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  • PEDAGOGIA DA ALTERIDADE

  • VITTORIO PIERONIANTONIA FERMINOGERALDO CALIMAN

    PEDAGOGIA DA ALTERIDADEPara viajar a Cosmpolis

    BrasliaUnesco, 2014

  • proibida a reproduo total ou parcial desta publicao, por quaisquer meios, sem autorizao prvia, por escrito, da editora e do Programa Mestrado e Doutorado em Educao da UCB.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1999, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Coleo Juventude, Educao e Sociedade

    Comit EditorialAfonso Celso Tanus Galvo, Clio da Cunha, Cndido Alberto da Costa Gomes, Carlos ngelo de Meneses Sousa, Geraldo Caliman (Coord.), Luiz Sveres, Wellington Ferreira de Jesus

    Conselho Editorial ConsultivoMaria Teresa Prieto Quezada (Mexico), Bernhard Fichtner (Alemanha), Maria Benites (Alemanha), Roberto da Silva (USP), Azucena Ochoa Cervantes (Mexico), Pedro Reis (Portugal).

    Conselho Editorial da Liber Livro Editora Ltda.Bernardete A. Gatti, Iria Brzezinski, Maria Celia de Abreu, Osmar Favero, Pedro Demo, Rogrio de Andrade Crdova, Sofia Lerche Vieira

    Capa: Edson FogaaReviso: Jair Santana de MoraesDiagramao: Samuel Tabosa de CastroImpresso e acabamento: Cidade Grfica e Editora Ltda.Edio italiana: CNOS-FAPTraduo: Arthur Roscoe Daniel

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    V795ePedagogia da Alteridade: para viajar a Cosmpolis / Vittorio Pieroni, Antonia Fermino,

    Geraldo Caliman / Braslia: Liber Livro, 2014.

    240 p. : il. ; 24 cm.

    ISBN : 978-85-7963-103-0

    Universidade Catlica de Braslia. UNESCO. Ctedra UNESCO de Juventude, Educao e Sociedade.

    1. Intercultura. 2. Direitos humanos. Educao. I.; Pieroni, Vittorio; Fermino, Antonia; Caliman, Geraldo II. Ttulo.

    CDU 241.12 : 343.244

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Educao : Gesto escolar 37.02 2. Gesto escolar : Educao 37.02

    Ctedra UNESCO de Juventude, Educao e SociedadeUniversidade Catlica de BrasliaCampus I, QS 07, lote 1, EPCT, guas Claras71906-700 Taguatinga DF / Fone: (61) 3356-9601 [email protected]

    Liber Livro Editora Ltda.SHIN CA 07 Lote 14 Bloco N Loja 02Lago Norte 71503-507 Braslia-DF

    Fone: (61) 3965-9667 / Fax: (61) [email protected] / www.liberlivro.com.br

    mailto:[email protected]:[email protected]://www.liberlivro.com.br

  • SUMRIO

    PREFCIO 7

    1. DIVERSIDADE CULTURAL E EDUCAO 13 1.1 O neoliberalismo e a globalizao 15 1.2 Crise e reorientao da educao tradicional 20 1.3 A tolerncia e os valores da interculturalidade 23 1.4 Estratgias para administrar contatos com uma segunda cultura 25 1.5 A educao intercultural inspirada nos princpios da alteridade 27

    2. UM MAPA PARA COSMPOLIS 31 2.1 Aldeia global 32 2.2 Desenvolvimento versus codesenvolvimento 38 2.3 Migraes 41 2.4 Fraude tnica 45 2.5 Estigma tnico e construo do estrangeiro 48 2.6 Preconceito esteretipo discriminao racismo 51 2.7 Miscigenao/hibridao (e entornos) 60 2.8 Incluso/excluso e 64 2.9 Integrao 70

    3. DIREITO A TER/EXERCER DIREITOS E DEVERES 77 3.1 O pedestal tico dos direitos humanos universais 80 3.2 Direito ad omnes includendos 84 3.3 Direito de ser reconhecido como pessoa 89 3.4 Direito imigrao 94

  • 4. IDENTIDADE COMO PUZZLE 97 4.1 Identidade como risco 103 4.2 Identidade como processo 111 4.3 O meu exame de identidade 120

    5. A CULTURA E SEUS MLTIPLOS 131 5.1 Multiculturalismo versus intercultura 136 5.2 Transculturalidade 141 5.3 Dilogo inter/transcultural 144

    6. EDUCAO INTER/TRANSCULTURAL 151 6.1 Fundamentos da educao inter/transcultural 153

    7. CIDADOS? NS NOS TORNAMOS 169 7.1 Cidadania etnocntrica 171 7.2 Cidadania plural 175 7.3 Cidadania participativa/deliberativa 178 7.4 Cidadania cosmopolita: entre utopia e desafios 181

    8. EDUCAO PARA... 185 8.1 ... a cidadania ativa 190 8.2 ... a cidadania cosmopolita 200

    9. PEDAGOGIA DA ALTERIDADE 207 9.1 Para um homem em dimenso transcultural 208 9.2 Paradigmas & paradoxos 212

    PARA TERMINAR 219

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 221

  • 7

    PREFCIO

    Tudo migra (parafraseando os filsofos gregos da primeira gerao), mas tudo fruto dos processos migratrios no tempo e no espao, no Cosmo como neste planeta, onde os ventos, as guas, os continentes e at mesmo as montanhas (em tempos idos, no fundo dos oceanos) so objeto de mudana, de transformao.

    Tambm o homem, desde as suas origens, faz parte desse processo migratrio. Mas, diferentemente de sua espcie biolgica, no que diz respeito sua forma mentis, seu instinto natural no confronto com o Outro e com sua diversidade parece que no mudou muito, a partir dos tempos de Caim e de Abel.

    Contudo, no atual momento histrico, em que seis bilhes de Outros danam no mesmo ritmo transmitido em tempo real pelas sempre mais equipadas tecnologias informticas e de mdias de massa, que estamos num ponto de reviravolta e de no retorno: para morarmos na Cosmpolis e nos tornarmos, com todos os direitos, cidados dessa cidade globalizada, necessrio encontrarmos novas estratgias, em confronto com aquelas destrutivas, autocentradas e narcisisticamente orientadas, que tm caracterizado a histria da presena do homem no planeta. Estratgias que tenham como objetivo chegar a transformar a atual forma mentis no relacionamento com o Outro e com sua diversidade e que, antes mesmo de delegar tal servio a legislaes locais, nacionais, supranacionais, deleg-lo aos sistemas educativo-formativos.

    O que foi dito para esclarecer que esse no um livro sobre imigrantes nem um romance que transita entre fantasia e cincia. Quando muito, parece, metaforicamente, com os manuais para uso. Migrantes, realmente,

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    somos todos ns que estamos viajando em direo a um futuro, colocando-nos de um lado a outro do mundo em dimenses multivariadas (tanto fsica quanto virtualmente).

    E, quando o migrante parte, ele se equipa...

    ...levando consigo a mala, onde guarda seu projeto de vida e toda sua bagagem, feita de esperana, de sonhos, nostalgias, medos, pela separao da rede familiar, amigvel e social. Como tal, a mala representa o recipiente mais precioso para o imigrante, enquanto equivale sua identidade. Dentro dela, ele guarda seu modo de ser, a bagagem cultural, o projeto de ir transplantar sua vida em outro lugar. Emigrar significa, de fato, separar-se daquele conjunto de relaes familiares e comunitrias que, na cultura de origem, protegiam e garantiam segurana a cada membro da famlia (SANTOS FERMINO, 2008, p. 86).

    O migrante clssico, de todos os tempos, permanece, de qualquer maneira, o sujeito em formao, que est para se transferir para o futuro, desde o nascimento at sua primeira escapada do ninho familiar, para, aos poucos, entrar na sociedade e, sucessivamente, no trnsito da sociedade complexa. O objetivo deste trabalho passa, portanto, pela perspectiva de dotar esta particular categoria de migrante dos meios conceptuais para que ele possa coloc-los na mala (forma mentis), com o intuito de que tais meios possam resultar teis para afrontar como cidados do mundo a sociedade cosmopolita.

    a premissa para que possamos crescer todos como pessoas capazes de fazer histria e de construir o futuro para si mesmo e para a sociedade, sabendo que a verdadeira transformao comea sempre a partir de si mesmo e que somente quem capaz de renovar-se constantemente, na mente e no esprito, pode ser capaz de transformar-se e transformar o ambiente em que vive.

    Estamos, de fato, num momento particular, caracterizado pela urgncia de passar de um conceito de cidadania baseada em sentimentos e direitos de pertena para um novo conceito que privilegie a pessoa e seus direitos e deveres.

    Com base neste ltimo conceito, a cidadania precisa ser repensada, em funo de uma cada vez mais estreita relao entre direitos e deveres

  • Prefcio | 9

    para todos, por parte de todos indistintamente: autctones e migrantes, possuidores de direitos ou aqueles que devem, ainda, conquist-los.

    Nessa dialtica sobre direitos e deveres, hoje, notamos um vazio de educao dirigida aos direitos e aos deveres de cada um. Descobrem-se os deveres reconhecendo e exercitando os direitos. Quer dizer: os direitos nunca so gratuitos; so o resultado de uma conquista permanente, e a possibilidade de gozar deles depende da produo que deles consegue fazer quem assume os deveres correspondentes.

    A tarefa da educao , ento, a de ajudar o migrante a orientar-se, a encantar-se, a sentir-se parte do complexo das instituies e das regras necessrias para conviver na cidade cosmopolita. Podemos enquadrar nessa tica, tambm, os fatos de Rosarno (Calbria, Itlia), quando, uma centena de migrantes, a maioria norte-africanos, se revoltam contra as condies de trabalho. Ou, para ficar no nosso fundo de quintal, podemos lembrar os cada vez mais frequentes episdios de conflitos com os migrantes andinos nas grandes cidades como So Paulo; ou dos milhares de migrantes haitianos e senegaleses que desembarcam em Brasileia, no Acre. Nesse processo, seriam enquadradas, alm da defesa que cada um faz dos prprios direitos, cada um puxando a corda para seu lado (o governo, os migrantes, os administradores, os residentes do lugar), tambm a defesa dos deveres que cada um dos atores assume pelo fato de conviver em um mesmo espao transcultural.

    Por ocasio das manifestaes dos migrantes na Itlia, no incio de maro de 2010, apareceu, por alguns dias, um manifesto publicitrio que lanava a seguinte mensagem: Vocs nos chamam de negros, ciganos, clandestinos. Pertencemos mesma raa humana. Em considerao iniciativa, com um pouco mais de coragem (ou como cidados do mundo, poder-se-ia acrescentar: com os mesmos direitos e deveres).

    Logo: SIM assuno da corresponsabilidade na dialtica direitos-deveres e NO ao modo fingido dos autctones, quando, movidos por um d de si mesmos, no conseguem tomar conscincia, para alm dos direitos, tambm dos prprios deveres.

    A nova cidadania qual preciso educar/educar-nos deve ser constituda como uma espcie de canteiro de trabalho, de laboratrio, que traz em si um repensar, a partir dos mesmos currculos escolsticos

  • 10 | Vittorio Pieroni; Antonia Fermino e Geraldo Caliman

    formativos, os quais, por sua vez, exigem que os ingredientes fundamentais, quer dizer, os valores, o saber, as relaes, os mtodos, as atividades e as consequncias, sejam revisitados e, depois, integrados experincia prtica.

    Mas...... Os sistemas educativo-formativos esto, hoje, realmente em condies

    de desconstruir esses mecanismos etnocntricos para construir um homem com dimenso transcultural? Isto , estariam tais sistemas aptos a formar um homem com capacidade de exercer o prprio papel na sociedade, com base em um eixo simtrico de paridade e de corresponsabilidade com a alteridade?

    O que parece ser mais urgente para realizar, hoje, se quisermos passar de culturas como vidro para culturas como esponja, se desejamos evitar desencontros de civilizao, uma revoluo mental e cultural copernicana capaz de atravessar todas as culturas, envolvendo indistintamente cada um dos habitantes de Cosmpolis. Como ocorria na era pr-copernicana, em relao educao intercultural e/ou cidadania, parece que estamos num ponto em que as instituies, com seus programas orientados para formar pessoas abertas alteridade, ao encontro com o Outro e com a sua diversidade, esto dominadas ainda pelo pecado original do ns etnocntrico (os migrantes esto chegando; eduquemo-los a integrar-se).

    Na realidade, a revoluo mental e cultural que est por se realizar no campo educativo da transculturalidade exige que partamos no mais de um ns, umbigo do mundo, mas, antes, da percepo de nossa cultura como uma entre tantas que persistem no cosmopolitismo cultural. Portanto, necessrio inverter a trajetria do relacionamento educativo: Chegam os migrantes: eduquemo-nos para estar juntos e encontrar, contextualmente, as estratgias para construir a ponte para o encontro.

    Deve-se insistir, contudo, que uma mudana efetiva nessa direo exige que os programas de educao intercultural e/ou para a cidadania no sejam mais pensados/interpretados unicamente em funo do fenmeno migratrio. Este representa, de fato, somente a ponta do iceberg, uma parte do cenrio cosmopolita cultural, onde todos ns, indistintamente (migrantes e autctones, estudantes e docentes, geraes de pais e de filhos), tenhamos o dever de educar-mo-nos para saber estarmos juntos, a trocar aqueles bens de valor que todo portador de diferena coloca em sua mala.

  • Prefcio | 11

    A intercultura, como sustentam diversos autores citados no texto, no se ensina: pratica-se!

    Esse o motivo pelo qual tambm as novas competncias que servem para o estar juntos na diversidade, de modo a podermos realizar uma cidadania ativa e responsvel, no podendo ser ensinadas, devem ser absorvidas em um contexto prtico, que deve ser educativo por si mesmo, isto , que exige que todos os sujeitos institucionais (administraes pblicas, sistemas educativo-formativos, denominaes religiosas, terceiro setor, associaes de condies diversas) coordenem-se na base da partilha das corresponsabilidades educativas.

    Depois do estudo sobre a identidade, notamos tambm a necessidade de passarmos ao estudo da cidadania, como elemento que se agrega estreitamente identidade, paralelamente ao seu processo de coconstruo. Realmente, no se pode assumir uma identidade quando no se reconhece o outro como pessoa de direitos, um dos quais se refere cidadania; no se pode dar um conhecimento pleno de quem sou eu, sem que seja reconhecido o direito de pertena a algum contexto social. Como todos os fenmenos em evoluo, identidade e cidadania tm necessidade, ambas, dos processos educativos, de uma pedagogia da alteridade, para dar condies para que todos cresam como pessoas e como cidados do mundo, nesta particular era histrica, caracterizada pela elevada taxa de mobilidade humana e, contextualmente, de pertenas a diferentes identidades e espaos transculturais.

    O leitmotiv, a ousadia motivacional da qual se originou o presente trabalho, pode ser individualizado no atraso histrico notado em relao a uma revoluo mental e cultural copernicana no campo das relaes humanas, que est ainda longe de acontecer, de ser concretizada. Ao mesmo tempo, adverte-se que a tentativa de oferecer uma contribuio nesse sentido foi intencionalmente apresentada numa perspectiva provocativa, a ponto de alguns conceitos/passagens parecerem algum uma alucinao.

    Mas no importa. Nesse caso, estamos em boa companhia, j que essas alucinaes sugestivas ns as fomos buscar, propositalmente, ao selecionar uma literatura que julgamos pertinente s finalidades de tal revoluo, cuja necessidade consideramos importante, caso se queira sair do buraco de uma

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    histria cheia de tantos erros e horrores em relao ao alter, ao Outro portador de diversidades.

    Uma contribuio, porm, se tornou possvel, graas unicamente aos que so os verdadeiros protagonistas deste trabalho, isto , os diversos autores, mencionados de quando em quando, dentro de cada palavra-chave. O trabalho que resolvemos fazer, de fato, foi o de querer enquadrar/interpretar cada temtica a partir de mais de um ponto de vista, baseando-nos em estudos que atestam a urgncia de mudar, diante das transformaes sociais j avanadas, em escala planetria, e, depois, a consequente necessidade de adaptar a eles os processos educativos.

    Trata-se de uma escolha metodolgica do nosso texto, que, ao mesmo tempo, manifesta claramente seus prprios limites, ao relegar as palavras-chave a um espao de poucas pginas e num determinado tempo dedicado ao presente. Isso tudo diante da dimenso que as problemticas tratadas certamente tero num futuro prximo. Procurou-se enfrentar tais limites, convidando o leitor a se tornar, tambm, protagonista desta arriscada viagem, aprofundando e elaborando, depois, os contedos, com base nas referncias bibliogrficas e na literatura apresentada como fundo terico de cada rea temtica.

    Os destinatrios deste trabalho so, em primeiro lugar, as vrias figuras de trabalhadores presentes nas estruturas educativo-formativas (docentes, formadores, educadores) e, mais amplamente, todos os que trabalham nas instituies pblicas, nas administraes locais, nas denominaes religiosas, no terceiro setor, no associacionismo de diversas origens. A Pedagogia da Alteridade se sintoniza tambm com a Pedagogia Social, enquanto inspira metodologias abertas ao dilogo, diante de uma diversidade cultural que se apresenta sempre mais presente e exigente.

    De fato, vamos dizer claramente: este livro dedicado a cada um de ns, como migrantes, em viagem pelo espao-tempo, munidos de nossas mochilas, em direo cidade cosmopolita.

    Vittorio PieroniAntonia FerminoGeraldo Caliman

  • 13

    DIVERSIDADE CULTURAL E EDUCAO

    A partir do sculo 15, a humanidade presenciou um perodo de ocidentalizao do mundo, num processo histrico de colonizao da frica, da Amrica e da sia. As razes histricas da globalizao econmica e cultural atual se encontram na imposio do etnocentrismo ocidental, uma viso de mundo e um modelo ocidental de sociedade que se mantm por meio da dominao colonial. Segundo Marn (2002), tal processo se d por etapas: evangelizao, civilizao e desenvolvimento.

    A primeira etapa desse processo se associa evangelizao dos povos conquistados, que comea com o ritual do batismo e se institucionaliza com uma pertena Igreja.

    A segunda etapa parte do princpio segundo o qual os indgenas, sendo ento considerados selvagens, deveriam ser civilizados. Depois do batismo, comea o processo de alfabetizao (em castelhano ou portugus), e a escola, quando presente, o instrumento de dominao colonial. A nica integrao possvel se faz pela aceitao da lngua e da cultura oficiais dominantes, o que se d em prejuzo da diversidade cultural e lingustica local.

    A terceira etapa do processo de ocidentalizao se articula por intermdio da imposio do desenvolvimento aos subdesenvolvidos. A modernidade, com a constituio do Estado-Nao como modelo poltico de Estado, impe a defesa de uma nao artificiosa que supe um povo e uma histria, uma lngua e uma cultura homogneas. Os pases europeus, induzidos por uma ideologia de modernizao, legitimam a expanso do capitalismo e a realizao do mito do progresso e, posteriormente, do desenvolvimento, do crescimento econmico indeterminado, da globalizao, na nova economia.

    1

  • 14 | Vittorio Pieroni; Antonia Fermino e Geraldo Caliman

    O problema que, no af de modernizao, o racionalismo ocidental constri-se e se aprofunda numa separao entre a busca de produtividade/rentabilidade e o lugar reservado natureza, na viso de mundo das culturas dominadas. Privilegia-se a cultura escrita em detrimento da cultura oral e narrativa.

    Antes, a modernizao; hoje, a globalizao. Ambas impem um modelo de cultura nico em detrimento da diversidade cultural. A pretendida universalidade da cultura ocidental veicula um modelo de sociedade que induz as outras culturas a recuperarem seu atraso por meio desses processos de abertura ao progresso, modernizao e globalizao. A imposio da universalidade da civilizao e da cultura ocidental se encontra na lgica da excluso da diversidade cultural. Tal excluso se torna instrumento de homogeneizao e de estandardizao cultural. Essa viso, tpica de um paradigma funcionalista, passa, automaticamente, a excluir as diferenas, a consider-las somente quando elas conseguem mostrar disposio efetiva para os mecanismos colocados em ao pelo sistema social, para nivelar tendncias culturais, em consonncia com o Estado-Nao, tais como a integrao social, a socializao, a motivao pelo lucro, a persuaso e at a coero.

    Os conflitos culturais no so novos. O Renascimento paradigmtico: emerge da um pensamento racional que favorece a distino entre filosofia e religio, entre humanismo e cristianismo. O humanismo faz do homem o sujeito central do universo. Estabelece a separao entre homem e natureza e, consequentemente, entre cultura e natureza. Em tal viso antropocntrica, o homem alimenta a vocao de submeter e dominar a natureza.

    O triunfo do racionalismo significa para alguns povos sua supresso mediante diversos tipos de holocausto; para outros povos da terra, uma catstrofe cultural, a desvalorizao de suas culturas; para as sociedades em geral, a imposio do consumismo como norma, num divrcio entre o ser e o ter, em que se consome para depois existir. Os contedos culturais se transformam em mercadoria, e mil anos de diversidade cultural desaparecem nas prateleiras dos supermercados. As multinacionais vendem culturas como, por exemplo, Walt Disney; para as relaes sociais, a destruio dos laos familiares, a exacerbao do individualismo (competitividade,

  • Diversidade cultural e educao | 15

    pragmatismo, utilitarismo) e, consequentemente, o surgimento de formas de misria como a solido, o mal-estar social, o estresse e a debilitao dos laos afetivos.

    A Declarao Universal sobre a Diversidade Cultural, promulgada pela UNESCO (2002), reconhece como a diversidade cultural representa, para o gnero humano, uma dimenso to necessria quanto a dimenso da diversidade biolgica representa para a natureza. Reconhece, tambm, a importncia da interao harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais e de polticas que favoream a incluso e a participao de todos os cidados, garantindo a coeso social (UNESCO, 2002).

    O prprio governo brasileiro, em resposta s necessidades de compreenso em relao aos grupos culturais diversos que compem nossa sociedade, cria, em agosto de 2004, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural, incumbida de promover e apoiar as atividades de incentivo diversidade cultural, como meio de promoo da cidadania (GERALDES p. 480).

    1.1 O neoliberalismo e a globalizao

    Ainda sob a esteira da terceira etapa da ocidentalizao, surge o neoliberalismo como dinmica que pretende abrir espaos para o paradigma do mercado e do consumo, em contraposio ao decadente paradigma da produo, incapaz de integrar os indivduos excludos do mercado de trabalho e de suas fontes de renda. parte de um processo que, na dcada de 1990 termina com o deslocamento do eixo de funcionamento da sociedade da produo para o mercado. Na produo, o trabalho era a principal referncia; no mercado, so os valores do consumo. A incluso no se faz tanto pela participao no mercado de trabalho, mas pela participao no consumo (LEAL, 2004).

    O neoliberalismo nasce depois da Segunda Guerra como reao poltica e terica contra o intervencionismo estatal e o Estado Social, sob a batuta de Friedrich August von Hayek (The Road to Serfdom). Em 1947, enquanto o Estado Social se colocava em prtica, Hayek convocava seus colegas sob

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    uma orientao ideolgica. Fundou-se a Sociedade de Mont Plerin (Sua), para combater as medidas de solidariedade social prevalentes depois da Segunda Guerra e preparar para o futuro do capitalismo liberado de toda regra e constrio do Estado.

    Em 1974, ocorre uma profunda recesso econmica. As ideias neoliberais comeam a ganhar terreno, afirmando-se, mediante as ideias de Hayek e seus discpulos, que as razes do mal estavam no poder excessivo dos sindicatos, que no permitiam a estabilidade monetria, a restrio dos gastos sociais e a reduo de impostos, condies sine qua non para a superao da crise capitalista. O crescimento retornaria, naturalmente, quando se conseguisse uma estabilidade monetria por meio da desfiscalizao, da limitao de encargos sociais e da desregulamentao da economia. Tal processo comea, de fato, com Margaret Thatcher, na Gr-Bretanha, e continua com Reagan, nos Estados Unidos (1980), seguido pela Alemanha (1982) e outros pases. Segue tal processo a implantao de medidas, como a privatizao de setores econmicos, a criao de uma legislao antissindical, a supresso de importantes gastos sociais, a desregulamentao da economia.

    Esses processos de difuso das ideias e das prticas neoliberais tendem a agravar alguns desafios e processos sociais que j sofriam o impacto da industrializao, quais sejam: a industrializao da cultura, a instrumentalizao da biodiversidade e da diversidade cultural, a emergncia de choques culturais com grupos no redutveis s culturas hegemnicas.

    A industrializao da cultura est associada ao desenvolvimento econmico e expanso dos mercados em uma economia globalizada. Ao longo dcada de 1990, multiplica-se o crescimento (produo e distribuio) das indstrias culturais. Percebe-se que na diversidade que reside a riqueza da humanidade. E os mercados passam a vender as culturas exticas, algumas j em processo de extino; a vender, tambm, produtos da natureza, transportando-os para as vitrines das catedrais do consumo, os shoppings centers, imitando a maneira como na Idade Mdia se tratava a diversidade como objeto de curiosidade e de estigmatizao.

    A biodiversidade e a diversidade cultural passam a ser focalizadas pela mdia e pelo consumo. Este ltimo surge como expresso positiva de um objetivo geral que busca valorizar e proteger as culturas do mundo

  • Diversidade cultural e educao | 17

    diante do perigo da uniformizao. De fato, na atualidade, a cultura de massas triunfa e se impe graas aos meios de comunicao, forando uma homogeneizao cultural em proveito do modelo americano de desenvolvimento. A estandardizao cultural se traduz em ocidentalizao ou americanizao dos costumes, que caracterizam uma maneira de viver, de produzir, de consumir, de vestir-se e de comer. O sistema capitalista, em sua expanso, transforma tudo aquilo que toca em mercadoria, inclusive o patrimnio cultural presente nas tradies e na diversidade de manifestaes dos povos e da natureza. Tal industrializao da diversidade ocorre, tambm, na Europa atual, colocando em crise de identidade as tradicionais culturas europeias.

    A modernidade lquida coloca em crise os sujeitos que se encontram desenraizados, imersos em uma mistura cultural coletiva de tipo globalizada, sem referenciais ou cdigos normativos, valorativos e identitrios seguros (BAUMAN, 2007). Assistimos, no entanto, a certas resistncias globalizao: as culturas desenvolvem uma enorme diversificao e reinveno das tradies e das buscas de referenciais. Emergem grandes movimentos pautados pelo respeito biodiversidade, pela defesa da diversidade cultural e pela oposio uniformizao da cultura.

    Uma educao pautada pela interculturalidade poder criar condies de possibilidade para o encontro das culturas na perspectiva de uma complementaridade benfica para todos, criar uma abertura ao respeito pela diversidade cultural, contrria educao etnocntrica e excludente.

    Paradoxalmente, vivemos em um momento mais preocupado com a difuso dos direitos humanos que, de fato, com a ateno s culturas em situao de risco. Diante da complexidade de ofertas culturais, consideram-se como superados os paradigmas de uma sociedade industrial onde prevalecia uma cultura majoritria dominante. Hoje a complexidade social gera, de um lado, a globalizao, e, de outro, a diferenciao. Em tempos de crise, reforam-se as identidades. As culturas reforam sua diferenciao, enquanto cada grupo cultural tende a se contrair, reforar sua identidade, como estratgia mesma de defesa contra as inmeras ameaas sua integridade. A globalizao gera condies para que cada uma dessas identidades culturais se sinta atrada pelas sedues de ofertas culturais que se realizam por meio

  • 18 | Vittorio Pieroni; Antonia Fermino e Geraldo Caliman

    da prpria economia de mercado. Exemplos dessas sedues encontramos, principalmente, no mbito da oferta de servios virtuais e da rede internet (CARNEIRO, 2001).

    Atrs desse jogo entre diferenciao e globalizao, vemos como a coeso social atingida em cheio por confrontos tnicos, religiosos, lingusticos ou culturais: curdos, chechenos, bascos, bsnios, indgenas reforam suas posies contra as ameaas identitrias.

    Nesse contexto de difuso da diversidade cultural, existem trs campos de pesquisa nos quais muito se deve ainda caminhar. So eles: a cidadania ambgua, a hibridao cultural, as identidades predatrias.

    O conceito de cidadania ambgua emerge a partir da queda do Estado-Nao, idealizado h mais de um sculo, como grande sustentculo poltico da sociedade industrial, que pressupunha uma dupla unicidade: um nico Estado, uma nica Nao. O conceito de cidadania derivado tinha seu eixo na identidade nacional e a escola como o grande sistema conformador dessa identidade. O conceito de identidade estava atrelado ao de etnicidade.

    Com as migraes, principalmente na comunidade europeia, pergunta-se: Quem consegue constituir-se como Estado-Nao hoje? Ainda mais quando se percebe que fruto tambm da complexidade social o mundo deixou de aceitar docilmente a proposta ocidental de valores.

    O conceito de cidadania num Estado moderno que se acredita multicultural ambguo. Antes de tudo, necessrio desatrelar os conceitos de cidadania do conceito de etnicidade. Ter-se- de buscar formas mais flexveis de definir a cidadania. Por enquanto, o que encontramos de flexibilizao dessa relao se encontra na hifenizao de cidadanias, do tipo talo-brasileiro-europeu.

    Cornejo Espejo (2012, p. 239) comenta:

    La pugna entre la propia identidad y aquella proveniente de un sistema transnacional difuso, interrelacionado e interdependiente, pareciera ser el sello distintivo de los nuevos escenarios latinoamericanos producto de la globalizacin. En ese contexto de tensiones, uno de los grandes desafos de la accin educativa debera ser la creacin de una ciudadana como mbito de participacin, de modo de conciliar identidad cultural y diversidad. Esto es, la escuela debera promover una ciudadana

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    intercultural, que no es otra cosa que una ciudadana consonante con la democracia pluralista que incluye la diversidad cultural (CORNEJO ESPEJO, 2012, p. 239).

    Carneiro, por sua vez, se refere a um processo de hibridao das culturas, proveniente dos contatos interculturais ditados pela globalizao. A um provvel sonho histrico e sinistro de pureza tnica, as sociedades atuais respondem com uma generosa mistura de gentes. O autor identifica processos hibridatrios diversos: hibridao resultante de processos migratrios que, em geral, se radicam na ignorncia das populaes ou em seu silenciamento, por intermdio de processos de homogeneizao forada, em torno do patrimnio simblico das elites (ex. Brasil); hibridao de resistncia: trata-se de grupos que se colocaram s margens dos centros de poder por contraveno s polticas estatais de segregao, de normalizao e de controle social; hibridaes produzidas por mercados comunicacionais sem fronteiras, compostos por comunidades virtuais que se difundem em escala planetria, on-line, atravs de meios de comunicao poderosos e capilares.

    O que se espera do pesquisador em relao ao estudo do processo de hibridao? O primeiro inimigo da hibridao seria o preconceito, na medida em que o pesquisador considere esse processo como traio pureza de comportamento cultural ou norma de configurao tnica, combatendo, assim, sistematicamente, a intercultura; considerando desviantes os comportamentos que se diferenciam da norma monocultural; alimentando processos silenciosos de branqueamento dos filhos, de descontaminao, em favor de um modelo superior de valores e de padres tnicos; cultivando uma cultura de desprezo ou de dio por manifestaes de hibridao.

    Um terceiro campo de pesquisa refere-se s identidades predatrias. Trata-se daquelas identidades que subsistem em sociedades que alimentam a pandemia do dio, do racismo e da xenofobia, sob ideologias polticas e ideias de superioridade racial, tnica, social e econmica. Entram nessa rea de pesquisa todas as identidades culturais em condies de desigualdade na repartio de direitos e de riquezas, em situao de crise econmica, em luta por prevalncia poltica, que vm sendo impostas s prprias fronteiras

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    polticas de maneira artificial e que alimentam o incitamento irresponsvel dos meios de comunicao social contra grupos conviventes num mesmo territrio.

    Diante desses processos em andamento, provocados pela onda globalizante, na dinmica interativa entre as diversas culturas que se chocam, conflitam, mas tambm se enriquecem, resta saber qual o papel da educao. Seriam os cidados capazes de reagir s tendncias neoliberais, globalizantes, como tambm aos Estados e aos grupos hegemnicos? Em quais nveis essas reaes poderiam ser construdas: nos nveis de polticas pblicas, ou das relaes sociais? No nvel macrossocial ou no microssocial? Com uma pedagogia impositiva, conservadora, opressora, ou atravs de uma pedagogia respeitosa das relaes interculturais?

    1.2 Crise e reorientao da educao tradicional

    O paradigma da educao dominante no sculo 20 foi de tipo utilitrio e centralizado na aprendizagem como condio para o sucesso profissional, para o acesso ao conhecimento til e para a fruio consequente de bens econmicos. No entanto, resultado de evolues histrico-culturais, existe hoje um novo paradigma em que a construo dos novos saberes eminentemente relacional, no meramente instrumental. Por isso,

    [...] uma nova concepo ampliada de educao devia fazer com que todos pudessem descobrir, reanimar e fortalecer o seu potencial criativo revelar o tesouro escondido em cada um de ns. Isto supe que se ultrapasse a viso puramente instrumental da educao [...] e se passe a consider-la em toda a sua plenitude: realizao da pessoa que, na sua totalidade, aprende a ser (UNESCO, 2004, p. 90).

    Tal concepo pressupe experincia profissional, mas tambm a construo social interativa dos conhecimentos. Por isso, o Relatrio Delors contempla os quatro pontos cardeais sustentadores da aprendizagem futura, to conhecidos de todos: o aprender a ser, o aprender a conhecer, o aprender a fazer e o aprender a viver com os outros. Algumas consequncias desse novo paradigma, desenhado pela Unesco no Relatrio Delors, contemplam:

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    A aprendizagem ao longo de toda a vida: a educao no se confina numa etapa inicial da vida, mas passa a estar presente em todos os ciclos de vida;

    O aprender vivendo e o viver aprendendo; A compreenso que leva participao: Eu compreendo, logo

    participo; A aprendizagem contribui para ganhar inteligibilidade sobre a vida

    e sobre o mundo; A aprendizagem como participao: Eu participo, logo existo.

    Na medida em que as instituies evoluem e que a vida em comum se complexifica, mais necessitam de conhecimentos e saberes que habilitem a pessoa ao exerccio pleno de seus direitos e deveres sociais e de cidadania.

    Mas se, por um lado, a demanda por educao se alarga por todo o arco da vida de uma pessoa, por outro, as pedagogias oficiais sempre privilegiaram os modos coletivos, curriculares, ligados ao perodo infanto-juvenil de organizar o ensino, questionando a praticabilidade dos processos de ensino individuais, no formais e distribudos nos vrios perodos e espaos no exatamente escolares.

    Os processos de ensino e aprendizagem podem ser considerados necessidade fundamental capaz de alicerar o direito tambm fundamental de desenvolvimento integral da pessoa humana. Maslow (1948), em sua hierarquia das motivaes humanas, afirma que a ausncia de satisfao dos nveis inferiores de necessidades conduz apatia, hostilidade e destruio pessoal. Mais ainda quando se trata da frustrao da necessidade de aprender em continuidade, que se revela fonte de mal-estar individual e social de tipos variados, como a excluso, o insucesso, a misria e o envolvimento em culturas de violncia (CALIMAN, 2008).

    Novos jeitos de aprender, segundo Carneiro (2001), incluem modalidades como:

    O Aprender Ensinado: a primeira fase da vida, em que se torna necessria a primeira socializao na escola fundamental, fora do ambiente familiar, na perspectiva da aprendizagem de regras de convivncia e de participao na vida;

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    O Aprender Assistido: tpico da aprendizagem virtual, em que as intervenes externas (de assistncia, de ajuda) ocorrem por solicitao de quem aprende, mais que por oferta de quem ensina;

    O Aprender Autnomo: uma parcela do saber que emerge como construo pessoal e social.

    Esses trs modos de aprender so, segundo o autor, em condies normais, simultneos e sobreponveis. No entanto, acrescentamos os processos educativos no necessariamente ligados aos processos de ensino-aprendizagem, mas tambm aqueles que ocorrem em ambientes no escolares, no formais, voltados sempre mais para as demandas ligadas a grupos especficos, com necessidades de socializao, atingidos por situaes de vulnerabilidade e de risco social. O estmulo aos processos educativos centralizados nas relaes humanas privilegia uma aprendizagem mais voltada ao desenvolvimento de atitudes, valores, culturas do que aos processos cognitivos. So processos educativos mais adaptados para uma pedagogia compreensiva e sensvel s exigncias da diversidade cultural.

    A espcie humana tende formao de culturas, memrias da vida partilhadas. Num mundo complexo e globalizado, um cnone global de acesso ao conhecimento incompatvel com a coexistncia de manifestaes culturais distintas. As culturas seriam, segundo Carneiro (2001),

    [...] estaleiros das edificaes de aprendizagem e [...] os processos educativos vencedores no primeiro quartel do sculo sero, sem dvida, os que conseguirem tornar miscveis uma elevada qualidade de aprender ensinado, onde ainda predomina uma dose significativa de ensino por componentes ou disciplinas, com formas extremamente diversificadas de novo aprender, mais propcias assimilao de novo conhecimento (p. 36).

    [...] As culturas solidamente aprendentes sero as que proporcionarem essa estranha coexistncia de modos de aprendizagem, aproveitando o melhor da respectiva tradio analtica ou holstica e potenciando os fatores de abertura ao novo conhecimento cada vez mais disponvel em todas as latitudes e longitudes [...] [p. 37].

    As culturas vitalmente aprendentes sero aquelas que, amantes da DIVERSIDADE criativa, so capazes de coexistir e de aprender com as outras culturas [p. 38].

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    A escola inter e multicultural parece ser aquela mais capaz de eleger a riqueza da diferena e da convivncia entre culturas diferentes, como fator de aprendizagem e de desenvolvimento.

    1.3 A tolerncia e os valores da interculturalidade

    O mundo atual vive um perodo em que so exacerbados os direitos individuais ou grupais especficos. Essa afirmao irrestrita e absolutista dos direitos individuais foi estimulada pelo neoliberalismo. Nesse contexto, crescem os riscos que pesam sobre a humanidade, de modo especial o risco de alastramento da rejeio do outro. Exemplos vieram dos acontecimentos no Timor Leste e na Bsnia, durante a dcada de 1990. Por outro lado, sendo a escola parte integrante e contextualizada da sociedade, observamos que diferentes manifestaes de preconceito, discriminao, diversas formas de violncia fsica, simblica, bullying , homofobia, intolerncia religiosa, esteretipos de gnero, excluso de pessoas deficientes, entre outras, esto presentes em nossa sociedade, assim como no cotidiano das escolas (CANDAU, 2012, p. 236).

    Todavia, crescem atitudes xenfobas, fanticas, preconceituosas e sectrias, que devem ser combatidas. Segundo Carneiro (2001), so sintomas do aumento da intolerncia:

    A multiplicao dos conflitos tnicos ou nacionais; A discriminao orientada a grupos minoritrios; A xenofobia que atinge: refugiados, exilados polticos, trabalhadores

    migrantes, comunidades flutuantes e imigrados; A proliferao de organizaes e ideologias racistas; O aumento dos extremismos e dos fundamentalismos religiosos; O acrscimo da violncia contra smbolos intelectuais, escritores e

    lderes minoritrios; O fomento de intolerncia por parte de movimentos e ideologias

    polticas que pem a culpa na criminalidade, na misria; O crescimento da intolerncia contra marginalizados e socialmente

    excludos, pertencentes a grupos vulnerveis.

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    Outrossim, assiste-se desintegrao do Estado-Nao, motivada pela dissoluo da ordem estabelecida pela guerra fria; pela vulnerabilidade de instituies democrticas ainda pouco amadurecidas; pela exploso miditica e pela difuso de idiossincrasias culturais; pela falncia dos organismos ps-guerra na gesto de conflitos intranacionais.

    Se olharmos para a maioria dos conflitos armados, poucos tm como protagonistas os Estados entre si. A maior parte se enquadra na categoria das guerras civis: naes em armas perante a impotncia dos Estados para gerir a ordem e a coeso dentro de suas fronteiras.

    O surgimento de movimentos religiosos messinicos e de seitas preenche o mercado da procura espontnea por espiritualidade, que uma ordem materialista estafada suscita.

    A mdia tambm tem sua parte de responsabilidade e potencialidade na difuso da tolerncia. Filmes como Gandhi, A lista de Schindler, A escolha de Sofia, A misso so exemplos dessa difuso. A luta pela tolerncia contra a diversidade requer polticas ativas e mobilizadoras. Mas na conscincia dos homens que se deve fazer brotar os antdotos para os germens da conflitualidade.

    Diante de uma conjuntura que privilegia a globalizao, as tendncias neoliberais e que marginaliza manifestaes culturais centenrias, quais matrizes poderiam reorientar a educao? Tal educao se orientaria por uma multicultura ou por relaes interculturais?

    Candau (2012, p. 242) trabalha a diferena entre os conceitos de multiculturalismo e interculturalidade. O primeiro conceito se alia ideia da afirmao de diferentes grupos culturais nas suas diferenas. A interculturalidade, por sua vez, acentua as inter-relaes entre diversos grupos culturais. Melhor, a autora se refere a uma interculturalidade crtica, transformadora das culturas, capaz de questionar as diferenas e desigualdades construdas ao longo da Histria entre diferentes grupos socioculturais, tnico-raciais, de gnero, orientao, etc. (p. 244).

    Carneiro (2001, p. 78 et seq.) sugere diversas estratgias para atuar em projetos interculturais:

    A implantao de projetos educativos interculturais, para promover uma cultura da paz. A educao intercultural tem de reorientar as verdadeiras

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    prioridades para valores e atitudes. Aprender a escutar o prximo, adquirir aptides comunicacionais com o diferente, apreciar o patrimnio cultural dos outros, descobrir o fascnio da diversidade, resistir ao autocentrismo cultural, combater o sectarismo cego, libertar-se de preconceito e de dogma redutor so tarefas ingentes da educao moderna.

    A educao para os valores da interculturalidade: no ensino das Lnguas, da Histria e da Geografia; na formao pessoal e social; na educao religiosa. Os sentimentos de tolerncia no so inatos nos indivduos. Eles so desenvolvidos a partir de um compromisso inteligente e ativo, com base em valores universais que se adquirem ao longo de uma vida de formao. Esses valores, uma vez interiorizados, levam as pessoas ao reconhecimento de sua pobreza perante a variedade do outro.

    A tolerncia ativa: a cultura da paz diferente de uma tolerncia no relativista. A tolerncia no pode ser entendida como um convite indiferena. A tolerncia ativa aquela que procura o outro como projeto de vida, partilha com o outro, sem olhar fronteiras de raa, de condio, de lngua, de etnia ou de religio. Do mesmo modo, no se confunde tolerncia com relativismo. Bobbio afirma que A verdadeira tolerncia a firmeza de princpios, que se ope indevida excluso do que diferente (apud CARNEIRO, p. 82). A tolerncia no incompatvel com o sentimento de pertena, ao contrrio, a pressupe (nao, cultura, histria, crena).

    1.4 Estratgias para administrar contatos com uma segunda cultura

    As estratgias que um indivduo usa para administrar o contato com uma segunda cultura teriam um efeito na performance (senso de competncia social, bem-estar psicolgico) acadmica ou de seu trabalho (COLEMAN; CASALI; WAMPOLD, 2001).

    Esse processo, normalmente, chamado de aculturao, no qual os indivduos utilizam estratgias e processos especficos que os ajudem a administrar os contatos com uma nova cultura.

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    La Fromboise, Coleman e Gerton (1993) encontraram seis processos usados para descrever os mecanismos de aproximao de uma segunda cultura. Essas modalidades descrevem o que ocorre quando as pessoas entram em contato com pessoas de uma cultura diferente.

    Trs desses processos so os de assimilao, de aculturao e de separao: um movimento de aceitao (assimilao e aculturao) ou de recusa (separao) da nova cultura. Os outros trs processos diante do contato com uma segunda cultura so: a alternncia, a integrao e a fuso. Segundo tais conceitos, possvel manter um envolvimento com a cultura de origem e, ao mesmo tempo, desenvolver competncias ligadas a uma segunda cultura. O conceito de alternncia assume ser possvel revezar entre duas culturas, da mesma maneira que uma pessoa consegue usar lnguas em contextos diferentes. O conceito de integrao assume ser possvel aos indivduos de culturas diferentes coexistirem sem comprometerem suas identidades culturais. O conceito de fuso subentende que as pessoas de culturas diferentes que esto em contato permanente com outra cultura tendem a assumir tal diversidade ou a fundir-se para criar uma nova cultura.

    Coleman et al. estudam os processos e as estratgias que as pessoas usam para adquirir fins particulares dentro de contextos particulares: o contexto no qual uma pessoa administra as diferenas culturais e os objetivos que ela pretende adquirir naquela situao tendem a influenciar suas escolhas estratgicas. O indivduo que entra em contato com uma segunda cultura tende a fazer uma srie de escolhas com base no modo como ele quer se associar a ela. Se o objetivo da pessoa for tornar-se um membro pleno da segunda cultura, ento ele vai usar a estratgia da assimilao. Se ele no quer se tornar um membro pleno, mas somente associar-se segunda cultura, ento ele usar a estratgia da aculturao. Se o sujeito quiser se associar a mais de uma cultura, mas no contemporaneamente, ele pode usar uma estratgia da alternncia. Se ele se orientar pela negao das duas culturas, usar a estratgia da fuso. Se ele quiser que a segunda cultura coexista com a sua cultura de origem, usar, ento, a estratgia da integrao.

    O modelo de Coleman et al. sugere que so os objetivos individuais que as pessoas tm em relao a contextos particulares que iro determinar as estratgias (integrao, alternncia, fuso, separao, assimilao,

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    aculturao) a serem usadas para administrar a interao com a diversidade cultural.

    Os autores testam a hiptese de Coleman segundo a qual o contexto que determina a escolha da estratgia de contato com a diversidade cultural. Os resultados confirmam a hiptese, ou seja, a estratgia que uma pessoa vai usar para entrar em contato com a diversidade cultural depende do contexto social no qual ela vai ser usada. Por exemplo, um adolescente pode usar as estratgias da assimilao ou da aculturao num contexto ligado sala de aula e usar as estratgias da separao ou da integrao no contexto social de bairro. Outros aspectos interessantes das concluses mostram que os adolescentes das classes mdia e alta (de ascendncia europeia), e que so tambm um grupo dominante no contexto da pesquisa, tiveram um menor nvel de preocupao com a administrao (coping) da diversidade cultural, enquanto adolescentes pertencentes a minorias tnicas tendem a utilizar mais as estratgias de coping.

    1.5 A educao intercultural inspirada nos princpios da alteridade

    Toda educao tem a que ver com a realidade para a qual est orientada. De fato, no h educao que no esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa, assim como no possvel conceber uma experincia pedaggica desculturalizada, isto , desvinculada das questes culturais da sociedade (CANDAU, 2008, p.13).

    O Brasil, segundo Fleuri (2002), historicamente constitudo como uma sociedade multitnica e culturalmente hbrida, enfrenta desafios: no plano poltico, o desafio de promover a igualdade de direitos e oportunidades para indivduos e grupos, garantindo o direito diferena pessoal e cultural; no plano social, o desafio de favorecer o desenvolvimento autnomo de sujeitos individuais ou coletivos para construir relaes de solidariedade; no plano educativo, o desafio de desenvolver a disposio para explicar e resolver os conflitos.

    Fleuri entra na questo dos pressupostos epistemolgicos da intercultura, na conceituao da educao intercultural, no estudo da intercultura nas

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    relaes entre etnias, geraes e movimentos sociais, visando elaborao de subsdios para a formao de educadores.

    O autor se prope a estudar os contextos intersticiais que constituem os campos identitrios, subjetivos ou coletivos, nas relaes e nos processos interculturais. A intercultura revela-se como um objeto de estudo inter-disciplinar e transversal s temticas da cultura, da etnia, das geraes e de movimentos sociais.

    Hoje, s noes de universalidade e similaridade das culturas humanas, desenvolve-se um conceito de cultura como a totalidade acumulada de padres culturais, de sistemas organizados de smbolos significantes. Todos os grupos humanos desenvolvem padres culturais. Existe uma enorme diversidade de padres culturais. O objeto de estudo focaliza-se no exatamente nas similaridades empricas entre os comportamentos dos diferentes grupos sociais, mas na relao que os diferentes grupos portadores de padres culturais diversos estabelecem entre si.

    A prpria educao entra aqui como a promoo de contextos e processos relacionais estratgicos que permitem a articulao entre diferentes contextos culturais: o processo educativo consiste na criao e no desenvolvimento de contextos educativos, e no simplesmente na transmisso de contedos disciplinares especializados. Trabalhamos, ento, com uma concepo de educao, como ambiente que integra diferentes sujeitos e seus respectivos contextos culturais, e de educador, como articulador de mediaes culturais.

    Ghiggi (2001) sugere como, no varejo, a comunidade educativa e o educador podem promover contextos e processos relacionais proativos, capazes de ativar a educao intercultural:

    Educao para o acolhimento: trata-se de uma atitude de respeito diversidade, centralizado no respeito ao diverso e baseado no reconhecimento da paridade de direitos. O acolhimento vem associado a alguns nveis distintos que caracterizam a maneira do acolher: tolerncia, aceitao, respeito, solidariedade e crtica.

    Educao para a escuta: escuta porque cada um sabe que existe se os outros se do conta de sua presena, escuta de histrias de vida, escuta de si mesmos.

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    Educao para o dilogo entre culturas: o encontro entre as culturas acelera os processos de crescimento pessoal, as revises e as superaes de horizontes caducos.

    Educao para a alteridade: caracterizar a relao de troca em base complementariedade, ao duplo discurso, introduo da interao na prtica educativa, da troca, da reciprocidade, partindo do princpio segundo o qual o encontro com a diversidade gerar a ideia de heterogeneidade; aceitando-a, poderemos descrev-la, poderemos falar sobre ela, construir sua lgica interna. Nesse sentido, parece obsoleto falar de assimilao, de integrao e de insero social. Cada identidade requer a aceitao de sua realidade: de afro, de gay, de mulher, de ancio, de cigano, de menino de rua... Ningum pretende mudar para assumir a identidade oferecida pelo outro, mas a aceitao da diversidade com base na alteridade permite um novo pacto, uma nova negociao em que cada um reconhece a identidade do outro, mas conjuntamente, complementarmente, tratando-se em condies de pares.

    Educao para a solidariedade: a diferena como riqueza. A solida-riedade se estende s atitudes e s estruturas. Atinge a esfera pessoal, mas tambm a social e a poltica. Mais que educao, a solidariedade exige uma cultura da solidariedade: passar da boa vontade individual a aes organizadas, com base no bem comum e na reciprocidade; que tenha uma referncia central em um sistema de valores e de relaes; que se baseie num humanismo do ns, da alteridade, em vez de um humanismo do eu.

    Esse perodo, entre um final de sculo e o limiar de outro, no qual mais se proclamou a tolerncia, coincide tambm com um perodo em que a intolerncia se fez sobremaneira presente, manifestando-se especialmente na forma de limpeza tnica. Depois da guerra fria, chega o perodo da paz fria, em que se repetem os horrores dos genocdios. Num perodo de grande desorientao, em que se torna necessrio repensar um projeto de sociedade e de educao, muitos se apresentam como arautos de modelos do passado.

    A intolerncia ter se tornado mais intensa? Ou ser a humanidade que no conseguiu assimilar as transformaes culturais da poca, tais como: a vizinhana global estimulada pela mdia; a crise das agncias de socializao, como famlia e escola; a exploso das liberdades pessoais (individualismo);

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    a mobilidade cultural e as interfaces de contato; o enfraquecimento do papel do Estado; a falncia dos mecanismos de regulao (socializao e controle social); os fundamentalismos tnicos e religiosos; a misria, a excluso e a marginalidade; a difuso e a organizao do crime. So mudanas que afetam transversalmente todas as culturas.

    Viver no novo oceano das culturas exige competncias especficas: a compreenso horizontal das sociedades multiculturais e o privilgio da integrao (contra a segregao), da cooperao (contra a dominao) e da acolhida (contra a competio). Implica o desenvolvimento de uma cultura de dilogo, de estima pela humanidade, de valorao das culturas. E a educao, atravs de suas escolas e de processos educativos, se destaca como fator por excelncia de mudana intercultural e de construo dessa cultura do respeito, da abertura e do dilogo diante da diversidade cultural. o que nos propomos a demostrar nas pginas que se seguem.

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    UM MAPA PARA COSMPOLIS

    Cenrio

    A figura clssica do migrante deve referir-se in primis quele sujeito em formao desde o momento de sua entrada na cidade cosmopolita e, em seguida, quando faz as primeiras sadas do nicho familiar para adentrar o trnsito da sociedade complexa. neste ponto que se torna algum com direito educao (segundo o termo original de conduzir para fora).

    A capacidade para se orientar na cidade cosmopolita constitui, de fato, uma dimenso indispensvel para a criao daquela cidadania pluriforme, que se apresenta como a grande meta civil de nosso tempo e como condio para seu desenvolvimento no respeito a povos, naes, etnias, lnguas, religies que, por diversos ttulos, aspiram identidade, igualdade e diversidade. Os processos educativos devem, por isso, ajudar a preservar esse rico patrimnio, a construir um crvel e eficaz pacote (multi)educativo de conhecimentos teis para compreender o que somos, onde estamos andando, com quem, em direo a quem, por que, em vista de quais metas a conquistar.

    necessrio, portanto, preparar o jovem para equipar-se com uma mochila (forma mentis) na qual ele possa colocar um patrimnio de conhecimentos, de ideias, de competncias, de esperas, com as quais possa percorrer a aventura da vida e sentir-se preparado para interagir com o outro e com sua diversidade. De fato, dentro dos sistemas educativo-formativos que se deve enfrentar tambm as temticas culturais

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    que aparecem sempre mais decisivas para a concepo da cidadania e da democracia. a essas outras culturas que cada um chamado a se abrir.

    De fato, a globalizao galopante de conhecimentos, de tecnologias, de bens e servios constrange a realizar complexas mediaes que implicam a possibilidade de mltiplas pertenas e identidades e a capacidade de viver diversas cidadanias, no plano poltico, jurdico, cultural, religioso, econmico e psicolgico. Trata-se de cidadanias em geometria varivel, que vo desde a famlia at o grupo espontneo, o lugar de trabalho, a cidade, a regio, a nao, a etnia, a comunidade religiosa. O Sistema Educativo de Instruo e Formao deve, portanto, ajudar os jovens a no se perderem no labirinto da sociedade complexa, dotando-os de bssolas e de adequados motores de pesquisa.

    O objetivo ltimo chegar a reorganizar a (con)vivncia para torn-la mais racional, isto , mais apta a receber grande quantidade de pessoas diferentes, pela idade, pelo sexo, pela mentalidade e pelo estilo de vida, sem que isso comporte incompatibilidade e luta para a excluso recproca.

    2.1 Aldeia global

    Globalizao, sociedade global, aldeia global esto certamente entre as palavras mais usadas hoje em dia, sujeitas s mais contrastantes interpretaes. Produto do pensamento liberal, o fenmeno considerado, por um lado, uma feliz meta da histria e, por outro, alguns s veem os efeitos contraditrios delas. Mas, de qualquer modo, todos concordam em constatar seus ritmos sempre mais velozes com os quais mais fcil ultrapassar os confins do espao-tempo, colocando em contato lugares e culturas at h poucos decnios afastadas.

    Na origem do global, contudo, no est s o melhoramento das comunicaes, mas, em particular, a ideia do mercado livre (POCCHETTINO; BERNAI, 2003, p. 79s). O processo de liberalizao est na base da rpida integrao dos fluxos internacionais do comrcio e dos sistemas financeiros, na convico de que a liberdade mercantil traz bem-estar a todos. A hegemonia conquistada pelo modelo ocidental

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    nos planos econmico, financeiro e cultural e a multiplicao dos atores da global governance graas ao crescimento de instituies e de acordos supranacionais, so os elementos que melhor caracterizam o atual processo de globalizao.

    O choque do futuro. Edgar Morin (1994, p. 8) sustenta que existem, na sociedade contempornea, sinais claros de uma passagem progressiva de modelos de identificao restritos ao pequeno grupo para formas sempre mais difusas de participao planetria. Pela sua caracterstica de transversabilidade, com respeito s diferenas e s segregaes sociais e culturais, fenmenos e problemticas tais como a ameaa nuclear, o desenvolvimento do pensamento ecolgico, a crescente diversidade entre pases ricos e pobres, a universalizao do mercado e da cultura, a compresso espao-cultural do planeta, por obra dos meios informticos e da comunicao, nos envolvem na primeira pessoa e podem, por isso, representar, ao menos potencialmente, o fundamento de uma forma de conscincia planetria.

    O processo de globalizao est, hoje, de fato, estreitamente ligado ao do multiculturalismo; comporta, portanto, a pesquisa de espaos de autenticidade e de identidade tornados cada vez mais incertos pelo fenmeno de contaminao cultural. A tendncia homologante que existe no processo de globalizao, de fato, contextual, ao provocar com as proclamaes formais da igualdade, produzindo aquela que, ainda no seu tempo, foi definida como sociedade de risco (GEHLEN, 1984, p. 67), onde os sujeitos, levados a viver num estado crnico de alarme, a partir do momento em que esse mundo de excludos, que pretendem ter mais direitos, considerado uma ameaa.

    O tsunami da ps-modernidade. Para R. De Vita (1999, p. 27s.), o homem da ps-modernidade mais um Narciso do que um Ulisses: permanece agarrado, como um nufrago, nos destroos, s suas pulsaes e desejos, por causa da falta de um substrato de valor. No estando mais em condies de selecionar, pela ausncia de uma conscincia crtica heterodirigida, no enfrenta o problema de uma escolha e, por conseguinte,

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    coloca-se numa posio de perene experimentao (a palavra de ordem experimentar tudo, desde as drogas at os esportes mais difceis).

    Mas isso no ocorre de maneira dolorosa. Assim, produz-se uma espcie de experimentalismo pragmtico, pelo qual, por exemplo, cancela-se do prprio sistema de significados a expresso para sempre, elimina-se a capacidade de escolha e de responsabilidade, diminui-se a ligao entre os dados e os significados. A avaliao da cotidianidade leva a diminuir a carga dos projetos e, por conseguinte, aumenta a navegao de pequena cabotagem. A incerteza compromete no s a vida associativa, mas tambm a dimenso individual, por causa daquela que indicada como a crise de sentido e de identidade, que pe em discusso contedos e conceitos e, por isso, impe repensar todas as categorias ocidentais do relacionamento com a alteridade.

    Em um espao global-local, onde o sujeito est contemporaneamente em mais lugares, em uma simultaneidade desterritorializada, tambm a identidade fica inevitavelmente envolvida. O enfraquecimento do tempo histrico e, com ele, da identidade coletiva qual pertence o indivduo, se traduz em enfraquecimento do tempo biogrfico e, portanto, tambm da identidade individual. Difunde-se, assim, um tipo de identidade carente de sentido, de referncia, concentrada exclusivamente no presente, fortemente autocentrada, produzida pelo abandono do conhecimento, da continuidade e da interdependncia de significado entre passado, presente e futuro. Por causa da desestruturao do tempo biogrfico, o homem fica mais fraco ao conceber as prprias escolhas em termos de decises vinculantes para o futuro, de formar uma perspectiva de vida centrada na seleo de um objetivo prioritrio. Compreende-se, ento, por que o tipo de tempo a que se refere esse indivduo seja o tempo da cotidianidade, que se caracteriza pelo encolhimento dos horizontes de expectativas e que suscita um sentimento difuso de impotncia.

    A ideologia do timo-fugitivo torna-se prevalente, e exatamente na msica e no ritmo, que so a vida do corpo, que se vai procurar a percepo do tempo e os significados para enfrentar a cotidianidade. Nesse contexto, valoriza-se e potencializa-se o smbolo, frequentemente transferido para os modos nos quais se torna cultivada a linguagem do corpo (tatuagens,

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    piercing, acupuntura, pintura e embelezamento dos cabelos, modas, etc.). Tudo isso na esteira de um desejo desconsagrante de impor sua prpria diversidade. o espao do precisar causar admirao a qualquer preo, para distinguir-se, para a procura de fragmentos de identidade numa realidade sempre mais homologada ao modelo publicitrio, na qual uma histria tem a durao de um relmpago e uma emoo, a densidade de um flash. E para que, em tal contexto, uma identidade possa aparecer e ser reconhecida, tambm um cabelo colorido usado para esse processo de individualizao.

    O pingue-pongue global-local: procura da identidade perdida. O espao onde habitamos e o tempo em que vivemos esto se tornando o ponto de confluncia no qual global e local se entrelaam e onde o indivduo percebe sua identidade somente se inventam pertenas, lugares e significados locais, no mais transmitidos pelas suas culturas.

    Na ps-modernidade, a vida social se encontra diante de uma multiplicidade: no h acontecimento que informe, por si, uma gerao ou uma sociedade..., mas os acontecimentos e sua velocidade fazem o social-histrico perder sua potencialidade [...]. O sentido familiar, o sentir-se em casa, o sentido do comunitrio no deriva mais ou no somente do lugar, do habitar, mas dos modos aos quais se recriam as particularidades e as identidades com as quais o homem entra em relao com o mundo. As identidades se formam nos modos, no trabalhar comunicando, mais que nos lugares que conservam caracteres de familiaridade, confiana, comodidade, que eram baseados na rotina cotidiana dos sujeitos (BONOMI, 1996, p. 30).

    A crescente complexidade do sistema social, o processo de globalizao e, ao mesmo tempo, de glocalizao associam-se a uma fragmentao da vida social e individual, ao reaparecimento de fenmenos de glocalismo e de etnocentrismo. E a realidade caracterizada por uma incerteza estrutural e por uma contraditoriedade radical. No fundo desse cenrio, nota-se a figura de um cidado do mundo, mais virtual que real, que sai procura de reconhecimento dentro da dimenso local, para poder superar o sentido de falta de um pas a que pertencer, produzido pela erradicao

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    cultural/valorizante. Desse modo, as pertenas locais vm da desorientao produzida pelo radicalismo cultural/valorizante. Assim, as pertenas locais so usadas para reger a ligao entre o impulso para a homogeneizao e a reivindicao da prpria diferena (tnica, cultural, religiosa).

    Globalismo e glocalismo supem a existncia de um e de outro, esto estreitamente interligados. Nesse quadro, tambm o localismo pode tornar-se um espao de defesa do indivduo, com uma identidade defensiva definida como o mnimo (LARSCH, 1985, p. 7). Por dentro desse curto-circuito global-local, chegam a falar valores-guia e sistemas unificantes e convergentes no plano tico e social. Da segue-se que, ao alargamento dos horizontes cognoscitivos, sempre mais virtuais, se associa o fechamento do homem sobre si mesmo, a interrogar-se quem sou eu? e para onde estou indo?. Interrogaes hoje tornadas mais dramticas pela ausncia de referncias certas, fornecidas pelo sentido de pertena.

    A exigncia de redefinir a prpria identidade, imposta pelo crescente pluralismo e pela necessidade de confrontar-se com a indiferena, o relativizar-se do sentido de pertena, a redefinio das formas de direito, exigem o problema do sentido da vida, previsto nas pertenas diferentes, em que, mais que a verdade, se procuram a tranquilidade e a felicidade imediata, no estilo de use e jogue fora.

    Consequncias e perspectivas

    a) Em nvel comercial. A transnacionalizao das empresas, por um lado, assegura sempre mais a concentrao em mos de poucos (graas falta de transparncia e, em certos pases, tambm de democracia), ao mesmo tempo; por outro, permite produzir, com custo mais barato, oferecendo baixos salrios. De tal modo se registra um curto-circuito perverso, em que, com o rebaixamento dos custos e dos salrios, se aumentam os lucros e, por conseguinte, tambm as pobrezas. Uma economia global sem tica e sem regras constringe trabalhadores e estados a colocar-se em competitividade entre si, para atrair os investimentos: cada um procura colocar

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    o custo do trabalho, as despesas sociais e os ambientais abaixo do proposto pelos outros. Assim, a competitividade global leva guerra entre os pobres, entre o Norte e o Sul do mundo, numa espiral canalizada cada vez mais para baixo.

    b) Nos processos de identificao. Para A. Maalouf (2007, p. 101), o verdadeiro perigo da globalizao est na homologao universal. Um tsunami de imagens, de sons, de ideias e de produtos submerge o planeta inteiro, transformando a cada dia nossos gostos, modas, aspiraes, comportamentos, estilos de vida, at mesmo a viso de mundo, transformando tambm a ns mesmos. Tudo isso veicula algumas inquietudes: a atual agitao das comunicaes em escala planetria, ao contrrio de levar a um enriquecimento recproco, multiplicao dos meios de expresso, diversificao das opinies, conduz ao empobrecimento das expresses globais; o pulular das culturas, em vez de ser um fator de enriquecimento entre os diferentes, arrisca-se a levar a uma uniformidade homologante. E ainda mais: os processos de globalizao tornam mais problemtica a conservao do equilbrio entre incluso e excluso, universalismo e reconhecimento das diferenas, entre os que tm e os que no tm direitos. Nesse contexto, a questo da cidadania se torna um dos principais fatores de confronto e de contenda sobre as soberanias e sobre as identidades, inclui exigncias de reconhecimento das diferenas pessoais e coletivas e, ao mesmo tempo, veicula instncias de transformao da gesto do espao pblico e poltico. Nota-se, tambm, um aspecto negativo na progressiva perda das identidades territoriais, corrodas pela constante homologao das diferentes culturas tnicas ao modelo ocidental, que produz, como consequncia, a ocidentalizao do mundo. Assiste-se, assim, a uma espcie de comercializao, na qual consumir, comprar e vender representam a condio primria de sobrevivncia.

    c) Nos processos educativos. Seria um desastre, caso a mundializao em curso funcione num sentido nico: de uma parte, os transmissores universais, de outra os receptores; de uma parte, os que esto convencidos de que o resto do mundo nada lhes pode ensinar;

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    de outra, os que se entregam ao encanto da novidade enviada pelos persuasores ocultos, desertando e/ou incubando um complexo de inferioridade pelas culturas, tradies, valores nos quais cresceram, considerados agora perifricos, no mais adotveis, longe das modas/culturas dominantes. Na ps-modernidade, o verdadeiro desafio consiste no educar para adquirir uma conscincia da diversidade, para reconhecer que todo o universo um pluriuniverso, que saiba ser, ao mesmo tempo, uno e mltiplo, todo e parte, ter independncia planetria e senso das razes, origem cultural e transculturalizao, identidade nica e mltipla.

    Desafio

    Os homens do presente vivem numa condio de alta transitoriedade, uma condio na qual a durao dos relacionamentos reduzida, a venda das relaes extremamente rpida. Nas suas existncias, coisas, lugares, pessoas, ideias e estruturas organizativas, tudo consumido s pressas. Impe-se, ento, um alto grau de adaptabilidade. Mas existem limites tambm na adaptabilidade. No somos infinitamente elsticos... Quando esta capacidade desfeita, a consequncia o choque do futuro, pelo qual o sujeito perde referncias importantes para sua identidade (TOFFLER, 1988, p. 48).

    2.2 Desenvolvimento versus codesenvolvimento

    Quando se encara o tema do desenvolvimento em geral, apela-se e/ou faz-se referncia a estatsticas economicistas, diante daquilo que, segundo estas, atualmente, o cenrio dos outros 6 bilhes de pessoas que povoam o planeta:

    mais de um bilho de pessoas lutam diariamente para no morrer de fome e outros trs bilhes entra no patamar da pobreza extrema;

    20% da populao mundial consomem 80% dos recursos;

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    contudo, tambm o conceito de desenvolvimento est em permanente evoluo, tanto como o so contextualmente e/ou paralelamente os que se referem educao, intercultura, identidade, aos direitos humanos, cidadania.

    O que se deve entender, hoje, por desenvolvimento?

    As pobrezas que ainda hoje ameaam a sobrevivncia de uma parte no indiferente da humanidade no so atribudas somente questo econmica, mas dependem tambm de outras causas, entre as quais a falta de instruo, a presso demogrfica, a falta de distribuio dos servios essenciais, a violncia geral, a violao dos direitos humanos, as guerras, o nmero de refugiados... Em resumo, a falta geral de oportunidades para o acesso qualidade de vida e realizao pessoal.

    Por isso, hoje, o termo desenvolvimento deve ser entendido como pr em ao uma srie de intervenes para enfrentar o perverso curto-circuito dos fatores que foram pases e/ou classes sociais a viver na mordaa da pobreza; Podem-se, pois, considerar positivamente as intervenes que levam satisfao das necessidades primrias (pobreza, fome, doenas, etc.), mas, de acordo com o contexto, necessrio incorporar a dimenso essencialmente cultural-educativa (alfabetizao bsica, educao, formao superior, contnua, etc.) e a aquisio/defesa dos direitos fundamentais (de construo de identidade e de formao de uma conscincia crtica cidadania, s oportunidades para todos).

    Em outros termos, a dimenso da mudana deve ser vista com o objetivo de oferecer oportunidades que permitam, antes de tudo, potencializar as capacidades do recurso-homem. De acordo com essa aproximao, todo indivduo deve ser colocado na condio de conquistar competncias e recursos necessrios para, depois, chegar a uma vida qualitativamente digna de ser vivida.

    Diante dessa mudana de perspectiva, em que sentido se pode ainda falar de cooperao para o desenvolvimento?

    Por se esperar que tal possa acontecer, sobretudo na fase do encami-nhamento, que seja tipicamente organizada de modo a gerir a emergncia,

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    e que a interveno no seja nunca unilateral de sentido nico , como geralmente verificada (no passado, mas tambm ainda hoje). O mesmo termo cooperar est indicando que no processo de desenvolvimento todos devem estar juntos: quem vem de outro lugar para realizar-se, como tambm os autctones, se se quiser, realmente, garantir que as intervenes sejam duradouras no tempo e, sobretudo, respeitosas com a cultura local.

    Contudo, terminada essa primeira fase, isto , quando j foram injetadas novas energias que permitiram uma soluo do problema, compete comunidade local ter em mos projetar de novo o processo de desenvolvimento, de acordo com objetivos e escolhas autnomas, de que deve responsabilizar-se em primeira pessoa.

    Atualmente est se abrindo caminho tambm com uma prospectiva ulterior, o codesenvolvimento (LOMBARDI, 2009). Se for realizado com equilbrio, com mentalidade aberta mundialidade, por causa de suas implicncias, parece ainda ser preferido o modelo precedente de interveno. Apesar de ter sido, inicialmente, entendido como instrumento para frear os fluxos migratrios, sua mais atual interpretao prev que os prprios migrantes que, ao manterem as relaes (pessoais, associativas, polticas) com o pas de origem, assumam a responsabilidade de projetar e realizar intervenes endereadas a seu desenvolvimento.

    Trata-se de uma estratgia na qual os beneficirios do desenvolvimento possam ser contemporaneamente tanto os pases de origem dos migrantes quanto os de chegada. De tal modo, que possam desempenhar um papel de gonzo entre os dois mundos do processo. Realmente o migrante que vai realizar um papel ativo, para contribuir com o melhoramento do prprio pas de origem, graas a um eficaz processo de integrao ao pas de chegada.

    Desse modo, as migraes podem ser consideradas como uma fora positiva que contribui, de modo significativo, para o desenvolvimento humano, do qual se beneficia tanto quem migra quanto quem permanece, tanto o pas de chegada dos migrantes quanto o de origem, a partir do momento em que o codesenvolvimento considera os destinatrios no mais como sujeitos passivos, mas como atores/protagonistas, na primeira pessoa, do melhoramento das prprias condies de vida.

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    Como tal, o codesenvolvimento pode ser definido como a valorizao do potencial regenerativo que as migraes tm em relao com os problemas humanitrios, visto que representa um modelo de interveno, em grau de transformar as migraes numa leva de crescimento, graas ao auxlio recproco entre os povos.

    Desafio

    O direito ao desenvolvimento um direito inalienvel do homem, em virtude do qual todo ser humano e todos os povos tm o direito de participar e de contribuir para o desenvolvimento econmico, social, cultural, poltico, no qual os direitos do homem e todas as liberdades fundamentais podem ser plenamente realizados, e de beneficiar-se desse desenvolvimento (ONU, 1986).

    2.3 Migraes

    Constituem um dos fenmenos mais conaturais experincia e ao processo evolutivo do homem na histria, a partir da sombra das origens de sua presena no planeta.

    No momento histrico atual, as migraes se caracterizam por assumir diversas dimenses: de modo geral, ocorrem em escala planetria; mas, com as empresas espaciais, j assumiram dimenso interplanetria; alm disso, verificam-se tanto nos espaos geogrficos (em nvel transcontinental, internacional, nacional, local, urbano, campons) quanto nos virtuais e, neste ltimo caso, parece que no existem fronteiras.

    Esses fluxos, por sua vez, so o produto de diversas ordens de motivaes:

    tursticas (milhes de pessoas que se deslocam, anualmente, para frias e/ou para negcios, para gastar o tempo livre de acordo com projetos que vo desde a cultura at o esporte, a diverso, a sade);

    econmicas (multinacionais, produo de mercadorias e de capitais, proventos);

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    religiosas (Praa S. Pedro, Lurdes, Compostela, Meca); realizao pessoal e dos prprios projetos de vida (procura de melhores opor-tunidades no campo educativo, cultural, profissional, trabalhista);

    e, no por ltimo, esto os produtos de condies humanas pro-blemticas (pobreza, guerras, genocdios, desastres ambientais, injustias, desigualdades).

    Se se observa o conjunto desses fluxos, no se pode desprezar a constatao de que eles ocorrem paralelos s transformaes das sociedades, num quadro de crescente globalizao dos sistemas de governance, entrelaados com desequilbrios econmicos e sociais.

    Se, pelo contrrio, tais fluxos so logo cortados no deslocamento de massas provenientes dos pases menos desenvolvidos para os pases ricos, a tipologia de migrantes representa somente uma quota minoritria do fenmeno (estimada em torno de 3% da populao mundial). Alm disso, deve-se ressaltar que quem migra no so propriamente os ltimos, quer dizer, os que no conseguiriam enfrentar os custos dos seus deslocamentos, mas, em geral, so os jovens, s vezes, at bem ricos; isto , o capital humano e os recursos intelectuais e profissionais de um dado pas que vo procura no s de melhoramento da prpria qualidade de vida, mas tambm de maiores oportunidades de realizao de si mesmos e dos prprios projetos.

    E, contudo, mesmo sendo um efeito perverso, provocado pelas desigualdades de oportunidades, pelas guerras e, mais geralmente, pelos desequilbrios sociais que seguem os processos de globalizao, esse ltimo tipo de migrao, diferentemente das riquezas e dos capitais, submetido a rgidos controles, proibies, bloqueios. O fenmeno das migraes dos pases menos desenvolvidos impe, por isso, uma reflexo principalmente sobre os direitos e sobre as efetivas capacidades de proteo deles, a partir do momento em que o debate sobre a acolhida dos migrantes e sobre os processos de identificao est ocorrendo num clima de crise de valores e de perda de orientao.

    A amplitude do fenmeno que depende dos atuais processos migratrios coloca em risco, de fato, a defesa da dignidade humana e do efetivo gozo dos direitos fundamentais do homem. A estrutura sobre a qual se baseiam

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    os Estados modernos acaba, em razo de sua complexidade e defesa, por se colocar como fator de oposio realizao dos direitos humanos. Tambm se deve notar a diferena que existe entre os direitos do cidado (excludentes, porque baseados na diferena entre cidado e estrangeiro) e os direitos do homem, que so excludentes, porque orientados para a realizao de uma sociedade de oportunidades iguais.

    O eixo ns-cntrico, construdo ao redor da dialtica do ns-outros e do amigo/inimigo, infelizmente responde ainda hoje a uma estratgia baseada na marginalizao e, em certos casos, na eliminao do diferente, ou sob o egocntrico pretexto de sujeit-lo/reduzi-lo prpria imagem e semelhana. A condio que se pretende, em resposta a uma pretensa integrao dos migrantes, baseia-se, ainda hoje (e talvez mais que nunca), na pretensa pureza identificadora, imutvel, fechada, impermevel, artificiosa, construda sobre a ideologia dualista/antittica do eu/ns contra o tu-vs, no levando em considerao que, em um momento histrico, caracterizado pelas pluralidades (tcnicas, culturais, religiosas), tambm as identidades so destinadas, inevitavelmente, a evoluir, reciprocamente, graas s diferenas de que so portadoras. , pois, chegado o momento no qual necessrio se colocar em uma tica nova, em que se reconhea no s o respeito pela diversidade, mas tambm o dever de diversificar as aproximaes em que ela estudada.

    O direito de migrar foi reconhecido pela Declarao dos Direitos Humanos, com base na qual se afirmou, no artigo 13, a liberdade de movimento de todos os indivduos, e depois foi repensada, diversas vezes, nas Convenes Internacionais.

    Assim como a abelha migratria, tambm o migrante tem o direito de procurar mundos diferentes do seu. O fato de se tornar parte de um nmero crescente de pessoas leva a relativizar o prprio mundo cultural, constatando-se que existem culturas diferentes, e que a prpria uma entre tantas.

    As migraes levam, por isso, a se perguntar que tipo de sociedade estamos construindo e, ao mesmo tempo, levam a projetar uma cidade na qual se ampliem os espaos de pertena e de participao e se restrinjam os de marginalizao e de excluso. Isso tudo exige reformular as polticas

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    de acolhida com um plano de solidariedade harmonizada, para gerir o fenmeno com escolhas preventivas e com instrumentos institucionais e educativos que permitam a todos os migrantes do planeta projetar um futuro sustentvel.

    A quem compete esse trabalho?Os sistemas escolstico-formativos podem oferecer solues eficazes?

    Para responder a essas perguntas, necessrio mudar a mentalidade, afirma A. Maalouf (2007, p. 44), considerando o migrante como partner, na soluo dos problemas sociais de um pas, mais que um problema. E sobre o assunto, ele deixa as seguintes mensagens:

    Aos imigrantes: Quanto mais vos empenhais na cultura do pas que vos recebeu, tanto mais podereis impregn-la com a vossa;

    e aos autctones: Quanto mais um emigrado sentir respeitada sua prpria cultura de origem, tanto mais se abrir cultura do pas que o acolheu.

    Portanto, uma espcie de contrato moral, no qual

    a cultura do pas de acolhida deveria indicar com preciso que coisa fazer da bagagem mnima qual toda pessoa deveria aderir, e que coisa se deve legitimamente contestar, recusar;

    enquanto da parte dos migrantes dever-se-ia pedir que componentes da prpria cultura de origem merecessem ser transmitidos ao pas de adoo como fator de enriquecimento e quais, ao contrrio, deveriam ser deixados no guarda-roupa.

    Para o autor, a palavra-chave est no relacionamento de reciprocidade: se o pas cuja lngua eu estudo no respeita a minha, deixa de ser um gesto de abertura falar sua lngua. Torna-se tambm um ato de vassalagem e de submisso. Ao contrrio, se aceito o meu pas de adoo, se o considero como meu, se sinto que ele faz parte de mim e que eu fao parte dele, e me comporto de acordo com isso, ento, tenho o direito de critic-lo.

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    Paralelamente, se esse pas me respeita, se reconhece minha contribuio, se me leva em considerao, com minhas peculiaridades, como parte integrante dele, ento tem o direito de refutar certos aspectos da minha cultura que poderiam ser incompatveis com seu modo de vida e o com esprito de suas instituies (MAALOUF, 2007, p. 45).

    Desafio

    [O migrante] se encontra separado, combatido, condenado a atraioar tanto a prpria nao de origem quanto o pas de adoo [....] se o partir quiser dizer que algumas coisas foram recusadas a represso, a insegurana, a pobreza, a falta de horizontes. Tal recusa acompanhada de um senso de culpa: reprova-se de ter abandonado tantas lembranas agradveis [...], at mesmo os sentimentos que se tem em relao ao pas de adoo so ambguos, para l foi porque se espera uma vida melhor, mas essa expectativa est carregada de apreenso, diante do desconhecido; temem ser recusados, humilhados, todo comportamento que denota ironia, desprezo ou d [...] por isso, o primeiro reflexo o de deixar passar despercebida a prpria diferena; a tentao inicial de imitar os autctones (MAALOUF, 2007, p. 41).

    2.4 Fraude tnica

    O que a identidade tnica?Que sentido existe em falar de identidade tnica num contexto de

    globalizao homologvel?

    De acordo com M. Kilani (2001, p. 9s.), em torno de termos de uso corrente como nao-nacionalidade-nacionalismo, comunidade, identidade-identificao, integrao, migrantes-migraes, cidadania, direitos humanos, etnia-etnicidade, pureza tnica, raa-racismo-neorracismo, cultura, diferenas culturais, muticulturalismo, lngua nacional e lnguas regionais reina a maior confuso, por causa de seu carter marcadamente ideolgico. So termos,

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    artefatos, relacionados ideologicamente, construtos sociais arbitrrios, convencionais, como poderosos instrumentos a servio da manipulao ideolgica.

    Contudo, permanecem como termos que, no uso comum que deles se faz, impem-se para descrever realidades indiscutveis e inconfundveis, em nome de uma presumida identidade coletiva dentro da ordem natural. Desse modo, conclui o autor, acaba-se por ocultar os jogos do poder, os interesses econmicos e os conflitos sociais subentendidos em tais termos. A ideologia que interpreta o mundo em termos de divises tnicas e que traa os confins entre ns e os outros pe em relevo a repulsa ao cruzamento e, naturalmente, esconde a recusa igualdade e, portanto, tambm a universalidade dos direitos.

    As etnias so o resultado de processos de aculturao queridos ou favorecidos por externos, ou pelos mesmos grupos que brigam pelo acesso a determinados recursos materiais e simblicos. Nesse contexto, termos como etnia e etnicidade constituem verdadeiras e prprias jaulas, construes simblicas produzidas por circunstncias histricas e polticas e determinadas por congelamentos estticos, imutveis.

    E se a etnicidade diz ainda o autor uma interveno, tambm o conceito mesmo de cultura, de categoria com o qual, frequentemente, se identifica o contedo da etnicidade. A prova vem do fato que, enquanto era garantida a supremacia do Ocidente, no existiam guerras entre as culturas, ao passo que hoje as culturas se encaminham para suplantar os Estados, constituindo-se como instrumentos de afirmao de identidade, como expresso das disparidades entre diversas reas da civilizao, servindo para separar ns dos outros, para organizar as diferenas entre os diversos grupos sociais.

    As noes de etnia/etnicidade e outras a elas relacionadas, de fato, so construes culturais, mediante as quais um grupo produz uma definio de si e do outro coletivo, determinando fronteiras por meio da autoatribuio de uma homogeneidade interna e, contemporaneamente, de uma diferena, a respeito do diferente de si. Esse ser das culturas, uma espcie de containers fechados nos quais estariam colocadas as tradies autnticas de uma comunidade, de um povo, de uma etnia ou de uma nao leva, ao mesmo

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    tempo, a negar a realidade segundo a qual todas as culturas so, pelo contrrio, o produto de interaes, de trocas, de influxos provenientes de outro lugar, nunca nascem puras.

    A antropologia cultural, por sua vez, trouxe luz o fato de que os grupos humanos tm a tendncia para elaborar definies positivas a respeito de si mesmo, enquanto que, para distinguir-se, produzem definies negativas a respeito do outro. Por isso, visto que, ao confrontarmo-nos com outras culturas/tradies, estamos naturalmente inclinados a demonstrar a superioridade de nossa raa/cultura/civilidade/religio atravs de mecanismos de segregao e/ou de excluso, destinados a salvaguard-las. Tudo isso leva construo do esteretipo.

    Em ltima anlise, o conceito de etnia revela-se cheio de significao, que apresenta seu natural etnocentrismo, a partir do momento em que serve para estabelecer os grupos ficticiamente dotados de uma irredutvel pureza identificadora exclusiva/excludente. Substancialmente, uma categoria construda, um modelo cognitivo de percepo e de classificao, que recorre a elementos de identificao, com a finalidade de construir fronteiras/confins que funcionem como barreiras semnticas entre os grupos.

    A etnicidade, por isso mesmo, normalmente combinada com a parte da humanidade que so os outros. Subentende-se por outros os que no fazem parte da nossa sociedade/cultura dominante, isto , os que so identificados por um significado imperfeito, ao qual falta alguma coisa que os faz serem percebidos por quem tem ou teve o poder de definir os outros (com particular referncia aos colonialismos de diversas entidades) como diferentes, imigrantes, marginalizados, culturalmente atrasados...,