –respondeu Sanderson.
Mike levantou o braço direitoe bateu com bastante força norosto de Sanderson, com as costas
da mão. O cigarro que estava naboca de Sanderson voou longecom o golpe.
– Também não fui eu que fizisso.
Eddie ofereceu outro cigarroa Sanderson. Depois se virou paraMike.
– Olha, Mike, este caso não éde alta prioridade, mas acho quetalvez não estejamos lidando comessa situação de modoprofissional. Tudo o que acontece
aqui está sendo gravado, não seesqueça.
– Como as fitas de Nixon, éisso?
– Não exatamente. Nósprovavelmente não perderemosnossos empregos. Mas vamostentar ser um pouco maisprofissionais em nossas atitudes.
– Ok. É que detesto essescretinos.
– Ok, ok. Apenas mantenha acalma.
Eddie deu mais umacaminhada e voltou a parar emfrente a Sanderson.
– Muito bem, digamos quevocê seja um extraterrestre. Nestecaso, por que tentaria alertar omundo contra uma invasãoiminente?
– Em primeiro lugar, confiona Fonte. Creio que estou fazendoo que tenho de fazer.
– Explique melhor.– Está bem, talvez eu tenha,
de alguma forma, perdido ocontato, sabe, algo como umcurto-circuito, e embora tenha oconhecimento dos extraterrestres,estou também, ao mesmo tempo,sujeito às relações humanas eportanto solidário a elas.
– Agora estamos realmentechegando ao ponto...
O gravador estalou.Mike se aproximou, desligou
o aparelho, colocou uma nova fitae o ligou de novo.
Eddie limpou a garganta:– Como eu estava dizendo,
agora estamos realmente chegandoa algum lugar. Então, agora, setudo isso é verdade, não acha queseus companheiros espaciaisestão putos da cara por você estardivulgando tudo isso?
– Bem, esta é a Fonte. Edepois eles vão perceber que souruim das ideias e que a culpa nãoé minha. Os erros continuamexistindo, mesmo no mundo deles.
Eddie esfregou os dedossobre a enorme mancha em suacamisa suja.
– Bem, Sanderson, ointerrogatório está encerrado. Vourecomendar que você faça umexame psiquiátrico.
Eddie fez um sinal deconcordância em direção a Mike.Mike parou o gravador, inclinou-se sobre a mesa e apertou umbotão.
A porta se abriu e um guarda
entrou.– Leve este homem de volta
para a cela, O’Conner – disseEddie.
O’Conner era quase tãogordo quanto Eddie. Ele tinha umafilha ainda jovem, que estudavabalé e que esculpia muito bem.O’Conner puxou a arma docoldre, retirou a trava desegurança, puxou o gatinho edisparou uma bala entre os olhosde Eddie. Eddie ficou um
momento parado, depois caiudireto para a frente. As duaspróximas balas esmigalharam osmiolos de Mike.
Sanderson ficou de pé.– O’Conner, por que você
tem que matar alguns deles? Porque não podemos apenas tomarseus corpos?
– Não sei – respondeuO’Conner –, a Fonte sabe.
O’Conner saiu da sala eseguiu em direção ao corredor e
Sanderson o seguiu.– Snyxikolivks – disse
O’Conner.– Previxcloslovckkkov –
respondeu Sanderson.
Epílogo
Naquele momento opresidente dos ESTADOSUNIDOS DA AMÉRICA seabaixava para acariciar seucachorro. O nome do cachorro era
Clyde. Clyde era um vira-latavelho, mas era esperto: podiabuscar o New York Times ou mijarna perna imponente de umimponente membro do congressoem até quinze segundos depois dereceber o sinal. Era um excelentecachorro. Sua presença erapermitida na Sala Oval. Clyde e opresidente estavam ali sozinhos, aSegurança um pouco mais além.
O presidente se abaixou paraacariciar Clyde. Clyde abanou o
rabo e esperou. Assim que opresidente se aproximou mais,Clyde deu um salto, rosnando, embusca da jugular, mas errou ogolpe, atacando, em vez disso, aorelha esquerda. O presidentecaiu sobre o tapete, segurando olado esquerdo da cabeça com amão.
Lá fora, havia parado dechover.
Clyde voltou a rosnar, saltousobre o presidente, encontrou a
jugular, rasgou-a, e o bombearpurpúreo de sangue fétido teveinício. O presidente se levantou.Agarrando a garganta com umadas mãos, arrastou-se em direçãoà mesa e com a mão livre fezdeslizar um painel secreto, e,enquanto Clyde o observava,sentado no canto mais extremo daparte nordeste da Sala Oval, opresidente apertou o botão, obotão vermelho que disparava asogivas.
Por que tinha feito aquilo,não saberia dizer. Talvez a Fontesoubesse.
O presidente dos ESTADOSUNIDOS DA AMÉRICA caiusobre o tampo da mesa enquantona Terra as criaturas do espaçoretornavam para o espaço, e asaranhas começaram a capturarmoscas e a lhes sugar o sangue, eos gatos começaram a capturarpassarinhos, e os cachorroscomeçaram a perseguir os gatos, e
as boas constritoras começaram acomer os ratos e os camundongose as águias foram em busca daslebres – por um período, por umperíodo muito curto.
Apenas matandotempo
...Quando voltei ao bar haviaquase que uma nova turma por lá,exceto por Monk, que estavasentado ali, as mangasarregaçadas, revelando os bíceps.Havia alguma coisa errada comaqueles bíceps, não pareciam
saudáveis; eram grandes, maspareciam doentes.
Dei uma olhada em volta. Erauma tentativa, um perdigoto, umatentativa frágil para todos nósnaqueles bancos do bar. Era omelhor que podíamos fazer. E eraum bar legal porque era o únicopara nós. Simplesmenteficaríamos deslocados emqualquer outro lugar.
Sentei-me em meu banco epedi um uísque e uma cerveja
para acompanhar. Esta era a ação,o significado, a fruta na árvore, aflor em sua haste. Era uma vitória.E depois de uma vitória vocêprecisaria de outra.
Bem, eu não me chateavanaquele lugar, mas eu nãocostumava me chatear em nenhumlugar. E eu não estava sozinho.Podia ficar deprimido, suicida,mas isso não era o mesmo queestar sozinho. Estar sozinhosignificava precisar de alguém. Eu
não precisava. Tudo o que euprecisava deles era que não mesufocassem. O que eu fazia comeles naquele bar? Ficava olhandopara todos. Era um filmevagabundo, mas era o únicopassando, e como ator minhaponta era, de fato, coisa desegunda classe.
Monk me deu um sorrisinhopor cima de suas mangasarregaçadas.
– Ei, Hank, que tal uma
bebida?– Só depois que eu cortar o
cabelo.– Ei, mas aí já não vou estar
vivo!Alguns dos fregueses riram.– Me vê uma bebida – eu
disse a Jim.Os outros três ou quatro
começaram a se manifestar:– Ei, e o resto da
camaradagem?Olhei para Jim:
– Cuide dessa cambada.Uma salva de palmas
ribombou nas paredes sujas.Era um lugar para se estar.
Punha você para baixo, fazendocom que aceitasse qualquer coisaque viesse. Fazia você ser menos,mas quem precisa de mais?Quando você se sente como seestivesse precisando de mais,bem, é aí que os seus problemascomeçam: pensar nas coisas quese tem de fazer entre cagar e
morrer.Paguei mais algumas rodadas.
O tempo começou a oscilar. Otempo começou a balançar. Asasde borboleta.
Jim se foi, sucedido no barpor Eddie, o atendente da noite.Umas poucas mulheres chegaram,velhas, insanas, ou ambas ascoisas. De qualquer modo, aquilomudou a atmosfera. Fomentoucerto clima de carnaval. Jacarés,crocodilos, lagartos e lagartixas
de todas as espécies ocupavamagora os bancos. Observávamossuas bocas pintadas com exageroenquanto enfiavam cigarros ali, ouriam, ou tomavam as bebidas.Suas vozes soavamdesagradáveis, como se suascordas vocais tivessem sidoqueimadas, e seus cabelos puídoscobriam-lhes os rostos e às vezes– ah, somente em raros momentos,provocados pela confusão doneon – quando viravam as
cabeças, quase chegavam aparecer jovens e bonitas outravez, e então todos ficávamosfelizes e contentes e dizíamosalgumas coisas criativas. O sonhoestava ali, além da quina dobalcão. E se logo desaparecia, aliestivera.
Em alguns momentos era oque acontecia. E todos ficávamosbem, dava para sentir aquilo seespalhando no ar: estávamos ali,afinal, todos eram lindos e
grandiosos e interessantes, e cadamomento era único em seu brilho,reluzente e intacto. Davarealmente para sentir isso.
Então – tudo acabava.Simples assim.
Era como se sentíssemos ofim ao mesmo tempo. Asconversas morriam. Assim. Deimediato. Sentíamos a cada um denós ali como um desperdício.Silêncio. Nada de errado com osilêncio. Mas não era um silêncio
agradável. Era como setivéssemos sido enganados.Esvaziados de energia.Abandonados pela sorte. Presosali – desnudados.
Aquela sensação se estendiapor algum tempo. Durava tempodemais. Era constrangedor.
– Bem, que se foda – alguémdizia por fim –, quem vai tirar agente dessa merda?
O que sempre recolocava ascoisas em movimento e a ação
recomeçava. Novos cigarros eramacesos. Novas camadas de batom.Idas ao banheiro. Velhas piadascom finais novos. Mentiras.Pequenas ameaças. As moscasdespertando para girar através doar de um cinza azulado.
Não sei bem como aconteceu,mas tive a sensação de que Monknão tirava os olhos de mim, mesecando, e aquilo me emputeceu.Me pareceu que ele deveriaprocurar algo melhor para fazer.
Acho que estava apenas tentandoser amigável e divertido, mas elenão sabia como fazer isso, eembora eu soubesse que não eraculpa dele, ainda assim reagi,movido por uma estúpida emalévola ignorância que medominou completamente:
– Monk, você está umbagaço. Por que não vira essasmucosas adoráveis que vocêchama de olhos para outrapessoa?
– Por que você não vai tomarno olho desse seu cu! – ele disse.– Vejam só, o louco saindo dacasinha!
– Você não passa de ummonte de lixo reunido numdebiloide.
– O que você disse?– Estou dizendo que tudo aí é
falso, esses seus músculos. Écomo se você tivesse usado umabomba de ar para ficaremmaiores. A textura não engana.
Não há nada verdadeiro aí, nemno corpo, nem na sua cabeça.
Monk levantou do banco,enchendo o peito.
– Você se importa de calaressa boca?
– Não quero machucar você,Monk.
O bar inteiro riu. Acho queaté mesmo algumas das moscasnão resistiram ao riso.
E foi isso. Monk caminhouem direção à porta dos fundos. Eu
o segui. E o bar nos seguiu para obeco que ficava ali atrás.
Era uma noite linda. Emoutros lugares as pessoas estavamtransando, ou jantando, outomando banho, ou dormindo, oulendo jornais, ou gritando com ascrianças, ou fazendo outras coisassensatas.
Monk e eu tomamos posiçãosob o luar, e então me veio opensamento, eu preferiria estarassistindo a dois caras brigarem do
que ser um deles.Mas não senti medo, estava
bêbado demais para isso. Tudo oque senti foi uma sensação geralde cansaço, tipo, lá vamos nósoutra vez. Aquilo não tinhasentido nenhum, mas, ao mesmotempo, parecia algo necessário,como passar manteiga deamendoim num sanduíche.
Monk e eu começamos arodar. Vez ou outra fazia sinalpara que eu atacasse. Muito
efetivo. O pessoal do barsegurava suas bebidas. Fui até umdos caras e peguei sua cerveja,entornando a garrafa num só gole.Fiquei com a garrafa. Monk e eurodávamos. Recuei até a paredede um prédio, quebrei a garrafacontra os tijolos. A garrafa separtiu, mas não do jeito certo.Fiquei ali segurando umgargalinho de nada e aindaconsegui cortar minha mão. Jogueio caco inútil fora e Monk veio
para cima de mim. Minha mãosangrava de um jeito pavoroso.Pense i , se eu conseguir jogarsangue nos olhos dele talvez possacegá-lo.
Dei um passo para o ladoquando ele avançou, tentei dar umchute no seu rabo, mas errei.
Ele se voltou e nosencaramos de novo.
– Não quero machucar você,Hank, mas vou ser obrigado!
Parecia falar sério. Desta
vez, quando Monk avançou, nãosoube como me mexer. Não sei oque aconteceu. Meus pés ficaramplantados. Houve então um súbitopreto, uma sensação de cascalhose pedras contra meu corpo. Sentiuma queimação num dos ouvidosque era, a um só tempo e apesarde tudo, um sentimento de paz.Paz no tempo em que vivíamos. Obeijo de todas as tropas. Euestava no chão daquele beco, aspalmas das mãos escalavradas, e
então, agarrado a mim, na alturada minha barriga, estava Monk, eseguimos rolando, até que ele deucom as costas numa lata de lixocheia de garrafas vazias.
Levantamos.Eu era um covarde e não era
um covarde. Esse era o meuproblema: não conseguia medecidir. Monk não precisavagastar tempo se analisando,apenas voltou a avançar.
Detive-o com um jab de
esquerda. Direto no nariz. Elepiscou e recuou.
Monk atacou com mata-cobras. Eu conseguia ver osgolpes vindo. Me defendi dealguns, me abaixei para escaparde outros. Segui com os jabs.Acertei uma direita em seuouvido. Para foder com o otário.Deixá-lo no bagaço. Seu corpoestava cheio de ovos erosquinhas. Provavelmente amavaa mãe e o país. Um frouxo.
Avancei e disparei umasequência combinada. Entãorecuei.
– Está bom para você, sacode banha?
Monk se endireitou.– Vou acabar com a sua raça!Voltou a me atacar. Veio
como um trem. Seu único truqueera avançar em linha reta.Desviei-me para a esquerda e odetonei com uma direita quandocruzava por mim. Foi tão fácil que
chegou a ser vergonhoso. E nemfoi um golpe daqueles. Balançou acabeça, parecia tonto. Ao se virar,dei-lhe um gancho de esquerda.Acabei acertando seu cotovelo emachucando minha mão deverdade. Então ele me pegou comuma direita. Estava encobertopela lua e seu golpe veio como umfoguete. Minha cabeça chacoalhoue senti sangue em minha boca.Vermelho, branco e azul piscavamdiante de meus olhos. Ouvi Monk
voltar ao ataque. Me escondi atrásde um dos assistentes, empurrei-ocontra Monk. Enquanto Monk selivrava do cara, avancei e dei umsoco curto e depois outro na alturado rim.
– Merda – disse Monk.Sua velocidade voltou a cair.
Disparei uma direita pesada noseu estômago. Ele se curvou e, aofazer isso, juntei minhas duasmãos, passeia-as por cima dacabeça e golpeei sua nuca com
tudo.Monk desabou. Era uma
visão maravilhosa. Ele precisavadaquilo. Exibindo seus bíceps diae noite sem parar. Sentadonaquele banco daquela maneira,se achando o máximo. Um zé-ninguém. Um zero à esquerda,com pelos saindo do nariz que aporra do barbeiro não fazia ofavor de aparar.
– Caralho, Hank, não acheique você pudesse dar conta dele –
disse um dos caras da plateia.Olhei para ver quem era.
Williams Olhos Vermelhos.– Você não entende nada de
lutas, Olhos Vermelhos, pague aaposta e não chie.
– Porra, a três por um é decravar. Não consigo entender.Você tinha perdido as duasúltimas.
– Eu estava apostandonaqueles caras – eu disse.
A plateia riu.
Monk levantou-se sobre osjoelhos, balançando a cabeça.
Me aproximei.– Ei, vejam só! Agora quer
me pagar um boquete!Monk voltou a balançar a
cabeça, olhou para mim.– Quanto sai a chupeta,
Monk? Cinco pratas?Monk agarrou uma das
minhas pernas e a ergueu. Caí debunda no chão. Quando quis sejogar em cima de mim, acertei-lhe
um chute na cara. Voltou adesabar, balançando ainda mais acabeça. Poderia aproveitar parapisoteá-lo, com os dois pés, masnão o odiava tanto assim. Eleapenas me revoltava o estômago.
– Vamos lá, pago uma bebidapara você. Não há homem nomundo que possa vencer todas.
Estendi a mão para ajudá-lo.Ele a agarrou e me puxou para ochão. Então começamos uma lutade agarramento, rolando sem
parar pelo chão. Quando me deiconta do que acontecia, ele tinhame dado uma gravata. Umagravata das boas. Mas que diabos.O truque mais velho e sujo detodos. Homens de verdade nãofazem essas galinhagens. Eu malpodia respirar. Tentei agarrarsuas bolas. Não havia nada lá!Procurei e procurei. Em vão! Euestava lutando com a porra de umeunuco!
Não conseguia me livrar
daquela chave. Sentia-me cadavez mais fraco. Não conseguiarespirar, não conseguia me mexer.Era horrível, indecente, injusto.Eu ia morrer ali.
Por que ninguém mandavaparar essa merda?, pensei.
Por que não me contentei emficar esta noite bebendo sozinhono meu quarto, como era minhaideia inicial?
Então meus pensamentos seapagaram.
*
Quando recobrei aconsciência, estava sozinho nobeco. Me deixaram ali.Continuava escuro. Podia ouvir amúsica da jukebox do bar.
Me deixaram ali,simplesmente me deixaram ali.
Aquilo calou fundo. Querodizer, não que esperasse muitodeles. Mas não isto. Aquilo mepegou de surpresa. Me deixaram
ali como um pedaço de carnequalquer. Nenhuma preocupação.Nenhuma ambulância. Nenhumapalavra. Nenhum som. Nem comopiada funcionava.
Todas aquelas rodadas queeu paguei para eles. E para quê?Para me deixarem ali, o maiorotário do mundo.
Ainda não conseguiaacreditar. Esperava que aqualquer momento irrompessemcom bebidas e risos e toalhas
macias e úmidas.Era difícil engolir a
indiferença. Eu os tinha julgadopessoas baixas, mas jamais tãobaixas quanto se revelaram.
Uma aberração, para eles eunão era mais que uma aberraçãosacrificial.
Achei que entendessem quetudo não passava de umabrincadeira para mim. Que eu nãofazia mais do que matar temponum mundo que nunca se tornaria
o que poderia ter sido.Não chegavam sequer a me
odiar. Não chegavam sequer apensar em mim.
Então escutei uma mulhergargalhar no bar. Foi uma risadalonga e aguda mas nem de longeuma risada boa, soava falsa eforçada, bastante desagradável,como a risada de uma canastronano palco em meio a uma peça dequinta para um público insensívele embotado. Puta que pariu, onde
eu tinha me metido? Eu era umpigmeu numa terra de anões.
Eu ia me levantar agora edizer isso a eles. Eu ia entrar lánaquele bar e lhes dizer o queeram.
Tentei me pôr de pé. Assimque consegui, minha cabeçacomeçou a rugir e a latejar, umador lancinante que ia do centro docrânio e descia espinha abaixo.Era como uma linha de fogo,podia sentir as órbitas dos olhos
se voltarem para o lado de dentroda minha cabeça, e isso foi tudo...
Quando voltei a mim o sol jáhavia nascido e eu estava próximoa uma lata de lixo novinha emfolha, que refletia os raios solaresem mim, e estava quente, e quandoolhei para a lata, fiquei reparandonas linhas que corriam por suaslaterais e embora isso possaparecer irreal e estúpido foi o queaconteceu de fato.
No fim das contas, fiquei só
com uma leve dor de cabeça. Senão estivesse bêbado, era bemprovável que não tivessesobrevivido. Como tudo na vida.O que estava pior era minha mãoesquerda. O inchaço quase adobrava de tamanho.
Me levantei, usando comoapoio a lata de lixo. Fiquei aliparado.
Sabia qual deveria ser opróximo passo e o temia.
Já acontecera diversas vezes
durante outros porres. Depois denoites ao lado de mulheres da rua.Depois de tantas noites, de tantasvezes, mesmo sem a companhiadessas mulheres.
Fiquei ali parado, antes detentar qualquer coisa.
Por favor, apenas dessa vez,por favor, que esteja ali. Querodizer, estou cansado, como vocêspodem ver, minha forma físicaestá longe do aceitável. Tudo oque eu quero, vocês sabem, são
umas cinco ou seis pratas; paramim isso é como dez mil dólarespara outra pessoa. Que a carteiraesteja ali. Sempre tão quentinha,tão ajustada, tão pessoal,adaptada ao bolso de trás dacalça, uma pequena esperançaquando tudo mais é pesadelo. Nãopeço muito, apenas isso.
Toquei o bolso.A carteira se fora.E aquilo não era de
surpreender. O surpreendente
seria o contrário. O milagre. Oamor pela humanidade.
Então, a esmo, vasculheimeus outros bolsos, no da minhacamisa, em todos os lugarespossíveis, sabendo, de antemão,que aquilo não passava demanobras para retardar o óbvio.
Eu tinha sido rolado outravez.
O mocinho, rolado. Mais umavez haviam mijado na decência.Ah, meu velho.
Algumas vezes, sabendo queos tubarões estavam ali, euescondia minha carteira.
Ergui a tampa da lixeira e deiuma olhada ali dentro. Estavacheia e fedia. Uma lufada pútridase ergueu de dentro e não pudesuportar. Sou muito sensível acheiros. Vomitei direto ali dentro.Depois me reergui.
Eu era um cara esperto.Geralmente escondia minhacarteira muito bem. Certa vez
escondera minha carteira atrás deum espelho que ficava na parte dedentro do banheiro. Haviadesaparafusado o espelho inteiroenquanto estava bêbado, colocadoa carteira ali e aparafusado devolta – para ter certeza de queuma das mulheres da rua à minhaespera na cama não ficaria comela. Duas semanas depois aencontrei ao entrar no banheiro eperceber um certo volume atrásdo espelho.
Comecei a puxar os sacos dedentro da lata, parando paravomitar mais uma vez. Tirei tudode dentro: borra de café, cascasde laranja e outros tantosresíduos, um, inclusive, queparecia uma cabeça humana.Espalhei tudo ao meu redor.
Nada da carteira.– Ei, você aí, branco
pobretão, vou arranjar algumacoisa para você mastigar!
– Não, tudo bem, senhora.
Estou bem.– É? Está bem mesmo? Bem,
se está bem então faça o favor decolocar essa merda toda de voltano lugar, certo?
– Tudo bem.Comecei a catar o lixo e
colocá-lo de volta na lata. Algunsdos sacos de papelão seromperam e tive que recolher osdejetos com minhas mãos paradevolvê-los à lixeira. Vomiteimais uma vez, coisa pouca.
Coloquei a tampa no lugar eentão fiz uma mesura para asenhora que me observava atravésda porta de tela.
– Muito bem – ela disse –,agora tire esse seu rabo sujodaqui, entendeu?
Então, ciente de minhaesperteza, ergui a lata e olheiembaixo. Nada da carteira.
– Mas que porra você estáfazendo agora?
– Nada, senhora.
Segui caminhando pelo becoe cheguei à extremidade da rua.Devia ser ainda umas sete ou oitoda manhã, os carros avançavamvelozes pelas duas mãos,dirigidos por pessoas aosmagotes, gente que odiava seusempregos e que morria de medode perdê-los. Eu não tinha que mepreocupar com isso. Caminhei emdireção ao meu quarto, eu aindatinha meu quarto, e não haviabaratas lá, porque os
camundongos dominavam. Aquilonão me agradava, mas era algoque eu podia aceitar. Era melhordo que se não houvessecamundongos porque havia ratos.
Nunca conseguia dormirdireito em albergues ou centroscomunitários.
Avancei na direção do meuquarto me sentindo quase umvencedor.
Distrações na vidaliterária
É uma noite quente de verão,uma noite muito quente, e estousentado na cozinha, à mesa docafé da manhã, só que aqui nuncase serve o tal café e estamossempre mareados demais paracomer algo a essa hora. Seja
como for, estou tentando escreveralguma coisa, um conto, mas nãoqualquer tipo de conto, um contosacana para uma das minhasrevistinhas [Jesus, escrever édureza: será que não há umamaneira mais simples de dizer ascoisas?]. Enquanto isso, um dospés da mesa se desconjuntou etenho que parar de escrever àmáquina porque o tampo todo estáprestes a desandar e a questãopassa a ser agarrar a máquina, a
garrafa, o pé da mesa, tentandomanter meu mundo de pé: umbêbado deu uma bica no pé damesa certa noite e eu tive que pôrcola, pregar e tudo mais, mas amadeira se desgastou e não hájeito de mantê-la firme, mas, nãosei bem como, dou um jeito deempurrar o pé de volta ao seulugar. Isto funcionamomentaneamente e aproveitopara tomar um gole, acender otoco do meu charuto, seguir
escrevendo, esperançoso dechegar ao próximo parágrafo antesque a mesa comece outra vez abambolear.
O telefone toca na outra peçae coloco a máquina e a garrafa nochão e me levanto para atender, e,quando chego lá, Sandra jáatendeu. Sandra, a dos cabelosruivos que parecem macios acerta distância, mas que de perto,quando você os toca, se revelamimprevisivelmente duros,
diferente de seus peitos e dabunda gigantes. Posso colocarseus peitos e sua bunda numconto, mas ninguém vai acreditarneles, aqueles editoresabichornados, judeus e morenos,têm problemas em acreditar. Certavez mandei uma história sobrecomo comi três mulheresdiferentes num só dia, eu nãoqueria ter feito isso, mas ascircunstâncias me forçaram, e umdesses editores me respondeu
numa carta odiosa: “Chinaski,isso é doentio! Ninguém passa poruma coisa dessas! Ainda mais umvelho vagabundo, um velho fodidocomo você! Volte para arealidade! Blá, blá, blá...” eleseguia...
Seja como for, Sandra mepassa o telefone, estava bebendosaquê (gelado) e fumava um dosmeus charutos. Ela baixa ocharuto. Assim que eu digo“alô?”, ela abre meu zíper e
começa a chupar minha pica.– Escute – digo –, será que
você pode me deixar em paz?– O quê? – pergunta o cara no
telefone.– Não é com você – digo.Estou com minha camisa de
baixo e eu a puxo e estico sobre acabeça de Sandra para poder falarmais livremente.
É meu traficante, que vivenuma casa cujo pátio dá de frentepara o meu, um pátio muito maior
e muito mais bacana, e ele me dizque acaba de receber um pouco decocaína. Às vezes fico por alienquanto ele dilui mais uma vez omaterial e o ensaca nessaspequenas trouxinhas de papel-filme, sem que sua mulherrequintadíssima pare de desfilarum minuto em seus imensos saltos.Nunca a vejo usando o mesmovestido ou o mesmo par desapatos. Trepamos certa vez como traficante nos olhando. O cara
só usa coisa boa, de modo quenada o incomoda. Ou talvez elegoste de olhar.
Continuo ao telefone.– Quanto você quer? –
pergunto.– Bem, para você, na
parceria, faço por cem pratas.– Você sabe que estou falido.– Achei que você tinha me
dito que era o maior escritor domundo.
– O problema é que os
editores não sabem disso.– Tudo bem – ele diz. – Faço
por cinquenta para você.– O que você usa para malhar
o esquema? – pergunto.– Segredo de negócio...– Vamos lá, me diz aí –
insisto.– Porra seca...– De quem? A sua?– Chego aí em meia hora – e
ele desliga.Sandra me fez gozar. Ela
retira a cabeça da minha camisade baixo. Põe o charuto de voltana boca, acende o isqueiro, comalgumas baforadas devolve a vidaao fumo. Fecho meu zíper,caminho de volta para a cozinha,dou uma olhada no pé da mesa,coloco a garrafa e a máquina deescrever sobre o tampo, começo aescrever novamente. Updikejamais teve de escrever sob essascondições. Cheever também não.Confundo os dois. Mas sei que um
está morto e outro já não podeescrever. Escritores. Merda.Conheci Ginsberg certa vez,depois de uma leitura coletivadele, seus camaradas e eu. Quenoite sofrida e lamentável naquelacidade cagada de Santa Cruz.Mais tarde, na festa, ele e seuscamaradas apenas se encostaramcontra uma parede e tentaramparecer sábios enquanto eudançava como um bêbado. “Nãosei como falar com o Chinaski”,
Ginsberg disse a um de seuscamaradinhas.
O mesmo vale para mim.Sigo escrevendo... No meu
conto há um cara que quer foderum elefante-bebê pela tromba – éum empregado do zoológico e estácansado da mulher... O tratadorenfiou a pica na tromba doelefante e está batalhando aliquando, de súbito, o elefante dáuma fungada e puxa as bolas dotratador para dentro também,
apenas as puxa, e a sensação éboa para o tratador, realmenteboa, muito boa – o cara chega aoclímax e, quando está prestes atirar as partes, percebe que oelefante não as solta. Não há jeito.Não, não, não. Aquilo é uminferno. Uma piada de mau gosto.Me solte!! O cara pega os doispolegares e os enfia nos olhos doelefante. A situação se encrespa.O elefante apenas funga com maisforça. Nossa Senhora. O tratador
tenta de tudo. Relaxa. Fingedormir. Fala: “Vamos lá, mesolte. Prometo nunca mais meternum animal”. Agora são três damanhã e o elefante já estáagarrando-o há mais de uma horae meia... Nunca tinha enfrentadoproblema parecido com a esposa,ela não tinha agarradura... Oelefante apenas o mantinha preso.Então o tratador recebe uma luz,tira o isqueiro, aumenta a chama ea coloca debaixo da tromba. A
agarradura começa a ceder, masentão a chama se apaga. Otratador tenta acender o isqueironovamente. Nada feito. Seguegirando a roldana. Não há maisfluido. Que azar. Quinze anos decasa e iriam encontrá-lo naquelasituação pela manhã, ele perderiao emprego, ou algo pior...
– Ei, palerma! – Sandra gritada sala ao lado. – Estáescrevendo algo que preste?
– Sim, mas não sei como
terminar.– Ah, deixe eles detonarem a
porra da bomba atômica.– Mas que beleza! É o que eu
vou fazer! Ninguém, ninguémnunca escreveu uma história comoesta!
De repente o pé da mesadesliza e só tenho tempo deapanhar a garrafa, enquanto amáquina de escrever se chocacontra o chão. Isto jamaisaconteceu a Mailer ou Tolstói.
Dou uma bebericada na garrafa,avanço na direção da velhamáquina. Não morra na minhafrente, sua f.d.p., não meabandone... Ela caiu virada paracima. Sento no chão e digito asteclas. Escrevo: NÃO MORRANO MEU INFINITO. Ela meresponde, do mesmo jeito. Ela édurona, como eu. Tomo um goleem efusiva celebração por nósdois. Então me vem uma luz:decido escrever no f.d.p. do chão,
vou terminar de escrever a f.d.p.da história no f.d.p. do chão.Céline resolveria essa.
*
De repente vem um somexorbitante do céu, seguido deexplosões e também de umasensação de guerra não declarada,enquanto infinitos fragmentos devidro, furiosos e terríveis, rasgamas paredes e janelas, entulhando
tudo. Não há esperança em Dixie.Não há esperança para nenhumlugar. Bing Crosby se chacoalha ematraqueia em sua cova. É aguerra. É a guerra em EastHollywood, recém-saída deHollywood e dos bulevares aoeste, perto daquelas lojas deconveniências, perto de mim, denós, vinham tentando limpar odistrito há anos, mas a coisa sópiora.
(Perdoem-me, mas me
deixem falar sobre o melhor dostempos que me ocorre, querodizer, quando a vela ainda ia altae a vida era, enfim, boa: essecafetão alugou uma quadra inteira,a porção sul do HollywoodBoulevard. Bem, não era bem umaquadra inteira, mas era quase todaa quadra entre a loja de saldos e obar de mulheres peladasmatadoras, e ele colocava suasgarotas sentadas nas janelas,reproduzindo, no ambiente, as
condições de um lar comum:cadeiras, tevê, tapete, às vezes umgato ou um cachorro, cortinas, e agarota ali sentada na janela, quasecomo se fosse de vidro, de cera, ese nem sempre era bonita, aquilotudo me parecia bastantecorajoso, ou ao menos um poucogalante, tudo para permitir que osclientes pudessem escolher demodo adequado e sem afobação...Lá estava o cafetão no mais altoestágio da arte, mas
evidentemente que não conseguiuvingar: certa noite, dezoito noitesapós sua instalação, ele e asmeninas se foram.)
Mas, nesse meio-tempo, vouaté a varanda com Sandra àsminhas costas, recostando seusúberes em mim. As explosõesabundam enquanto cacos de vidroafiados voam por toda parte.Trato de proteger meus olhos comos óculos. Então, acima naWestern está o grande e velho
hotel, com seus oito ou dezandares, cheio de drogados, putas,cafetões, criminosos, loucos,loucas, imbecis e santos.
Lá está um cara negro e nusobre o telhado do hotel e nóspodemos ver que ele é negro eestá pelado porque o helicópteroda polícia, que está semprezunindo entre Hollywood eWestern, lança luzes sobre ele.Podemos vê-lo. Bem. Mas ospoliciais não mandam seus carros.
Não é preciso. Não enquantoestivermos nos destruindo. Nãosomos nada a proteger. Nãoimportamos, porque dos três milhabitantes da área podemos reunirneste momento, vamos dizer, sefizermos uma vaquinha, nomáximo uns dois mil dólares. Enão temos nenhuma casa paradeixar, nada de cartões AmericanExpress. De modo que, no queconcerne à lei, podemos nos mataruns aos outros até que nossos
sangues escorram, com o diabo,até que caminhem e durmam, comoum malte vermelho e uniforme,grosso e fedido pelas ruas...
Olhamos para cima enquantoo negro arremessa mais e maisgarrafas vazias de vinho. Sob asluzes intensas do helicóptero, elebrilha como um pedaçoincandescente de carvão. Ele temum aspecto ótimo, quero dizer,parece estar num palco. Todosnós precisamos nos libertar, mas
quão raramente conseguimos.Trepamos e bebemos e fumamos evadiamos e cheiramos, e tudo issose torna insípido. Lá está ele emseu momento de liberdade. Agora.
Ele grita:– Morte aos brancos! Uma
morte negra para os brancos!Fodam-se, seus branquelos demerda! Suas mães são todas umasputas! Seus irmãos são todos putos!Suas irmãs trepam com cachorros echupam pica de preto! Morte aosbrancos! Deus é negro e eu sou
Deus!Odiamos tanto uns aos outros
que isso nos dá alguma ocupação.Agora garrafas voltam a cair,
a maioria se quebra contra asparedes, nos telhados dos pátios,mas algumas saltam como objetosinsanos, sem se partir, ou apenasparcialmente quebrados, e entãose partem contra nossas janelas, eisso é um pouco triste, porquesomos pobres; seria melhor sepudéssemos jogar essas garrafas
com força capaz de vencer adistância até aqueles janelões deBeverly Hills.
Então vejo Big Sam surgir noquintal de sua casa. Ele está emtratamento e avança pelo terrenoaté se posicionar bem no meio dachuva de garrafas voadoras, paradepois olhar na direção do negropelado. Big Sam carrega umaespingarda. Então ele me vê. Dealgum modo ele acredita que souseu único amigo. Talvez esteja
certo. Nunca o considerei ummaluco.
Ele fala comigo.– Hank, acho que vou dar um
tiro nele. O que me diz?– A melhor regra para cada
situação é fazer aquilo que vocêquer fazer.
Não acho que uma espingardapossa fazer muito estrago daqueladistância. Sam me diz:
– Tenho um rifle também...– Eu não atiraria, Sam.
– Por que não?– Caralho, sei lá.– Bem, me avise quando
souber.Ele coloca a arma sobre o
ombro e marcha de volta para oquintal.
As garrafas de vinhocontinuam caindo, mas, de certomodo, aquilo deixa de serinteressante. Algumas das pessoasretornam para suas casas. Asluzes começam a se acender,
gradualmente. Por fim, até ohelicóptero se afasta. Há maisalguns estouros de garrafa, edepois silêncio.
Dentro de casa, mudo dovinho para o uísque. É difícilescrever com o rabo no chão, masagora não tenho que me preocuparcom a perna da mesa, o uísquepõe uns pequenos rugidos nasfrases, consigo entrar na história equando estou prestes a fazer abomba cair ouço uma batida na
porta. Deve ser o traficante e,quando sigo em sua direção,Sandra já o detém no vão deentrada, as mãos em seus bagos,ao que ele sorri e me diz:
– Sandra sempre faz eu mesentir bem-vindo.
– Bem, cacete, a gente nãotem um daqueles capachinhos com“Bem-vindo” escrito, então temosque fazer o que podemos.
Sandra o solta, e o traficantediz:
– Tenho umas carreiras aqui.E eu trago o espelho e a
navalha e nos sentamos e elearruma o negócio. Ali estão trêscarreiras, e Sandra cheira a dela eo traficante cheira a dele, depoischeiro a minha e espero. Sei quese ele tiver cortado o bagulho commuita anfetamina vou reagir deacordo. A anfetamina me deixamalévolo. Não contra as pessoas,excetuadas as agressões verbais.Mas eu quebro coisas: espelhos,
cadeiras, lâmpadas, privadas;puxo os tapetes e os retorço porcompleto. E paro por aí. Nuncaquebro pratos.
– Onde está a Deeva? –pergunto. Deeva é sua senhora. Ados muitos vestidos e sapatos.
– Está lavando a louça – dizo traficante.
Era uma mulher rara. Usavavestidos e saltos altos e lavava alouça.
Alcancei-lhe duas de vinte e
uma de dez, e ele me passou osaquinho.
– Ainda curto mais encher acara – eu lhe digo. – Com essenegócio não há um ponto dechegada, o efeito desaparece e épreciso dar mais uma pegada.
– Quando cheirar um bagulhoquente – ele diz –, você não vaipensar mais em nada.
– Como ver Jesus, não é? Vêse traz um quente uma horadessas.
– É melhor do que Jesus. Semespinhos, sem inferno. Apenas asuavidade do nada.
Ele caminha até a porta, abunda pequena apertada demaisnas calças. Ao chegar ao batente,ele se vira e sorri:
– Que confusão foi essa poraqui um tempo atrás?
– Um negro. Louco com apele dele. E também com a minha.
O traficante vai embora.Sandra está alinhando
algumas carreiras. Se ela forcomo eu, sente mais prazer emalinhar do que em cheirar. Sabiaque pela manhã eu teria a cabeçade um suicida. Que as paredesseriam de um azul escuro e quequalquer sentido estaria esvaziadopor inteiro. É como fazer umasubtração de uma subtração.Gatos com cara de cachorro.Cebolas com pernas de aranha.Uma vitória americana como umacortina de vômito. Um banheiro
com um peito, um só bago. Umapia que olha para você com orosto verdadeiramente vazio deuma mãe verdadeiramente morta.
Mas você só se ocupa damanhã se consegue chegar lá.
Grito com Sandra:– Eu vou preparar as
próximas carreiras! Na últimaviagem você fodeu comigo, assuas carreiras tinham o dobro dagrossura!!
Voltamos ao velho ponto:
discutir nossas carreiras.É quando alguma coisa mais
tem início – há esse grito terrívele apavorante de uma mulher queteme por sua vida, e logo depoisoutra mulher que grita:
– Sua vadia, sua vadia, vouacabar com a sua raça, sua vadia!
Mais uma vez vamos para avaranda. Vem do mesmo hotel.Uma mulher está dependuradanuma janela do nono andar apenaspor uma perna e um braço, a
maior parte do corpo já para fora,como se prestes a cair. A outramulher está curvada sobre ela e aataca com algum tipo de objeto.Aquilo segue, e o som que vem delá é mais doloroso do quequalquer feiura que se possaimaginar ou que se possaconceber.
O helicóptero está de volta.Ilumina e foca suas luzes sobre aagonia daqueles corpos. Ohelicóptero flutua e circula,
disparando o grande holofotesobre as mulheres. Que continuamper se.
Mais uma vez, Sam aparecemarchando com sua espingarda,olha para mim.
Eu digo:– Vá em frente, Sam, passe
fogo nas vadias, essas cadelasfazem muito barulho!
Sam ergue a arma, mira, atira.Manda pelos ares a antena externade alguém. A estrutura desaba,
retorcendo os fios e os braços,árvore seca mergulhando emdireção à escuridão merecida.
Sam baixa a arma, volta parao quintal.
Sandra e eu entramos emcasa. Caminho até a cozinha, olhopara a máquina sobre o chão. Éum chão sujo. É uma máquina sujaque escreve contos sujos.
Lá fora a gritaria continua,sem solução.
Lembro-me do uísque, me
sirvo uma dose. Tomo.Foi por isso que me tornei
escritor. Foi por isso queconsegui escapar dos empregosnas fábricas. Aqui está todo osentido e o verdadeiro caminho.
Retorno para a outra peça.– Não acho que vou terminar
o conto esta noite – digo a Sandra.– Quem se importa? – ela
pergunta.– Você tem a alma de uma
lacraia – digo.
Não há nada mais prazerosodo que sentir desprazer quandonão há mais nada a fazer, enormalmente não há nada a fazer,e agarro Sandra pelo pulso, torço-o, pego a navalha e digo:
– Eu disse que seria eu opróximo a separar as carreiras.
Inclino-me para a frente e,com alguma habilidade, começo aalinhar.
Eu conheço o mestre
Quando eu era jovem, era umescritor que passava fome. O fatode que a fome poderia me levar àmorte não me incomodava muito,uma vez que a vida não meparecia interessante, e morrer nãoparecia uma má perspectiva –talvez uma nova embaralhada nas
cartas? Laborei, de tempos emtempos, como um trabalhadorcomum, mas por curtos períodos.Um ou dois contracheques e eupulava fora, mantendo-meafastado de empregos o quantofosse possível. Tudo o que euprecisava era de dinheiro para oaluguel e para comprar bebidas, etambém para os selos, osenvelopes e uma máquina deescrever. Escrevia de dois a seiscontos por semana e todos eram
recusados pela Atlantic Monthly,Harper’s e The New Yorker . Paramim isso era difícil de entenderporque os contos que eu lia nessasrevistas eram escritos comcuidado, bem-trabalhados talvezseja o termo. Mas, em essência,os contos eram inermes e chatos, eo pior de tudo: não tinham humor.Era como se tudo não passasse deuma mentira e quanto maistrabalhada fosse essa mentiramais você era aceito.
Eu escrevia e bebia à noite.Durante o dia eu ficava naBiblioteca Pública de LA e liatodos os escritores e era umal e i t u r a difícil, os escritoresusavam parágrafos longos epáginas de descrição, construindoa trama e desenvolvendo ospersonagens, mas os personagensnão eram nada interessantes e oque as histórias finalmenterevelavam não era lá grandecoisa. Pouco se dizia das vidas
desperdiçadas da maioria daspessoas, da tristeza, de todatristeza, da loucura, da risadavencedora da dor. Boa parte dosescritores escrevia sobre asexperiências da vida da altaclasse média. Precisava ler algoque me ajudasse a atravessar odia, a rua, algo em que pudesseme agarrar. Precisava meembebedar de palavras, em vezdisso me via obrigado a apelar àgarrafa. Eu sentia, suponho, como
todos os escritores fracassadossentem, que eu realmente podiaescrever e que as circunstâncias eos que governam e a políticaestavam contra mim. Às vezesestão; outras vezes você apenasacha que pode escrever quando naverdade não pode.
Eu passava fome e escrevia.Baixei de 95 para 65 quilos. Meusdentes ficaram frouxos na boca.Podia empurrar meus incisivoscom os dedos para a frente e para
trás. Estavam frouxos na gengiva.Certa noite, enquanto dava umavolta, senti que algo se desprendiae logo estava com um dente namão. Lá estava ele: virado paracima. Coloquei-o sobre a mesa ebebi em sua homenagem.
E, claro, quando se estácomprando tempo com um saláriode trabalhador de meio turno háoutras coisas das quais você abremão além da comida. Refiro-me amulheres jovens e carros. Você
caminha, acaba por encontrar umaputa de ocasião. Além disso, vocêusa os mesmos sapatos por tantotempo que as solas se enchem defuros e você é obrigado a forrá-los com papelão; além disso, asunhas encravam de uma maneiratão feia que quase já não se podecalçar os sapatos. E também nãosobrou, a essa altura, nem um trajedomingueiro, nem convites parajantares gratuitos de Ação deGraças e de Natal. Escritores
famintos levam uma vida pior doque a dos vagabundos da favela. Eisto porque há duas coisas de queprecisam: quatro paredes, e estarsozinhos.
...Mas numa tarde naBiblioteca Pública de LA algumacoisa aconteceu. Quanto a ser umapessoa lida, eu já estava estufado,ao extremo: D. H. Lawrence,todos os russos, Huxley, Thurber,Chesterton, Dante, Shakespeare,Villon, todos os Shaws, O’Neil,
Blake, Dos Passos, Hem, por queseguir? Centenas de escritoresconhecidos e centenas dedesconhecidos... E todos eles meferiam porque eram ótimos por umtempo, mas por breves instantes,em lampejos, para depoisretornarem à sua pesadamonotonia literária. Isto era maisdo que desencorajador, poissignificava que séculos,SÉCULOS de literatura eescritores não podiam me ajudar.
No mínimo, falharam em meoferecer o que eu precisava parame virar no mundo das palavras.
Mas, como eu estava dizendo,nessa tarde eu matava o meu diacom o costumeiro baixar de livrosdas prateleiras, o abrir depáginas, ler uma ou duas de cadavolume, devolvê-los aos seuslugares. Bem, peguei mais um.Sporting Times? Yeah? , de um talJohn Bante. Abri numa daspáginas, esperando o de sempre,
mas as palavras, sim, as palavraspularam sobre mim, assim mesmo.Saíram do papel e me perfuraram.As palavras eram simples,concisas, e falavam de algumacoisa que estava acontecendoagora! Até mesmo a fonte pareciadiferente. As palavras eramlegíveis. Havia alguns espaços eentão mais palavras. As palavraseram quase como uma voz na sala.Peguei o livro e fui me sentar auma mesa. Cada página era
poderosa. Não podia acreditarnaquilo. Era como se as páginasfossem pular do livro e começar acaminhar por ali, voar ao meuredor. Possuíam uma forçanotável, um realismo total. Porque esse homem nunca tinha sidomencionado antes? Eu tambémestava lendo crítica literária,Winters, todos aqueles vigaristas,os queridinhos da Kenyon Review ed a Sewanee Review, e nuncahaviam mencionado este homem.
O mesmo ocorreu nos meus doisanos de coma profundo no LACity College, nem uma mençãosequer.
Ergui os olhos da minhamesa. Bem, não era minha,pertencia à cidade, aoscontribuintes, e eu não podia meenquadrar propriamente nessacategoria. Mas eu tinha o livro deJohn Bante diante de mim e euolhava para as pessoas nas outrasmesas, para as pessoas que
caminhavam por ali ou queestavam apenas sentadas, muitosvagabundos como eu e nenhumdeles sabia sobre John Bante... outeriam começado a brilhar, a sesentir melhor, não teriam seimportado em ser o que eram ouque deveriam ser.
Eu tinha um cartão dabiblioteca e tirei John Bante de lá.Levei-o comigo de volta para meuquarto e comecei a ler do início.Ele chegava a ser engraçado às
vezes, mas era um tipo estranho ecalmo de humor, como um homemqueimado até a morte que aindaassim acena com um piscar deolhos para o primeiro homem queateou as chamas ou Para OHomem Que Está Lá Em Cima.Bante possuía uma inclinaçãoreligiosa mesmo que fossecoroada por um estranho sorriso.Eu não tinha qualquer inclinação,mas eu gostava da dele. E eleescrevia sobre um escritor que
passava fome e que circulava pelaBiblioteca Pública de LA e peloGrande Mercado Central, que erao que eu fazia. Jesus Cristo. Masmais do que essa similaridade devidas, o que me tocava era omodo como expressava asocorrências mais tolas daexistência. Reparei que ele viviade laranjas. Minha dieta era outra:batatas, pepinos e tomates.Quando podia me dar a esse luxo.Batatas primeiro. Contando grama
a grama, as batatas me pareciammais baratas e mais satisfatórias.Mas Bante viera do Colorado.Sendo californiano, eu sempreolhara as laranjas quase comopulgas no pelo de um gato. Masisso é má escrita. Bante nuncaescrevia mal: cada palavra estavano seu devido lugar e cadapalavra expressava o que deviacom perfeição.
Ele havia sido descobertopelo grande editor L. H. Renkin,
que dirigia a revista The AmericanCalamity. Renkin tambémtrabalhou como editor para umadas editoras de Nova York, alémde ser um escritor bem razoável.Eu acabaria por voltar àbiblioteca para retirar todos oslivros de John Bante. Havia maistrês outros, mas Sporting Times?Yeah? continuava sendo meufavorito.
Acabei por memorizar todasas descrições da vizinhança em
Sporting Times. Eu morava numbarraco de tapume nos fundos deuma pensão por dois dólares asemana. A vizinhança se chamavaBunker Hill. E fui em busca dolugar onde Bante tinha morado.Segui a Angel’s Flight e descobri olocal exato do hotel que ele tinhadescrito e fiquei ali do lado defora, olhando-o. Senti correr pormim uma das sensações maispoderosas de toda a minha vida.Eu estava, de fato, pasmado. Era o
hotel. Aquela era a janela pelaqual sua estranha namorada,Carmen, havia escalado paraentrar. Estranha e trágica Carmen.
Fiquei ali parado, olhandopara a janela. Era cedo da tarde eo quarto estava escuro. A persianaestava a meio palmo e uma levebrisa a balançava levemente. AliBante escrevera Sporting Times.Tudo havia saído daquele quarto,um quarto pelo qual eu tinhapassado por meses no meu
caminho até o Grande MercadoCentral, até o meu bar verdepreferido ou mesmo a caminhodas minhas pernadas pelo centro.Fiquei ali parado, me perguntandoquem ocuparia o quarto naquelemomento. Talvez Bante aindaestivesse ali! Quem sabe eu nãopudesse dar um pulo ali e bater àporta?
Olá, sr. Bante? Eu tambémescrevo. Não tão bem quanto osenhor. Só gostaria de dizer o
quanto suas palavras estão vivasdentro de mim e ao meu redor eque tive muita sorte de ler osenhor. Bem, agora já estou desaída, adeus...
Mas eu sabia que jamaispoderia perturbar um deus. Osdeuses tinham seus afazeres.Mesmo quando estavamdormindo, dormiam de um mododiferente. Além disso, eu sabiaque Bante não estava lá. No seuúltimo livro de contos, ele
mencionara em uma das históriasque vivia num quarto emHollywood, que o aluguel era setedólares por semana e a senhoriaestava pronta para lhe dar umchute na bunda, e ele só faziarezar para a Virgem Maria.
Não era do meu perfil adorarheróis. Bante era o primeiro.Eram suas palavras, asimplicidade e a clareza delas.Faziam com que eu quisessechorar, mas, ao mesmo tempo, me
davam a impressão de ser capazde atravessar as paredes.
Decidi que queria ver oquarto de qualquer jeito, o quartoonde o livro fora escrito. Apanheio trem funicular até a rua de cima,dei uma soltada nas pernas e descina calçada mais próxima ao hotel.Caminhei em frente à fachada eentrei. Ali estava o saguão,exatamente como descrito por ele.E ali estava a pequena mesa decentro, sobre a qual ele espalhara
diversas cópias de The AmericanCalamity, que trazia publicado oprimeiro conto de sua autoria, Ocachorrinho riu com força e deverdade. Caminhei pelo corredor,peguei a esquerda e parei junto aoquarto cuja janela dava para aAngel’s Flight.
Quarto 3. Ergui minha mãopara bater, hesitei, e então bati.Três golpes curtos. Esperei.Nada. Bati outra vez, com maisforça, golpes fortes, mas, ainda
assim, batidas cheias dereverência. Ouvi algum som noquarto. Então a porta se abriu.Houve uma lufada de calor – era oInferno de Dante. Era uma tardequente de junho, mas havia umaestufa a gás acesa a todo vapor.Uma velha parou ali, enroladanum cobertor. Era muito pequenae quase careca, mas vários fios decabelo branco continuavamcrescendo, longos, descendo aoredor de seus ouvidos e queixo.
– Sim? – ela disse.– Com licença, mas estou
procurando por um amigo quecostumava viver aqui, JohnBante...?
– Não – disse a velha.Tinha olhos incrivelmente
lindos, como se tudo mais quefora consumido tivesse seconcentrado ali, a esperar pelofim.
– Ele era escritor...A velha ficou apenas me
olhando. Ficamos assim por umtempo.
Então ela disse:– Vá à merda!E bateu a porta...
*
Continuei minha carreira deescritor faminto por mais algunsanos. Minha máquina de escrevervivia entrando e saindo do pregoaté que finalmente fiquei tão
fodido que não tive como resgatá-la. Gastei a grana do penhortrocando o bilhete por dinheiropara beber certa noite num bar e,depois disso, comecei a escreverminhas histórias à mão, às vezescom ilustrações. Seguivagabundeando ao redor do país esegui enviando contos escritos àmão. Por fim, uma das maisprestigiosas revistas literárias daépoca aceitou e publicou meuprimeiro conto. O pagamento foi
uma piada, mas recebi cartas deoutras revistas, inclusive daEsquire, na qual pediam para ver omeu trabalho. E cartas de pessoasse oferecendo para serem meusagentes, caso eu não tivesse um.Diabos, eu não tinha um agente,nem mesmo uma máquina deescrever. Algo relacionado comromper a barreira acabou tendosobre mim um efeito contrário,desestimulante. Decidi que eracapaz de escrever bem o
suficiente, mas que não tinha nadaa dizer. Parei de escrever por dezanos e me concentrei somente nabebida. Acabei indo parar naenfermaria de caridade do CountyHospital com um padre inclinadosobre mim querendo me dar aextrema-unção. Dei um corridãono pilantra e arrumei um empregocomo motorista de caminhão parauma loja de luminárias. Tivesorte, arrumei um lugar legal naKingsley Drive, uma máquina de
escrever e conseguia chegar emcasa todas as noites, só que emvez de jantar eu tomava dois oumais fardos de seis cervejas.Logo me descobri escrevendoalgo muito estranho: poesia.
Mantendo a concisão: umcasamento veio e se foi. Meuspoemas saíram em centenas depequenas revistas, mas issoaconteceu com todo mundo, comolimpar seus rabos ou trocar aarruela de uma torneira que pinga.
As guerras e os anos se seguiram,e também as namoradas insanas eos empregos, tolos e insanos.Como alguém repassa duas ou trêsdécadas de desperdício? Numestalar de dedos. É fácil. Os anosestão aí para seremdesperdiçados.
Graças ao meu jeito de loucoquando bebo acabei por me tornaro maluco da cidade. Um professoruniversitário me convidou para ira sua casa e depois de um belo
jantar, com vinho que não paravade jorrar, se iniciou umadiscussão sobre arte e poesia, quesão duas coisas que em geral medesagradam. Foi quando melevantei e arrebentei com seucloset chinês e, não sei bem como,isso foi creditado como o ato deum gênio. Tal estupidez megarantiu um trabalho comocolunista para um jornalalternativo. E era como se eutivesse me esquecido de John
Bante. Mas de fato eu não oesquecera. Eu o havia extraviado.
Então aí pule alguns anosperdidos... Arrumei um empregonoturno no correio, de atendente,e, depois de onze anos e meio,esse trabalho – como qualquertrabalho fará – estava mematando. Eu estava virado numapilha de nervos. Meu corpocombalido, um calafrio de agonia.Não conseguia mais mexer meupescoço. Se alguém tocava em
mim, rajadas de dor varriam meucorpo. Nenhum dos outrosatendentes tinha consciênciadisso. Eu era o cara bacana, obufão, conversava com os carasmais malvados e ficava nessasconversas furadas todas as noites,e geralmente eu ganhava nagarganta, mas tudo não passava deuma proteção, de uma cortina defumaça: eu estava morrendo.
Certa noite, dirigia para casa,depois das costumeiras três horas
e meia de horas extras. Haviarecebido uma série de multas e járecebera um aviso dodepartamento de trânsito de queestavam considerando caçarminha carteira. Os policiais memantinham amedrontado. Entãotive que fazer uma curva para aesquerda. Não tinha pisca-piscano meu antigo carro. Movi meubraço direito, com algumadificuldade, em direção à janelapara sinalizar que dobraria à
esquerda. A dor me atacou comose tivesse sido liberada por umatorneira. E percebi que o máximoque conseguiria mover meu braçoseria suficiente apenas paracolocar uma parte da minha mãopara fora da janela. Apenas amão, nada do braço. E me vifazendo isso como se eu fosseduas pessoas – uma que assistisseà outra. Ergui um dos dedosdaquela mão na direção da noite,um dedinho de nada, e com a outra
mão girei o volante para fazer acurva para a esquerda. E entãocomecei a rir, tudo aquilo eraestúpido demais, estava deixandocom que me matassem. Mas arisada foi boa, daquelas quealiviam a gente. E então, enquantoseguia guiando, intuí queprecisava dar o fora. Sabia quequalquer vagabundo favelado, quedormisse num beco, levava umavida melhor do que a minha, queeu era um dos maiores idiotas que
já pisara na face da Terra. Erauma noite a ser lembrada. E aindaque esta seja a história de JohnBante, não creio que haja maneirade contá-la sem acrescentaralguns desses fatos. Bem,acrescentem aí alguns dias ousemanas e uma curiosa sorte mealcançou: um homem estranho ecareca, J. K. Larkin, que viria aser meu futuro editor, me ofereceuuma quantia fixa pelo resto davida, escrevesse ou não, para
largar o correio. Aceitei e livreimeu rabo de lá... Fazia tantotempo desde que eu batera à portade Bante e que aquela velhaenrolada no cobertor me mandarapara aquele lugar...
*
Eu tinha uma janela que davapara a rua e terminei de escrevermeu primeiro romance emdezenove dias. Podia encher a
cara à vontade e não precisavadar satisfações no serviço, agoraera meu patrão. Ali eu estava, aoscinquenta anos, um escritorprofissional, talvez. Lia meuspoemas em diversasuniversidades, bêbado, batendoboca com a plateia. Meutreinamento com os caras dapesada no correio estava valendoa pena. Era quase impossível meinsultar e eu contra-atacava comenorme eficiência. As Artes eram
um pão-doce, uma mamata.Coloquemos mais uns anos na
conta. Progredi. As mulhereschegavam, eu pulava na cama comelas, saía da cama, brigava comelas, era terrível e incomum paramim e elas eram mais espertas doque eu, sabiam como lutar nocorner, me enganavam, meencurralavam, mas eu arrumavaum jeito de seguir escrevendo.Meu sucesso estava quase todo naEuropa, por meio de traduções.
Nos Estados Unidos, seguiam ashistórias de que eu espancavaminhas mulheres, odiavahomossexuais e que era um carahediondo e uma pessoa horrível.Os dândis da universidade mepassavam o serviço. Um estudanteapareceu certa noite e, apósalgumas cervejas, me disse:
– Meu profe diz que você éum nazista e que venderia sua mãepor um níquel.
– Isso não é verdade – eu lhe
disse –, minha mãe está morta.Deixemos tudo como está.
Continuei escrevendo e a sortenão me abandonou. Agora estamoschegando perto. Meu editor,Larkin, leu uma entrevista que eudei não sei onde em que falava deminhas influências: Céline,Turguêniev e John Bante.
– Bante? – ele me telefonou –Já o ouvi mencionar o nome antesnos seus textos, mas achei quefosse invenção sua, sabe, uma
piada.– Não, ele está lá.– Lá aonde?– Deve estar ainda na
biblioteca. Não sei. Espero quesim. Há apenas seus primeiroslivros. Parece que já não escrevemais. Talvez esteja morto.
– Ele é tão bom assim?– É o melhor.– Por que ninguém nunca fala
dele?– Me diga você. Se encontrar
os livros dele, comece porSporting Times? Yeah?
Algum tempo se passou. Umamulher tentou me matar.Fracassou. Então naquela noite otelefone tocou, ela adoravateledramatizações, e eu atendi edisse:
– Escute aqui, quero que vocêfique FORA da minha vida!
– Aqui é o Larkin – ouvi.– Ah...– Escute, li Sporting Times. É
realmente poderoso! Vourepublicá-lo!
– Ótimo. Ótimo...– O livro original vendeu 632
cópias. Bante ainda está vivo emora em Malibu...
– Malibu? Oh, oh...– Ele entrou para a indústria
cinematográfica...– Caralho...– Era a Depressão, ele tinha
que sobreviver. Você sabe bemcomo foi. É preciso perdoá-lo.
– Claro. Não se podeescrever se você está morto.
– E a maioria de nós nãoconsegue escrever de outro jeito.Seja como for, vou republicar olivro e achei que talvez vocêquisesse escrever o prefácio.
– Amanhã estará no correio.– Ótimo!Aí estava: um dos grandes
romances de nosso tempo prestesa ser retirado das trevas em queesteve imerso por mais de
quarenta anos depois de eu ter,com muita sorte, puxado o volumedaquela prateleira. Avancei emdireção à máquina de escreverpara pronunciar o milagre de umaépoca, sentindo-me bem com abondade que estava por vir apesarde tudo.
O telefone voltou a tocar.– Alô – eu disse.A voz veio num tom
monótono, cada palavra medida,sem qualquer alteração de
registro. Era como uma gravação:não havia paixão, apenas estafinalidade certeira a cumprir:
– Tentei matar você, mas nãoestou certa de que não vou tentarde novo.
– Mas a gente tinha chegado aum acordo, que se eu não dessequeixa na polícia, você ia pararcom esse tipo de coisa.
– Não posso ter certeza denada – ela disse. – Será que vocênão consegue entender isso?
Ela desligou.Sporting Times? Yeah?Afastei-me da máquina, dei a
volta ao redor da cozinha e meservi uma dose caprichada...
*
Escrevi o prefácio paraSporting Times. Saiu fácil. Depoiso li. Percebi que ao admitir queJohn Bante era uma grandeinfluência da minha escrita talvez
pudesse ter um efeito deletériosobre a minha própria obra, comose parte de mim não fosse maisque uma cópia em papel carbono,mas não dei a mínima. É quandovocê esconde as coisas que acabasendo sufocado por elas.Coloquei o prefácio no correio,enviando-o para Larkin, quemorava em Santa Barbara. Larkinera um desses caras que seenvolvia com as coisas. Assimque recebeu a carta, ele me
telefonou.– O prefácio está bacana.
Sabe, estive falando com a MaryBante, a esposa de John. Ela disseque John quer conhecer você.
– Jesus Cristo!– Há umas complicações. Ele
tem um quadro avançado dediabetes. Está cego e já sofreuamputações, tiveram que cortarboa parte de suas pernas.
– Não sabia que diabeteslevava a isso...
Foi tudo que consegui dizer.Lá estava John Bante,provavelmente o melhor escritordo mundo, deitado num leito, cegoe mutilado!
– Isso não acontece muitohoje em dia. A doença o consumiuantes que essas técnicas modernaspudessem ajudá-lo.
– Puta que pariu...Lembrei-me então do conto
que Bante havia escrito em queseu pai sofria da mesma coisa, e
de como havia ignorado asrecomendações médicas e bebidoaté morrer.
– Os médicos dizem que elenão tem muito tempo. Mary dizque ele adorou seu prefácio. Eleestá começando um novoromance...
– Espere, como ele...– Está ditando o texto para
Mary.– Puta que pariu...– De todo modo, ele quer vê-
lo. Tenho o número deles aqui...O termo “vê-lo” não se
encaixava muito bem à situação.Mas eu estava com o telefone. Fiza ligação. Mary disse que areedição de Sporting Times haviasido muito reconfortante paraJohn.
– Mas ele tem que voltar parao hospital agora. Se você quiservê-lo vai ter que ser por lá.
– É claro que eu quero vê-lo.Esperei quarenta anos para vê-lo.
Marcamos um dia e umhorário e segui as instruções parachegar até lá. Sou uma dessaspessoas sem senso de direção,dessas que conseguem se perdernum supermercado. Por sorte,estava vivendo com uma mulherlegal, Alta.
Mostrei a ela as instruções.– Alta, querida, você acha
que pode me ajudar a encontraresse lugar?
– Claro.
– Não se importa de ircomigo?
– Claro que não. Gostaria deconhecer o John.
Ela já ouvira falar bastantede Bante durante minhasbebedeiras. De como o mundo eraestúpido por não conhecer os seuslivros. De como o mundo eraestúpido por prestar honrarias acaras como Mailer e Capote eBellow e Cheever e Updikequando um simples parágrafo de
John Bante podia dizer muito maiscom sua deslumbrantesimplicidade.
Os melhores nem sempre sãoreconhecidos, seja na literatura,na música, na pintura, nasatuações, na política ou onde querque seja. Isso não era nenhumanovidade nos séculos dehumanidade.
– Legal – eu disse a Alta. –Vamos juntos.
*
Ele estava no Motion PictureHospital, um nome esquisito.Quando os filmes haviamcomeçado, pensavam neles comoimagens em movimento. Ohospital recebia atores, diretores,roteiristas, cinegrafistas, qualquerum que tivesse trabalhado para aindústria cinematográfica poralgum tempo. Costumavam chamaro lugar de Hollywood, só que
Hollywood não estava mais lá.Hollywood agora não era mais doque uma favela.
De qualquer maneira,estacionei e Alta e eu saímos. Oprédio tinha apenas um andar eparecia bastante tranquilo. Amaioria dos quartos tinha apenasum paciente. O que era umabeleza. Boa parte da minha vidaem hospitais foi em quartosescuros e repletos de leitos, maisparecendo uma espécie de
enfermaria improvisada no porãode uma igreja após um ataqueaéreo.
Recebemos as instruçõespara chegar até o quarto e asseguimos, parando junto à porta,quando uma mulher saiu dali. Eramagra, graciosa, triste.
– Chinaski? – perguntou.– Sim, Mary – eu disse. –
Esta é Alta.– Ele está dormindo – disse
Mary.
– Não vamos acordá-lo –disse Alta.
Caminhamos até o refeitórioou até a cantina ou o que quer quefosse aquele lugar e tomamos umcafé.
– Os médicos lhe deram seissemanas no máximo. Ele preferiaestar em casa, mas terão queoperá-lo. Precisam cortar mais umpedaço. Das pernas.
Jesus, quanto ainda teriam decortá-lo? Para ganhar mais seis
semanas?– Li para ele alguns de seus
textos e ele gostou – Mary disse.– Obrigado.Um paciente entrou
caminhando, começou a girarfalando consigo mesmo. Pegouuma xícara vazia de café ecomeçou a falar dentro dela.
– Deus usa meias verdes –ele disse. – Deus tem novecabeças e nada no meio daspernas. Seu esporte predileto é o
basquete...Então depôs a xícara e se
afastou.– Esse é aquele ex-ator muito
famoso, V. M... É inofensivo.V. M.? Aquele era V. M.? O
belo e jovem escravo que haviaposto abaixo o templo, soterrandoos pagãos, depois de ter matadoos leões?
– Talvez John já estejaacordado – sugeriu Mary.
– Podemos vir outra hora –
disse Alta.– Não custa a gente dar uma
olhada – disse Mary.Retornamos na direção do
quarto. Mary pressentiu que eleestava acordado.
– John, você tem visitas...Ali estava aquele sujeito
pequeno, debaixo do lençol. Nãohavia sobrado muita coisa daspernas. Haviam deixado ao menosos braços e as mãos, quepareciam muito pálidas. Mas seu
rosto estava ótimo, lembrava o deum pequeno buldogue. Haviamuita tenacidade nele. Umapalavra gentil seria “coragem”.
Tomei sua mão.– Olá, John, sou Chinaski. E
esta aqui comigo é Alta.Alta tomou-lhe a mão.– Olá, John, estamos
contentes em ver você. Se houveralgo que possamos fazer, estamosao seu dispor.
Mary ajeitou os travesseiros
sob sua cabeça.– Escute – ele pediu –, será
que alguém pode abrir umpouquinho a janela? Está muitoquente aqui.
Alta se levantou e abriu umafresta da janela.
– Procurei por você pormuito tempo, John, quarenta anos.Costumava ficar pelos arredoresde Bunker Hill, passando fome,como você tinha feito.
– Sua voz é macia – ele disse
–, mas aposto que você pode serum cara durão se quiser.
– Pode apostar – disse Alta.Segui em frente, dizendo a
Bante como tinha localizado ohotel, de como fora até seu quartoe batera na porta. Contei a elesobre como desci do funicular edo aspecto que tinha o hotel.
Ele sorriu.– Você foi ao lugar errado.– Como assim?Bante deu uma risadinha.
– Eu vivia no hotel umaparada acima.
– Bem, agora nosencontramos...
– Sim, é verdade...– Nos desencontramos por
um bocado de tempo...– Sim, minha desastrosa
carreira em Hollywood.– Tenho certeza de que você
escreveu muita porcaria.– Um homem precisa
sobreviver... É isso aí – e sorriu.
– Podemos lhe servir umcopo d’água ou algo assim? –perguntou Alta.
Alta tinha um senso práticodas coisas bem melhor do que omeu.
– Sim, alguém poderia meacender um cigarro?
Mary tirou um cigarro domaço e o colocou na mão de John.Levou o fumo até a boca e Mary oacendeu com um fósforo.
John inalou.
– Obrigado.– E que tal sua passagem por
Hollywood, John?– Aquilo que se pode
imaginar. Cada escritor tinha oseu próprio estúdio. Recebíamossalário. Não havia muita coisapara fazer. “Avisaremos quandoprecisarmos de você”, elesdiziam. Os meses se passavam.Faulkner esteve ali um tempo. Elesimplesmente entrava em seuestúdio e ficava bebendo. Bebia o
dia inteiro. Não falhava nunca. Aofinal de cada dia tínhamos quearrastá-lo de lá e colocá-lo numtáxi. Recebíamos salários paranão fazer nada, apenas para estarà disposição. Era como se nostivessem castrado e nos colocadopara pastar. Era como ser pagopara esquentar a bunda nos bancosdo inferno.
– Você ainda escreveuaqueles livros, John, ninguémmais conseguiria ter feito isso.
– Não fiz o suficiente – eledisse –, eu desisti.
– Foi o suficiente.– Precisa ver como Hank fala
de você – disse Alta.(Eu era Hank. Sentado ali.)Houve então um momento de
silêncio. Alta se estendeu e pegoua mão dele.
– Você é uma ótima garota –ele disse. – A sorte de Hank.
– Sim – eu disse.Logo John voltou a falar.
– Há esse médico jovem ejanota. Ele vem aqui, me olha ediz: “Muito bem, acho que está nahora. Vamos ter que podar maisuma parte de você, meu velho!”. Éassim que ele diz: “podar”. Dápara acreditar? “Podar”, comouma árvore. E é isso. Não tenhocomo gostar do camarada.
– Filho da puta – eu disse –,vou encher esse cara de porrada!
Exalou uma baforada.– Tudo bem, Hank, não se
incomode...Então Bante pôs o cigarro de
lado. Sua mão ficou ali parada.Ficamos todos em silêncio. Ocigarro começou a queimar seusdedos. Mary se esticou e tirou ocigarro.
– Ele voltou a dormir. Émelhor vocês irem. Ficarei maisum pouco. Vocês não têm ideia doquanto isso significou para ele,vocês virem até aqui.
– A gente volta, Mary...
Pegamos a autoestrada bemna hora do tráfego da saída dostrabalhos. Aquilo não pareciaimportar. Alta e eu não falamosmuito. Era óbvio: o que aconteciacom as pessoas, com as pessoasboas, com as pessoas más, atémesmo com as pessoas terríveisnão parecia justo. Mas “justo” nãopassava de uma palavra nodicionário. Seguimos entre asmáquinas de metal de uma vidaaprisionadora em um mundo
aprisionador.
*
John Bante foi submetido amais uma operação, outraoperação. Haviam começado oprocesso todo ao lhe cortarem umpé, depois o outro. Depois foramseguindo pernas acima. Creio queele teria morrido caso não sesubmetesse a essesprocedimentos, mas esta escolha
não me parecia muito melhor doque a primeira.
Mary me ligou dizendo queele estava de volta em casa e quegostariam que fôssemos jantarcom eles.
– Vamos beber um pouco devinho – ela me disse. Marcamosuma data.
Quando chegamos, Bante jáestava sentado à mesa. Estava nacadeira de rodas. Aquilo foi muitomais agradável do que vê-lo
estendido sob um lençol. Seufilho, Harry, e a mulher dele,Nana, também tinhamcomparecido. Mary nosapresentou. Sentamos e Mary nosserviu de vinho.
– Vou tomar um cálice comvocê, Chinaski – disse John.
– É uma honra...Erguemos as taças.– Que tal o gosto, Chinaski?– Está ótimo, Bante.– Harry e Nana têm lido seus
livros. Agora estão viciados.– Recebi meus ensinamentos
de um mestre, um tal John Bante.– Você teria conseguido, de
um jeito ou de outro.– Tomei emprestado parte do
seu estilo. Mas, diabos, nossosconteúdos são diferentes, John.Você escreve como uma boaalma; eu tenho um lado maiscretino.
– Você está certo. Tome umpouco mais de vinho. Mary, cuide
para que Chinaski seja bemservido.
Em seguida, Mary, auxiliadapor Nana, trouxe o jantar. Nanahavia feito a comida. O jantar foipreparado com capricho.Comemos sem alarde, fazendobreves comentários. Entãoterminamos e mais vinho foiservido.
– Vou tomar mais um cálicecom você, Chinaski! Esta é minhagrande noite!
– Mas tem que ser o últimomesmo – disse Mary.
– Ouvi dizer que vocêscirculam ali pelo Musso’s – disseJohn.
– Costumávamos ir lá umavez por semana quandomorávamos para aqueles lados –disse Alta. – Agora que estamosem San Pedro, não vamos tãoseguido.
– Vocês deviam tentar oChasen’s – disse Bante.
– Muito chique para mim –admiti.
John estava na segunda taçade vinho. Era como seressurgisse. Achei isso ótimo. Eupodia sentir a vida retornando aoseu corpo.
– Eu ia muito ao Musso’s.Certo dia, estava sentado numamesa quando meu escritor favoritoentrou. Big Red. Você sabe quemera Big Red?
– Não...
– Sinclair Lewis.– Jesus Cristo! – Mas eu não
disse mais nada além disso.Sinclair Lewis não estava naminha lista.
– Ei, o que é isso que vocêestá fumando? Tem um cheiroengraçado!
– É um cigarro que vem daÍndia. Não tem nicotina, mas vaimuito bem com vinho.
– Posso fumar um?Olhei para Mary. Ela me
acenou um “sim”. Acendi um ecoloquei-o em sua mão. Alta fez avolta com um cinzeiro.
– Aqui está o cinzeiro, John.Consegue sentir?
– Sim, obrigado. Como eu iadizendo, estava lá sentado e BigRed entrou. Veja bem, era comoenxergar um Deus, estáentendendo?
– Sim, claro – respondi.– O que importa é que ele
sentou numa mesa com essas duas
mulheres e eles fizeram o pedido.Eu era só um garoto, sabe, eestava ali... sentado no mesmoambiente que Sinclair Lewis...Trouxeram-lhe uma garrafa devinho e ele e as mulheresbeberam. Ali estava ele, sentadotão perto, Big Red. Parecia umacoisa impossível. Não queriaincomodá-lo. Tentei me conter,mas não consegui. Eu estava lásozinho. Tinha um cadernocomigo e fingia trabalhar num
roteiro de cinema. Mas odieiaquilo. Havia muitas páginas embranco. Arranquei uma delas ecaminhei na direção de SinclairLewis. Parei diante de sua mesa.Ele falava com uma dasmulheres... Acho que o cigarroindiano apagou...
Alta se levantou e reacendeuo cigarro com o isqueiro.
– Qualquer coisa apagam,sabe, é que não têm produtosquímicos.
– Obrigado, Alta... Mas comoeu ia dizendo, fiquei ali parado edisse: “Me perdoe, sr. Lewis...”Ele olhou para cima. As mulherestambém me olharam. “Souescritor. Meu nome é John Bante.Há muito tempo que o senhor émeu escritor favorito. Não quero,de modo algum, incomodá-lo, masaqui estou. Gostaria de saber se osenhor me daria seu autógrafonesta folha de papel?”
Houve uma pausa. John
tomou o último gole de seu vinho.Era como se ele estivesse de voltaa o Musso’s, plantado diante damesa de Big Red. Entãocontinuou:
– Sinclair Lewis agiu comose eu não estivesse ali. Ignorou opedaço de papel que eu lheestendia e começou a conversarcom as mulheres novamente.
– Mas que filho da puta!– Voltei para a minha mesa e
fiquei pensando no que tinha
acontecido. Quanto mais eupensava, pior me sentia. Big Redme dera um gelo. Chamei ogarçom e paguei minha conta.Então voltei até a mesa de Lewis.Ele olhou para mim. “Escute, seumerda, sou publicado pela mesmaeditora que você. Talvez L. H.Renkin ficasse feliz em saber ocretino que você é!” Entãocaminhei em direção à saída. Deiuma olhada para trás e vi que elese levantava da mesa para me
seguir. Saí em direção à rua detrás, pulei no meu carro e meescondi. Vi quando ele surgiucorrendo, à minha procura. Eleparecia aterrorizado. Mas nãotinha jeito de ele me achar. Ficouparado por algum tempo, depoisvoltou para dentro. Tinha feito elese borrar nas calças!
*
Francamente, não gostei da
história, pareceu-me uma simplesdisputa de vaidades. Masconsegui ver a decepção de Banteem relação a seu herói, e tambémfoi bom ver Bante se esquecer desua cegueira e de que não possuíamais suas pernas.
– É uma história engraçada –eu disse. – Chegou a falar com L.H. Renkin sobre isso?
– Não... não, claro que não...O cigarro indiano havia se
apagado e eu o apanhei de sua
mão.– Sirva um pouco mais de
vinho ao Hank – ele disse. – Seique Hank é chegado num vinho.Mary me leu seus livros...
– Estou bem por ora, John,tudo certo...
– Que tal o vinho?– Está ótimo. Não se
preocupe comigo. Estou muitofeliz de estar aqui.
– Eu também – disse Alta.– Alta, cuide bem dele, sim?
Ele precisa de ajuda...– Pode deixar, John, vou
cuidar dele...Bante ficou ali sentado por
alguns momentos. Sua cara depequeno buldogue pareceu cederum pouco.
– Estou cansado, sabe...Vocês me dariam licença?
– Claro, John...Mary fez a volta e pegou a
cadeira de roda pelos suportes e aafastou da mesa, a fim de levá-lo
para o quarto.– Boa noite, John – dissemos
cada um de nós.Mary o empurrou na direção
do quarto. Ficou por lá algumtempo, depois retornou.
– Você não tem ideia do quetudo isso significou para ele, teros livros redescobertos, encontrarpessoas que se importem com ele.Todo mundo parecia tê-loabandonado desde que a doençacomeçou a evoluir. Pessoas que
conhecemos há anos simplesmentedesapareceram. Foi como se eletivesse saído do páreo e ninguémmais mostrasse qualquerinteresse.
– Este deveria ser o momentoem que as pessoas deveriammostrar interesse – disse Alta.
– Não é assim que funciona –disse Harry.
– Tem sido como umaespécie de bloqueio espiritual –disse Nana –, como se já o
tivessem enterrado...Mary serviu um pouco mais
de vinho. Olhou para mim.– Você escreveu uma carta
para ele. Às vezes ele me pedepara relê-la...
– Ah, diabos – eu disse. –Sou mesmo um miserável...
– Não, Hank, essa cartarealmente ajudou.
– Não se tratava decompaixão. Disse apenas o queera verdade.
– Ele está escrevendo umnovo romance. Já deve ter umassessenta páginas, e está bom edivertido...
– John sabe escrever – eudisse –, ele é muito melhor do queBig Red.
– Está gostando do vinho?John descobriu a marca que vocêgosta. Insistiu em que fosse esta.
– Bem que achei o gostofamiliar.
Então veio um uivo do quarto
dos fundos. Não era o uivo deuma criatura humana. Era o uivode um lobo ferido que morressena neve, perdido na escuridão esem ninguém ao seu redor. Marypulou da cadeira e correu para osfundos.
Esperamos. Harry voltou aencher as taças. Não havia nada adizer. Bebemos em silêncio poralguns minutos, até que Maryretornou.
– Escutem – eu disse –, foi
uma noite maravilhosa. Mas émelhor irmos agora. Ele está lá nofundo. Pode ouvir a genteconversar, beber, talvez rir. Elenão está aqui. Não é justo...
– Acho que ele quer ouvirvocês dois – disse Mary.
– Você acha mesmo?– Sim.Mary acenou em direção às
paredes.– Compramos esta casa anos
atrás, quando John começou a
trabalhar em Hollywood. Foibarato naquela época. Os anos sepassaram e, quando olhamos emvolta, estávamos cercados pormilionários.
– Não há mal nisso – eudisse. – O problema é quando seherda dinheiro, pois enfraquece ocaráter já que você nunca éexigido.
– O que você está escrevendoagora, Hank?
– Nada importante. O que eu
escrevo jamais terá a grandeza daobra de John.
– Ainda assim, acho que vocêdeve seguir em frente.
– Provavelmente. Não seifazer nada além disso...
Então o uivo voltou a soar doquarto dos fundos. Mary saltou dacadeira e correu até lá.
– Pobre mamãe – disse Harry–, a vida dela também está uminferno. Desde que issoaconteceu, ela tem sido os olhos e
as pernas dele. Ela o ama de ummodo incondicional. Se não oamasse tanto talvez fosse maisfácil...
Depois de alguns minutos,Mary retornou. Parecia muitoextenuada, como se enfrentasseum problema que nunca poderiaser solucionado... fosse comamor, paciência ou milagre. Era ahumilhação derradeira contra abondade, contra a razão. Era oque muitas vezes acontecia em
lugares separados e nadafuncionava. Era a totalimpossibilidade da agoniaconstante.
– Foi ótimo – eu disse –, masagora temos que ir.
– Tudo bem – disse Mary.– Diga a John que ficamos
felizes em vê-lo – disse Alta.
*
Alta dirigiu na volta. Eu
havia recebido recentemente umamulta por dirigir embriagado.Seguimos pela costa até SantaMonica. Lá estavam o oceano e asareias na escuridão. Não havialua. Lá estavam os peixes. Osfaróis dos automóveis cruzavampor nós. Seguíamos as lanternastraseiras vermelhas. O infernoficava logo à frente, abaixo docéu, estendendo seus braços.Poucos enxergavam isso agora,mas acabariam por enxergar.
Fiquei escutando o motor,tentando obter alguma salvação apartir deste som. A caminho deSanta Monica, palmeiras altascomeçaram a surgir à direita.Aquelas palmeiras que JohnBante, o garoto do Colorado, tantomencionara em seus textos. Nummomento de fraqueza, saquei arolha do vinho, passei a garrafapara Alta. Tomou um gole, comouma profissional, olhando diretopara a estrada, devolveu-a para
mim...Bante acabou por concluir o
romance. Digo, ele saiu dohospital após a operação e o ditoua Mary, que se ocupou dedatilografá-lo. Talvez Johnestivesse de olho no tempo.Recebi uma cópia do original eera uma leitura agradável. Nãoera Sporting Times, mas para umhomem cego, sem as pernas,funcionava superbem. Mesmopara um homem inteiro teria sido
um ótimo trabalho. Fiquei felizquando Larkin me disse que iriapublicar o livro. E também algunsde seus primeiros textos. Bantehavia ressurgido das trevas.Sporting Times vendeu bem e ascríticas foram excelentes. Oscríticos estavam impressionadoscom o fato de este homem terpermanecido nas sombras portodas essas décadas. SportingTimes estava sendo traduzido paraser editado na Alemanha. E Bante
chegou mesmo a cogitarmentalmente a possibilidade deoutro romance.
Acho que uma ou duassemanas se passaram, não, talvezmais, umas três semanas, meperdoem. De qualquer forma,recebi um telefonema de Marynuma manhã de ressaca.
– Ele voltou para o hospital,Hank...
– Outra operação?– Sim...
Caralho, pensei, quanto aindapodem cortar? O que ainda lheresta?
Peguei o número do quarto efui com Alta até lá...
Ao chegarmos, Bante estavasozinho no quarto. Parecia estardormindo. Podia ver suarespiração. Fomos em busca deum café.
Ao retornarmos, havia umaenfermeira por ali, uma daquelasfaceiras, que já viram tanto o
sofrimento dos mortos e dosmoribundos que tudo se tornouquase uma brincadeira. Recebeu-nos com um sorriso por sobre oombro:
– Só um pouquinho, o bebêestá tomando sua injeção.
Aguardamos do lado de fora.Então ela apareceu, aindasorrindo:
– Muito bem, docinhos, ele étodo de vocês!
Entramos.
– Olá, John, é o Hank e aAlta.
– Odeio aquela enfermeira –ele disse –, ela consegue ser tãosensível quanto um besourojaponês.
– Trouxemos flores – disseAlta. – Acho que você não podever, mas pode sentir o cheirodelas. Aqui...
– Sim, o cheiro está ótimo...Fico feliz que tenham vindo...
– Não há um vaso por aqui –
disse Alta. – Vou ver se arranjoum vaso.
Ela saiu.– Bem, Hank, como vão as
coisas?– Ia perguntar o mesmo para
você, mas estava com medo daresposta.
– Bem, como pode ver, o dr.Lop não deixa nunca de afiar suasfacas.
Me sentei.– Precisa de água, cigarros?
Esvaziar a comadre.– Não, está tudo certo...– Isto aqui é pior do que o
inferno.– Gostaria de estar em casa.
Não consigo trabalhar aqui.– Imagino. Mas escute, andei
pensando sobre uma coisa...– O quê?– O que aconteceu com
aquela maravilhosa Carmen emSporting Times? Ela realmentedesapareceu no deserto?
– Não. Ela voltou. Depoisacabou se revelando umadesgraçada duma lésbica! – eleriu.
– Puta que pariu!
*
Alta retornou com as floresno vaso.
– Que tipo de hospital é este?Foi uma luta encontrar um vaso.
– É um circo – disse Bante. –
Nesta manhã estava por aqui umcara que costumava fazer o papelde Tarzan, ele corria ao longo doscorredores dando o seu grito dasselvas. Por fim, conseguiramlevá-lo de volta para o quarto. Eleé inofensivo. Mas acho que fezcom que todos nos sentíssemosmelhor. Fez a gente lembrar opassado, quando todos estávamosna ativa...
– Ele já entrou aqui?– Sim, mostrei a ele os meus
cotocos e o pobre saiu correndo...Talvez seja melhor estar aquimesmo. Se estivesse em casa,Mary teria que ficar sentada comuma espingarda no colo para nãodeixar os carregadores de lixo melevarem...
– Não fale uma coisadessas... – disse Alta.
– O que mais me incomodasão os olhos. Não estou chorando,mas as lágrimas não param decorrer. Me disseram que a única
maneira de impedir isso éretirando os olhos. O que vocêacha, Hank?
– Não sou médico. Mas sefosse comigo, eu diria “não”.
– Por quê?– Sempre acredito na
possibilidade de um milagre.– Achei que você era o
durão, o realista?– Também sou um jogador.
Vai começar um novo livro?Até então o rosto de John
estivera de um marrom-acinzentado. Ao nos fazer umbreve resumo da ideia central dopróximo romance, seu rostocomeçou a se iluminar. Até queterminou de nos falar.
– Parece bem legal – disseAlta.
– Você deveria escrevê-lo –eu disse.
Então ficamos os três emsilêncio. A conversa tinhaajudado, mas também o deixara
cansado. Haviam nos dito que nãohavia problema em conversar comele. O que eles sabiam?
Alguns minutos se passaram.Então Bante voltou a falar:
– É estranho pensar em comotodos eles sumiram, todas aspessoas com quem eu saía. Oscamaradas, os bons amigos...Pessoas com as quais convivi poranos, tantos e tantos anos...Quando a doença se agravou,houve uma ou outra demonstração
de apoio, mas no início, porquedepois todos desapareceram.Seguiram lá no mundo deles, ondenão havia mais lugar para mim.Jamais poderia imaginar que ascoisas seriam assim...
– Estamos aqui, John...– Eu sei. Isso é bom... Me
fale sobre o Hank, Alta... Ele émesmo tão durão quanto deixatransparecer nos textos?
– Que nada. É um manteigaderretida. São 110 quilos de pura
manteiga.– Era o que eu imaginava.– Escute, John, você está com
um bom argumento para o seupróximo romance. Mas por quenão escreve sobre o que estáacontecendo agora? Sobre comoos seus amigos deixaram você namão?
E quis acrescentar, deixando-o aí por horas, coberto por umlençol, sem as pernas, cego,abandonado, esquecido num leito
de hospital. Enquanto estão por aícorrendo atrás de grana oumulheres ou homens, oumostrando seu brilho emconversas de festinhas. Ouvidrados em televisores gigantes.Ou o que quer que essa gente faça,esse pessoal de Hollywood quesó produz merda e mais merda emais merda, mas que julgam ser amaior das maravilhas, assim comofaz seu público.
– Não, não, não quero fazer
isso.John Bante, o bom moço até o
fim.– Se tem algo que vi demais
nas pessoas é a amargura. É umacoisa horrorosa, como quase todomundo acaba se tornando amargo.É triste, é muito triste...
– Você está certo, John –disse Alta.
– Estou cansado. É melhorvocês irem...
– Tchau, John...
– Tchau...Mergulhei em meus textos,
que me pareciam ir bem – com aajuda de Céline, Turguêniev eJohn Bante. Mas escrever é umacoisa estranha: você nunca chegaa lugar algum você pode até seaproximar, mas nunca chega. Épor isso que a maioria de nósprecisa seguir em frente: estamossendo enganados, mas nãopodemos desistir. A insensatez émuitas vezes a própria
recompensa.Soube por meio de Larkin
que Mary estava para perder acasa de Malibu. O MovieHospital não estava disposto acobrir o total das despesas. Osdoutores Lops da vida tinham deser pagos. As operações eramcaras e eles não queriam ter quedirigir um velho Mercedes pormuito tempo... No pé em que ascoisas estavam, logo iam pedir acasa de Malibu. Não morrer era
um luxo que ele não podia se dar.Hospitais, que deveriam ser casasde misericórdia, eram casas denegócio, somente mais uma porrade negócio.
Antes que eu pudesse fazeroutra viagem até lá, e eu espereidemais, tenho certeza de que nãosou muito melhor do que osamigos de John que oabandonaram, antes que eupudesse fazer outra viagem até lá,o telefone tocou. Era Mary.
– John está morto – ela disse.Não lembro o que respondi.
Não deve ter sido nada muitobom. Me senti vazio. Acho quedisse alguma coisa como, melhorassim. Você está bem?
Idiota, idiota.Anotei o local, a hora e o dia
do enterro.Viver, morrer, ser enterrado.
Aqueles que sobrevivem trocam oóleo, se lubrificam. Trepam,talvez. Dormem. Pedem por ovos
mexidos, ovos cozidos, ovosmoles...
Era um dia quente,encontramos a igreja, quaseatrasados, a Pacific CoastHighway tinha sido bloqueada enos vimos presos num enormeengarrafamento e a única maneiraque descobri para chegar até aigreja foi seguir um carrofunerário, que se revelou o carrocerto.
A família estava lá e também
uns poucos amigos. Meperguntaram se eu não queriafazer o discurso fúnebre, maspreferi recusar, sabedor de quenão conseguiria conter as lágrimase que aquilo faria com que todosse sentissem ainda piores. Vi BenPheasants por lá. Ben tinha escritoótimos artigos sobre Bante, umdos quais saíra no LA Times.Tínhamos sido camaradas certaépoca. Mas acabei avacalhandocom ele num poema.
Boa parte de nós começou ase dirigir para os automóveis.Alta segurou minha mão. Marypermaneceu na cadeira. Ao nosafastarmos, avistei o filho deJohn, Harry.
– Vá pegá-los, Hank! – eledisse.
– Certo, Harry...Então, depois de dizer isso,
me senti muito egoísta, mas eratarde demais. Eu sabia o que elequeria dizer, melhor, talvez eu
soubesse o que ele queria dizer:seu pai, John Bante, havia meemprestado um jeito de fazer ascoisas...
E isso era tudo, tudo o querealmente importava.
Eu havia conhecido meuídolo. Pouquíssimas pessoasconseguem fazer isso de verdade.
Los Angeles para Li Popor Charles Bukowski
California Magazine,junho de 1986
Bem, estando com Li Po, eu olevaria ao Musso & Frank’s eiríamos até o bar esperar que uma
mesa vagasse. Pediria por umamesa no “velho salão”, tendo Jeancomo garçom, se possível. Nãome importo de esperar no bar,exceto nas noites de sábado ou desexta, quando os turistas vêm emrevoada. Eu escolheria umdrinque com vodca e Li Po, umbom vinho tinto. Depois deconseguirmos a mesa, pediríamosuma garrafa de Beaujolais edaríamos uma olhada no menu. Eudiria a Li Po que Hemingway,
Faulkner e F. Scott costumavam seempedrar no Musso’s e que eutambém, geralmente no meio datarde, pedindo garrafas e maisgarrafas ao examinar o menu, paraao cabo de tudo, em boa parte dasvezes, não pedir nada.
Depois do Musso’s, iríamospara outro lugar e continuaríamosbebendo, vinho tintoprovavelmente, e fumaríamoscigarros indianos. Eu iria falar eele escutar, e depois eu o
escutaria falar. Daríamos boasrisadas, e depois a noite chegaria.A não ser que quisesse escreveralguns poemas, queimá-los elançá-los no LA Harbor.
Em qualquer cidade, bomsenso e bom gosto estão menosnaquilo que você vê e faz e maisnaquilo que você não vê e não faz.O que está fora de nósdificilmente será tão importantequanto o que está dentro, mas,apesar desse privilégio, devemos
também viver com as coisasexteriores. Li Po teria consciênciadisso, e assim, gastar a noitebebendo devagar seria o melhordos mundos para nós dois. Ah,sim, sim, sim.
Olhando para um dosgrandes em
retrospectiva
[SOBRE EZRA POUND]
Quanto mais tempo se passada morte de um homem, maisestamos aptos a distorcer suas
forças e suas fraquezas; suaincapacidade de responderempresta bravura a nossosjulgamentos. E Pound tem sidomastigado sem parar, já há algumtempo, e em seu velório deixouespecialistas e acadêmicos emPound, e esses especialistas estãomais bem preparados para lhesfalar sobre E. P. do que eu. Sóposso dizer a você o queexperimento e sinto de um pontode vista que pode carecer da
adequada profundidade. Tendopassado grande parte da minhavida como um simplestrabalhador, o melhor estudo quepude fazer foi o de mim mesmo.Seja como for, vamos em frente...
Antes de mais nada, deixe-medizer que ao menos uma escolaque Pound deixou para trás deuforma ao progresso de certa partede nossa poesia, só que essaescola era melhor em botar bancae formar uma pequena casta do
que em deixar qualquer trabalhosignificativo. E uma das coisas emque Ez insistia era: “Façam seuTRABALHO!”. Esses garotosfalavam mais sobre como deveriaser a poesia, escreviam ensaioscríticos sobre como deveria ser apoesia. Isto terminava porconsumir grande parte de seutempo e, por fim, acabou pordevorá-los. Ser conscienciosocom o percurso e o caminho daPalavra pode valer a pena, se
essas teorias não levarem àconstipação e a restrições. Muitosdos ditos intramuros, os pequenostrocadilhos sobre “Que era o Quee o Que não” era em grande parteum monte de merda incestuosa dehomens que sequer poderíamoschamar de espertos. Podemosculpar Pound de algumas coisas,mas não por ter deixado... essescaras... para trás.
E daí? Bem? Durante asagruras dos dez anos em que não
escrevi quase nada nem li quasenada, e passei fome comcompetência, eu tinha uma espéciede piada fixa para uma mulher.Podemos dizer que essa mulherera uma prostituta de rua comquem eu estava morando há algunsanos. Eu entrava então em nossoquarto, depois daquela longacaminhada até a biblioteca docentro – para tirar então o mesmolivro, o enorme volume, e elasempre me perguntava:
– Pegou de novo esse malditolivro?
E eu respondia:– Sim, baby, são Os cantos.E a resposta dela era sempre
a mesma:– Mas você nunca lê isso!Suponho que aquilo dizia
muito. Mas eu era capaz de lercertas partes de Os cantos, e aindaque nem sempre estivesse segurodo que estava lendo tinha queadmirar como, de alguma maneira,
ele fazia aquelas linhas correrempelo papel num estilo elevado eelegante. Pound foi para a poesiao que Hemingway foi para aprosa: ambos tinham um jeito deincitar e excitar num momento emque não havia realmente muitacoisa acontecendo. Alguns de nóspodem ter a tendência de rebaixá-los, mas seria muito difícilignorá-los. Pound deixou suamarca. E uma das melhores coisasque fez foi mandar sangue novo,
novos grupos para uma revistaentão chamada Poetry: A Magazineof Verse . E, claro, ele escreveumais do que Os cantos.
Se Pound era ou nãoantissemita, ou fascista, ou o quequer que tivesse vontade de ser jáé outro tipo de debate. Osdiscursos por rádio que li soavammais como a algaravia imbecil deum moleque do colegial que seconsiderasse brilhante – mais doque as divagações de um louco.
Além disso, em muitas mentescriativas há um impulso natural deconhecer o outro lado. E umdesejo de, às vezes, ficar do outrolado só para ver no que vai dar.Porque o primeiro dos lados jáestá aí há tempo demais, tãofirme, e aparentemente tão gasto.Céline, Hamsun, outros forampegos, a seu tempo, em atitudesemelhante. E eles não foramperdoados. Numa tentativa deultrapassar os conceitos de Bem e
de Mal (se é que existem), obalanço por vezes oscila e alguémvai para o lado do Mal (supondoque exista um) porque lhe parecemais interessante – em especialquando os seus conterrâneosaceitam seguir felizes, sempestanejar, o que lhes dizem que éo Bem (sem jamais duvidarem).De um modo geral, há umatendência nos homens inteligentesde não acreditar naquilo quegrande parte das massas acredita,
e isso na maioria das vezes acabapor colocá-los na linha de fogo –outras vezes acabam com os rabosqueimados, especialmente naarena política, onde osvencedores determinam qual é olado certo.
Pound acabou se queimando,e para salvar o rabo (alma) nós ocolocamos entre os lunáticos edizemos que ele se deixou levar.Contudo, se os fascistas, se osnazistas tivessem vencido, acho
que Pound teria sido um dosprimeiros a se voltar contra eles,e azar do prêmio. Ele apenas foipego do lado Perdedor e umPerdedor jamais venceu até agoranum Tribunal de Crimes deGuerra.
Além disso, na América,desde o final da Primeira GuerraMundial, a assim chamadaintelligentsia, as universidades,tomaram o rumo da Esquerda(num surto especialmente
gigantesco entre 1931-1947). Epara um artista, dar uma guinadapara a Esquerda, mesmo para aextrema Esquerda, não tem sidovisto apenas como perdoável, masmuitas vezes como a formamáxima de bravura criativa.
Pound não se encaixavadentro dessa moldura espiritual.
Pois bem, mas aonde isso nosleva? Os seguidores de Poundalegam que uma obra deve serjulgada pelo que é, e que as
pequenas excentricidadespolíticas devem ser deixadas delado. Os que não são criadoresalegam que o homem deve serjulgado como um todo.(Significando, julgado pelospadrões deles. Se estou certo,você está errado. Não é mesmo?)
Será a história dos homensformada por uma espécie acabadade bondade Humana interior, oupela Ganância e Necessidade dePoder para se garantir? Ou por
uma mistura? Não sei. Sou umdaqueles indivíduos vergonhososque estão à margem da política.Desconheço os meandros paraopinar.
Tudo o que sei sobre Poundvem da leitura de seus textos.Acho que como artista ele tem umexcelente senso do que é aPalavra: onde colocá-la e como.E como, e como. Ele também eraum malandro e com frequênciaescondia o riso atrás das palmas,
camuflando o quanto se divertiaàs nossas custas. Sempre tive aimpressão de que ele sabia quemuito de seu material era carne desegunda, ainda assim a elegânciade estilo com a qual nosludibriava era em si outra formade arte.
Pound cresceu sobre aMentira: colocou-a dentro docontexto de um alto e envolventeentretenimento. Muitas vezes elemesmo se perdia no processo. Sua
grande escrita ocasional poderiaenlevar alguém; outras vezes, elaera tão fria quanto um peixe.
Poucos homens podem correra dura linha reta. Se, para o mal,Poud é a Última Farsa, entãoquem você colocaria no lugardele? Robert Lowell?
Os poetas, claro, não são osúnicos a sofrer no nosso mundo,eles apenas falam mais sobre isso.E os críticos, meu amigo, oscríticos são como a carne podre
de uma lagosta. Perdoe-me porisso, é tudo o que eu sei, do meumodo sofrível. Basicamente, oque eu tenho a dizer é: Ezra, sim.
Sim, sim, sim, sim, sim, sim,sim, sim, sim, sim e sim.
Outra Portfolio
lá nos anos 40, editado porCaresse Crosby, da Sol Negro,viúva de Harry Crosby que nãoparava de escrever sobre suicídioe Sol Negro até que conseguiucometê-lo numa noite com umaprostituta num hotel em Paris, sejacomo for, aos 24 anos enviei um
conto para a Portfolio e fui aceito.uns dois anos depois, estou
completamente louco, tentando metornar um escritor, estou numacabana de tapumes em Atlanta, a1,25 dólar por semana, sem água,sem aquecimento, sem luz.
me sinto pior do que Kafka emais torpe do que Turguêniev,passo uma fome dos diabos, tudoo mais se foi, desamparado pormeus pais – que também nãotinham nada, sem um centavo no
bolso, mas eu ainda tenho selos eenvelopes e o velho endereço daPortfolio e o de Kay Boyle,escrevo a eles duas cartas decinco ou seis páginas explicandoo que sobrou de minha carne e deminha alma – ambas definhandocom rapidez, e mando as cartas eespero, espero e espero, tentoroubar uma maçã de uma fruteira esou pego, estou envergonhado,nunca tinha tentado roubar antes, eeu esperei e esperei e meu aluguel
de 1,25 venceu, mas permitiramque eu ficasse porque o dono dolugar estava morrendo, assimcomo eu, muitos Cristos e muitascruzes, e, então, de qualquerforma, Kay Boyle nuncarespondeu, aquele grande liberal,aquele grande representante dosoprimidos, nunca gostei do estilodele mesmo, muito raso, semarestas. tinha pedido dez pratas,com a promessa de ressarci-lo, oque teria feito, eu era assim.
de toda maneira, eis quechega uma carta de CaresseCrosby, a Portfolio já não existiamais, mas ela se lembrava do meuconto, um ótimo conto, ela agoravivia num castelo na Itália ededicava sua vida a ajudar ospobres, havia muitos pobres navila abaixo de sua propriedade eela ficara feliz em saber notíciasminhas.
não havia dinheiro dentro dacarta, chacoalhei as páginas
repetidas vezes no meu tugúriosombrio, estava um frio de racharlá fora e também do lado dedentro e ali estava eu sentado coma minha camisa californiana,muito fina, e de calças, e entãorasguei o envelope e olhei emtodos as dobras – nada. estariamos italianos pobres em piorescondições do que os americanos,será que suas barrigas sentiammais fome?
saí de Atlanta ao me alistar
num emprego numa equipe dacompanhia de trem que partia paraoeste e tive que brigar com todosdo grupo porque não conseguia rirde suas piadas sujas e óbvias, “háalgo errado com você, cara!”“sim... eu sei... só me faça o favorde tirar esse seu rabo da minhafrente!”... enquanto o velho vagãode passageiros, com as janelasenegrecidas pelo pó e pela lama,me levava de um inferno paraoutro.
O outro
A primeira vez que o percebi,eu estava estendido na cama. Aporta do banheiro se encontravalevemente aberta e lá, paradodiante do espelho – ou assimparecia –, estava um homem, eeste homem se parecia muitocomigo “EI!”, gritei. Saltei da
cama e corri em sua direção. Aochegar lá, o banheiro estava vazio– isto é, de outra pessoa.Vitimado por uma ressaca feroz,voltei para a cama. O rádio-relógio marcava 1h32 da tarde.Pensei sobre aquilo que eu tinhavisto ou imaginara ver. Então luteipara me concentrar. Ainda haviatempo de pegar alguns páreos nojóquei. Comecei a me vestir...
Cheguei a tempo para oterceiro páreo. Era uma tarde de
quarta-feira e não havia muitagente. Apostei ainda no terceiro,perdi, depois caminhei em buscade um sanduíche e um café.
Comecei a me sentir melhor.O jóquei era onde eu relaxava.Talvez fosse um lugar estúpido,mas não conseguia pensar emnenhum outro lugar para ir quandoprecisava desopilar. Sem o jóqueie alguns tragos aqui e acolá, avida podia se tornar um tantosombria e sem sentido.
Terminei de comer, entãocaminhei em direção a umbebedor. Ficava localizado nofinal da galeria noroeste, debaixoda tribuna de honra. Enquantocaminhava, ouvi passos às minhascostas. Não gostava que ninguémcaminhasse atrás de mim. Mudeiminha trajetória, mas seguiaescutando o som dos passos.Então senti um tapinha no ombro,estando ainda em movimento.
– Me perdoe, senhor...
Parei e me virei. O homemperguntou:
– Poderia me dizer onde ficao banheiro masculino?
– Siga por onde veio atépassar os guichês. Há ali umaescada, à direita. Basta descer.
– Obrigado – disse o homem,deu meia-volta e se foi.
Fiquei plantado, semconseguir acreditar. O homem separecia exatamente comigo. Deviater inventado um papo qualquer
para mantê-lo perto por maistempo. Deveria tê-lo mantido poraqui, descobrir mais coisas. Elejá estava quase na escada quedava no banheiro masculino.Então o vi descer. Segui em suadireção.
Empurrei a porta do banheiroe entrei. Ele não estava nas pias.Caminhei até o canto e dei umaolhada no mictório. Nada.Deveria estar num dosreservados. Apenas três estavam
ocupados; dava para ver as pernaspelo vão inferior das portas.
Resolvi esperar. Encostei-mena parede mais afastada e fingiestar lendo o prognóstico dascorridas. Um pouco depois, umhomem saiu de um reservado. Eraum negro nanico, de macacão. Meviu olhando para ele por sobre oprognóstico. Parecia amigável.
– Tem alguma dica quentepara o páreo? – perguntou.
– Não, nada – respondi.
Caminhou até uma pia e lavouas mãos.
Outra porta se abriu. Umvelho saiu. O pobre sujeito estavaterrivelmente curvado. Malconseguia andar. Mas eleprecisava do hipódromo. Estavapreso. Deu um jeito de chegar atéa pia e lavou as mãos.
Aquele último reservado.Assim que o cara saísse, iriaconfrontá-lo. Será que terianotado a extrema semelhança
entre nós dois? Qual era a dele?Por que não teria mencionadonada? Quando ele me olhou, deveter sido como se olhar no espelho.
Vi a última das portascomeçar a se abrir. Avancei nadireção dela. Um homem saiu. Eraum oriental. Eu era branco, umvelho e cansado branco daCalifórnia.
– Escute – comecei a dizer aele.
– Sim, o que foi? – perguntou.
– Nada – eu disse.– OS CAVALOS JÁ ESTÃO
NO PORTÃO! – ouvi o locutoranunciar.
Saí correndo até um dosguichês. À minha frente estavaoutro californiano branco ecansado, e à frente dele um tipocansado da América Central. Ocentro-americano cansadoenfrentava problemas para secomunicar. Por fim, terminou suaaposta. Então o californiano
branco e cansado pediu uma pulede dois dólares em seu favorito.Paspalhos como ele tumultuamdiariamente as filas. Então ele seafastou.
Eu estava junto à janela.Despejei uma de vinte.
– VINTE PARA VENCERCOM O 9! – gritei.
– O quê? – o atendente meperguntou.
Aquilo era deliberado. Eleera um sádico. Um terço dos
atendentes são sádicos.– VINTE PARA VENCER
COM O 9!Ele começou a imprimir a
pule. O sinal soou, a máquina foiautomaticamente desligada e oscavalos saíram pelo portão.
Recolhi minha nota de vinte efui assistir à corrida. Era umpáreo de 1.600 metros. Quandoavistei a pista, o cavalo 9 tinhaum corpo e meio de vantagem dosdemais e estava abrindo
vantagem. No meio do percurso,levava quatro corpos. Na últimacurva, estava a três corpos. Entãocomeçou a cansar um pouco.Quatro ou cinco cavalos foram noseu encalço. O jóquei passou adescer pesado o relho, e o 9 aindatinha um corpo de vantagem nachegada.
Fui buscar um café. Maistarde, ao retornar ao meu assento,o prêmio havia subido. O 9pagava 18,70. Aquele sadista
fodido me consumira 167 dólares.Fiquei junto à pista. Caminhei
por ali, em busca do homem. Nãoo avistei em nenhum lugar. Vimuita gente feia, alguns otários,um ou dois assassinos, mas nãovoltei a ver o tal sujeito. Fuiembora para casa depois dooitavo páreo...
*
Estacionei meu carro e
atravessei o pátio. Abri a porta eentrei. Lá estava minha namorada,Carine. Querida Carine, com seusolhos castanhos e inocentes,aqueles lábios finos, aquelaspanturrilhas gordas. Estavasentada no sofá, vendo tevê. Tinhaa chave. Olhou para mim.
– Achei que você tinha saídopara comprar vodca. Onde está avodca?
– De que diabos você estáfalando?
– Você disse que ia buscarvodca quando saiu.
– Saí de onde?– Daqui, ora. Faz uns vinte
minutos.– Eu não estava aqui vinte
minutos atrás. Passei o dia todono hipódromo.
– Está querendo tirarcomigo? – Carine perguntou. –Não se lembra do amor gostosoque a gente fez?
– Que amor?
– Ora, no início da tarde,garanhão. Você mandou bem,nunca tinha sido assim.
Fui até a cozinha e me serviuma boa dose de uísque, tomei umgole, abri uma garrafa de cervejae voltei, sentei com a cerveja ecom o uísque. Sentei numapoltrona de frente para Carine.
– Então eu peguei você dejeito, é?
– E como! Realmente nãoconhecia esse seu lado.
– Agora, Carine, presteatenção, olhe para mim. Eu estavavestido assim a última vez quevocê me viu?
– Não, pensando bem...Quando você saiu para comprarvodca, usava uma camisa branca,calças azul-marinho e sapatospretos. Agora você está vestindocamisa amarela, calças marrons esapatos marrons. Está muitodiferente... Você mudou de roupaem algum lugar?
– Não.– Então o que você fez?– Não fiz nada. O cara com
quem você foi para a cama nãoera eu.
– Ah, corta essa! – Carineriu. – Se aquele não era você,quem era então?
– Não sei.Terminei meu uísque e tomei
um gole de cerveja.Carine ficou de pé.– Vou embora daqui. Não
gosto do jeito como você está secomportando. Quando você voltarao normal, me ligue.
– Está bem, Carine.Então ela se foi, saindo pela
porta.Talvez eu estivesse ficando
louco. Mas eu tinha estado nohipódromo naquela tarde. Nãohavia jeito de eu ter estado emcasa. Quem sabe eu não tivesseme divido em dois? Será que eunão podia estar em dois lugares
ao mesmo tempo? Talvez eu sópudesse ter a lembrança de umdos lugares.
Eu precisava de ajuda. Masnão sabia aonde ir. Ninguémacreditaria em mim.
Fui ao único lugar para ondeeu poderia ir: à cozinha, em buscade um novo copo.
No trajeto, me lembrei decomo o homem estava vestido nojóquei: camisa branca, calçasazul-marinho, sapatos pretos...
*
Várias semanas se passaramsem outras ocorrências. Voltei atémesmo a ver Carine.
A vida seguiu no seu ritmocostumeiro, monótono e fatigante.Quanto ao passado recente,concluí que tinha sofrido de umainsanidade momentânea e quehavia imaginado aquilo tudo.Comecei a beber e a apostar maispesado para me libertar o máximopossível dos processos mentais.
Os dois principais objetivos davida, afinal, eram evitar a dor edormir bem, estou certo?
As coisas se arrastaram atéeste dia em particular. Era outraquarta-feira – não, era uma quintae eu havia tido um dia razoável nohipódromo. Estava na freeway,olhando pelo retrovisor, quandoreparei neste cara que dirigia umcarro verde-água, último modelo;estava na minha cola, muitopróximo. Ocupava todo o meu
espelho. Estava grudado no meupara-choque. Pisei no aceleradorpara ganhar velocidade, mas eleme acompanhou, a um palmo demim. Bem, as pessoas estãocheias de ódio; suas vidas nãoseguem suas expectativas, e asrodovias são um lugar ondepodem dar vazão à raiva.
Troquei de faixa para melivrar desse cara colado à minhabunda, mas ele também trocoujunto e voltou a estar atrás de
mim. Eu havia atraído algum tipode psicopata.
Voltei a trocar de faixa,liguei o rádio e tive a felicidadede ouvir um Mahler. Aquilopoderia mudar minha sorte. Volteia olhar o retrovisor. O filho daputa mudara outra vez e voltava ase grudar no meu para-choque.
Pisei no freio. Ele pisoutambém. Houve um pequenochoque. Ele batera em mim, aindaque de leve. Senti meu sangue
ferver; correu pela minha nuca einundou o contorno dos meusolhos. Eu estava ficando puto. Erapreciso muito para me tirar dosério, mas ele ia conseguir. Nãogosto de me irritar, porque quandofico puto, fico puto por muitotempo. Nunca dei muita bola paraas pessoas, e, desde que medeixassem em paz, eu as deixariaem paz. Agora eu estava meemputecendo.
Olhei o espelhinho da direita
e o retrovisor, então dei umaguinada rápida para a direita. Meenfiei entre uma picape e umafurgoneta. Tinha tirado o cretinoda minha cola. Mas eu seguiaputo. Ele seguia um pouco à frentede mim, na pista da esquerda. Viminha chance e cruzei para aesquerda, grudando no para-choque dele. Agora eu ia pegaraquele merda. Vi a placa:6DVL666.
Ele trocou para a pista da
direita. Segui atrás dele.Então ele se jogou na
primeira saída da freeway. Seguilogo atrás dele, grudado em suatraseira.
Vi seus olhos em seuretrovisor. Pareciam olhosassustados. Deveriam estar.Quando fico puto, viro um tigredos infernos. Não eram poucos oscamaradas que já haviamexperimentado isso.
Tomou a direita no bulevar e
eu o segui, para-choque com para-lama. Disparou em direção a umsinal; não havia carros na frentedele. O sinal ficou vermelho, e elepisou no acelerador. Segui comele. Um outro cara da transversalavançou no verde. Seu carro meacertou na passagem. Ele pisounos freios, mas acabou acertandoa parte de trás do meu carro. Deiuma meia-volta, acabei meajeitando novamente, e segui noencalço do meu amigo. Ele
tentava escapar. De algumamaneira, meu carro tinha maisfibra, e eu estava outra vez a umpalmo de distância.
Eu seguiria aquele miserávelaté o inferno. Daria um jeito demandá-lo para o inferno. Eu játinha passado por muitoscasamentos ruins, muitosempregos ruins, muita coisa ruimpara aguentar merda de um caracomo aquele.
O próximo sinal estava
vermelho. Ele parou e esperou.Estávamos grudados. Por ummomento cheguei a pensar emdescer do carro e tentar pegá-lo.Mas sua janela estava erguida e aporta, na certa, trancada. Mas eudaria um jeito.
O sinal abriu e eu o segui.Ele cortou para uma rua interna.Segui-o. Eu era como a morte. Amorte dele.
De súbito, entrou numa ruela.Segui, grudado nele. Então
cometeu um erro: pegou umdesvio na ruela e deu em um becosem saída. Ele estava na minha.
Encostou em um ponto dedescarga de um armazém. A frentede seu carro tocou a doca.Encostei logo atrás, pressionandoo para-choque. Ele estavatrancado.
Ficou sentado no carro. Asjanelas continuavam fechadas. Eleestava completamente parado. Eraevidente que não tinha um telefone
de carro para pedir ajuda.Fiquei sentado no meu carro,
pensando no que fazer.Poderia esvaziar os pneus do
carro dele. Poderia demolir tudo– o para-brisa, as janelas, alataria. Mas eu queria era ele.Queria demolir com ele.
Mahler seguia tocando norádio. Quando a sinfoniaacabasse, eu chegaria a umaconclusão; eu tinha tempo. Nãohavia gostosas me esperando em
casa.Ficamos os dois ali sentados.
Me perguntava o que deveria estarpensando. Certamente não voltariaa colar no para-choque deninguém.
Mahler tocava e nós doisesperávamos. Então, antes deMahler terminar, ele abriu a portae saiu do carro.
O inesperado. Aquilo mechocou um pouco. Ele aceitavameu desafio. Mostrava, por fim,
alguma coragem. Estava mechamando para a raia. Bom. Bom.Muito bom.
Saí do meu carro. Então pudevê-lo com clareza. Era ele, semdúvida.
Fui em sua direção.Ele não recuou. Tinha dois ou
três metros às costas, mas nãorecuou.
Caminhei até ficar a um metrode distância, então parei.
– Muito bem, seu palhaço,
desembucha.– Desembucha o quê?– Por que ficou nessa
frescura comigo? O que vocêquer? Quem é você?
– Isso não é da sua conta.– Você fala botando muita
banca para um cara que vai ter orabo chutado daqui até Honolulu.
– É o que vamos ver.– É mesmo?– É.– Você passou dos limites
quando comeu a minha menina.– Ótima menina – ele
arreganhou os dentes. – Umabocetinha bem apertada.
Avancei, disparei umadireita. Ele se esquivou, e logovoltou a ficar reto.
– Vai ter que fazer melhor doque isso.
– E vou mesmo. Vou foderesse seu cu.
– Venha me pegar.Me aproximei, fingi uma
direita e o acertei com umaesquerda atrás de seu ouvidodireito. Ele balançou a cabeça,pareceu atordoado, e entãodisparou uma direita que explodiucom grande força contra a minhatesta. Nada mal. Mas pressentique ele já era meu. Avancei comos dois punhos erguidos, ao estilobriga de rua. Ele recuou. Conseguiacertar uns bons golpes. Massentia que começava a dominar e,à medida que ele golpeava menos,
eu podia ver e mirar melhor. Dei-lhe um bom gancho de esquerdana boca do estômago, depois umgancho de direita em direção aorosto. Ele caiu e rolou. Não quischutá-lo. Fiquei parado e espereique levantasse. Eu iria lhe daruma surra à moda antiga, lenta edireta e brutal, uma surra da qualse lembraria não apenas enquantoestivesse acordado, mas tambémnas horas de sono.
Levantou-se, balançou a
cabeça, cambaleou na direção docarro.
– Negativo, docinho – eu lhedisse. – Vou acabar com a suaraça.
Chegou ao banco dianteiro.Depois se voltou para mim.
Ele segurava uma pequenapistola, negra e brilhante, e nãotão pequena. Eu já havia encaradouma arma antes e deixe-me contarum segredo. A primeira coisa quevocê nota numa arma é o buraco
ao fim do cano. É um buracofascinante. É de onde a bala vaisair. O buraco é como o olho deuma cobra à espreita de umpássaro, de um coelho, de suapresa. Pronto para tudo.
– Certo, meu camarada – eledisse –, entre no seu carro, dê a rée eu me vou.
– Não vou dar a ré no carro.– Quer morrer?– Não.– Então dê a ré na porra do
carro.– Quero saber por que você
está fodendo a minha vida. Qual éa sua? O que significa isso tudo?Como é que você pode se parecercomigo mais do que eu mesmo?
– Você não está em posiçãode fazer perguntas.
– Puxe o gatilho, babaca, voupegar você.
Avancei...
*
Quando recuperei ossentidos, ele já tinha partido. Meucarro estava ali. Senti o talho naminha cabeça. Ele tinha me dadoum coronhaço. Havia um corte notopo da minha cabeça. O sangueescorria face abaixo. Peguei meulenço. Mantive-o pressionado alipor algum tempo. Caminhei atémeu carro. Ele havia tirado aschaves do meu bolso. Abri a portado carro. A chave continuava naignição. Entrei, dei a ré, retornei
para a freeway.Liguei o rádio. Tocava o
“Réquiem em Ré menor”, deMozart. Apropriado...
*
Quando retornei para casa,Carine estava sentada no sofá,vendo tevê. Ela disse:
– O que é isso? Pensei quevocê tinha ido buscar vodca. Cadêa vodca?
– Puta que pariu – eu disse.– Ah, você está bêbado de
novo – disse Carine. – Estoudando o fora.
*
Sentei numa mesa dos fundosde um café chinês e esperei. Meucontato estava dez minutosatrasado. Talvez não aparecesse.Ele me havia sido selecionadopor uma fonte confiável.
Chamei o garçom e pedi maisuma cerveja.
– E me veja também um chowmein. Um chow mein de camarão.
Ele se foi e logo retornoucom a cerveja. Tomei um bomgole. Nunca bebo do copo. Ogosto é melhor direto da garrafa.
A porta na outra extremidadese abriu e um homem entrou. Suaaparência era bastante boa. Decerto modo, esperava um cara deaspecto mais duro. Mas talvez não
fosse ele, certo? Veio em minhadireção. Havia um outro homemnuma mesa entre nós. Ele seguiu,veio até mim, puxou uma cadeirae se sentou.
– Boa noite – ele disse.– Tudo certo – eu disse. –
Como sabia que era eu?– Nós sabemos – respondeu.O garçom chegou.– Chá quente – ele disse ao
garçom, que se afastou.Inclinei-me um pouco para a
frente.– Quanto isso vai me custar?
– perguntei em voz baixa.Respondeu no mesmo tom.– Quanto você tem em sua
conta bancária.– Dez mil.– Vinte mil.– Como você sabe?– Nós sabemos.– É muito dinheiro.– É o preço. Está
interessado?
– Sim. Você receberá umcheque quando tudo estiverterminado.
– Só recebemos em dinheiro.Em notas de cem. Não marcadas.
– Isso vai ser difícil.– Você consegue.– Como farei para entregar?– Entraremos em contato.– Você não quer um
adiantamento?– Não, receberemos tudo
junto, no final. Enquanto isso,
saque tudo do banco amanhã, porsegurança. Entendeu?
– Sim.O garçom chegou com o chá.– Obrigado – ele disse ao
garçom –, mas, por favor, metraga alguns limões.
O garçom se afastou.– Como sabe que eu vou
pagar? – perguntei.– Você vai pagar, e quando
nós dissermos.Continuamos falando em voz
baixa. De certa maneira, me sentiacomo num filme, um filme barato.
– Gosto de tomar chá comlimão – ele disse –, você nãogosta?
– Não. Escute, tudo o que eutenho é o número da placa docarro dele. Como vai conseguirencontrá-lo?
– Vamos encontrá-lo.Escreva o número nesseguardanapo e deslize-o para mim.
Eu tinha uma caneta. Anotei o
número e voltei a guardá-la.– Obrigado – ele disse.O garçom chegou com os
limões.– Obrigado – ele disse ao
garçom.Assim que o garçom se
afastou, falei.– Sabe, esse cara se parece
muito comigo.– Nós sabemos.– Como posso saber se você
não vai se enganar e atirar em
mim?– Não gostamos da palavra
“atirar”.– Que palavra você quer que
eu use? Que termo?– Não use termo nenhum.– Tem medo de que eu esteja
com uma escuta?– Não sentimos medo. E nós
sabemos que você não está comescuta nenhuma.
Espremeu um dos limões nochá, depois tomou um gole. Depôs
a xícara e voltou a me olhar. Eume perguntava se ele era umhomem de família.
– Quanto tempo isso vailevar? – perguntei.
– O serviço todo estaráconcluído em cinco dias.
O garçom chegou com meuchow mein e se foi.
– Não tenho cabeça paracomer agora. Escute, comosaberei que vocês já fizeram oserviço? E que vocês realmente
fizeram o combinado?– Você receberá uma
comprovação. Temos umareputação a zelar.
– Não consigo entender comopodem localizar esse cara apenascom a referência que eu lhe dei. Acidade é grande para burro.Talvez ele nem esteja mais pelasredondezas.
– Vamos encontrá-lo. Tudoestará terminado em cinco dias.
– Ninguém nunca dá com a
língua nos dentes?– Como?– Quero dizer, os clientes.– Os clientes nunca falam.Baixei os olhos para o meu
chow mein.– Não sei mais se quero que
isso seja feito.– Da nossa parte não há
problema. Se não quiser, isso lhecustará cinco mil. Se quiser oserviço, aí são vinte.
Houve um instante de
silêncio. Uns bons três minutos.O homem falou.– Quer que o serviço seja
feito. Diga agora.– Tudo bem, vá em frente.– Certo – disse o homem –,
entraremos em contato.Ele se pôs de pé. Olhou-me
de cima.– Droga, não chove há uns
seis ou sete meses. Deve ser oefeito estufa, não acha?
– Sim, acho que eles foderam
com a nossa estratosfera.– Cretinos – disse o homem.
Então ele se virou, caminhou até aporta, abriu-a e saiu, sem olharpara trás.
O chow mein não parecia nadabom. Terminei a cerveja, aceneipara o garçom. Pedi a conta.
Resolvi não voltar àquelelugar. Não parecia ser um lugarlegal.
Quatro dias depois, por voltadas sete da noite, descobri um
envelope enfiado sob minha porta.Abri. Havia fotos. Fotos dele.Morto. Estava estendido sobreuma poltrona estufada. Estavaereto, mas um pouco inclinadopara a direita. Um pedaço dalíngua pendia para fora da boca. Ehavia um enorme furo em suatesta. Comecei a me sentir tonto.Respirei fundo em busca de ar eminha mente se aclarou. Haviaoito ou nove fotos, tiradas deângulos diferentes. Havia também
um bilhete. Estava composto porletras impressas recortadas dejornais e coladas ao papel.
Queime essas fotos. Agora. Eeste bilhete. Faça isso.
Agora.Caminhei até a lareira e
espalhei os papéis, pus fogo emtudo com meu isqueiro. Fiqueiolhando as fotos e a folhaqueimarem. Aquilo começou afeder. As fotos, provavelmente.
Cinzas às cinzas.Ele estava morto.
Caminhei até o quarto e mesentei na beira da cama.
O telefone tocou.– Alô? – eu disse.– Está com o dinheiro? – veio
a voz do outro lado.– Sim. Como faço para
pagar?– Não se preocupe com isso.
Fique onde está até ouvir notíciasda gente.
Ele desligou.Coloquei o telefone de novo
no gancho e me estiquei na cama.Comecei a me sentir como se
estivesse completamente cobertode limo ou de uma substânciaviscosa. Minha língua estava secae eu me sentia estranho.
Eu não deveria ter feito isso.Eu poderia ter vivido com asituação. Agora tudo parece aindapior. E jamais poderei saber oque o outro queria, o que causou acoisa toda. Então eu o vi. Seráque vi? Ele se parecia comigo ali
de pé, olhando para o espelho.Dei um salto e corri até o
banheiro. Não havia ninguém lá.Não havia nada lá.
Foi quando ouvi uma batidana porta da frente. Dei meia-voltae caminhei na direção da sala.
Treinamento básico
Sobre aquele comentário acercada “linguagem” que você mepediu, tentei chegar a algumacoisa. Era uma desculpa. Minhaesposa recebia convidados noandar de baixo. Eles são genteboa. Talvez. De qualquer forma,eu simplesmente caminhei até aqui
e comecei a escrever. Sou umescritor, sabe. Se tiver que beber,prefiro fazê-lo junto à máquina deescrever.
– – – – – Buk
A linguagem da escrita de umhomem vem de onde ele vive e decomo vive. Fui um vagabundo eum trabalhador comum por quasetoda a minha vida. As conversas
que eu ouvia passavam longe daerudição. E nos meus anos de vidative muito pouco contato compessoas ricas. Eu estava enfiadoem poços fétidos. Era um poucolouco, mas era um tipo incomumde loucura porque eu a cultivava.Permitia que minha mente ficasseandando em círculos, para morderseu próprio rabo. Eu atiçava meusinstintos, alimentava meuspreconceitos. A solidão era meuás de espadas, precisava dela
para engrandecer minha realidade.Eu valorizava de verdade o ócio,era viciante. Estar sozinho comigomesmo era o santuário. Certa veznuma cidade descobri umcemitério abandonado e lá eudormia ressacado, com o sol apino. Em outra cidade, ficavasentado horas a fio olhando paraum canal sujo e fedorento, sempensar realmente em nada. Euprecisava de horas, dias, semanas,anos para mim mesmo. Descobri
todo tipo de tugúrio enquantopassava fome. Tinha a habilidadede fazer com que um pouco dedinheiro durasse muito.Sacrificava qualquer coisa emnome do tempo. E para ficar foradas tendências. Em geral, umabarra de caramelo era o meualimento diário. Minha despesamais extravagante era uma garrafade vinho barato. Enrolava meuscigarros e escrevia centenas decontos, finalizando-os à mão e à
tinta. A máquina de escreverpassava mais tempo no prego doque fora. Para observar ahumanidade, me sentava numbanco de bar e filava unsdrinques. Apesar de ter mais deum metro e oitenta, eu malchegava aos 65 quilos,encharcado de álcool. Eu era overdadeiro Homem Magro commorcegos em seu Campanário.
Eu não estava na miséria.Quase me regozijava em minha
pobreza. Passar fome só é difícilnos três primeiros dias. Depoisdisso você entra num estranhoestágio de embriaguez. Vocêflutua pelas escadas, o sol setorna muito brilhante e os sonsmuito altos. A percepção aumentaem vez de diminuir. Feriados eeventos mundiais se tornamirrelevantes. Não sabia muito bemo que seria de mim, mas, de ummodo geral, minha saúde ia bem.Estar sozinho não era um
problema. O que me incomodavaeram meus dentes. Eu sofria deterríveis dores de dente. Fazia ovinho circular na boca ecaminhava rapidamente ao redordo quarto. Meus dentescomeçaram a afrouxar, podiadeslocá-los com meus dedos. Àsvezes um dente caía em minhamão. Uma coisa muito curiosa.
Nas bibliotecas, lia asrevistas literárias (junto comoutras coisas) e ficava perplexo
com o que era aceito como escritade alto nível. As páginas eramrebocadas com uma qualidadesuperficial para esconder a lodosaestultice interior. Não havia nadaem jogo, nenhuma luz, nenhumafelicidade. Eu lia os clássicos, asobras dos que haviam sidofamosos no passado e me pareciaque – com raras exceções – asobras dos séculos anteriorespareciam cheias de mentiras,vaidade, fricotes e embustes.
Eu não sabia o que estavafazendo até o dia em que fiz.Passei a me fixar na direção paraa qual eu deveria ir. Voltei-mepara o meu deus pessoal:SIMPLICIDADE. Quanto maiscompacto e menor você se tornar,menor é a chance de errar ou dementir. Os gênios são aquelescapazes de dizer algo profundo demaneira simples. Palavras erambalas, raios solares, palavraseram capazes de romper o
infortúnio e a danação. Eu estavana batalha. Tempo para batalhar éimportante.
Batalhei por décadas. E commuito pouca aceitação. Oseditores em sua maioria deviamachar que eu era louco,principalmente quando recebiamaqueles longos manuscritos.Lembro que um camarada meescreveu de volta, “QUE PORRAÉ ESSA?”. E era provável queestivesse certo.
Do meu jeito, eu era mesmolouco. Houve uma vez em quebaixei as persianas e fiqueideitado por uma semana. Outravez pude escutar:
– Helen, você conhece o carado 3? Não há nada além degarrafas de vinho na lixeira dele.E ele fica o tempo todo no escuro,escutando música. Vou ter que darum jeito de me livrar dele.
Coisas tais como mulheres,automóveis etc., e mais tarde
aparelhos de tevê eram apenasobjetos de estranha aparênciapara mim. Havia algumasmulheres de ocasião, em rarasocasiões, dificilmente material deprimeira.
– Você é o primeiro homemque conheço que não tem tevê!
– Certo, querida, corte apapagaiada e me mostre essaspernas aí!
*
Por fim, depois de décadasem tugúrios, bancos de parque,nos piores empregos, com aspiores mulheres, alguns dos meustextos começaram a se infiltrar,principalmente em revistasalternativas e em jornaispornográficos. Percebi que estesjornais eram uma boa saída: agente podia dizer o que quisesse,e quanto mais direto, melhor.Simplicidade e liberdade afinal,entre as fotos lustrosas de nudez
escancarada.Com o tempo, comecei a me
infiltrar cada vez mais, até mesmoem publicações mais respeitáveis.Cheguei mesmo a ter livrospublicados. Mas creio que isso sedevia ao meu estilo, ao meumétodo. Gostava de escarparminhas frases, de usar risadas detrapaceiros, arrotos, peidos.Ainda hoje ofendo as pessoas,mas não escrevo para ofendê-las.Isso é muito fácil...
A mãe da minha esposa, quetem apenas dez anos a mais doque eu, veio nos visitar no anopassado. Certa noite, ao voltar dohipódromo, vi que ela estavalendo um dos meus livros.
– Eu dei para ela ler – disseminha esposa.
– Para quê? – perguntei.Minha sogra gosta de fazer
palavras cruzadas, de jogaraqueles jogos de tabuleiro demontar palavras com as letras, e
seu programa de tevê favorito éuma série policial cujainvestigadora é uma escritoraelegante e convencional, quenunca suja as mãos.
Alguns dias se passaram.Fomos com ela para o
aeroporto.Uma semana se passou.Perguntei à minha mulher:– O que sua mãe achou do
livro?Minha mulher sabia atuar
bem. Dotou a voz de uma inflexãoem que a indignação sibilava:
– Por que ele tem que usaresse tipo de linguagem?
Era bem provável que ela sereferisse aos diálogos, mas tenhocerteza de que também estavaincomodada pelas frases entreeles: duras, quebradas, agitadas,estígias. Nem um poucoshakespearianas.
Eu tinha trabalhado com féinabalável em cavernas abafadas
para deixá-las assim. Sentia-melegitimado por saber que a haviadesagradado. Se ela tivesseaceitado meu trabalho, isso teriasido algo temeroso para mim, umsinal de que eu tinha me tornadopalatável, ao modo dosprofissionais.
Eu passara por um longo efodido processo de aprendizado.
Eu queria resistir a todas asarmadilhas, para morrer junto àmaquina de escrever, uma garrafa
Texto de acordo com a novaortografia.
Título original: Portionsfrom a wine-stained notebook
Capa: Ivan PinheiroMachado. Foto: Oleg Golovnev“Old Paper.Series”.
Tradução: Pedro GonzagaPreparação: Bianca
PasqualiniRevisão: Marianne Scholze
Cip-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Sindicato Nacional dosEditores de Livros, Rj.
B949p
Bukowski, Charles, 1920-
1994Pedaços de um caderno
manchado de vinho / CharlesBukowski; tradução PedroGonzaga. – Porto Alegre, RS:L&PM, 2011.
Tradução de: Portions froma Wine-Stained Notebook
ISBN 978.85.254.2240-8
1. Conto americano. I.Gonzaga, Pedro. II. Título.
10-3194.
CDD: 813CDU: 821.111(73)-3
© 2008 by the Estate ofCharles Bukowski.
Introduction copyright ©
2008 by David Stephen Calonne
Todos os direitos destaedição reservados a L&PMEditores
Rua Comendador Coruja,314, loja 9 – Floresta – 90220-180
Porto Alegre – RS – Brasil /Fone: 51.3225-5777 – Fax:51.3221-5380
SumárioAgradecimentos 3Introdução 8As consequências deuma longa carta derejeição
96
20 tanques deKasseldown 145
Difícil sem música 169
Traço: Escrita deeditor
191
Pedaços de umcaderno manchado devinho
198
Um ensaio errantesobre a poética e avida visceral escritoao longo de seiscervejas (grandes)
262
Em defesa de um
certo tipo de poesia,de um certo tipo devida, de um certo tipode criatura comsangue nas veias queum dia morrerá
305
Antologia de Artaud 352Um velho bêbado quea sorte abandonou 378
Notas de um velhosafado 396
Ensaio sem título emUm tributo a JimLowell
416
Notas de um velhosafado 425
A noite em queninguém acreditouque eu era AllenGinsberg
458
Deveríamos queimar
o rabo do Tio Sam? 502O cristo prateado deSanta Fé 527
Confissão de umvelho safado 557
Lendo e batalhandopor Kenneth 667
A cena de LosAngeles 699
Notas sobre a vida de 757
um poeta idosoSobre a matemáticada respiração e doestilo
801
Notas de um velhosafado 840
Notas de um velhosafado 869
Notas de um velhosafado 908
Prefácio inédito a “7
on style” de WilliamWantling
922
Jaggernauta 953Escolhendo cavalos 986Malhação 1022Como tudo aconteceu 1090Apenas matandotempo 1126
Distrações na vidaliterária 1174