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Pedagogia Lúdica do movimento
Poéticas para o movimento estético e criativo
Por: Adilson Siqueira
2008
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Bases para o desenvolvimento de uma “Pedagogia Lúdica do Movimento” (Bewegungsluduspädagogik)
Nas linhas que se seguem, procederei com um breve resumo circunstanciado das atividades
práticas desenvolvidas em meu estágio pós-doutoral na Áustria que me levaram à idéia de estruturar
uma “Pedagogia Lúdica do Movimento” (Bewegungsluduspadagogik, no original em alemão1). Trata-se
de apresentar ao leitor os elementos referenciais e dados objetivos e subjetivos que essa experiência
propiciou os quais, pretendo com a pesquisa proposta, analisar, aprofundar e sistematizar para que
possa ser compartilhado com a comunidade na forma de um livro e de um DVD. provisoriamente
intitulados “pedagogia lúdica do movimento”.
Em minhas atividades na Áustria, os procedimentos relativos aos trabalhos práticos pautaram-
se pela “estratégia” desconstrucionista, posto que um dos meus pontos de partida era a hipótese de
que um dos elementos dificultadores do processo de aprendizagem do movimento é a idéia da
personagem2. Nesse sentido, o primeiro passo foi desconstruir o modo como os alunos a concebiam, e
a sua função espetacular. Para tanto, o caminho adotado foi a junção das duas disciplinas em um todo
intrinsecamente relacionado, mas subdividido formalmente em duas partes. A primeira, ministrada no
primeiro semestre de 2006, em Viena, constituiu-se da disciplina “Modelos Coreográficos”
(“Choreographische Modelle”) e se caracterizou pela imersão dos alunos no tema e no contexto geral
da pesquisa. Já a segunda, constituída formalmente pela disciplina “Projeto de Dança e Movimento”
(“Projekt Tanz und Bewegung”), caracterizou-se pela realização da pesquisa prática propriamente dita.
Na primeira parte, ofertada em bloco, os alunos participaram de quatro horas diárias de
intensivas atividades teóricas e práticas. As ações aqui realizadas tiveram dois objetivos: a) introduzir
os alunos no Processo de Busca e Retomada3, especialmente no que se refere aos aspectos do
mesmo que estão relacionados à elaboração do RIMA (Repertório Individual de Movimentos e Ações
Agregados) e b) servir de balão de ensaio para experimentar a viabilidade de algumas das concepções
metodológicas que eu pretendia aplicar na segunda parte. Em resumo, este segundo objetivo consistiu
em aproveitar a oportunidade para testar in loco os procedimentos – e, por conseguinte, aprofundar os
conceitos que lhe são inerentes – que eu pretendia adotar (e que de fato utilizei, como se verá) na
pesquisa prática realizada pelos alunos na segunda parte. No próximo subtópico, farei uma sinopse de
quais foram esses conceitos e procedimentos.
1 Digo no original em alemão porque foi nesta língua que concebi tal conceito 2 Sobre essa questão, cf. SIQUEIRA; 2000. 3 Para maiores informações sobre o Processo de Busca e Retomada, Cf. SIQUEIRA, 2000.
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2.2 - Desenvolvendo uma estratégia de ação a partir da própria ação:
Como não tinha claro como poderia desenvolver a pesquisa prática a ser realizada na segunda
parte do curso, a opção pelo Processo de Busca e Retomada ocorreu primeiramente porque se trata do
processo de trabalho que já utilizo há muitos anos, tanto como artista cênico na função de diretor e
coreógrafo quanto como professor universitário nas diversas instituições em que já atuei4. Em segundo
lugar, porque se trata de um processo de trabalho cuja peculiaridade é o desenvolvimento de ações
físicas e sonoras e de frases de movimento que são inicialmente elaboradas num contexto “x” para, a
seguir, serem estruturadas num contexto “y”, representado pela cena e/ou seqüência coreográfica que
se pretende montar e, por fim, num contexto “z”, em que elas são tornadas orgânicas através da
representação não-interpretativa.
Com base nesses elementos, considerei que o Processo de Busca e Retomada oferece
condições excepcionais para se introduzir os alunos num dos conceitos-chave para a pesquisa que é
desconstruir a personagem, colocando-a sob rasura5, isto é, encerrando-a numa clausura. Como
conceituo em minha tese de doutorado (Cf. SIQUEIRA, 2005),
colocar a personagem sob-rasura é encerrá-la, junto com a função referencial, numa clausura. Nesse movimento, a função performante extrai o seu valor da cadeia de substituições possíveis no contexto em que ela se dá (em que o jogo se realiza). Num tal jogo, a cena não representa, ela não é uma ilustração sensorial de algo que está fora dela (como a personagem, o texto etc.), que foi pensado ou vivido fora dela; algo a que o artista cênico se refere ou por meio do que orienta seu trabalho. Nesse sentido, a função desse artista não é “repetir um presente, re-presentar um presente que estaria noutro lugar e antes dela, ausente da cena” (DERRIDA, 2002, p.157). [...] De fato, é disso que se trata: ao se encerrar numa clausura a “função referente” (a personagem), funda-se um novo espaço-tempo de jogo no qual só interessa o que se passa quando de sua realização. Nesse espaço-tempo formado entre o artista cênico e o espectador, a representação levada a cabo pelo primeiro acontece como uma “auto-representação do visível” e, no sentido da percepção, também do “sensível”6 (SIQUEIRA, 2005, p.174-175).
4 O Processo de Busca e Retomada é a base do curso Vivências Corporais I, que ministrei no Departamento de Educação
Motora da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas; das disciplinas Interpretação II e IV, ministradas no Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da mesma Universidade; das disciplinas: Ópera e Performance, ministrada no Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista e Princípios das Atividades Rítmicas, Expressivas e da Dança e Fundamentos da Dança, ministradas na Faculdade de Educação Física da Universidade Cidade de São Paulo e das disciplinas Pedagogia do Ritmo e Atividades Ritmadas Para Crianças, ministradas no curso de Educação Física da Faculdade de Americana.
5 Ao considerar a desconstrução da personagem um conceito-chave, estou tomando por base a teoria pós-estruturalista, mais especificamente a desconstrução derridiana, e partindo do princípio de que as dificuldades que os alunos que participam de cursos como expressão corporal, atividades ritmadas, dança, etc muitas vezes têm na hora de realizar as atividades práticas propostas por estas disciplinas é fruto do conceito de “representar para” que caracteriza uma época e um modo de pensar que distingue arte e jogo e que permeia as técnicas e os procedimentos que se usa em sala de aula para o ensino dessas atividades. (Cf. SIQUEIRA, 2005).
6 Derrida escreve “representação como auto-representação do visível e mesmo do sensível puros” (2002, p.158).
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Refletindo sobre a prática realizada pelos alunos, ficou claro para mim que a personagem
havia sido sim colocada sob rasura e, mais importante ainda, o exercício confirmou a argumentação
que eu havia feito em minha tese de doutorado quando propus que o jogo representativo seria uma
possível alternativa a uma arte cênica logocêntrica7. No caso em questão, a personagem foi colocada
sob rasura quando os alunos foram solicitados a representar os movimentos e, conseqüentemente, a
personagem criada por outrem. Inicialmente, tiveram de agir como espectadores de uma experiência
sensorial de outra pessoa. Depois, tiveram de realizar essa personagem (essa vivência de outrem) e a
cena na qual ela estava inserida. Tal ato passou a ser uma ilustração sensorial de quem estava
interpretando a personagem naquele segundo momento.
Essa prática refletiu a vivência sensorial da pessoa, no caso o aluno, que estava então
realizando a personagem, isto é, refletiu o seu esforço em representá-la e deixou claro que ao fazê-lo,
esse aluno para de repetir um presente que estaria noutro lugar, ausente da cena, para tentar se auto-
representar fazendo os movimentos feitos pelo outro ou (o que vem a ser igual) para procurar
representar, para si mesmo, como fazer os movimentos feitos pelo outro. Durante certo espaço-tempo.
então, ele se auto-representou. Ou seja, durante este espaço-tempo, ele não representou uma
personagem, mas, sim, ele mesmo. Para mim, ficou claro que naquele instante – quando o aluno está
preocupado em representar a si mesmo, em colocar-se no lugar do outro para fazer os movimentos do
outro (a personagem) – a “função referencial” deixa de ser o destaque e dá lugar à “função
performante”8. Nesse instante, ele está numa situação de jogo: o que importa é a performance e não a
personagem. Esta constatação serviu de ponto de partida para a segunda parte do curso, que se
constituiu da oferta da disciplina Projeto de Dança e Movimento (Projekt Tanz und Bewegung) em doze
encontros entre os meses de março e junho, na base de um por semana, cada um com duas horas de
duração.
2.3 - Jogo e Narrativa como fios condutores
Os primeiros encontros desta nova fase foram dedicados à apresentação e ao esclarecimento
dos conceitos de Desconstrução, Pós-estruralismo, Signo, Logocentrismo, Différance, Rasura, Função
Performante e Função Referencial utilizados indiretamente na primeira parte e que, como descrevi
brevemente no subtópico anterior, conferiram base teórica às atividades que propus serem feitas nesta
7 Cf. SIQUEIRA, 2005. 8 Jean Alter (1990) denominou “função performante” aquilo que as artes cênicas compartilham com outros eventos públicos
como o esporte e o circo e que é freqüentemente associado com a atuação. Ainda que a função performante prescinda dos elementos da arte cênica para ocorrer (por exemplo, do texto); diferentemente desta, ela não tem como preocupação primeira “comunicar algo através de signos, mas da experiência física direta do evento” (1990, p. 82). Já a “função referencial”, refere-se à preocupação de se “comunicar uma história conduzida por signos” (Ibid.) a serem interpretados pelo ator-dançarino e pelo espectador.
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segunda parte da pesquisa. Pelo que pude constatar, o conhecimento ainda que introdutório, desses
temas ajudou em muito os alunos na realização da pesquisa prática, cujo objetivo, como já
mencionado, era desenvolver uma pedagogia pós-estruturalista do movimento. No meu modo de ver,
tal objetivo foi atingido. Nas linhas a seguir, procurarei fazer uma breve descrição de como o processo
que me permitiu fazer tal afirmação transcorreu e, apresentarei os argumentos para uma pedagogia do
movimento; a qual (pelas razões que vou descrever) denomino Pedagogia Lúdica do Movimento”
(“Bewegungsgluduspädagogik”, no original em alemão).
Com base nas reflexões que a experiência da primeira parte me proporcionou, propus aos
alunos que nosso objetivo seria realizar um jogo. Essa opção foi fruto não apenas dessa experiência,
mas também da reflexão que empreendi sobre a “famosa” frase de Jacques Derrida: “não tem nenhum
sentido abandonar os conceitos da metafísica para abalar a metafísica” (2002, p.233). A partir desta
idéia, considerei que deveria conferir maior importância ao conceito de jogo que faz parte, que está
subjacente às artes cênicas e, por extensão, às atividades relacionadas ao ensino da dança e do
movimento. Essa relação intrínseca do jogo com a essas atividades pode ser facilmente atestada
observando-se, por exemplo, o papel desempenhado pela improvisação no âmbito da dança e do
teatro tanto no nível iniciante quanto no profissional. Assim, refleti por dedução que com o próprio
conceito de jogo seria possível abalar as bases logocêntricas, implícitas nas técnicas e nos
procedimentos usados em sala de aula para o ensino das mesmas. Ou seja, considerei que para se
construir uma pedagogia pós-estruturalista do movimento, faz-se mister o uso dos conceitos e das
práticas que se quer modificar. Destarte, apliquei esse raciocínio à reflexão que Hans Georg Gadamer
faz sobre os jogos representativos, em especial ao conceito de “representar para” proposto pelo autor.
Conforme analisei em minha tese de doutorado e mencionei (Op. Cit) este conceito personifica o
logocentrismo. Parafraseando Derrida9, fiz o seguinte raciocínio: é com o jogo que se abala o conceito
de “representar para” e se desenvolve uma pedagogia pós-estruturalista do movimento.
Definido o parâmetro filosófico-conceitual e feita a opção pelo jogo, o passo seguinte implicou a
definição de qual tipo de jogo deveria ser utilizado. Nesse sentido, lancei mão da experiência que tive
no período10 em que fui coordenador artístico do Projeto Fazendo Arte junto ao Programa de
Desenvolvimento da Criança e do Adolescente da Universidade Estadual de Campinas. Naquela
época, em parceria com a Profª.drª. Joana Lopes, que era a curadora do projeto, liderei um grupo de
doze profissionais (professoras de ensino fundamental) e dois estagiários (estudantes de artes
plásticas e dança) com o objetivo de implantar uma metodologia de arte-educação que tivesse a arte
9 Escreve o filósofo: “é com o conceito de signo que se abala a metafísica da presença” (DERRIDA, 1999, p.8). 10 De 03/2000 a 09/2001.
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como articuladora de conhecimentos e saberes. O modo como tentamos alcançar tal meta foi o estudo
do jogo e a criação de um jogo de ludo. A escolha deste último foi definida devido às características do
trabalho que cada profissional e os estagiários desenvolviam com seus alunos; cada qual tinha sua
turma e seu próprio projeto. O único meio de articular isso era a realização de um jogo que contivesse
diversas “casas” e no qual cada casa (ou mais de uma) pertencesse a uma turma. Cada turma, por sua
vez, se comprometia a criar tarefas (relacionadas com o projeto das profissionais) para serem feitas
naquela casa, tarefas estas que os jogadores (os alunos das outras turmas) deveriam realizar quando,
por meio de sorteio, chegassem àquela casa. Esta idéia – que por diversos motivos não pôde,
infelizmente, ser levada até o seu completo termo naquela instituição – foi resgatada quando em Viena
propus aos alunos que eles deveriam criar aquilo que em alemão se intitula Ludospiel e que em
português é denominado ludo (ou jogo de trilha).
O resgate do jogo de trilha aqui não é acidental. Como já foi explicitado, o jogo foi o elemento
pelo qual optei como sendo uma das bases da almejada pedagogia pós-estruturalista do movimento. Já
a escolha do jogo de trilha se deu por duas razões: primeiro, por uma questão absolutamente técnica:
criar uma seqüência de ações é uma maneira prática de se juntar trabalhos de grupos distintos e,
segundo, por uma questão semântica: entre outros significados, a palavra trilha expressa também o
vestígio deixado por pessoa ou animal no caminho que este percorreu, isto é, sua pista ou rasto11.
Assim, o termo nos remete novamente a Derrida e ao seu conceito de différance, sobre o qual se faz
mister discorrer brevemente aqui para que as razões teóricas que me levaram a optar por tal tipo de
jogo possam ser compreendidas.
De acordo com Derrida, o signo é um rasto de algo que já não é, que já não está mais ali (o
significante) (DERRIDA, 1999, p. 22), pois é impossível12 para um signo produzir a unidade espaço-
temporal de um significante e de um significado bem como a plenitude de um presente e de uma
presença absoluta. Comparar o signo a um rasto significa postular que o signo não retém, na unidade
mínima da experiência temporal, o sentido, o ser; mas, sempre, o rasto de uma não-presença. Ou seja,
o signo, de fato, jamais se oferece como presente13; ele é sempre o invariante de uma ausência e,
portanto, é secundário e provisório – “secundário em relação a uma presença original; provisório
perante essa presença original e ausente, em vista da qual [ele] se encontra num movimento de
mediação” (DERRIDA, 1991, p. 40-41). Essa idéia de rasto ele identifica em Martin Heidegger quando
11 Cf. Houaiss e Villar, 2001. 12 A essa impossibilidade, Derrida denomina brisura, neologismo que possui um duplo sentido advindo palavras “rotura” e
“juntura” (DERRIDA, 1991, p. 80-90). 13 É importante ressaltar que essa impossibilidade do signo mostrar o presente é exposta inicialmente por Saussure quando
este aponta o caráter arbitrário e diferencial como qualidade do signo (Cf. SAUSSURE, 1977). O que Derrida faz é dar maior ênfase à ausência.
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este escreveu (em Zur Seinsfrage) a palavra sob rasura [assim mesmo, com um X sobre a
palavra] querendo com isso acusar nessa palavra a presença de um significado transcendental. Para
Derrida, ao fazer isso, ao apagar (a idéia da rasura remete à tentativa de apagar) conservando legível a
presença de um significado transcendental, Heidegger delimitou “a onto-teologia, a metafísica da
presença e o logocentrismo” (DERRIDA, 1991, p.29). Essa diferença, esse espaço-tempo de jogo
existente entre o rasto e aquilo que o gerou, entre a presença e a ausência, o filósofo argelino
denomina différance.
Transpondo o que foi exposto acima para as atividades com os alunos, as frases, ações e
seqüências de movimentos que os alunos realizaram durante a execução do trabalho prático são os
signos; e o rasto, aquilo que o outro aluno procurou imitar. Aliás, este sentido de imitar também está
contido na palavra trilha, naquilo que esta palavra se refere ao que pode ou deve ser imitado; caminho
a seguir, exemplo, modelo14.
Com base nestes preceitos teóricos, passo a descrever os procedimentos adotados com vistas
à construção do “jogo de trilha”. A primeira orientação que dei aos alunos foi que estes tivessem por
referência temática o livro “As Cidades Invisíveis” do autor italiano Ítalo Calvino (1991), em que o
comerciante genovês Marco Pólo encontra-se com o imperador mongol Kublai Khan, na capital do
império, durante o século XIII. Como não pode sair da capital, o imperador pede a Marco Pólo que viaje
pelo reino e que, a cada retorno, lhe descreva as cidades e os lugares por onde passou. Segue-se um
relato eletrizante, constituído de narrações curtas, poéticas, carregadas de muita imaginação na qual
as cidades têm sempre nomes de mulher. O objetivo do imperador é montar um retrato perfeito de seu
império a partir dos relatos que ouve, sendo que (e este foi leitmotiv) imperador e viajante praticamente
não falam a mesma língua, o que exige do segundo grande performance corpórea e do primeiro grande
esforço imaginário. Foi exatamente por causa dessa situação posta no livro que fiz a opção pelo
mesmo. Essa situação peculiar nos remete à idéia de rasto e ao conceito derridiano de différance, pois
nela também existe a impossibilidade da reprodução e a percepção espaço-temporal de um significado
que não está presente.
Além de trazer as idéias sugeridas pelo livro de Calvino, solicitei ainda que os alunos
tomassem por base o modo como este autor constrói a sua narrativa e usassem esse referencial para
retratarem a cidade de Viena. Pedi que eles se colocassem na posição de Marco Pólo e que saíssem
pelas ruas vienenses e olhassem a cidade com os olhos do viajante genovês e encontrassem
elementos que gostariam de descrever para o grande Khan. Divididos em quatro grupos, cada qual deu
14 Cf. Houaiss e Villar, 2001.
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início à consecução das tarefas que lhes foram solicitadas, a saber: ler o livro e procurar lugares e/ou
situações que fossem características de Viena. O objetivo era que cada grupo elegesse, em comum
acordo dos seus membros, duas ou três cidades e/ou passagens do livro e tentassem reproduzi-las
através de seqüências de movimentos. O mesmo se aplicou em relação à cidade de Viena: cada grupo
deveria selecionar, com o acordo de todos os seus integrantes, dois ou três lugares e/ou situações que,
de per si, retratassem esta cidade, de modo que cada grupo tivesse ao final, entre quatro e seis
seqüências de movimento. Para isso, era preciso que ao realizar esse trabalho de reprodução, os
alunos tivessem em mente a seguinte questão: é possível descrever uma cidade ou lugar apenas
mostrando os movimentos das pessoas que ali moram ou ali estão? Com base nesta questão, cada
grupo deveria organizar em seqüência os movimentos que em sua opinião poderiam compor cenas que
retratassem a cidade. Por fim, deveriam agrupar as seqüências uma após a outra, organizando-as mais
ou menos como exemplificado na figura 1, formando uma trilha, tal qual um jogo de tabuleiro.
Figura 1
A figura 2 mostra uma versão mais elaborada da mesma idéia para dar ao leitor uma idéia
melhor do tipo de jogo a que estou me referindo.
Figura 1
Dessa forma, cada “casa” deveria descrever uma cidade ou local abordado no livro ou um local
da cidade de Viena. Naturalmente, essa descrição deveria ser feita com movimentos (os tais signos,
aos quais me referi anteriormente) e, portanto, cada grupo deveria elaborá-los do modo mais claro
possível a fim de possibilitar que qualquer um dos grupos que atingisse aquela casa pudesse descrevê-
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la realizando os movimentos que dela constassem (o rasto). A progressão de cada grupo através da
trilha aconteceria através do lançamento de um dado a ser utilizado por todos os grupos.
Para realizar este jogo, dois diferentes tipos de atividade foram necessários: fora da sala de
aula e em sala. Na primeira situação, cada grupo precisava destacar, durante a leitura do livro, as
passagens que lhes interessassem. Precisava também, sair pelas ruas em busca de cenas e situações
que pudessem utilizar. Devido às dificuldades de todos os integrantes conseguirem se encontrar fora
da sala de aula, essas duas tarefas foram realizadas individualmente, o que implicou, como se verá, a
necessidade de mudar o modo como a Seqüência de Busca e Retomada seria realizada na segunda
situação. Nesta, que, como já foi dito, ocorria em sala de aula, o preceito de que a seqüência de
treinamento é o princípio unificador que fomenta a criação espetacular (no caso em questão, do jogo de
trilha a ser elaborado) orientou as atividades realizadas. Por esta razão, o trabalho começava
invariavelmente com a realização da Seqüência de Busca e Retomada. A diferença em relação ao
curso anterior é que agora não era realizada a Improvisação de Busca, do modo como estabelece a
seqüência de treinamento. Isso porque, como já mencionado, os grupos tinham dificuldade de se
encontrar fora da sala de aula. Assim, quando chegava o momento de Improvisar, fazia-se uma pausa
para que os integrantes de cada grupo pudessem narrar e/ou mostrar para os demais as cenas que
viram ou o que acharam interessante no livro. Nessas circunstâncias, ocorria que a Improvisação de
Retomada muitas vezes era feita primeiro – quando, por exemplo, para narrar/mostrar o aluno devia
retomar a ação que viu. Ou então, a Improvisação de Busca era realizada em primeiro lugar – quando o
grupo partindo, por exemplo, do livro ou de uma situação que não continha nenhuma descrição
concreta de movimento, começava a procurar possibilidades para a realização da cena/situação a ser
descrita.
Esta situação ocorreu em dois encontros. A partir do terceiro, a prioridade foi dada à realização
da Dança da Personagem (Tanz der Figur/Rolle) – iniciada de fato já no segundo. Em razão de
especificidades da própria pesquisa, esta sofreu alterações particularmente no que tange à sua
natureza. A realização da Dança da Personagem serviu, principalmente, para que os alunos pudessem
visualizar, na prática, as personagens suscitadas pelos movimentos retomados e/ou buscados e, mais
do que isso, para configurar a cena/situação que se pretendia fazer constar das diversas casas. Desse
modo, o jogo ficou claro especialmente para mim, cuja posição privilegiada de professor-pesquisador
me permitiu uma visão do todo, justamente por eu ter acompanhado de perto o trabalho de todos os
grupos. Isso me forneceu elementos para os próximos desafios propostos aos grupos, quais sejam, de
que:
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1) encontrassem um modo de estruturar as seqüências de movimento e elaborassem
um rol de instruções objetivas tais que fornecessem os elementos mínimos
necessários para possibilitar a qualquer membro (jogador) dos outros grupos
(equipes ou times) que tivesse de reproduzir aquela situação pudesse cumprir a
tarefa com certa facilidade;
2) uma seqüência de movimento, uma vez reproduzida pelo jogador ou time,
permitisse que qualquer um que a observasse (o espectador) pudesse representá-
la para si mesmo e, com isso, reconhecer a situação mostrada.
Dessa maneira, o jogo constituir-se-ia de duas vertentes: a primeira seria o jogo propriamente
dito, no qual os outros grupos atuariam como equipes competindo entre si e se enfrentariam tendo por
árbitro o grupo criador do jogo. Neste caso, os grupos deveriam interpretar as instruções e realizar os
movimentos sugeridos em cada “casa”, sendo que o grupo que melhor realizasse os movimentos ou os
fizesse da maneira mais original ganharia e seguiria adiante. É preciso frisar que as idéias de o grupo
criador do jogo ser o árbitro e de o parâmetro para definição do vencedor ser a melhor reprodução
foram estímulos iniciais; exemplos para que os alunos concebessem uma maneira de definir como se
ganharia a competição e quem arbitraria as eventuais desavenças. É bom ressaltar aqui a minha
observação sobre o fato de que definir qual seria o melhor movimento ou o mais original não seria
muito adequado depois de tudo o que havíamos estudado sobre as idéias derridianas, pois seria
posicionar um centro, uma origem. Ponderei, nesse sentido, que o melhor seria, por exemplo, pensar
mais além, definindo o público como árbitro ou a mera realização do movimento como o marco para se
passar para a etapa posterior; quem chegasse primeiro receberia mais pontos, em segundo, um pouco
menos e assim sucessivamente.
Já a segunda vertente estaria caracterizada por ser obrigatório para os grupos, ao elaborar o
jogo, se preocuparem com o que o espectador veria. Ou seja, a combinação de movimentos em cada
“casa” deveria ser parte de uma narrativa, deveria possibilitar ao público assistir a um “espetáculo”
baseado no livro do Calvino e em cenas e situações que diziam respeito à cidade de Viena.
Como se pode depreender, estas duas vertentes estão diretamente associadas com os
conceitos de função performante e função referencial, já exaustivamente abordados no presente texto.
Na primeira, o que importa é a performance. A idéia foi a de que os alunos criassem um ambiente de
jogo, que a competição quase esportiva (pode-se dizer) fosse estimulada, que algo pudesse absorver
os demais alunos/jogadores totalmente, de modo que enquanto eles estivessem jogando a principal
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preocupação, o foco de sua atuação, fosse atuar para vencer o jogo15. Já na segunda, o importante foi
a função referencial, que se caracteriza pela concepção espetacular do jogo. No entanto, essa
concepção não é feita pelo jogador, mas sim pelo criador do jogo: é ele quem deve pensar
espetacularmente. É ele quem deve conceber o espetáculo, elaborar o seu enredo, as cenas que ele
conterá (no caso em questão, as cenas seriam as “casas” do jogo), o conteúdo dessas cenas (as
atividades ou seqüências de movimentos a serem feitos) e assim sucessivamente.
Dos quatro grupos iniciais, um se dissolveu logo no início e seus integrantes se distribuíram
pelos demais grupos. Dos três restantes, dois não conseguiram elaborar um jogo a contento – não
devido a qualquer impossibilidade de se criar um jogo, algo que afinal ambos criaram. Ocorreu que os
membros desses dois grupos não conseguiram chegar a um consenso sobre como o jogo se
desenvolveria e quais elementos fariam parte desse jogo. Eles tinham as cenas/situações, mas se
perderam em discussões infindáveis e com isso não conseguiram objetivar um resultado em tempo
hábil. No entanto, o terceiro grupo conseguiu ser mais sucinto e objetivo e elaborou um jogo cuja
estrutura e cujo modo com que foi realizado corroboraram a minha concepção de que é possível
desenvolver uma pedagogia do movimento de cunho pós-estruturalista, a qual denomino Pedagogia
Lúdica do Movimento (“Bewegungsluduspädagogik, no original alemao”).
Síntese Referencial para uma “Pedagogia Lúdica do Movimento” (“Bewegungsluduspädagogik”)
Creio que essas considerações serviram para mostrar exatamente o campo em que
minha proposição se insere: a) no vácuo deixado pela forma de abordagem da Pedagogia do
Movimento utilizada pela educação física, que conferiu ênfase especial às brincadeiras
infanto-juvenis e seu componente lúdico sem, no entanto, enfatizar seu caráter estético e
espetacular e b) no vazio deixado pela não utilização da Pedagogia do Movimento pela área
artística. Mais especificamente – e a partir de agora começo a demarcar dentro desse campo a
área de atuação da minha proposição –, ela pretende ser uma alternativa metodológica que usa
o lúdico e não o ritmo como base para o ensino do movimento rítmico e que possa ser
utilizada ao mesmo tempo por: a) atores, dançarinos, coreógrafos, diretores, alunos e
professores de artes cênicas interessados em uma nova opção para a elaboração da cena
espetacular; b) por profissionais envolvidos com a pedagogia do movimento (professores,
15 Aqui, pode-se contrapor usando o exemplo do jogador que joga “para a torcida“ ou algo do gênero. Mas, como o próprio
nome diz, nesse caso, ele estaria jogando para a torcida, ou seja, estaria realizando a função referencial.
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alunos ou qualquer um interessado em explorar e enriquecer seu vocabulário pessoal sobre
movimentos).
No entanto, o lúdico que integra o nome Pedagogia Lúdica do Movimento, nesta
minha proposta, não corresponde ao lúdico conforme compreendido quando se pensa os jogos
infanto-juvenis, mas ao modo como este é concebido nos jogos teatrais, especificamente
desenvolvido no contexto de um jogo de trilhas e nas suas casas, que são aqui concebidas à
maneira das cenas de um espetáculo. Já concepção cênica, por sua vez, é entendida sob o
prisma pós-estruturalista e suas possíveis aplicações práticas, conforme descritas neste
relatório e no projeto de solicitação do estágio. Ou seja, trata-se de pedagogia que, baseada no
jogo de improvisações cênicas, leva o aluno a se auto-representar e a conceber um espetáculo
sem necessariamente pensar que o está concebendo. Isto é, aquele que o realiza, simplesmente
joga um jogo espetacular cujo espetáculo é concebido por outro, e só o espectador ou quem
quer que esteja de fora o percebe como tal; de acordo com o que foi descrito no presente
documento. Nesse sentido, trata-se de uma proposição que possui duas vertentes: uma voltada
para o ensino em cursos que tenham em seus currículos disciplinas como expressão corporal,
atividades ritmadas, dança etc. para estudantes que não têm como objetivo se tornarem
profissionais destas áreas; e outra, voltada aos profissionais das artes cênicas, em busca de
outras linguagens para a construção da personagem e da cena espetacular.
Basicamente, minha proposta apropria-se de elementos da tradição da Pedagogia do
Movimento brasileira (isto é, conforme realizada na educação física, do modo descrito acima)
e dos jogos de improvisação cênica para criar um referencial pedagógico com perspectiva
espetacular. Sublinhei a expressão “com perspectiva espetacular” porque meu intuito é criar
uma proposta pedagógica que possibilite a sua utilização também no contexto artístico, como
um instrumento de criação de espetáculos de artes cênicas, resgatando assim uma das
dimensões que foram deixadas de lado quando a pedagogia do movimento se tornou, em
nosso país, área pertinente ao campo de investigação da educação física. Trata-se, portanto, de
uma proposição que lança mão de aspectos da Pedagogia do Movimento conforme concebida
no Brasil (a questão lúdica) e de elementos da concepção dos países de língua alemã (a
dimensão artístico-estética) de modo a fornecer subsídios para o seu emprego tanto na área da
educação física quanto na área artística (uma vez que na realidade assim ela é usada em nosso
país), tendo por base não o ritmo como na vertente alemã, mas, sim, o jogo (como na vertente
brasileira) considerado espetacularmente.
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A seguir, elenco uma série de elementos que, considero, deveria ser o seu conteúdo
mínimo da Pedagogia Lúdica do Movimento. – e que, espero, venham a ser mais detalhados
em futuras pesquisas a serem publicadas na forma de TCC´s, dissertações, livros e teses.
Destarte, para uma compreensão mais abrangente dos dados elencados, solicito ao leitor que
considere não apenas este resultado final, mas também o processo que levou ao mesmo,
(descrito anteriormente). Tal processo me permite afirmar que o trabalho realizado pelo
terceiro grupo ratificou os objetivos da pesquisa e corroborou a minha concepção de que é
possível desenvolver uma pedagogia do movimento de cunho pós-estruturalista. Assim
afirmo, porque o jogo que os grupos criaram e o trabalho que realizaram possibilitaram:
a) Que os alunos cumprissem um dos objetivos-chave numa aula de dança, ritmo
e/ou expressão corporal, qual seja, movimentar-se e criar seqüências de
movimentos que vão de simples a ritmados, até coreografados;
b) Que os mesmos aprendessem a trabalhar com frases de movimento e com
ações físicas, conferindo-lhes um certo ritmo e organizando-as em seqüências
minimamente harmônicas entre si, desenvolvendo com isso as noções de
movimento harmonioso e estético;
c) Que vivenciassem uma metodologia didática para o ensino pedagógico do
movimento com base no jogo (explicitado pelo fato de eles terem de criar um
jogo, que em sua especificidade era um jogo de ou do movimento, e as regras
de como ele deveria ser jogado);
d) Que não se pautassem pela idéia de que iriam preparar algo para apresentar
para os demais (representar-para), mas, sim, de que estariam participando de
um jogo. Incluo este ponto porque o tempo todo fiz questão de frisar que não
havia a necessidade de apresentar algo no final;
e) Que ao construir o jogo se pautassem pela teoria pós-estruturalista,
especialmente pelas concepções derridianas de différance, logocentrismo, jogo,
e desconstrução;
f) Que conferissem ênfase à função performante em detrimento da função
referencial;
g) Que se pautassem pelos conceitos de signo, concebendo o movimento como tal
e que pensassem a sua criação e/ou concepção com base nos postulados da
representação não-interpretativa;
h) Que se pautassem pela premissa da elaboração de um jogo e não de um
espetáculo, mas que o resultado final fosse espetacular;
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i) Que esse jogo fosse estruturado com base nos princípio de num jogo de
tabuleiro ou trilha (Ludospiel);
j) Que em cada “casa” desse jogo o aluno (ou jogador) tivesse por meta realizar
uma seqüência de movimentos criada por um terceiro;
k) Que o jogo tivesse uma base narrativa, isto é, que possibilitasse a quem lhe
assistisse o acompanhamento de uma história (no caso, o livro do Ítalo Calvino
e as cena/situações que refletiam aspectos da cidade de Viena).
No um modo de ver , esses seriam os princíos básicos para uma pedagogia lúdica do
movimento. Resta agora adicionar elementos musicais. É o próximo desafio.
Adilson Siqueira
Maio/2008
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