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PAULO FREIRE E HUMBERTO MATURANA: UM DIÁLOGO SOBRE EDUCAÇÃO RESUMO O presente artigo tem como objetivo realizar um diálogo entre as ideias do eminente educador brasileiro Paulo Freire e do mundialmente famoso biólogo chileno Humberto Maturana. Embora partam de matrizes epistemológicas diferentes – Freire da necessidade de uma pedagogia libertadora e Maturana do fundamento biológico do nosso conhecer – é possível traçar alguns pontos de contato entre ambos a fim de contribuir para uma reflexão mais ampla sobre o fenômeno educativo. Em função do curto espaço do artigo, serão focados somente dois temas muito próximos e de bastante relevância na obra de ambos: o problema da objetividade e o papel do amor na constituição do ser humano. PALAVRAS-CHAVE: Educação; Opressão; Libertação; Biologia da cognição; Amor. ABSTRACT is article aims to conduct a dialogue between the ideas of the eminent Brazilian educator Paulo Freire and the world famous Chilean biologist Humberto Maturana. Although departing from different epistemological matrices - Freire from the need for a liberating pedagogy and Maturana from the biological foundation of our cogntition - it is possible to draw some contact points between them in order to contribute to a broader reflection on the educational phenomenon. Due to the limits of this article will be focused only two very close and important themes in the work of both: the problem of objectivity and the role of love in the human constitution. KEYWORDS: Education; Oppression; Liberation; Biology of cognition; Love. Abigail Malavasi Doutora em Educação pela Universidade de Campinas e Professora do Mestrado Profissional Práticas Docentes no Ensino Fundamental da Universidade Metropolitana de Santos. Gerson Tenório dos Santos Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo e Professor do Mestrado Profissional Práticas Docentes no Ensino Fundamental da Universidade Metropolitana de Santos. Elaine Marcílio Santos Doutora em Odontopediatria pela USP, Pró-Reitora Acadêmica e Professora do Mestrado Profissional Práticas Docentes no Ensino Fundamental da Universidade Metropolitana de Santos.

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PAULO FREIRE E HUMBERTO MATURANA: UM DIÁLOGO SOBRE EDUCAÇÃO

RESUMOO presente artigo tem como objetivo realizar um diálogo entre as ideias do eminente educador brasileiro Paulo Freire e do mundialmente famoso biólogo chileno Humberto Maturana. Embora partam de matrizes epistemológicas diferentes – Freire da necessidade de uma pedagogia libertadora e Maturana do fundamento biológico do nosso conhecer – é possível traçar alguns pontos de contato entre ambos a fim de contribuir para uma reflexão mais ampla sobre o fenômeno educativo. Em função do curto espaço do artigo, serão focados somente dois temas muito próximos e de bastante relevância na obra de ambos: o problema da objetividade e o papel do amor na constituição do ser humano.

PALAVRAS-CHAVE: Educação; Opressão; Libertação; Biologia da cognição; Amor.

ABSTRACTThis article aims to conduct a dialogue between the ideas of the eminent Brazilian educator Paulo Freire and the world famous Chilean biologist Humberto Maturana. Although departing from different epistemological matrices - Freire from the need for a liberating pedagogy and Maturana from the biological foundation of our cogntition - it is possible to draw some contact points between them in order to contribute to a broader reflection on the educational phenomenon. Due to the limits of this article will be focused only two very close and important themes in the work of both: the problem of objectivity and the role of love in the human constitution.

KEYWORDS: Education; Oppression; Liberation; Biology of cognition; Love.

Abigail MalavasiDoutora em Educação pela Universidade de Campinas e Professora do Mestrado Profissional Práticas Docentes no Ensino Fundamental da Universidade Metropolitana de Santos.

Gerson Tenório dos SantosDoutor em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo e Professor do Mestrado Profissional Práticas Docentes no Ensino Fundamental da Universidade Metropolitana de Santos.

Elaine Marcílio SantosDoutora em Odontopediatria pela USP, Pró-Reitora Acadêmica e Professora do Mestrado Profissional Práticas Docentes no Ensino Fundamental da Universidade Metropolitana de Santos.

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INTRODUÇÃO

Num mundo altamente competitivo, individualista e técnico as abordagens sobre educação e cognição que ainda preponderam encaram tais fenômenos como frutos da razão humana, passíveis de serem decompostos em técnicas de aprendizagem e memorização e transmitidos através de um método ideal em que as relações entre as partes decompostas organizam-se numa lógica aristotélico-cartesiana do aparentemente mais simples para o mais complexo. Assim, percebemos que são as relações lógicas, os conteúdos, a organização do saber universalmente acumulado e privilegiado por uma certa casta da população (os “donos do saber”) que imperam na escola e em sua organização. Nossa era, então, cultua o objeto (os conteúdos, o método) e nega o sujeito cognoscente. Esta concepção racionalista de educação já traz aprioristicamente determinado o pretenso sujeito do conhecimento. Só os que jogam o jogo da escola têm condições de nela se manter.

A concepção freiriana de educação desde há muito critica esta visão da escola e da cognição. Seu foco não são as ações, o conteúdo, o conhecimento deslocados dos sujeitos cognoscentes. Nem o descolamento da realidade através de um abstracionismo nulo ditado pelos saberes impostos. Sua matriz gnosiológica situa-se nas verdadeiras relações humanas, no conviver das relações onde o conhecimento é o desvelar conjunto da realidade que nos cerca. Conhecer, para Paulo Freire, é primordialmente uma relação intersubjetiva centrada nos sujeitos e não nos objetos e nas relações lógico-cientifizantes. Sua pedagogia é a da esperança, do amor, da fé. Palavras que não encontramos na grande maioria dos trabalhos sobre educação e pedagogia.

Outro teórico que de um outro ponto de vista - a biologia da cognição - vem expressando um conjunto de valores sobre a educação muito semelhantemente aos de Paulo Freire é o biólogo chileno Humberto Maturana. Como biólogo Maturana estuda a cognição do ponto de vista interno, ou seja, das relações biológicas essenciais para

que os seres vivos permaneçam em relação harmônica com o seu meio ambiente e os outros seres vivos. A partir de seus estudos sobre vários animais e especialmente a espécie humana, Maturana juntamente com seu colaborador Francisco Varela, chega a conclusões surpreendentes sobre o processo de cognição. Hoje suas teorias correm o mundo e estão estabelecendo um novo paradigma para a questão. Para Maturana, o que nos mantém vivos é o nosso fluir na congruência com o meio. Somos seres que vivemos num espaço de convivência onde o outro deve ser um verdadeiro outro nesta relação. O princípio de ação que nos move é eminentemente o gregário, aquele que nos aproxima. Nesta relação aprender é configurar um espaço de convivência desejável para o outro. Ou seja, o fundamento do ser vivo e da aprendizagem está na emoção, nas relações amorosas, que é o domínio de ação por excelência que nos determina.

Com este artigo objetivamos discutir, devido à abrangência do pensamento de ambos os autores e ao espaço exíguo deste artigo, somente dois pontos fundamentais das abordagens dos autores que estão em diálogo e que nos permitem alargar nossa compreensão do fenômeno educativo: o problema da subjetividade e o papel do amor na educação.

O PROBLEMA DA OBJETIVIDADE

Uma primeira aproximação que podemos entrever entre estes dois autores está no problema da objetividade. Embora partam de matrizes epistemológicas distintas – um parte de práticas educativas concretas e outro de questões levantadas pela biologia da cognição – ambos problematizam o papel que a “realidade” tem para o aprendizado.

Paulo Freire, por exemplo, sempre defendeu que qualquer prática educativa deve partir do universo de conhecimento do aprendente, de sua prática, das relações sociopolíticas vivas e determinantes de sua forma de pensar e agir na sociedade, pois,

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como ressalta o eminente educador na Pedagogia do oprimido, este é o primeiro momento em que os oprimidos desvelam o mundo da opressão para comprometer-se na práxis com sua transformação (FREIRE, 1983, p. 32). Naturalmente, este moto se encontrará em diversas outras obras de Freire e na sua prática educativa como professor, pesquisador e mesmo como secretário municipal da educação na gestão Luiza Erundina (1989-1991). Em A importância do ato de ler (1985), por exemplo, Freire ressalta que a leitura de mundo deve preceder a leitura da palavra.

Mas o que significa em Paulo Freire conceitos como “mundo”, “realidade”? Como deixou bem claro na Pedagogia do oprimido, tais conceitos não são objetivistas, pois o que os constituem é a dimensão da opressão de uma determinada classe sobre a outra. Os oprimidos (e tampouco os opressores) não se relacionam com o mundo e a realidade como se esses fossem transparentes. Ao contrário, é a opacização da realidade que marca, por exemplo, a forma como os oprimidos vivem no mundo, pois estão numa relação ideológica marcada pelo domínio da classe dominante que lhes impõe uma maneira de ver o mundo, uma forma de comportar-se e de aceitar os valores daquela classe como se fossem naturais. Porém, como ressalta o educador, a superação da contradição opressor-oprimido só é possível de se verificar objetivamente. Isto não quer dizer que Freire desconsidere o aspecto subjetivo na luta pela modificação das estruturas. Ao contrário, admite que há uma interdependência dialética entre a objetividade e a subjetividade:

A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que essa passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo,

mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade. (FREIRE, 1983, p. 39) (grifo do autor).

Nesta perspectiva, Freire em uníssono com Marx, admite que a realidade social, objetiva não existe por acaso, mas como produto da ação humana (CF. 1983, p. 39).

Podemos pensar, assim, a partir das questões levantadas por Freire que os homens não se relacionam da mesma forma com o mundo das coisas. A dicotomização entre sujeito e objeto, típica da ciência clássica, como vemos em Descartes, Newton, Kant e mesmo em Piaget, é problematizada na pedagogia freiriana, pois não nos relacionamos idealmente com objetos, formas, funções. Tudo o que poderia ser considerado objetivo na visão de uma ciência clássica é considerado em Freire sempre a partir de relações humanas complexas, marcadas por posições ideológicas distintas. Tampouco está implícito na pedagogia de Freire que os oprimidos ao superarem suas condições de opressão farão um único coro com os opressores e, finalmente, todos terão a mesma perspectiva da realidade externa. Freire nos deixa entrever que as relações humanas sempre são dialéticas e o dar conta da realidade é sempre uma ação dialógica, uma prática de inúmeros homens e mulheres. Como no poema de João Cabral de Melo Neto, um galo sozinho não tece a manhã.

A educação debitária da ciência clássica é a que defende a transmissão de conhecimentos sem consideração a fatores sociais, políticos, econômicos e culturais. Freire, ao propor uma pedagogia libertadora, faz crítica justamente a este tipo de educação, denominando-a "bancária". Ou seja, numa perspectiva freiriana não há um currículo programado, ditado de fora para dentro, lastreado na ideologia capitalista opressora, mas uma educação que parte dos problemas reais de seus aprendentes, problematiza a realidade opressora e a contradição em que vivem os oprimidos e possibilita que por meio da práxis haja a inserção crítica dos

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oprimidos na realidade opressora, que se torna objetivável e permite, simultaneamente, a ação sobre ela (FREIRE, 1983, p. 40 )

Em Maturana, o problema da objetividade tem sua origem na forma como o importante biólogo chileno concebe a cognição a partir da constituição do ser vivo. Suas primeiras pesquisas como biólogo recaíram sobre o estudo do sistema nervoso e, em particular, da percepção. Uma de suas obras fundamentais, A árvore do conhecimento (1995), escrita em parceria com seu compatriota e discípulo Francisco Varela, revela de forma magistral a recursividade da biologia do conhecer, partindo de nossas origens físicas e biológicas e terminando pelo papel da linguagem na construção de nosso conhecimento. Há muitas particularidades do pensamento de Maturana que não cabem no espaço deste artigo. O que fundamentalmente nos interessa aqui é destacar que em sua perspectiva nosso conhecer está estritamente

respaldado na forma como nos constituímos enquanto sistema vivo em congruência com o meio.

Nesta perspectiva, um dos conceitos fundamentais da abordagem de Maturana é o de autopoiese, desenvolvido juntamente com Fransco Varela. Os sistemas vivos caracterizam-se fundamentalmente por uma rede de produções de componentes na qual os componentes produzem o sistema circular que os produz (Cf. MAGRO, GRACIANO, VAZ, 1997, p. 21) . Ou seja, seres vivos, ao contrário de máquinas produzidas pelo homem, chamadas por Maturana de sistemas alopoiéticos, produzem a si mesmos de forma recursiva e autorreferente. Ou seja, caracterizam-se por um fechamento estrutural. Em A árvore do conhecimento (1995), Maturana e Varela utilizam-se da famosa gravura de Escher, mãos que desenham (ver fig. 1), para representar este processo de autorreferencialidade constitutivo dos seres vivos.

Fig. 1 – Mãos que desenham, de M. C. Escher (1948)

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Conhecer, então, é uma ação efetiva, “uma ação que permita a um ser vivo continuar sua existência em determinado meio ao produzir aí seu mundo. Nem mais nem menos” (MATURANA, VARELA, 1995, p. 72). Conhecemos ao fazer o que fazemos e fazemos ao conhecer o que fazemos. Explicar o conhecimento, no caso humano, como bem ressalta Maturana, é explicar o conhecedor, o que implica definir como ponto de partida o observador observando e o observar, fenômenos que ocorrem na linguagem (Cf. MATURANA, 2001. p. 27, 28). Um aspecto importante desta questão é que os seres vivos não conseguem distinguir entre ilusão e percepção na experiência, pois estão imersos o tempo todo em um mundo construído por sua constituição autopoiética . Ao descrevermos, explicarmos, nos relacionarmos com os outros, o fazemos a partir de um mundo de congruências com nossa constituição como seres vivos. E isto implica que não é possível sairmos de tais condições para descrever ou apontar algo na realidade. Maturana efatiza, a partir destes questionamentos, que há duas formas de escutar e aceitar as reformulações da experiência. O primeiro destes modos é chamado por ele de caminho da objetividade. Neste caminho, o observador assume que seu escutar, suas explicações, suas justificativas se relacionam com elementos que existem independentemente de si mesmo. Ou seja, o observador, como um sujeito neutro na realidade, entende que pode distinguir ilusão e percepção. “No caminho explicativo da objetividade, o máximo que posso fazer é descrever as características do fenômeno cognitivo, mas não explicá-lo” (MATURANA, 2001, p. 33). Explicar, implica que abandonemos este caminho e tomemos um outro: aquele que Maturana chama de caminho da objetividade entre parênteses. Neste caminho, é necessário que se levem em conta o observador e o observar e sua constituição como ser vivo, pois todo ato de conhecimento está intimamente ligado ao modo como vivemos, como nos constituímos biologicamente. E, aqui, não podemos distinguir entre ilusão e

percepção. Assim, a única coisa de que dispomos para explicar o conhecer é o que fazemos como observadores. Nesta perspectiva, não há uma verdade independente dos sujeitos e de suas explicações com base em suas experiências. Tanto a explicação para uma criança de que foi trazida pela cegonha e, posteriormente, a de que nasceu da barriga de sua mãe são válidas, pois decorrem da reformulação da experiência com elementos da experiência (MATURANA, 2001, p. 34, 35). Maturana destaca que "objetividade sem parênteses" e "objetividade com parênteses" não são as antinomias objetivo-subjetivo. “A objetividade entre parênteses não significa subjetividade, significa apenas ‘assumo que não posso fazer referência a entidades independentes de mim para construir meu explicar’” (MATURANA, 2001, p. 35).

Tais questões levantadas por Maturana ao abordar os dois caminhos da objetividade têm sérias consequências éticas nas relações entre os seres humanos. Tomar o caminho da "objetividade sem parênteses" implica que o observador tem acesso privilegiado à realidade, pois a validade de suas afirmações é independente dele. “Neste caminho explicativo, toda afirmação cognitiva é uma petição de obediência” (MATURANA, 2001, p. 36), pois a verdade está alhures, e, sendo conhecida pelo observador, se impõe sobre os outros, não cabendo nenhuma discussão. Já no caminho da "objetividade entre parênteses "se dá um processo distinto, pois sabemos que o outro está em um domínio da realidade diferente do nosso, mas igualmente válido. Podemos não nos agradar deste domínio, mas somos responsáveis por nossa negação. Não que tudo seja legítimo neste caminho, como bem o diz Maturana. São legítimos porque constituem-se da mesma forma como coerências operacionais do observador.

Mas eu, responsavelmente, posso dizer em meu âmbito vital “não quero este domínio de realidade”,e portanto, ajo, negando-o. Eu ajo negando-o responsavelemte e estou disposto a enfrentar as consequências disto, que é completamente distinto no

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caminho da “objetividade sem parênteses”. Ali sou sempre irresponsável. (MATURANA, 2001, p. 39).

Assumir, portanto, o “caminho objetivo entre parênteses” implica, como defende Maturana, respeito e não tolerância, pois esta se funda na negação do outro enquanto aquele nos coloca o fazer-se responsável pelas emoções frente ao outro sem que o neguemos.

As questões levantadas por Maturana no âmbito da Biologia do Conhecer têm sérias consequências nas relações humanas, em geral, e nas educacionais, em particular. Como se sabe, ainda prevalece no domínio das relações educacionais uma concepção mecânica de ensino-aprendizagem, na qual o professor é o transmissor do conhecimento, os conteúdos são meras representações de conhecimentos sobre a realidade externa e o aluno o receptáculo

http://www.freeimages.com/photo/my-footprint-1630260

de tais conhecimentos. Este modelo, como já vimos, é chamado por Paulo Freire de educação “bancária”. Tal concepção é claramente pautada no domínio das explicações do caminho “objetivo sem parênteses”, por pretender ensinar um conjunto de conteúdos independente das experiências cotidianas do aprendente e do professor, o que leva a uma educação extremamente coercitiva e produtora de sofrimento. Muitas das reflexões de Maturana têm sido produzidas sobre como as questões educacionais ainda não compreenderam como se dá a deriva natural – ou seja os processos de acoplamento estrutural com suas respectivas mudanças estruturais – dos estudantes. Isto está refletido em sua Plegaria del estudiante (Prece do estudante), presente no livro El sentido del humano (1996, p. 93-96), que reproduzimos na íntegra:

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PLEGARIA DEL ESTUDIANTE

¿Por qué me impones lo que sabes si quiero yo aprender lo desconocido y ser fuente en mi propio descubrimiento? El mundo de la verdad es mi tragedia; tu sabiduría, mi negación; tu conquista, mi ausencia; tu hacer, mi destrucción. No es la bomba lo que me mata; el fusil hiere, mutila y acaba, el gas envenena, aniquila y suprime, pero la verdad seca mi boca, apaga mi pensamiento y niega mi poesía, me hace antes de ser. No quiero la verdad, dame lo desconocido. Déjame negarte al hacer mi mundo para que yo pueda también ser mi propia negación y a mi vez ser negado.

¿Cómo estar en lo nuevo sin abandonar lo presente? No me instruyas, déjame vivir viviendo junto a mí; que mi riqueza comience donde tu acabas, que tu muerte sea mi nacimiento. Me dices que lo desconocido no se puede enseñar, yo digo que tampoco se enseña lo conocido y que cada hombre hace el mundo al vivir. Dime, que yo tejeré sobre tu historia; muéstrate para que yo pueda pararme sobre tus hombros. Revélate para que desde ti pueda yo ser y hacer lo distinto; yo tomaré de ti lo superfluo, no la verdad que mata y congela; yo tomaré tu ignorancia para construir mi inocencia. ¿No te das cuenta de que has querido combatir la guerra con la paz, y la paz es la afirmación de la guerra? ¿No te das cuenta

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de que has querido combatir la injusticia con la justicia, y que la justicia es la afirmación de la miseria? ¿No te das cuenta de que has querido combatir la ignorancia con la instrucción y que la instrucción es la afirmación de la ignorancia porque destruye la creatividad? Tu conocimiento nos muestra el mundo o lo niega, porque es la historia de tus actos, o lo negará porque despertando tu imaginación te llevará a cambiarlo Deja que lo nuevo sea lo nuevo y que el tránsito sea la negación del presente; deja que lo conocido sea mi liberación, no mi esclavitud. No es poco lo que te pido. Tú has creído que todo ser humano puede pensar, que todo ser humano puede sentir.

Tú has creído que todo ser humano puede amar y crear. Comprendo pues tu temor cuando te pido que vivas de acuerdo a tu sabiduría y que tú respetes tus creencias; ya no podrás predecir la conducta de tu vecino, tendrás que mirarlo; ya no sabrás lo que él te dice escuchándote, tendrás que dejar poesía en sus palabras. El error será nuevamente posible en el despertar de la creatividad, y el otro tendrá presencia. Tú, yo y él tendremos que hacer el mundo. La verdad perderá su imperio para que el ser humano tenga el suyo. No me instruyas, vive junto a mí; tu fracaso es que yo sea idéntico a ti.”

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Tais considerações se juntam às questões levantadas por Paulo Freire para uma educação impositiva e negadora da constituição do sujeito. Em ambos os autores entrevemos que nenhum currículo a priori, nenhum ambiente educacional que não seja o do respeito mútuo podem propiciar uma educação para a liberdade (Freire) ou para a criatividade (Maturana).

EDUCAÇÃO E AMOR

Outro ponto que liga as considerações de Paulo Freire às de Humberto Maturana no que concerne ao papel da educação é o amor. Paulo Freire desde seus trabalhos iniciais com a alfabetização de adultos utilizando-se do chamado método Paulo Freire, em 1963, sempre destacou que o aprender significativo depende fundamentalmente da experiência viva do aprendente e da amorosidade que envolve o ato educativo.

O ato educativo como um ato de amor é um fio condutor que percorre toda a obra de Freire, desde seus primeiros escritos até o último. O amor relacionado ao ato educativo é apenas um aspecto da fé na humanidade, a fé nos homens e na sua libertação. Em A pedagogia do oprimido, por exemplo, Freire diz que “O opressor só se solidariza com os oprimidos quando seu gesto deixa de ser um gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles” (FREIRE, 1983, p. 38). Ou seja, a libertação pelo amor suprime a opressão em que ambas as classes sociais estão imersas e instaura uma sociedade solidária. Mas, pelas condições ideológicas em que a opressão acontece, Freire vê que o ato de amor da libertação se dá na direção oprimido-opressor, visto que a opressão é marcada pelo ato de desamor:

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que

eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida. (FREIRE, 1983, p. 32.)

Em tal contexto, qual o papel da educação na libertação dos homens? Para Freire, fundamentalmente é a educação dialógica o fundamento do ato educacional porque, antes de mais nada, está esteada no amor ao mundo e aos homens e não pode haver amor onde há opressão:

Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda.

Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não. Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o amor é compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em omprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico. (FREIRE, 1983, p. 93, 94) (grifo do autor)

Para Freire, o compromisso do educador é com a libertação, com o diálogo e este necessariamente se funda no amor, na humildade e na fé dos homens, constituindo-se numa relação horizontal, em que há uma

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confiança mútua. Esta confiança, atesta Freire, inexiste na educação bancária, pois esta é antidialógica. Qualquer educação em que não há coerência entre o dizer e o fazer, em que o dizer é descaracterizado ou, ainda, contraditório com que o se verifica nas vidas dos homens não pode ser autêntica e, por isso mesmo, é desamorosa e não é dialógica.

Em A pedagogia da autonomia, sua última obra publicada em vida, o eminente educador, ao tematizar práticas educativas centradas na construção da autonomia do educando, enfatiza mais uma vez o caráter da amorosidade do ato educativo:

Como ser educador, se não desenvolvo em mim a indispensável amorosidade aos educandos com quem me comprometo e ao próprio processo formador de que sou parte? Não posso desgostar do que faço sob pena de não fazê-lo bem. (FREIRE, 1998, p. 75 ).

Em franca oposição aos ditames neoliberais que marcam a educação brasileira ainda hoje, Freire defende nesta obra uma educação integral do ser humano, em que o educando possa realmente construir sua autonomia pela via do respeito às diferenças, ao seu universo cultural, e fundamentalmente pela necessidade de se sonhar, de se ter utopia para descontruir os fatalismos neoliberais que impõem para a educação discursos verticais carregados de verdades autoritárias e controladoras. Diante deste quadro, que práticas pedagógicas podem ser pensadas para que possamos superar o imobilismo e o fatalismo tão marcantes deste momento histórico em que vivemos? E, novamente, retomando suas ideias de educação dialógica, fundada no amor, na humildade e na esperança, Freire nos diz:

É preciso que saibamos que, sem certas qualidades ou virtudes como amorosidade, respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela alegria,

gosto pela vida, abertura ao novo, disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à justiça, não é possível a prática pedagógico-progressista, que não se faz apenas com ciência e técnica. (FREIRE, 1998, p. 136)

Para Maturana, também o amor é o fundamento do humano. Porém, seu ponto de partida é, como já vimos anteriormente, o fenômeno biológico. É em sua Biologia do Amor que o tema toma os contornos necessários para entendermos a relação entre amor e educação.

Como já vimos, do ponto de vista biológico o observador não tem acesso a verdades transcendentes (o caminho da objetividade sem parênteses), pois tudo o que faz está relacionado com o domínio de relações baseadas em suas próprias experiências, que, por sua vez, estão em congruência com outros observadores e o meio. A pergunta pelo observador, ressalta Maturana, nos leva à presença das emoções, pois “As emoções são apreciações do observador sobre a dinâmica corporal do outro que especifica um domínio de ação. Nessas circunstâncias, nada ocorre nos animais que não esteja fundado numa emoção” (MATURANA, 2001, p. 46). Assim, todas as ações humanas ocorrem num espaço de ação que estruturalmente se especifica como emoção. As relações humanas são de diferentes tipos dependendo das emoções que a fundamentam. Maturana é enfático em dizer que nem todas as relações humanas são relações sociais, pois o domínio das relações da objetividade sem parênteses é muito diferente do domínio da objetividade entre parênteses.

A emoção fundamental que constitui o social é o amor, pois, como nos explica Maturana,

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[...] o social é uma dinâmica de relações humanas que se funda na aceitação mútua. Se não há aceitação mútua e se não há aceitação do outro, e se há espaço de abertura para que o outro exista junto de si, não há fenômeno social. As relações de trabalho não são sociais. As relações de autoridade não são relações sociais. Os sistemas hierárquicos, como um exército, por exemplo, não são sistemas sociais: são uma maquinaria de um tipo no qual cada pessoa deve fazer algo, mas não é um sistema social. (MATURANA, 2001, p. 47)

Estas ideias têm consequência imediata para a reflexão ética, pois uma ética só se erige num espaço de preocupação com o outro. Ou seja, necessariamente tem que estar fundada num domínio de ações de aceitação do outro, de respeito ao outro ou, em outras palavras, num domínio emocional marcado pelo amor.

Dentro da perspectiva filosófica que se estende desde os filósofos gregos até nós, a discussão ética tem se dado dentro de uma perspectiva racional. Porém, a partir da Biologia do Amor, Maturana questiona o fundamento racional da ética ao dizer que

Nós, seres humanos, não somos animais racionais. Nós, seres humanos, somos animais que utilizam a razão a linguagem, para justificar nossas emoções, caprichos, desejos... e, nesse processo, nós os desvalorizamos porque não percebemos que nossas emoções especificam o domínio de racionalidade que usamos em nossa justificações. (MATURANA, 1997, P. 186).

O corolário dos apontamentos de Maturana tem consequências imediatas na educação, pois se não é a razão que justifica nossa preocupação pelo outro, mas o domínio emocional do amor, muito do que se tem feito na área educacional é contrário à nossa constituição social. A educação “bancária”, tal como apontada por Freire, é uma dessas facetas da desumanização que a educação impõe sobre o sujeito. Também poderíamos apontar, nesta mesma direção, currículos impostos racionalmente de fora para dentro, avaliações externas e internas baseadas em princípios lógico-dedutivos desrespeitadores da dinâmica de cada indivíduo, relações de autoritarismo e de controle na sala de aula, entre outros. Muitas pedagogias em voga nas escolas brasileiras, como a das competências e habilidades (Perrenoud), estão claramente pautadas num

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Ângulo 149 • Jan • Mar • 2017

domínio das relações da objetividade sem parênteses, ou seja, num domínio de relações em que o outro é desconsiderado, em que o observador é visto como um ente abstrato fora de domínio de relações sociais. Embora frequentemente ressalte em seus escritos e palestras que não seja educador e que suas ideias sobre a educação se baseiem em suas pesquisas sobre a biologia do conhecer e em sua experiência como professor de biologia na Universidade do Chile, é evidente que qualquer educador humanista que tenha como mirada a formação integral do ser humano em convivência harmônica com o outro e com seu meio deva aceitar que inevitavelmente as ideias de Maturana são essencialmente educativas, como podemos notar nesta passagem:

Pienso que es posible educar responsablemente sólo si uno se hace cargo de la participación que uno tiene en el mundo que trae a la mano en la convivencia con el otro, ya sea como educador uno y el otro como educando, o viceversa, sin hipocresía, sin fingír que se está con el otro en la aceptación, cuando no se está. La educación responsable requiere reconocer que el amor es su fundamento. (MATURANA, 1996, p. 239)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É sintomático que o livro Pedagogia do oprimido tenha sido escrito no Chile, pátria de Maturana, em 1968, durante o exílio de Paulo Freire após a queda de João Goulart, e que muitas das reflexões de Maturana, especialmente sobre o papel da linguagem na perspectiva da Biologia da Cognição, tenham sido realizadas neste mesmo ano, dando ensejo ao desenvolvimento dois anos mais tarde (1970) do conceito de autopoiese, desenvolvido com seu discípulo Franscisco Varela. Também é sintomático que a temática fundamental da obra de Paulo Freire seja a libertação dos oprimidos e que a de Maturana, a partir da Biologia do Amor, seja o convívio com o outro numa sociedade responsável

e respeitosa avessa a todas as formas de dominação e competição que afastem o ser humano da congruência, no seu viver, com o outro e com o meio. Maturana nos diz que:

[...] educar é uma coisa muito simples: é configurar um espaço de convivência desejável para o outro, de forma que eu e o outro possamos fluir no conviver de uma maneira particular. (...) Quando se consegue que o outro, a criança, o jovem, aceitem o convite à convivência, educar não custa nenhum esforço para se viver” (MATURANA, 1993, p. 32).

Estas palavras, em essência, são a tradução da dialogicidade em Paulo Freire, que, por sua vez, é a essência da educação como prática libertadora.

REFERÊNCIAS

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

______. Pedagogia da autonomia : saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra , 1998.

______. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1985.

MAGRO, C., GRACIANO, M. VAZ, N. (Orgs.). Humberto Maturana: a ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997.

MATUR ANA, H. Biologia do conhecer e epistemologia. In: MAGRO, C., PAREDES, V. (Orgs.). Humberto Maturana: cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

MATURANA, H. El sentido de lo humano. Santiago: Dolmen Ediciones, 1996.

______. Uma nova concepção de aprendizagem. In Revista Dois pontos, Belo Horizonte, Out/Inv. 93.

M AT UR A NA , H . , VA R EL A , F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas, Editorial Psy, 1995.