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Paulo Celso de Oliveira Gestão territorial indígena DISSERTAÇÃO DE MESTRADO PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO EM DIREITO Mestrado em Direito Econômico e Social Curitiba, agosto de 2006 CCJS - CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

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Paulo Celso de Oliveira

Gestão territorial indígena

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

PÓS-GRADUAÇÃO , PESQUISA E EXTENSÃO EM DIREITO

Mestrado em Direito Econômico e Social

Curitiba, agosto de 2006 CCJS - CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANA

Paulo Celso de Oliveira

Gestão territorial indígena

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão em Direito como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Econômico e Social.

Orientador: Prof. Doutor Carlos Frederico Marés de Souza Filho

Curitiba Agosto de 2006

PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANA

Paulo Celso de Oliveira

Gestão territorial indígena

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito da PUCPR. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Doutor Carlos Frederico Marés de Souza Filho

Orientador Programa de Pós-graduação em

Direito Econômico e Social - PUCPR

Prof. Doutor Fernando Antônio de Carvalho Dantas Universidade Estadual do Amazonas

Profª. Doutora Claudia Maria Barbosa Programa de Pós-graduação em

Direito Econômico e Social - PUCPR

Prof. Doutor Francisco Carlos Duarte Programa de Pós-graduação em

Direito Econômico e Social - PUCPR

Curitiba, 30 agosto de 2006

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Paulo Celso de Oliveira

Graduou-se em Direito pela Universidade Católica de Goiás - UCG em 1994. Foi bolsista do Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford – IFP. Atuou na qualidade de advogado de organizações indígenas e ONGs em questões voltadas à proteção dos direitos e interesses dos povos indígenas. Atualmente trabalha como consultor jurídico na área de direitos indígenas.

Ficha Catalográfica

Oliveira, Paulo Celso de O48g Gestão territorial indígena : estudo comparado da legislação indigenista do 2006 Brasil, Colômbia, Equador e Panamá / Paulo Celso de Oliveira ; orientador, Carlos Frederico Marés de Souza Filho. – 2006. 132 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006 Inclui bibliografia 1. Índios – Posse da terra – Brasil. 2. Índios – Posse da terra – Colômbia. 3. Índios – Posse da terra – Equador. 4. Índios – Posse da terra – Panamá. 5. Propriedade territorial – Legislação. I. Souza Filho, Carlos Frederico Marés de. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. CDD 20. ed. – 306.08981 Dóris 4. ed. – 342.1235

Aos meus pais Tereza Freire de Oliveira e Cícero Manuel de Oliveira, em nome de toda a minha família.

Agradecimentos

Ao meu Professor orientador, Dr. Carlos Frederico Marés de Souza Filho, por sua

atenção e apoio em minha trajetória para compreender a situação dos povos

indígenas em face do poder estatal.

À Janaina Paim pela companhia e incentivo.

À família Paim: Júlio, Janete, Juliana, e Ricardo pelo incentivo mesmo distante.

Ao Programa Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford – IFP,

que apoiou integralmente os meus estudos e permanência em Curitiba.

Ao Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social da PUCPR, pelo

seu espaço para a realização de pesquisas de interesse dos povos indígenas.

Agradecimentos que estendo à coordenação e ao corpo docente do Mestrado:

Profª Cláudia Maria Barbosa, Prof. Vladimir Passos de Freitas, Prof. Roberto

Ferraz, Profª Maria Olga Mattar, Profª Flávia Piovesan e Profª Jussara Meirelles.

Os meus agradecimentos também para Eva de Fátima Curello e Isabel Cristina

Bueno pelo apoio permanente da secretaria.

Aos meus colegas: Letícia Borges, Karine Finn, Gilson Martins, Joslay Silva,

Andréia Cunha, Dayana Trybus, Gustavo Sella, Clarissa Wandsheer, Karin

Kässmayer, Patrícia Piazzarolli e Christiano Souza, pelo privilégio da amizade e

de compartilhar as aulas .

Ao Professor Nilson, por seu apoio na revisão dos meus trabalhos acadêmicos.

À Coiab, em homenagem aos meus amigos indígenas.

Resumo

Oliveira, Paulo Celso de; Souza Filho, Carlos Frederico Marés de. Gestão territorial indígena . Curitiba, 2006. 88 p. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em Direito Econômico e Social, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

Gestão Territorial Indígena. O presente estudo trata da concepção que os

povos indígenas têm sobre seus territórios, baseada em sua cosmovisão. A

condição de povos implica também na necessidade de reconhecer sua

autodeterminação, o autogoverno e a autonomia, e de garantir o desenvolvimento

de sua identidade política, econômica, social e cultural bem como a proteção das

suas riquezas naturais. Estes direitos, necessariamente coletivos, foram

historicamente negados pelos Estados, protegiam a propriedade privada,

necessariamente individual, como absoluta, mantendo os direitos coletivos fora da

proteção de seus ordenamentos jurídicos. A partir da década de 1980 as

constituições dos Estados latino-americanos reconheceram a organização social e

os direitos territoriais indígenas, configurando-se o pluralismo jurídico. No

entanto, as referidas constituições não definiram a forma de gestão destes

territórios, o que passou a constituir um tema novo para o Direito. Alguns países

do continente, como o Brasil, a Colômbia, o Equador e o Panamá, vêm tratando

da gestão desses espaços territoriais, legislando ou criando institutos sobre a

questão. Além de uma breve análise destas legislações, o presente trabalho aborda

os Projetos de Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas em

tramitação na Organização das Nações Unidas - ONU e o Projeto de Declaração

Americana em andamento na Organização dos Estados Americanos – OEA, que

estão diretamente relacionados aos temas do presente estudo.

Palavras-chave

Territórios indígenas, gestão territorial; autodeterminação; autogoverno;

autonomia; jurisdição indígena.

Abstract

Oliveira, Paulo Celso de; Souza Filho, Carlos Frederico Marés de (Advisor). Indigenous territorial administration. Curitiba, 2006. 88 p. MSc. Dissertation – Programa de Pós-graduação em Direito Econômico e Social, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

Indigenous territorial administration. The present study treats of the

conception that the indigenous people have about their territories, based on their

weltanschauung. The condition of people also implicates in the need of

recognizing their self-determination, the self-government and the autonomy, and

of guaranteeing the development of their political, economical, social and cultural

identity as well as the protection of their natural wealth. These rights, necessarily

collective, were historically denied by States, that protected the deprived property,

necessarily individual, as absolute, maintaining the collective rights out of the

protection of their juridical orders. Since the 80's, the Constitutions of Latin-

American States recognized the indigenous social organization and territorial

rights, being configured the juridical pluralism. However, these Constitutions

didn't define the form of administration of these territories, what started to

constitute a new theme for the Law. Some countries of the continent, like Brazil,

Colombia, Ecuador and Panama, are treating of the administration of those

territorial spaces, legislating or creating institutes about the subject. Besides a

short analysis of these legislations, this paper approaches the Projects of Universal

Declaration of the Rights of the Indigenous People in transaction in the United

Nations - UN and the Project of American Declaration in process in Organization

of American States - OAS, that are directly related to the themes of the present

study.

Keywords

Indigenous territories, territorial administration; self-determination; self-

government; autonomy; indigenous jurisdiction.

Sumário

1. Introdução 10 2. Concepção territorial dos povos indígenas 12 2.1. Povos indígenas e meio ambiente 27 2.2. Organização social e direito indígena 38 3. Concepção dos Estados sobre os territórios indígenas 42 3.1. Como a Espanha tratou as terras indígenas - O direito indiano 51 3.2. Como Portugal tratou as terras indígenas – As sesmarias 52 3.3. Legislação indigenista do Brasil 55 3.4. Legislação indigenista da Colômbia 56 3.5. Legislação indigenista do Equador 60 3.6. Legislação indigenista do Panamá 62 4. Autodeterminação, autogoverno e autonomia dos povos indígenas

63

5. Conclusão 81 6. Referências 83

Lista de Abreviaturas e Siglas

BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

BIRD - Banco Mundial

CDB - Convenção sobre Diversidade Biológica

CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CHESF - Companhia Hidrelétrica do São Francisco

COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia

Brasileira

FUNAI - Fundação Nacional do Índio

GEF - Fundo Global para o Meio Ambiente

ISA - Instituto Socioambiental

MMA - Ministério do Meio Ambiente

MJ - Ministério da Justiça

OEA - Organização dos Estados Americanos

OIT - Organização dos Estados Americanos

ONG - Organização Não-Governamental

ONU - Organização das Nações Unidas

TNC - The Nature Consevancy

T. I. - Terra Indígena

10

1

Introdução

Os povos indígenas formam uma população de cerca de 350 milhões de

pessoas em toda a superfície da terra. Nos continentes americanos eles totalizam

aproximadamente 50 milhões de pessoas1. Portadores de identidades culturais

diferenciadas, ocupam seus territórios de acordo com os saberes que lhes foram

transmitidos por seus antepassados. Em um mundo no qual cada vez mais

aumentam as pressões sobre as riquezas naturais, lutam para manter a integridade

de seus territórios e a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras

gerações. Eles sabem que a continuidade do seu modo de vida está relacionada à

preservação dos ecossistemas que habitam.

A gestão dos territórios indígenas trata da administração dos espaços

geográficos por eles ocupados tradicionalmente, colocando em dois pólos

distintos, quando não contrários, os povos indígenas e os Estados. Isso implica

definir quem é a autoridade competente, os pressupostos normativos e a finalidade

da gestão.

Discute-se a respeito dos conceitos de população e povo indígena, de terra

e territórios, autodeterminação, autogoverno, autonomia e direitos

consuetudinários, os quais em síntese se referem à jurisdição indígena.

Trata-se de um estudo de natureza jurídica considerando que as

constituições latino-americanas passaram a reconhecer expressamente os direitos

territoriais dos povos indígenas bem como seus usos, costumes e organizações

sociais a partir da década de 80. Esse reconhecimento rompeu com a legislação

colonialista.

1 Disponível em: <http://www.institutowara.org.br>.

11

Como já foi mencionado, a questão não é apenas de reconhecimento dos

direitos territoriais, mas sim, se os índios têm direito a administrar seus direitos.

Um dos aspectos dessa administração é a gestão territorial, objeto dessa pesquisa.

O Brasil, a Colômbia, o Equador e o Panamá vêm legislando sobre a

gestão desses espaços, por isso será feita a análise de suas legislações nesse

campo. A escolha de tais países deu-se pelo fato de que embora os povos

indígenas apresentem situação cultural bastante diversificada, o modo como foram

tratados pela colonização espanhola e portuguesa e pelos Estados após a sua

independência, foi bastante semelhante.

No primeiro capítulo será apresentada a concepção territorial dos povos

indígenas, que envolve questões relacionadas ao meio ambiente, à organização

social e ao direito indígena. Nessa parte será demonstrada a natureza diferenciada

e coletiva das terras indígenas.

O segundo capítulo aborda a concepção dos Estados sobre as terras

indígenas. Serão apresentados comentários sobre a legislação indigenista dos

países acima mencionados, sempre voltados para a gestão territorial e institutos

correlatos.

O terceiro capítulo se refere aos temas de autodeterminação, autogoverno e

autonomia, que fazem parte do Projeto de Declaração Universal dos Direitos dos

Povos Indígenas, em tramitação na ONU e o Projeto de Declaração Americana

dos Direitos dos Povos Indígenas; em andamento na OEA.

Os fundamentos teóricos serão apresentados com ênfase nas abordagens a

partir dos seguintes autores: Norberto Bobbio, James Anaya, e Carlos Frederico

Marés de Souza Filho.

12

2

Concepção territorial dos povos indígenas

Para entender a concepção territorial dos povos indígenas, é necessário se

desprender dos conceitos da sociedade ocidental sobre a terra, especialmente da

propriedade privada e buscar essa compreensão a partir da cultura dos povos

indígenas, ou seja, a partir da visão dos índios. Uma concepção que tenha a

propriedade privada como parâmetro distorce o significado dos territórios

indígenas, que são por excelência direitos coletivos.2

Nesse sentido, Fernando Antônio de Carvalho Dantas3 reitera argumentos

de Carlos Frederico Marés de Souza Filho sobre os conceitos de terra e território

enquanto categorias jurídicas antagônicas.

A primeira questão que surge quando se fala dos povos indígenas e seus direitos é saber o que são e em que consistem os espaços de domínio indígenas. A resposta é complexa e, sem embargo, envolve as noções de < território> e de <terra>, cuja conceituação remete a categorias jurídicas antagônicas. Segundo Carlos Frederico Marés de Souza Filho, <terra> se refere a <propriedade> individual, portanto é um conceito eminentemente civilista, privado; enquanto a < território >, faz menção à jurisdição de um espaço geográfico, evidenciando seu caráter coletivo, público. Sobre o conceito jurídico de território se enfatiza a clássica postura que o situa como um dos elementos que formam o estado, junto com o povo e o governo. Desta forma o território define os limites físicos para o poder do estado, o que quer dizer jurisdição e soberania. A terra é para os povos indígenas um <espaço de vida e liberdade>. O espaço entendido como lugar de realização da cultura. As sociedades humanas, e, neste caso, as sociedades indígenas, constroem seus conhecimentos a partir de cosmologias próprias, elaboradas coletivamente com as experiências sociais, o

2 Não se trata de dizer que todos os bens dos indígenas são de natureza coletiva. Os bens de uso individual, por exemplo os instrumentos de caça, pertencem ao indivíduo. Os animais apanhados em caça e as áreas de cultivo, quando resultados exclusivamente do esforço do individuo pode ser de propriedade individual ou de sua família. Mas não há conflitos entre a propriedade individual e a coletividade pois aqui não se trata da utilização de um bem como forma de um poder a ser exercido pelo individuo contra os demais. A propriedade entre os povos indígenas não gera restrições sobre os bens ou relação de poder entre as pessoas, inclusive porque todos se encontram em situação de igualdade real. Ver MELLATI, 1989, p. 64. 3 DANTAS, p. 311.

13

que demonstra visões de mundo não compatível com o modelo individualista ocidental.

Portanto, para falar sobre as terras indígenas primeiramente faz necessário

considerar que se trata de um espaço geográfico de natureza coletiva, que como já

se afirmou, configura-se como território na visão indígena.

Os povos indígenas têm um modo próprio de explicar a origem do

universo e da humanidade que é transmitido de geração a geração por meio de

suas narrativas, mitologia, ritos e crenças. Essas manifestações culturais

constituem a cosmovisão indígena e fundamentam a organização social e a relação

com o mundo físico. Desse modo, é relevante considerar também que embora os

povos indígenas geralmente sejam tratados de forma homogênea, eles mantêm

suas diferenças culturais, o que os distingue uns dos outros. Isso implica dizer que

cada povo tem sua própria cultura e concepção territorial.

Todavia, sem prejuízo do acima exposto, o presente estudo não tem como

objetivo descrever nenhuma concepção territorial indígena específica. Serão

apresentados alguns exemplos apenas para demonstrar os eixos comuns ou

principais características que configuram esses territórios, como a sua natureza

coletiva, a interação sócio-cultural e ambiental, que constituem o território da

identidade étnica4.

Os povos indígenas atribuem nomes aos lugares, aos rios, às plantas e aos

animais. Eles conhecem os mais diversos ecossistemas, classificam os lugares

para fins de moradia, realização de atividades econômicas e práticas culturais,

bem como para a preservação do meio ambiente.

Assim, pode-se concluir que ao se referir aos territórios indígenas não se

está tratando de simples espaços geográficos. O território indígena é definido

culturalmente de acordo com a concepção de cada povo.

Na fase pré-colombiana, desenvolveram-se diversas sociedades indígenas

que deram origem aos Maias, Astecas e Incas. Essas sociedades se distinguiam

das demais por apresentarem o domínio da escrita, calendário próprio,

conhecimento da metalurgia, destinada à produção do ouro, prata, cobre e estanho.

As mencionadas sociedades dominavam técnicas de irrigação e drenagem; sua

agricultura era bastante desenvolvida, produzindo batata, milho, hortaliças e

4 RIBEIRO, 1991b, p. 163.

14

flores, entre outros produtos agrícolas. Tais sociedades possuíam um incipiente

sistema de arrecadação de tributos e mantinham em sua estratificação social uma

classe de dirigentes e um exército, sendo desta forma classificadas como

sociedades tributárias.5

Os Maias e os Astecas habitavam a Mesoamérica, região que atualmente

compreende o México e a América Central. Os Incas habitavam a região Andina,

que corresponde à região que hoje em dia recebe a mesma denominação.

Os Maias, os Incas e os Astecas desenvolveram um sistema de

territoriedade semelhante ao do Império Romano, estendendo seu domínio sobre

outros povos na antiguidade. Desde o Século XII, as sociedades que deram origem

àqueles povos Ameríndios construíram grandes cidades, com templos, praças e

áreas para a realização de feiras. Estima-se que na época da conquista a capital

asteca de Tenochtitlán tinha uma população entre 150 e 300 mil habitantes. No

domínio Inca, a capital Cuzco tinha uma população superior a 100 mil pessoas.6 A

colonização espanhola massacrou a população indígena, destruiu suas edificações

e a escrita na busca do ouro. As construções que sobraram podem ser vistas, por

exemplo, em Machu-Pichu, Cuzco, e Oaxaca. Algumas de suas peças

confeccionadas em ouro encontram-se protegidas em museus e servem como

testemunho do conhecimento que detinham sobre a metalurgia.

Considerando que a escrita não faz parte da tradição dos povos indígenas,

seus conceitos sobre território e gestão territorial não se encontram redigidos e

formatados sistematicamente em documentos. Mas, nem por isso torna-se menos

interessante. Ao contrário, talvez seja pela tradição da oralidade que foi possível

manter a memória viva. A propósito, a escrita é conservadora e não transmissora

de saberes.7

5 Ver LÉON-POTILLA, p. 25 passim. Ver também MURRA, p. 63 passim. 6 MORSE, p. 57. 7 Claude Levi-Strauss considera que a escrita contribuiu para o desenvolvimento das ciências no século XIX e XX. Mas admite a hipótese de que “a função primária da comunicação escrita foi facilitar a servidão. O emprego da escrita com fins desinteressados, visando extrair-lhes satisfações intelectuais e estéticas é um resultado secundário (...).” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 283) . Os povos indígenas vêm buscando dominar o uso da escrita e de outros códigos da sociedade branca para defender seus interesses. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – Coiab defende uma concepção de educação intercultural, que permita aos povos indígenas participarem e se beneficiarem do saber das sociedades não-indígenas, e que valorize os seus conhecimentos tradicionais. Não se trata da sobreposição de um saber sobre o outro, como ainda se verifica nas tentativas de colocar as ciências como a fonte máxima dos conhecimentos. A interculturalidade busca a complementação dos saberes.

15

Conforme mencionado, são os mitos, os ritos e crenças que fundamentam

a concepção territorial dos povos indígenas. Nesse sentido, Berta Ribeiro

esclarece que:8

A qualidade mais alta do mito é sua função fidejussória, que afiança a ordem cósmica e a ordem social (...) A mitologia tribal discorre sobre a origem do grupo étnico e de toda a natureza. Nessa capacidade, serve aos fins emancipadores de uma etnia, assumindo o caráter de pensamento especulativo que complementa o saber empírico (...) A narrativa mítica é construída por cortes, rupturas e descontinuidades. Seus conteúdos históricos são encobertos por um manto de explanações alegóricas. Tem também um conteúdo programático não expressamente perceptivo. E finalmente, uma norma de ação, um guia de procedimentos éticos, que penetra na consciência como o discurso dos heróis civilizadores. Sua função é tornar eficaz o controle do desvio, reprimindo-o em nome da ‘verdade mítica’, e responder a inquietações metafísicas, isto é, como surgiu o universo, como surgiu a humanidade. A narração mítica é construída e obedece também a um pendor pela fabulação comum a todos os grupos humanos. Mas é preciso diferenciar entre mito, lenda, conto e fábula, todos eles gêneros da literatura oral. O que distingue o mito é que ele narra episódios transcendentais, ocorridos numa era que anula o tempo, é a–histórica, sem periodizações e, portanto, esses episódios se inscrevem em um tempo cíclico, que sempre retorna e é reencenado nos ritos. Por tudo isso, as explanações do mito são impregnadas de fé e emoção. O mito é, com freqüência, encenado teatralmente nos rituais. Nessas oportunidades, para se tornarem mais atraentes e transmitirem mensagem inteligível, são estetizados com canto, danças, pintura corporal e objetos decorados. O canto é acompanhado de gesticulações, imitações de vozes de bichos, entonações dramáticas ou cômicas, que possam tornar a performance dos atores mais comovente e verossímil (...) Protagonista do rito ou ouvindo do mito, cada participante se sente herdeiro de uma tradição que vem do passado longínquo: a dos ancestrais que criaram o mundo e a humanidade, dotando-a dos conhecimentos para torná-lo habitável. Preencher essas funções sociais não apenas contribui para perpetuação do corpus mítico como do grupo humano que o criou. Esta é basicamente a característica dos mitos cosmogônicos.

Clarissa Bueno Wandscheer9, ao tratar das explicações mitológicas dos

povos indígenas sobre o universo, faz os seguintes relatos:

os integrantes da etnia tuhe, da Colômbia, possuem duas versões. Para uma delas, o mundo está formado por oito camadas, e para outra, por doze. Para os embera, também da Colômbia, há três mundos, mesmo que em alguns lugares se encontre a citação de nove; o mundo de cima, onde habita dachizeze, (o criador), que está em permanente contato com os embera: os espíritos dos mortos e os seres primordiais; o mundo de baixo, onde estão os jais, as wuandras, os chibari, os chambera, os seres com aparência humana, que não morrem nem envelhecem; e o mundo humano (o do centro), onde estão os animais de caça e seres com

8 RIBEIRO, 1991b, p. 28 et. seq. 9 WANDSCHEER, 2004, p. 102.

16

aparência animal e humana. Estes três mundos se comunicam por lugares e objetos específicos, situados no mundo dos humanos para a purificação ou processo de limpeza das pessoas, cova/gruta, cabeceira e cursos de rios etc.

Estas narrativas míticas relacionam o mundo metafísico com o mundo

físico e humano. A idéia de territorialidade faz parte da relação entre esses

mundos.

A história de contato de cada povo interfere na concepção territorial e na

definição dos limites. Muitos povos foram confinados em áreas que estão muito

aquém de ser o território tradicional. Ao longo da colonização, as terras foram

reduzidas ou ocupadas por empreendimentos econômicos e cidades, desfigurando

irreversivelmente os territórios indígenas. Porém, isso não significa que os povos

indígenas pretendam demarcar para si todo o território nacional, como alegam

seus opositores. Não é essa a reivindicação. O que se pleiteia é que sejam

reconhecidos os direitos condizentes com a ocupação territorial tradicional dos

povos que conseguiram sobreviver.

Os Xavantes que se denominam auwe upitabi, povo autêntico, é um

exemplo de resistência às investidas do colonizador. Eles viveram no Estado da

Bahia e tendo sido perseguidos pelo avanço das frentes colonizadoras seguiram

por Minas Gerais, Goiás, e finalmente se fixaram na região da Serra do Roncador

no Mato Grosso. Por mais de dois séculos passaram se deslocando de uma região

para outra. Enfrentaram os colonizadores, passaram pela experiência de viver nas

missões, retornaram ao seu modo de vida longe dos brancos e partiram para o

interior do país, onde guerrearam com outros povos. Partes dos seus integrantes

separaram-se do grupo e deram origem aos Xakriabás, que vivem em Minas

Gerais e aos Xerentes no Tocantins. Cercados por fazendas, por volta de 1960,

aceitaram os contatos com o Serviço de Proteção aos Índios - SPI. Eles

acreditavam que podiam amansar os brancos e ter uma convivência pacífica.

Ainda com a perspectiva de ter uma convivência pacífica, nos anos 80

encaminharam alguns jovens para estudar em São Paulo com o objetivo de educá-

los para negociar com os brancos. Atualmente os Xavantes são importante

referência para a preservação do cerrado. Eles participam de campanhas em

defesa do meio ambiente, desenvolvem projetos e atividades pela preservação do

bioma e de sua cultura.

17

David Maybury-Lews10 utiliza o termo habitat para descrever o território

Xavante e faz o seguinte comentário:

Os Xavante gostam do cerrado por sua amplidão, por ser aberto em comparação à floresta tropical, encontrada em todo o seu território nas matas-galerias que se formam ao longo de todos os cursos d’água. Até mesmo os menores riachos correm num túnel formado por mata densa. Os Xavante apreciam as matas ciliares porque nelas sempre encontram água e muita abundancia de raízes e frutas, que são a base de sua alimentação. As palmeiras de Buriti (Mauritia sp.), cujas folhas fornecem a fibra para seus ornamentos cerimoniais, são freqüentemente encontradas nas matas-galerias (embora não apenas aí), bem como as árvores cuja madeira é utilizada na manufatura de vários artefatos. É aí, também, que se encontra o melhor solo para o cultivo de suas culturas escassas. Além disso, estes lugares são geralmente bons para caçar, pois os animais sentem-se atraídos pela sombra fresca e úmida destas matas.

A compreensão do território como um habitat justifica-se pelo modo de

vida desenvolvido pelos povos indígenas em sua interação com o meio ambiente.

Hoje, já se sabe que os povos indígenas contribuem para a proteção do

ecossistema que habitam. Seus conhecimentos tradicionais permitem o uso

sustentável do meio ambiente, garantindo sua continuidade física e cultural. Por

essa razão, a maioria dos povos indígenas reivindica a demarcação de suas terras

para viverem de acordo com suas culturas e sem a interferência de terceiros.

Em outro extremo do país, Estado do Amazonas, região do Alto Solimões,

onde se forma a fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru, vivem os Ticuna.

Com população acima de 32 mil pessoas no território brasileiro, é o segundo povo

indígena11 mais populoso no Brasil. Eles explicam que o termo Ticuna não é uma

denominação própria; significa “nariz preto”12 e lhes foi atribuído por outros

povos vizinhos. Como autodenominação utilizam o termo Magϋta, “que designa

as primeiras pessoas pescadas por Yoi no Evare”.13. A narrativa dos Ticuna

apresenta diversos eventos com a participação de seus heróis ancestrais, os irmãos

Yoi e Ipi, que deram origem à terra, ao sol, ao céu, às águas, aos animais, às

plantas e às pessoas. “Ipi pescou muita gente (...) E aqueles que Yoi tinha pescado

eram os Ticuna mesmo. Eram o povo Magϋta.”14

10 MAYBURY-LEWS, 1984, p. 75 et seq. 11 Com cerca de 40 mil pessoas, os Guaranis formam a maior população indígena no Brasil. 12 Provavelmente em alusão à pintura com jenipapo que os Ticuna aplicam em suas faces. 13 OLIVEIRA, 1988, p. 23. 14 Trata-se de uma versão baseada na narrativa de João Laurentino, morador do igarapé São Gerônimo. Ibid., p. 90.

18

Consoante com esta narrativa, inicialmente os Ticuna formavam uma

única nação, vocábulo que utilizam como sinônimo de clã, por isso as pessoas

não podiam se casar. Ipi e Yoi pensaram uma solução e passaram a formar

diversas nações, tais como a da onça e saúba. Cada uma das nações passou a

habitar um território, e isso possibilitou a realização dos casamentos entre

pessoas de diferentes nações.15 A narrativa leva a compreender a configuração do

território com base nas relações sócio-cultuais, advindas da formação e

distribuição dos clãs.

As informações mais antigas sobre os Ticuna datam da década de 1640.

No transcorrer do século XVII ao século XX sofreram diversas formas de

violência e dominação no processo de avanço dos missionários, seringalistas e

militares sobre seus territórios.16. Como reflexo da invasão das terras e violência

que vinham sofrendo ao longo dos séculos, no ano de 1987 foram vítimas do

ataque de um grupo de brancos que invadiram a aldeia e atiraram nos indígenas

que se encontravam em uma reunião. Os indígenas foram assassinados com tiros

“a queima-roupa” e eram perseguidos quando tentavam escapar. No total foram

18 indígenas mortos nesse ataque que ficou conhecido como o massacre do

capacete.

Além dos invasores, a demarcação da terra foi paralisada em decorrência

da pressão dos militares por se tratar de uma terra situada na faixa da fronteira.

Se a compreensão de um território indígena no interior de um único

Estado já é um assunto complexo, é muito mais ainda quando se refere à

ocupação indígena nas áreas de fronteira. Por um lado, a doutrina de defesa do

território nacional abordou a questão da faixa de fronteira sob o prisma

exclusivamente militar, sem preocupação em proteger os direitos indígenas tanto

em relação ao processo de demarcação das terras indígenas ou quando da

instalação de quartéis no interior das comunidades indígenas. Por outro lado, não

foram os indígenas que inventaram os países e as fronteiras. A linha que os

separa de seus parentes foi criada pelo colonizador e confirmada pelos Estados.

Essa controvérsia os países não querem discutir, argumentam apenas que

as relações no âmbito nacional devem seguir a ordem interna e que as relações no

âmbito internacional devem acontecer com base nos princípios da soberania. Em

15 OLIVEIRA, 1988, p. 90. 16 LEITÃO, 2002, p. 38.

19

vez de apoiarem o fortalecimento das relações sócio-culturais entre os povos que

vivem nas fronteiras, o que poderia ser feito por acordos bilaterais ou

multilaterais, reforçam seus argumentos contrários ao reconhecimento dos

indígenas enquanto povos diferenciados e da demarcação de suas terras.

Os argumentos de que não se poderiam demarcar as terras indígenas

localizadas na faixa de fronteira, diversas vezes obstacularizou o andamento do

processo de demarcação das terras dos Ticuna e de outros povos que vivem

nessas áreas. Felizmente prevaleceu a interpretação de que as terras indígenas e a

faixa de fronteira são bens da União, protegidos pela Constituição Federal, e que

um direito não exclui o outro, harmonizando a demarcação das terras indígenas

com os preceitos de defesa do território nacional.

Caso se excluíssem da demarcação as terras indígenas situadas na faixa

de fronteira, implicaria desproteger um número significativo de povos pelo fato

de que praticamente em todos os Estados da Amazônia há a ocupação tradicional

dessas áreas pelos indígenas.17

A diversidade dos povos indígenas e a história de colonização das regiões

que habitam criam peculiaridades regionais específicas. Merece enfatizar o

processo de urbanização das comunidades indígenas da Região do Alto Rio

Negro, localizada na fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela. Faz parte

dessa região o município de São Gabriel da Cachoeira, que tem em sua área

urbana uma população de 10 mil pessoas, sendo que 90% de sua totalidade é

formada por indígenas.18. No município estão instalados a administração regional

da Funai, o Ibama e o Pelotão de Fronteira do Exército. É no município de São

Gabriel que se localiza o distrito de Iauareté, um dos maiores núcleos urbanos de

população indígena no Brasil, do qual se falará mais adiante.

As terras indígenas do Alto Rio Negro foram demarcadas por processos

distintos nos anos 1990 (T.I Alto Rio Negro, Médio Rio Negro I, Médio Rio

17O Instituto Socioambiental (http://www.socioambiental.org) informa que “dos 218 povos listados, 40 (18.5%) têm parte da sua população residindo em outro(s) país(es). Mesmo quando há informações demográficas a respeito, essas parcelas não foram consideradas nem na estimativa global para o Brasil (...).”Em 2002 aconteceram rodadas de reuniões entre os representantes indígenas, ONGs, militares e órgãos públicos competentes. Ao mesmo tempo o Serviço de Vigilância da Amazônia – SIVAM passou a atuar em conjunto com as comunidades indígenas e viabilizou a implantação de um sistema de telefonia para a comunicação direta das comunidades indígenas com o quartel com o objetivo de proteger as fronteiras do país 18 ANDRELLO & AZEVEDO, p. 2.

20

Negro II). Elas formam uma área contínua que totaliza cerca 10, 5 milhões de ha.

Essas terras são habitadas por 21 povos indígenas, representantes das famílias

lingüísticas Tukano Oriental (Kubeo, Desana, Tukano, Miriti-Tapuya, Arapaso,

Tuyuka, Makuna, Bará, Siriano, Karapanã, Wanano e Pira-tapuya), Arawak

(Tariano; Baniwa, Kuripako, Warekena e Baré) e Maku (Hupda, Yuhup, Nadeb e

Dow), distribuídos em cerca de 700 povoados, situados ao longo dos rios Negro,

Uaupés, Tiquié, Papuri, Içana, Aiari e Xié. A população indígena total é de

aproximadamente 30.000 pessoas, o que corresponde a aproximadamente 10% da

população indígena do país.

As atividades de sustentação econômica dos povos indígenas do Alto Rio

Negro são basicamente a pesca, a agricultura de subsistência e o comércio de

artesanatos (cestarias). Ao longo dos séculos, a população dessa região efetuou

movimentos migratórios sob influência de diversos fatores conforme expõem

Geraldo Andrello e Marta Azevedo19:

Entre esses fatores pode-se mencionar a escravização (tropas de resgates dos portugueses na primeira metade do século XVIII), os descimentos e aldeamentos (diretório pombalino da segunda metade do século XVIII) e a arregimentação forçada de mão-de-obra (comércio de produtos florestais e boom da borracha no século XIX e primeiras décadas do século XX), e, assim, guerras, fusões e fissões inter-grupos e fugas. Tais circunstâncias vieram a promover o desaparecimento de muitas etnias do baixo e médio rio Negro entre os séculos XVIII e XIX, e, ao longo das primeiras décadas do século XX, a transferência compulsória de muitos grupos e subgrupos dos rios Uaupés, Içana e Xié (que compõem a bacia dos formadores do rio Negro) para os seringais do baixo rio Negro. Este processo, que certamente afetou um contingente indígena significativo durante o auge do ciclo da borracha, não pode ser avaliado em termos quantitativos pela exigüidade de tais dados nas fontes disponíveis. A partir da implantação de missões religiosas pela área e o declínio da economia extrativista a partir dos anos 30, os grupos indígenas do alto rio Negro recuperaram parcialmente suas perdas demográficas e, em muitos casos, puderam se recompor socialmente. Esta longa história de contato levou a uma configuração sócio-espacial em que os membros de um mesmo grupo etno-lingüístico não ocupam mais um território definido, mas dispersam-se pelos principais rios da região, embora reconhecendo ainda um território como seu território ancestral.

Assim, verificam-se dois movimentos da população indígena no Alto Rio

Negro: um relativo à dispersão dos povos indígenas ao longo dos rios; outro de

concentração urbana na sede do município de São Gabriel e do distrito de

Iauareté.

19 ANDRELLO & AZEVEDO, p.4.

21

Segundo Geraldo Andrello e Marta Azevedo, a população indígena de

Iauareté era de 2.300 indígenas no ano de 2000. A formação de Iauareté foi

influenciada pela missão salesiana que construiu um internato para indígenas e um

hospital no local e estímulos dos padres para se transferirem para viver mais perto

de um novo centro de catequese. Entre os anos 30 e 80 do século passado,

aconteceu um processo contínuo de migração de indígenas em direção ao

povoado. No início dos anos 1980, Iauareté passou a ser considerado um Distrito

do Município de São Gabriel da Cachoeira. Há pelo menos uma década, os

políticos regionais cogitam sua transformação em município. Iauareté representa,

assim, um centro de referência para cerca de 80 comunidades20 dos povos

Tariano, Tukano, Desana, Pira-Tapuya, Arapasso, Wanano, Cubeo e Tuyuka, que

mantém o distrito como centro de referência administrativa, política e comercial.

Em Iauareté também foi construído o Pelotão de Fronteiras do Exército,

subordinado ao 5º BIS/CMA no final daquela década.21

Por volta do ano 2000, a Federação das Organizações Indígenas do Rio

Negro – FOIRN, instituição que congrega e representa os povos indígenas do Rio

Negro, considerando a pressão dos políticos de transformar Iauareté em um

município, e mesmo pelo número significativo de moradores, suas características

urbanas e a necessidade de adotar um modelo de administração que reconheça as

instituições indígenas e seja responsável pelos serviços públicos, passou a discutir

sobre a possibilidade de constituir o povoado em um município indígena. Primeiro

concluiu-se que a legislação brasileira não apresenta uma entidade jurídica dessa

natureza.

Também foi considerado que as normas administrativas e tributárias de um

município podem entrar em conflito com as normas costumeiras das

comunidades; por exemplo no caso convocar eleições para vereadores e prefeito e

criar tributos, o que poderia gerar confrontos com a forma costumeira de

nomeação e atuação das lideranças. Ressalte-se que embora São Gabriel da

Cachoeira tendo uma população indígena significativa, ainda não elegeu um

prefeito indígena. Desse modo, concluiu-se que a criação de um município em vez

20 Considera-se uma comunidade indígena um grupo local que faz parte de um povo. Um povo indígena pode ser formado por uma ou mais comunidades. Em alguns casos, as comunidades de diferentes povos habitam uma mesma região e interagem culturalmente, como acontece com as comunidades do Alto Rio Negro. 21 ANDRELLO & AZEVEDO, p.4.

22

de ser favorável ao fortalecimento dos povos indígenas poderia criar divisões e

prejudicar as relações sócio-culturais desenvolvidas durante várias décadas.

Contudo, a necessidade de ter uma administração local para este povoado

continua sem solução.

Nas regiões nordeste, sudeste e sul, onde teve o inicio da colonização do

país, as terras foram demarcadas em miniatura excluindo áreas importantes para a

identidade cultural dos povos indígenas. A T. I. Pankararu, situada nos municípios

de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá é um exemplo dessa situação.

As referências mais antigas sobre os Pankararus datam do inicio do século

XVIII e XIX, quando foram mencionados em relatórios de missionários

responsáveis por aldeamentos instalados nas ilhas do rio São Francisco.22

Por volta de 1802, eles e outros povos foram aldeiados em Brejo dos

Padres.23 Conforme José Maurício Andion Arruti24, em 1878 foi decretada a

extinção dos aldeamentos de Pernambuco, dentre eles o de Brejo dos Padres. As

terras dos Pankararu foram divididas em lotes individuais que foram distribuídos

entre algumas famílias indígenas, fazendeiros que anteriormente tinham conflitos

com os índios e ex-escravos.

Quando o momento da extinção do aldeamento chega, ele aparece para o grupo como mais uma, ainda que a mais violenta de todas, arbitrariedade dos grandes fazendeiros locais. A repartição do aldeamento em lotes particulares não é percebida pelo grupo da mesma forma que ela se apresenta em termos jurídicos e nos relatórios de presidentes de província. Para a população local, indígena ou não-indígena, ela não significou a extinção da aldeia, mas apenas a violenta expulsão de parte das famílias indígenas seguida da imposição de novos e desconfortáveis vizinhos. O que é descrito na documentação como a extinção da aldeia é registrado na memória tribal como a implantação das “linhas”, como chamam a demarcação dos lotes no leito do “Brejo”, distribuídas entre algumas famílias indígenas e outras de invasores, os “linheiros”. A aldeia, que para eles nunca deixou de existir, passa a conviver de forma mais intensiva com a “mistura”, como eles se referem a esta situação, enquanto uma parte das famílias expulsas fugiu para as serras que envolvem o “Brejo” e outra se dispersou por áreas mais distantes.

A extinção dos aldeamentos foi o golpe final para a liberação das terras

indígenas. Sabe-se pouco do que veio a ocorrer nas primeiras décadas seguintes,

mas sabe-se que foi um período de graves conflitos com os fazendeiros.

22 ARRUTI, p. 35. 23 Atualmente Brejo dos Padres é a comunidade central da T.I. Pankararu. 24 ARRUTI, op. cit., p. 16.

23

Consta da tradição oral que os Pankararu lutaram em defesa do Brasil na

Guerra do Paraguai e por isso D. Pedro II os recompensou com a doação de “uma

légua em quadra de sesmaria”25, correspondendo a uma área de 14.400 ha. Desse

total, os indígenas doaram uma área de 110 ha para Nossa Senhora da Saúde,

padroeira de Tacaratu, para manter a área urbana do município.

De acordo com os indígenas, seu território deveria, portanto, compreender

uma área de 14.290 ha.

Por volta de 1930, os Pankararu passaram a recorrer ao Pe. Alfredo

Damaso, do município de Bom Conselho, para denunciar a invasão da terra e

pedir ajuda para defender seus direitos. O Pe. Damaso, que já vinha apoiando os

Funi-ôs, que se localizavam em sua paróquia, passou a ajudar os Pankararu.

Em 1935, o etnólogo Carlos Estevão visitou os Pankararu e solicitou ao

Serviço de Proteção ao Índio – SPI que os reconhecesse e oferecesse proteção.

Nesse período, também esteve com os Pankararu a equipe de Mário de

Andrade, que visitou o país inteiro para registrar a cultura e o folclore do povo

brasileiro. Não se sabe se houve interferência da visita da equipe de Mário para o

reconhecimento dos Pankararu, porém seu trabalho criou um clima bastante

favorável às manifestações culturais populares e indígenas na época.

Em 1937, foi instalado o Posto do Serviço do SPI em Brejos dos Padres.

Em 1943, o SPI demarcou a terra, que deveria compreender os 14.290 ha da

doação de D. Pedro II, mas foi reduzida para 8.100 ha. Os funcionários do SPI

responsáveis pela demarcação falavam para os índios que aquela terra era para

ficar como uma reserva, por isso não deveria ser demarcada.

Em 1987, o então presidente Sarney editou um decreto de homologação

que ratificou a demarcação dos 8.100 ha. A reivindicação indígena era de que

fosse incorporada a área excluída, no entanto foram convencidos pela Funai a

aceitar aquela demarcação, sob a alegação que desse modo estaria facilitada a

desintrusão da terra homologada e posteriormente seria instaurado um novo

processo demarcatório para incluir a área que estava fora da demarcação.

25 O formato original da T.I. Pankararu é um quadrado medindo 12 Km em cada um dos seus limites. É claro que a fixação dos limites e do formato seguiu critérios que não foram baseados no modo de vida Pankararu. Inclusive porque do outro lado do São Francisco, na área denominada “curral dos bois”, hoje o município de Glória na Bahia, vivem os Pankararé, que é o mesmo povo Pankararu. Isso permite presumir que os Pankararu andavam por uma extensa área do São Francisco. De qualquer modo, os Pankararu sempre aceitaram que a área total de suas terras fosse aquela da doação de D. Pedro II.

24

O grupo mais prejudicado com a exclusão de parte da terra nas

demarcações de 1943 e 1987 cansou de esperar e passou a reivindicar uma nova

demarcação. O processo demarcatório encontra-se em andamento em meio a uma

situação bastante complexa vez que naquela área cresceram comunidades de não-

índios com significativa população.

Em decorrência da falta de terras e dos problemas sócio-econômicos que

afetam o nordeste, muitos migraram de Brejo dos Padres para São Paulo desde a

década de 1930. Nesta cidade, geralmente trabalham na construção civil para

garantir a sustentação e apoiar os familiares que ficaram em Pernambuco. A crise

que tem afetado a oferta de empregos ao lado da exigência do mercado de

trabalho cada vez mais por profissionais com qualificação técnica vem afetando os

indígenas que vivem na cidade. Há uma forte demanda por moradia, já que quase

todos se concentram em favelas. Nas favelas formaram comunidades Pankararu, e

buscam manter os vínculos culturais com suas comunidades que vivem em

Pernambuco.

Os Pankararus contam que sua origem aconteceu na região do vale do Rio

São Francisco, onde habitam desde tempos imemoriais. Segundo a mitologia, seus

ancestrais estavam reunidos em meio aos festejos tradicionais quando decidiram

se encantar. Caminharam em direção ao São Francisco e adentraram nas

cachoeiras. Por isso as fontes, as serras, as matas são considerados lugares

sagrados e devem ser respeitados por todos.26

As cachoeiras do Rio São Francisco jamais foram incluídas na

demarcação, embora façam parte da identidade cultural e até a década de oitenta

os indígenas utilizassem o rio para pescar. Com a implantação do complexo

hidrelétrico de Paulo Afonso e Itaparica, da Chesf, as cachoeiras foram cobertas

de água para formar o lago reservatório. De qualquer modo, os Pankararu mantêm

em sua memória a história sobre sua origem e das cachoeiras onde moram os

encantados; a sociedade antiga que os antecedeu. Assim, seguem adaptando seus

modos de vida ao que sobrou de seu território e às novas situações que lhes são

impostas.

Maria Inês Ladeira menciona os estudos de Helene Clastres e Ruben

Saguier sobre a distribuição geográfica dos Guaranis no período da chegada dos

26 Informações coletadas junto aos Pankararu.

25

europeus, que na época ocupavam um vasto território que compreendia a parte

média e inferior da bacia do Amazonas, o litoral e o interior da região sul e São

Paulo, cujos limites ocorriam ao norte pelo Rio Tietê e a oeste pelo Rio Paraguai,

com presença no Brasil, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina.27

Uma vez que atualmente os Guaranis vivem em pequenas áreas e têm

graves conflitos fundiários, a referida autora argumenta que a definição do

território indígena ocorre de forma arbitrária para atender aos interesses do

Estado.28

Considerando que o conceito de território não é próprio das sociedades indígenas, e que as delimitações são historicamente fixadas por meio de estratégias de poder e controle político do Estado, conclui—se que os territórios e as Terras indígenas são espaços dominados que, inevitavelmente, forçam os índios a firmar um pacto eterno de dependência com o Estado. A dinâmica expropriação<=>concessão de terras e limites, através da qual se supõe, ou se induz a crer, estar propiciando aos índios a liberdade e o exercício de gestão (dentro dos limites impostos e fixos) é a contradição inerente e latente do conceito de território indígena e de políticas e legislações indigenistas. A relação das sociedades indígenas com o espaço físico e os chamados recursos naturais vêm, desde o período colonial, passando por transformações que se operam no âmbito das sucessivas e múltiplas formas de convivência com a sociedade nacional, desde o início de seu processo de formação. E, a partir do período colonial, o jogo e o contexto político-econômico da sociedade nacional vão determinar, geograficamente, as formas de ocupação, impondo limites e condições, enfim, administrando o território do Estado como um todo. Assim, relações entre as sociedades indígenas e a sociedade nacional (a partir do séc. XVII) passam a se operar a partir do pressuposto da existência de uma base territorial fixa, para os índios, seja ela qual for. E será esse o mecanismo adotado pelo Estado para conferir ou reconhecer a identidade étnica de um grupo indígena.

A concepção territorial Guarani apresenta singularidades as quais

confrontam com a concepção estatal que pretende estabelecer uma área para um

povo sobreviver em seus limites. Eles acreditam que na terra existem os caminhos

de todos os seres, das aves, dos bichos, do vento, das águas, dos Guaranis e dos

brancos29. Seguindo essa concepção, escolhem com a observância necessária os

lugares apropriados para moradias e plantio de roças. Diante dos fenômenos

naturais que afetam a vida nas cidades, tais como terremotos e maremotos, eles

falam que os brancos construíram suas casas em lugares errados.

27 LADEIRA, 2001, p. 86. 28 Ibid., p. 89. 29 Ibid., p.167.

26

Assim, os lugares/caminhos do vento não podem ser ultrapassados. Os caminhos das águas não devem ser desviados, assim como as margens dos rios são parte dos rios. Quando os espaços (lugares e caminhos) desses elementos são invadidos, ficamos sujeitos às suas reações naturais da condição de origem. Alterar ou impedir o curso de um rio pode provocar enchentes, correm perigo os aviões que cruzam os caminhos do vento (...).30

De acordo com Maria Inês Ladeira, o espaço físico das áreas onde os

Guarani vivem ou procuram viver foi criado por seus Deuses para ser habitado por

eles e devem apresentar “as formas e os recortes naturais, incluindo as matas e as

nascentes dos rios que as banham, sendo esta a configuração ideal na definição

dos locais de uso, independentemente das demarcações.”31

A destruição do meio ambiente tem levado os Guarani a ocuparem áreas

de unidades de conservação, e isso tem gerado diversos conflitos com os

ambientalistas. A esse respeito, Carlos Frederico Souza Filho32 tece os

comentários a seguir:

É preciso conhecer, entender e respeitar a história, os mitos e a concepção de mundo de cada povo para concluir sobre os seus direitos. Assim é, por exemplo, que antes de condenar o povo Guarani por viver em Parque e outras áreas de preservação ambiental, é necessário estudar sua história recente e então se verá que estas são as áreas que restam de seu vasto território tradicional, aquele criado por seus deuses para que vivessem como povo. Os Guarani afirmam que só podem viver onde estão as plantas e os animais que sobraram das intervenções antrópicas civilizadas, por isso não estão invadindo os parques e outras unidades de conservação, mas foram expulsos para dentro deles, confinados e condenados a viver somente neles, como as plantas e animais autóctones. Esse povo foi se tornando prisioneiro de seu próprio habitat cada vez mais transformado, desfigurado, inservível. O território, para o povo guarani, significa não uma fronteira arbitraria, mas uma composição de biodiversidade, na qual o povo se integra. Assim, na concepção deste povo, os europeus não invadiram o seu território, não é uma questão de respeito de fronteiras, todos podem usar a terra, homens, animais e plantas, os europeus não foram invasores, mas destruidores, o seu pecado não foi de invasor de domicílios alheios, mas de destruidor, os guarani não entendem que a vítima tenha sido eles, mas a terra.

A diversidade dos povos indígenas, sua história de contato e da região

onde vivem, permite falar de diversas realidades sócio-culturais e de concepções

territoriais indígenas. Pode-se falar de povos que no passado construíram impérios

(Incas, Astecas e Maias); outros que se mantêm afastados das cidades, com seus

territórios livres de invasões e que decidem sobre suas vidas longe da interferência

30 LADEIRA, 2001, p. 214. 31 Ibid., p. 218. 32 SOUZA FILHO, 2003, p. 51.

27

de quem não pertença às suas comunidades; de povos que formaram verdadeiros

núcleos urbanos indígenas, o que implica a necessidade de oferta de serviços

públicos básicos, tais como o saneamento e energia elétrica; e outros que sofrem a

pressão das cidades que avançam sobre as terras.

Cada situação tem seus contornos específicos e demandas quanto à gestão

territorial. Isso implica discutir cada situação no espaço local para viabilizar a

adoção de medidas com base no caso concreto. A ênfase voltada ao tratamento da

gestão territorial indígena no âmbito local não significa que os povos indígenas

devam afastar-se das articulações do âmbito regional, nacional e internacional.

Pelo contrário, as discussões locais podem servir para orientar o fortalecimento

das alianças e o relacionamento com o Estado e a sociedade.

2.1.

Povos indígenas e meio ambiente

Os povos indígenas estão presentes na Mesoamérica, Região Andina,

Sabana, Chaco, Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Cerrado, Pantanal, Semi-

Árido, Floresta de Araucária, Campos do Sul e Manguezal e Zona Costeira,

habitando praticamente todos os ecossistemas dos Continentes Americanos.

Basicamente eles vivem da caça, pesca, criação de animais e agricultura. Ao longo

dos séculos eles desenvolveram modos de vida que contribuem para a preservação

do meio ambiente. Eles conhecem plantas medicinais, tubérculos, árvores

frutíferas e sabem como utilizar de forma sustentável os recursos da fauna, flora e

rios.

Berta Ribeiro33 discorre sobre os tabus alimentares dos povos indígenas

como forma de conservacionaismo. O tabu alimentar consiste em normas de

restrição do consumo de determinados alimentos (espécies de peixes, caças)

impostas principalmente à mulher grávida, aos pais de nascituros e

secundariamente a adolescentes em reclusão da puberdade. O tabu alimentar

também deve ser observado pelos clãs em relação às espécies que o identificam.

Por exemplo, consta da mitologia Pankararu, que antigamente os membros do clã

da juriti não poderiam utilizar essa ave na alimentação. Considerando esse

33 RIBEIRO, 1991b, p. 85 passim

28

aspecto, trata-se da interação da metafísica com a organização social e o equilíbrio

ecológico. Uma vez que uma parte do povo indígena, representada por um clã, se

abstém de consumir uma determinada espécie, logo contribui para a sua

preservação. As normas do tabu alimentar também determinam as condições em

que devem ser realizadas as caçadas, devendo-se restringir o abatimento de

animais da mesma espécie e preservar as fêmeas em gestação ou com crias novas.

Para os Tukanos do Alto Uapés, Colômbia, existem doenças que são

causadas pela negligência em obedecer às regras culturais. As doenças se

manifestam como vingança dos animais de caça e do Dono dos Animais e de

outros espíritos em decorrência da transgressão dos tabus alimentares. O mesmo

acontece quanto à utilização de outros recursos, tais como a coleta de mel e frutos

silvestres, a pesca e a utilização de matéria-prima manufatureira. A doença é

diagnosticada pelo xamã que sonha com o animal ofendido e cura o transgressor

exorcizando os guardiões da natureza. A cura restabelece o equilíbrio na relação

homem e natureza. Portanto, trata-se de um modo cultural que favorece ao

equilíbrio ecológico.

Entretanto, a situação dos territórios e dos recursos ambientais é

diferenciada entre os povos indígenas. Por isso a possibilidade de manter o

equilíbrio ecológico com base no tabu alimentar deve ser relativisada. Alguns

povos conseguiram manter seus territórios tradicionais por não terem sido

alcançados pelas frentes colonizadoras. Outros se deslocaram para novas regiões e

conseguiram manter o meio ambiente preservado. Um número significativo teve

seu território bastante reduzido e os recursos ambientais exauridos.

A redução dos territórios indígenas e a depredação do meio ambiente

foram conseqüências da colonização, ocorrida em meio à expansão mercantilista

que a Europa já vivia no Século XV34.

O Brasil foi criado por meio de um sistema colonial baseado na extração

de recursos florestais e agrícolas para exportação. Os países de colonização

espanhola serviram principalmente para a exploração de minérios, que foram

encontrados em abundância e já eram utilizados pelos povos nativos.

34 A navegação espanhola e portuguesa que resultaram na conquista das Américas estava voltada ao comércio marítimo, pelo qual buscava-se especiarias na Ásia, para comercializá-las na Europa. Dentre tais especiarias incluía-se a canela e o gengibre, que eram utilizados nos alimentos de difícil conservação na época.

29

Jose M. Borrero Navia35 descrevendo a história dos países da América

Latina ressalta que:

(...) desde os tempos da colonização seu território foi considerado pelas monarquias européias como um inesgotável depósito de minerais, pedras preciosas, madeiras e especiarias. Nos tempos da colonização a exploração e a pilhagem construíram o paradigma da relação ser humano-ambiente. Sem embargo, essa lógica de exploração não registrou troca nenhuma com a independência e o advento das Repúblicas: hegemônico de controle colonial devido ao poder de grandes corporações internacionais vinculadas aos interesses dos grupos nacionais, para quem a oferta ambiental de seus respectivos países representa uma fonte de rápido enriquecimento, cuja lógica não tem lugar para considerações ambientais. A deterioração ambiental e a devastação dos sistemas naturais conduzem ao empobrecimento de amplas maiorias da população. Por sua vez, a pobreza é uma das causas do deterioramento ecológico. E é o mais significativo obstáculo da sustentação econômica. O processo de produção de pobreza degrada o ambiente e ao mesmo tempo malogra a qualidade de vida dos habitantes.

Nesse mesmo sentido, Boaventura de Sousa Santos36 ressalta que:

A pressão para intensificação das culturas de exportação combinada com técnicas deficientes de gestão de solos levaram à desertificação, à salinização e à erosão. A destruição das florestas tropicais, sobretudo no Brasil e na América Latina mas também na Indonésia e Filipinas, é apenas o exemplo mais dramático (...) De todos os problemas enfrentados pelo sistema mundial, a degradação ambiental é talvez o mais intrinsecamente transnacional e, portanto, aquele que, consoante o modo como for enfrentado, tanto pode redundar num conflito global entre o Norte e o Sul, como pode ser a plataforma para um exercício de solidariedade transnacional e intergeracional. O futuro está, por assim dizer, aberto a ambas as possibilidades, embora só seja nosso na medida em que a segunda prevalecer sobre a primeira. As perspectivas não são, no entanto, animadoras. Por um lado, o Norte não parece disposto a abandonar os seus hábitos poluidores e muito menos a contribuir, na medida dos seus recursos e responsabilidades, para uma mudança dos hábitos poluidores do Sul, que são mais uma questão de necessidade que uma questão de opção. Por outro lado, os países do Sul tendem a não exercer a favor do equilíbrio ecológico o pouco espaço de manobra que neste domínio lhes resta. Para além de muitas outras razões, e por absurdo que pareça, depois do colapso do comunismo, a outras razões, a capacidade de poluição é talvez a única ameaça credível com que os países do Sul podem confrontar os países do Norte e extrair deles algumas concessões.

Segundo James Anaya37, as disputas atuais sobre os territórios indígenas

são disputas sobre as riquezas naturais nelas existentes.

Fernando Antônio de Carvalho Dantas apresenta comentários sobre a

exploração das riquezas naturais e a invasão das terras indígenas, enfatizando que 35 NAVIA, p. 20. 36 SANTOS, 2005, p. 296. 37 ANAYA, 2004.

30

nas últimas décadas do século passado, estas terras foram invadidas por

garimpeiros, empresas mineradoras, madeireiras, rodovias, hidrelétricas e tantos

outros projetos econômicos que desconsideraram os direitos territoriais das

sociedades indígenas. De acordo com o referido autor, um novo colonialismo vem

acontecendo na atualidade com a exploração da biodiversidade e dos

conhecimentos tradicionais indígenas.38

Atualmente, uma nova forma de exploração se avança, desta vez engendrada pela política econômica global, principalmente no que concerne à bioprospecção, tendente à correspondente utilização do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais associados dos povos indígenas em função da escala comercial.

Os povos indígenas se opõem ao modelo econômico que depreda o meio

ambiente e aumenta a massa de excluídos. Eles vivem em um modo de

desenvolvimento que contempla a geração e distribuição de renda, conciliando

suas atividades econômicas com a proteção da sociodiversidade. Seus modos de

viver demonstram concretamente que é possível utilizar as riquezas naturais sem

destruir a natureza. As pesquisas científicas baseadas em estudos de campo e

imagens de satélite comprovam que geralmente onde há terras indígenas há mais

proteção do meio ambiente. Como exemplo, no dia 27/01/200639, o Jornal Folha

de São Paulo divulgou resultados de uma pesquisa realizada pelo Instituto

Socioambiental e outras instituições, demonstrando que as terras indígenas

preservam o meio ambiente mais que as áreas localizadas em suas adjacências.

A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira –

COIAB divulgou no dia 17/02/200640, o resultado de sua pesquisa realizada em

parceria com a ONG The Nature Consevancy (TNC) demonstrando que as terras

indígenas na Amazônia preservam o meio ambiente com mais eficiência do que as

áreas localizadas em seu entorno e unidades de conservação. A Coiab ressaltou

que a preservação do meio ambiente vem sendo possível quase que

exclusivamente pelos esforços dos povos indígenas, mas não sabe até quando isso

será possível porque há muita pressão por parte de terceiros sobre suas riquezas.

Desta forma, faz-se necessário que sejam adotadas medidas pelo poder público

para proteger as terras e o meio ambiente.

38 DANTAS, p. 310 et. seq. 39 Disponível em: <http://www.socioambiental.org>. 40 Disponível em: <http://www.coiab.com.br>.

31

Além disso, a COIAB chama a atenção para o fato de que embora as terras

indígenas sejam mais eficientes na preservação do meio ambiente, os povos

indígenas recebem menos suporte financeiro do Ministério do Meio Ambiente -

MMA em relação ao que é destinado às unidades de conservação41. A instituição

critica o MMA, que utiliza os dados das terras indígenas para divulgar que vem

cumprindo as metas de proteção ambiental no país, quando na realidade tem feito

poucos esforços pelos indígenas.

A COIAB realizou diversas oficinas com a participação de lideranças

indígenas e representantes de ONGs para elaborar propostas para a proteção da

biodiversidade e das terras indígenas42. Como resultado das oficinas foi elaborada

uma proposta de criação de um Programa Nacional de Proteção da Biodiversidade

em Terras Indígenas a ser implementado pelos povos indígenas em conjunto com

o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Justiça - MJ. Pleiteia-se que tal

programa seja financiado pelo GEF - Fundo Global para o Meio Ambiente, do

Banco Mundial, que é o maior fundo de proteção do meio ambiente no mundo.

Para aprovar o projeto, o GEF requer a contrapartida financeira do governo

brasileiro. A proposta, que foi intitulada GEF Indígena, encontra-se em discussão

no MMA, no MJ e no GEF.

Se por um lado os povos indígenas vêm há séculos desenvolvendo um

modo de vida ambientalmente sustentável, a proteção jurídica ao meio ambiente43

é recente no mundo, no Brasil e nos demais países da América Latina.44 A

41 Diversas lideranças indígenas da Amazônia têm manifestado expressamente que a questão central da defesa dos direitos indígenas passa pela proteção dos seus territórios e do meio ambiente, sendo necessário implementar políticas públicas que consistam no apoio técnico e financeiro para que as comunidades possam de fato manter o meio ambiente ecologicamente equilibrado e livre de invasões. 42 Disponível em: <http://www.coiab.com.br>. Acesso em: 04/05/2004 e 06/07/2006. 43 Vladimir Passos Freitas esclarece que “a expressão meio ambiente, adotada no Brasil, é criticada pelos estudiosos, porque meio e ambiente, no sentido enfocado, significam a mesma coisa. Logo, tal emprego importaria em redundância. Na Itália e em Portugal, usa-se, apenas, a palavra ambiente. O temo francês equivalente é milioeu; o alemão é unwelt; o inglês environment. Na Espanha e paises da chamada América espanhola usa-se a expressão entorno.” (FREITAS, 2001, p. 17) 44 Em épocas anteriores existiam instrumentos jurídicos que tratavam da proteção à flora, à fauna, e aos recursos hídricos, mas a proteção não era destinada ao meio ambiente, e, sim, à propriedade privada e aos potenciais energéticos, conforme comentários do Professor Carlos Marés Frederico de Souza Filho, apresentados em aula de Direito Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR (agosto/2005). Nesse mesmo sentido, Paulo de Bessa Antunes afirma que “A Constituição Federal de 1988, naquilo que diz respeito ao meio ambiente e à sua proteção jurídica, trouxe imensa novidade em relação àquelas que a antecederam. De fato, as Leis Fundamentais anteriores não se dedicaram ao tema de forma abrangente e completa, as referências aos recursos

32

Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada em Estocolmo,

Suécia, 1972, é considerada o marco mundial do surgimento do direito ambiental.

Nessa Conferência, discutiu-se sobre os problemas ambientais que vinham se

acumulando em decorrência da industrialização. A partir dessa Conferência,

passou-se a adotar o pensamento do desenvolvimento sustentável para garantir a

qualidade de vida das presentes e futuras gerações.

A Conferência da ONU – Rio 92, na qual foi aprovada a Convenção da

Diversidade Biológica, consolidou a proteção jurídica ao meio ambiente em nível

internacional. Esta convenção determina a proteção da biodiversidade e dos

conhecimentos tradicionais associados, constituindo-se em um importante

instrumento de defesa dos povos indígenas em face do desenvolvimento da

biotecnologia e das atividades das indústrias farmacêuticas, de cosméticos e

agroflorestais. Para acessar os recursos genéticos existentes em terras indígenas e

seus conhecimentos tradicionais associados, as instituições de pesquisa científica

e as indústrias devem obter o consentimento prévio e informado das comunidades

bem como repartir os benefícios de forma justa e eqüitativa.45

As constituições Latino - americanas promulgadas nas últimas décadas do

século XIX, na esteira da proteção dos direitos sociais e econômicos e seguindo a

influência internacional determinaram também a proteção ao meio ambiente.46

ambientais eram feitas de maneira não sistemática, sendo certo que os mesmos eram considerados, principalmente, como recursos econômicos.” (ANTUNES, p. 275) 45 André Lima apresenta dados bastante significativos sobre resultados econômicos na área industrial que têm origem no acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados. “As serventias de plantas secularmente utilizadas pelos povos das florestas em sua alimentação, benzimentos, rituais, métodos de caça e pesca, combate natural a pragas e tratamentos medicinais, oferecem preciosos atalhos para que cientistas encontrem substâncias potencialmente interessantes para a biotecnologia. Com esses atalhos, indústrias economizam milhões de dólares e anos em pesquisas. Segundo o Jardim Botânico de Londres, a indústria farmacêutica movimenta, em todo mundo, com produtos derivados de recursos genéticos, cerca de US$ 75 bilhões, a indústria de sementes US$ 30 bi e em outros campos mais de U$ 60 bilhões. Segundo técnicos do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi) as indústrias chegam a economizar até 400% em tempo de pesquisa quando apoiadas em pistas fornecidas por populações tradicionais. Isso sem falarmos na agregação de valor a esses produtos se associada à imagem dos povos tradicionais, como produtos ou empresas socialmente responsáveis.” (LIMA, p. 5) 46 Se por um lado há certa decepção por falta de uma legislação que proteja amplamente o meio ambiente e de condições técnicas e financeiras para implementar políticas públicas socioambientais consistentes, por outro lado pode-se considerar que na linha da proteção da dignidade da pessoa humana, da promoção dos direitos econômicos e sociais, incluindo os direitos indígenas e o meio ambiente, os direitos coletivos passaram a ter importantes instrumentos jurídicos para sua defesa. As constituições não romperam com a estrutura arcaica colonial herdada pelos Estados latinos - americanos, mas estabeleceram limites ao poder econômico. A legislação ambiental é uma importante limitação à atuação do poder econômico e defesa dos interesses sociais.

33

Em linhas gerais, o direito ambiental e os direitos indígenas caminham de

mãos dadas, uma vez que os usos, costumes e práticas culturais dos povos

indígenas se harmonizam com os princípios de proteção da natureza. A legislação

ambiental por sua vez também vem servindo para ser aplicada na proteção das

terras indígenas, como é o caso da obrigatoriedade de observar as normas do

licenciamento ambiental e o EIA/RIMA, quando se tratar de atividades e

programas de relevante impacto sobre as comunidades indígenas, suas terras e o

meio ambiente.

A Convenção 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais em Países

Independentes, promulgada pela Organização Internacional do Trabalho - OIT em

1989, estabelece expressamente que os Estados deverão adotar “medidas especiais

que sejam necessárias para salvaguardar as pessoas, as instituições, os bens, as

culturas e o meio ambiente dos povos interessados” (Art. 4º). Conforme a

Convenção 169, os Estados devem promover o desenvolvimento econômico

social e cultural dos povos indígenas (art. Art. 2º, 2, a,); realizar consultas cada

vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas capaz de afetá-los

(Art. 6º, 1, a); garantir sua participação na formulação, aplicação e avaliação dos

planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis que lhes

causar impactos (art. 7º, 1); deverão ainda proteger as terras, incluindo “o conceito

de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos

interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma” (art. 13, 2). Os recursos

naturais existentes nas terras indígenas devem ser protegidos e é assegurada a

participação dos indígenas em sua utilização, administração e conservação (art.

15, 1).

O Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamericano (BID), que durante as

décadas de 1960 e 1970 financiaram projetos que causaram relevantes impactos

culturais e ambientais, após as denúncias do movimento indígena e das ONGs

passaram a adotar diretrizes e políticas de salvaguarda dos interesses indígenas.

Estas agências financeiras reconhecem a necessidade de incluir os povos

indígenas nos programas de redução da pobreza e de desenvolvimento econômico

e que seus modos de vida tradicional contribuem para a proteção do meio

ambiente. Estabelecem em suas políticas e diretrizes a obrigação de realizar

estudos para verificar se os projetos que estão financiando causam impactos sobre

34

os povos indígenas, bem como o dever de consultar as comunidades afetas

mediante um processo de consulta prévia, livre e informada.

Embora tais instituições tenham melhorado suas políticas e diretrizes, as

lideranças indígenas seguem fazendo-lhes críticas por considerar que seus

instrumentos normativos não protegem de forma consistente os direitos indígenas

e reivindicam que seja respeitada a autonomia dos povos indígenas quando se

tratar de financiamentos de projetos que incidam sobre suas terras. De qualquer

modo, os povos indígenas vêm buscando estabelecer diálogos com as agências

multilaterais e adotando seus instrumentos normativos para proteger seus direitos

e interesses.

Nos dias 17 e 28 de agosto de 2005, a Coiab e a Rede Brasil, ONG que

acompanha as políticas das agências financeiras multilaterais, realizaram um

seminário no qual discutiu-se sobre a IIRSA - Iniciativa para a Integração da

Infra-estrutura da América do Sul. A IIRSA é constituída pelos países da América

do Sul e Caribe e é financiada pelo Banco Mundial, Banco Interamericano de

Desenvolvimento e BNDES, dentre outras instituições. Faz parte de seus objetivos

integrar toda a região da América do Sul, com a implantação de empreendimentos

de infra-estrutura, interligando os países por rios, ar, ferrovias, estradas, redes de

energia e sistemas de comunicação, a fim de superar os chamados “obstáculos

naturais” ao desenvolvimento.

Os representantes indígenas avaliaram que a IIRSA “na verdade não vai

gerar melhoria de qualidade de vida para aqueles que vivem da floresta, ao

contrário vai destruir o meio ambiente essencial para os Povos da região. Essa

integração não contempla a diversidade de povos e de culturas.” Ao final da

reunião, os indígenas elaboraram um documento solicitando ao BID que fossem

respeitados seus direitos de serem previamente consultados quando se tratar de

financiamentos de projetos que causem impactos ao meio ambiente e ao seu modo

de vida e que o Banco adote programas para financiar o desenvolvimento

sustentável dos povos indígenas.

Apesar de normalmente o direito indígena e o direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado servir como base para a defesa da sociodiversidade,

excepcionalmente ocorrem contradições entre os setores que atuam nessas áreas,

como se verifica nas sobreposições de terras indígenas e unidades de conservação,

ou de limitações ao desenvolvimento sustentável dos povos indígenas.

35

Os ambientalistas pretendem a exclusão das unidades de conservação das

terras indígenas, alegando que os povos indígenas depredam o meio ambiente e

por isso é necessário oferecer proteção a tais áreas, que, em algumas regiões,

abrigam espécies de animais e vegetais em extinção.

A Coiab e outras organizações indígenas e instituições de apoio

argumentam que a terra é um direito originário e que é inadmissível atribuir aos

povos indígenas a destruição do meio ambiente, vez que esta ocorre como

resultado do modo predatório que os não-índios desenvolvem as atividades

econômicas.

Indubitavelmente trata-se de colisão de princípios constitucionais.

Portanto, é correto aplicar o princípio da razoabilidade para resolver a questão de

acordo com o caso concreto. Ressalte-se, que tal solução deve ser destinada a

harmonizar o direito ambiental com os direitos indígenas.

Sérgio Leitão47 chama a atenção para o fato de que para haver políticas

públicas ambientais consistentes, elas devem considerar as terras indígenas do

país.

Vale observar que, na chamada Amazônia Legal brasileira, a extensão das terras indígenas soma aproximadamente 1 milhão de quilômetros quadrados, o que corresponde a cinco vezes a extensão da totalidade das áreas das unidades de conservação criadas pelos poderes públicos federal, estadual e municipal. Tal fato remete à conclusão inarredável de que a formulação de uma política pública consistente de proteção do meio ambiente não pode deixar de levar em conta as terras indígenas no país.

A necessidade de harmonizar os direitos indígenas com as unidades de

conservação é enfatizada pelo citado autor, nos seguintes termos:48

Conciliar esses dois objetivos, por vezes conflitantes, é o desafio a ser enfrentado pelo Estado (executivo, legislativo e judiciário) e pela sociedade como um todo. Claro está que esta conciliação pressupõe, na maioria das vezes, limitações para ambos os lados. O que importa, porém, é que esta discussão seja feita de forma transparente, permitindo a todos os atores expressar e defender seus direitos e interesses, cabendo ao poder público viabilizar a solução mais harmônica e justa.

Ademais, não se pode sobrepor o direito ambiental aos direitos indígenas,

porque, se fosse possível, implicaria ter que mudar o modo de vida dos povos

indígenas, sendo que é o próprio estilo de viver das comunidades que contribuem 47 LEITÃO, 2002, 83 passim. 48 Ibid.

36

para a preservação da natureza. Carlos Frederico Marés de Souza Filho49 esclarece

que:

o usufruto de suas terras, segundo seus usos, costumes e tradições, implica na possibilidade de, sem restrições, utilizar os bens e recurso da área. Portanto, os indígenas podem fazer roça, aldeia, extrair lenha e alimentos para o uso da comunidade, sem qualquer restrição, porque restrições impostas administrativamente ou por lei, implicariam em inconstitucionalidade.

Outro campo que não é nada pacífico é o que se refere ao desenvolvimento

econômico dos povos indígenas. Diversos setores do movimento indígena e

indigenista argumentam que os povos indígenas não podem desenvolver

atividades econômicas além das que fazem parte das suas práticas tradicionais

visto que tais atividades provocam a destruição do meio ambiente e de suas

culturas.

Outros setores do movimento indígena e indigenista defendem o

desenvolvimento econômico sustentável, argumentando que a geração de riquezas

e a comercialização de produtos oriundos das comunidades indígenas podem

contribuir para a autonomia e proteção da cultura, dos territórios e do meio

ambiente.50

Lideranças indígenas da região amazônica manifestaram preocupações

quanto à necessidade de apoiar o desenvolvimento de suas atividades produtivas.

Embora as terras estejam sendo demarcadas, muitas pessoas continuam mudando para as cidades em busca de melhores condições de vida. O governo, as Ongs e os ambientalistas não entendem que precisamos desenvolver projetos para garantir a nossa sustentabilidade. Temos a terra, mas não temos apoio para o nosso desenvolvimento. Muitas vezes os brancos falam: “vocês compram tudo na cidade, vocês não produzem nada”. Precisamos superar essa situação.

As lideranças indígenas ressaltaram que o poder público vem intervindo

em suas terras para proibir a implementação de atividades econômicas, sob o

pretexto de proteger o meio ambiente e suas culturas.

“As terras estão demarcadas, mas os povos indígenas não podem usufruir.

A União, por sua vez, deveria protegê-las das invasões, mas não toma

providências. Quem usufrui mesmo das riquezas naturais são os invasores.”

49 SOUZA FILHO, 1999a, p. 145. 50 Ver. OLIVEIRA, 2002, p. 135 et. seq.

37

A solução não pode ser outra senão o respeito à autonomia dos povos

indígenas. Deve-se respeitar o que as comunidades querem fazer de seus

territórios. Todavia, em se tratando de exploração comercial das riquezas naturais,

já não é mais de uma prática cultural, e, sim de um empreendimento que deve

observar a legislação ambiental e ter o acompanhamento do órgão público

competente para garantir o bem-estar e a segurança da comunidade.

Carlos Frederico Marés de Souza Filho51 também esclarece que:

as populações indígenas produzem excedentes que comercializam para a aquisição de bens e serviços de que não dispõem internamente. A extração destes excedentes deve ser orientada segundo os padrões legais de proteção ambiental nacional, levando-se em conta as normas gerais aplicáveis. Seguindo este raciocínio, a caça somente está permitida para seu consumo interno. Se pretenderem vender carne de caça, devem ter criadouros inscritos e autorizados; somente podem vender madeira ou minerais extraídos conforme as normas especificas para tal fim, mas podem fazer roças e aldeias mesmo nas áreas consideradas de preservação permanente.

Nessa mesma linha, Fernando Mathias Batista52 tece os seguintes

comentários:

Não pretendemos aqui afirmar que seja defeso ou impróprio aos povos indígenas inserir-se no mercado econômico; isso depende da vontade de cada um deles. No entanto, a partir do momento em que o faz, está adstrito às normas e regulamentos que incidem sobre toda a sociedade, inclusive as normas ambientais, devendo adequar-se às mesmas como qualquer cidadão comum.

Ressalte-se que a possibilidade de os povos indígenas utilizarem seus

recursos em escala comercial, ainda é um assunto novo nos países da América

Latina, onde prevalece uma visão romântica sobre os indígenas. Imagine-se que se

os recursos naturais que foram retirados ilegalmente das terras indígenas nas

últimas décadas tivessem sido explorados racionalmente e revertidos para o

patrimônio das comunidades indígenas, provavelmente muitas delas estariam em

situação econômica mais confortável. O risco que as comunidades correm é de

que suas riquezas continuem sendo exploradas por terceiros e elas sigam cada vez

mais empobrecidas.

51 SOUZA FILHO, 1999a, p. 145. 52 BATISTA, 2002, p. 186.

38

Reitere-se que a Convenção 169 da OIT determina que os povos indígenas

sejam consultados em casos de elaboração e execução de projetos e programas de

desenvolvimento econômico que lhes afetem. Trata-se, portanto, do direito de os

povos indígenas participarem do desenvolvimento do país e de estabelecerem

salvaguardas para os interesses indígenas. Contudo, não basta apenas mitigarem

os impactos, é necessário que tais projetos gerem benefícios para os povos

indígenas.

Saliente-se também que a Convenção determina que sejam adotadas

medidas para efetivar o desenvolvimento econômico, social e cultural dos povos

indígenas de acordo com suas aspirações e modo próprio de vida. Esse é um

horizonte para consolidar a proteção do meio ambiente e a sustentabilidade dos

povos indígenas. Compete aos povos indígenas decidirem como querem continuar

vivendo e como será seu desenvolvimento. É fundamental que seja assegurada a

proteção ao meio ambiente e que os povos indígenas possam usufruir das riquezas

naturais.

2.2.

Organização social e direito indígena

Julio César Mellati53 afirma que de um modo geral as sociedades54

indígenas do Brasil assumem a forma de tribos. A tribo é uma unidade formada

por indivíduos vinculados por características comuns, tais como a ocupação de um

mesmo território, as manifestações culturais, os costumes, a história, e o

sentimento de pertencimento. As tribos podem ser divididas em duas partes. A

essas partes atribui-se o nome de metades, que definem se é ao pai ou à mãe que o

indivíduo sempre deve pertencer. Por exemplo, no sistema dos Borôros, o

indivíduo deve pertencer à metade de sua mãe. Entre os Ticunas, o indivíduo

pertence à metade do pai. Essas duas sociedades mantêm o sistema de metades

exogâmicas, ou seja, os indivíduos se casam com uma pessoa da metade oposta.

Entre os Terenas, no passado, o indivíduo deveria casar com uma pessoa da

própria metade, ou seja, tratava-se de metades endogâmicas. As metades podem

ser subdivididas em clãs, como exemplo novamente os Ticunas e os Borôros. Não

53 MELATTI, 1989, p. 71 passim. No mesmo sentido, ver também MONTAGU, p. 185 passim. 54 A antropologia utiliza o termo sociedades para se referir aos povos indígenas.

39

são todas as sociedades indígenas que se dividem em metades. Os Surui se

dividem em clãs sem a formação de metades. O vínculo entre os indivíduos do

mesmo clã relaciona-se a um antepassado comum, sem definir o vínculo

genealógico específico. Os clãs por sua vez podem ser divididos em linhagens,

que se refere ao vinculo genealógico do indivíduo, ou seja, é o vinculo com o

progenitor. Geralmente os clãs e as linhagens são exogâmicos.

A família funciona como núcleo da sociedade e recebe dois tipos de

classificação: a família elementar que é formada pelos genitores e filhos e a

família extensa que além da família elementar pode incluir o pai, a mãe, sobrinhos

ou qualquer um outro parente dos cônjuges.

O parentesco (metades, clãs, linhagens e famílias) define a distribuição de

funções e atividades entre os grupos. Cada grupo aparece com distinção ou de

forma mais discreta nas diferentes funções. De acordo com essa distribuição de

funções e atividades, os clãs são identificados pela sua habilidade para a chefia, o

xamanismo, as caçadas, a pesca, as coletas, a agricultura, o artesanato e a

cerâmica.

Os povos indígenas distribuem-se em seus territórios formando aldeias

para fins de habitação fixa e acampamentos para habitação temporária nos casos

de povos nômades ou seminômades.

As aldeias são unidades políticas independentes, formadas por uma parcela

do povo indígena. O formato da aldeia segue a distribuição das casas em círculo,

como exemplo os Borôro, os Timbiras, e os povos indígenas do alto Xingu; em

forma que lembra uma ferradura (Xavante e Xerente). Os Xokléng, que são

nômades não adotam nenhum formato definido para seu acampamento. Eles

constroem seu abrigo no local onde a mulher senta, faz fogo e amamenta o filho.

Na organização política dos povos indígenas não é comum o centralismo

do poder. Nesse sentido, Júlio Cezar Mellati:55 esclarece que:

Parece que nenhuma tribo chega a ter um chefe que a comande como um todo, a não ser aquelas tribos que não possuem mais de uma aldeia, De fato, entre os índios do Brasil, a maior unidade política é a aldeia; cada aldeia é politicamente independente: não reconhece nenhuma autoridade mais alta que a de seu chefe, podendo mesmo entrar em conflito armado contra outras aldeias da mesma tribo.

55 MELATTI, 1989.

40

De qualquer modo, o exercício da função de chefe da aldeia não é uma

tarefa fácil. Permanentemente ele é questionado pelos opositores e deve atender às

demandas concretas da comunidade. As demandas normalmente são voltadas às

questões de terra, alimentação, saúde e segurança dentre outras necessidades do

grupo. O cargo de chefe pode ser vitalício e hereditário (modalidades cada vez

mais raras) ou definido por processos conjunturais. A aldeia também pode ter um

conselho de anciãos que apóiam integral ou parcialmente o chefe.

As relações das aldeias são definidas pelos costumes, que são

compartilhados por todos.

Ashely Montagu56 define os costumes da seguinte forma:

Os costumes podem ser compreendidos como os padrões morais de um grupo, os ‘mores’ (no singular ‘mos’), ou ‘folkwais’, que se consideram capazes de contribuir para o bem-estar do grupo. Todo grupo humano descobriu que certos padrões de ajustamento ao meio (e o meio inclui tudo) servem para fazer girar melhor as rodas da sociedade, e esses ajustamentos são incorporados em doutrinas de bem-estar grupal. Tais doutrinas são os costumes do grupo. Pelos padrões que estatuem, dizem ao indivíduo e ao grupo qual é o comportamento certo e qual é o comportamento errado. O indivíduo então, sabe o que fazer, e a sociedade sabe o que fazer quando ele não o faz. O que pode ser considerado imoral quando feito pelo indivíduo, como, por exemplo, dar cabo da vida alheia, pode ser considerado conveniente quando a sociedade o sanciona, como, por exemplo, na pena de morte.

A transgressão do costume é julgada de acordo com a peculiaridade de

cada povo:

Nas sociedades mais simples os juízes são o povo. Onde a família é a lei, o juiz é o pai. Onde se pode convocar um conselho de anciãos, estes são os juízes, e alguns povos, como os aborígenes australianos, submetem os seus delinqüentes aos julgamentos dos conselhos e dão sentenças de que qualquer tribunal civilizado teria motivos para orgulhar-se.57

De acordo com o acima exposto, os povos indígenas têm suas próprias

normas de direito de família, sucessão, direito penal e de proteção do meio

ambiente bem como as instituições que processam e determinam a sanção para o

transgressor.

56 MONTAGU, p. 197. 57 Ibid., p.204.

41

Fernando da Costa Tourinho Neto58 argumenta que devem prevalecer os

costumes indígenas quando se tratar de conflitos entre estes com as normas penais

positivadas.

Contudo, ainda que o índio compreenda a nossa legislação, agindo de acordo com seus costumes, com sua tradição, deve ser punido pelas nossas leis? Se o crime foi cometido dentro da reserva indígena, não, pois, caso contrário, haveria violação a urna civilização, a civilização indígena. Conseqüentemente, com conhecimento das nossas leis ou não, se o índio praticou, em seus domínios, o fato tido como infração penal pela nossa legislação, deve ser julgado de acordo com seus costumes — não pelas nossas leis — e pelos seus pares — não pelo juiz branco. Se, para nós, ele agiu contrariamente ao direito, ao nosso direito, pela sua consciência, ele pode não ter atuado contrariamente ao direito, ao seu direito. Dessa forma, pode o índio ter cometido um foto descrito na lei penal (o que caracteriza a tipicidade – o fato praticado correspondente à descrição contida na lei penal, ou seja, no artigo da lei) antijurídico (contrário à norma de proibição, violador da norma, contrário ao que a norma tutela, contrariedade essa causadora de uma lesão ou ameaça de perigo a um bem juridicamente tutelado pelo direito penal), segundo o direito penal do branco, mas não segundo suas normas consuetudinárias, inexistindo, assim a figura do delito. E vale observar que a conduta humana dolosa ou culposa é componente do fato típico (teoria finalista da ação, adotada pelo nosso código penal), e os índios não faziam diferença entre o dolo e culpa, prendiam-se tão-somente ao resultado Tenha-se, ainda, que a ordem jurídica do índio não reprova certas condutas que são reprovadas por nosso ordenamento jurídico. Logo, por essa hipótese, não há a culpabilidade, uma vez que não há a consciência da ilicitude, da antijuricidade. Não nos esqueçamos de que, sob o aspecto formal, crime, como ensina Carmiganani, ‘é o fato humano contrário à lei’ (Mirabete, p.90). Ora, se o índio pratico, em suas terras, um fato que contraria as nossas leis, mas não as suas, evidentemente que não pode ser punido pela lei do branco. O fato que ele praticou não contra seu ordenamento jurídico, logo não é antijurídico. (...) Devemos bem compreender os costumes e as tradições dos nossos indígenas para bem julgá-los, sob pena de agirmos como disse, em 1928, o advogado português, Mario Monteiro (1928, p. 11) do Instituto de Coimbra: ‘Sob a pressão de um critério errado, anachronico e nefasto é que os tribunais se transformaram n’umas moitas espinhosas onde as ovelhas procuram um refugio e de onde não sahem sem que lá deixem parte de sua lã. Não se pode entender o índio a imagem do branco.

Assim, conclui-se que os povos indígenas têm seu sistema jurídico próprio,

baseado em seus costumes e instituições que atuam para manter a estabilidade e o

bem-estar de todos os seus integrantes.

58 TOURINHO NETO, 2002, p. 223.

42

3

Concepção dos Estados sobre os territórios indígena s

Desde o início da colonização das Américas pelos espanhóis e portugueses

foi estabelecida a controvérsia sobre a jurisdição dos territórios indígenas. Os

colonizadores alegavam o direito de conquista que lhes permitia decidir sobre as

vidas dos habitantes daqueles continentes e apropriação das terras. Eles foram

contestados por setores da igreja, principalmente pelo Frei Bartolomé de Las

Casas59, o qual argumentara que os mandamentos de Deus não permitiam a

escravização e defendiam os direitos originários dos povos indígenas sobre as

terras que ocupavam, ou seja, eram direitos que já existiam antes da chegada dos

espanhóis e portugueses.

A pressão dos colonizadores, que receberam o apoio predominante da

igreja, resultou na doutrina da guerra justa, a qual teve como defensor o Doutor

Ginés de Sepúlveda, cronista do imperador espanhol, que argumentava que os

povos indígenas da América deveriam ser submetidos ao reino da Espanha60,

impondo a evangelização para os que não apresentassem resistência e a escravidão

59 Bartolomé de Las Casas denunciou ao reino espanhol o extermínio dos povos indígenas e a pilhagem de seu patrimônio pelos espanhóis. Ver a obra Brevíssima relacão das índias. A leitura desse livro é considerada fundamental para compreender a situação dos povos indígenas das Américas. BARNADAS, p. 536. “Bartolomé de Las Casas, um frade dominicano (1484-1566), foi efetivamente bispo de Chiaprender por apenas um ano (1545-1546). Suas realizações estão em outra esfera. Em 1514, teve seus olhos abertos para a realidade da América, e daí por diante devotou o restante meio século de sua vida à defesa dos índios, lutando contra a forma que estava assumindo o sistema colonial. Lutou como padre secular, como frade, como bispo, como conselheiro da corte, como polemista, como historiador e como representante dos índios. Aliou-se à coroa para anular os privilégios dos colonos; exerceu pressão sobre a consciência dos frades para que deixassem de absolver os curomenderos; propagou, através de escritos, sua própria visão do que deveria ser as Índias; profetizou a destruição da Espanha em castigo pelas crueldades que infligira a índios inocentes. É verdade que aquiesceu na importação de escravos africanos para impedir a escravização de nativos americanos. Algumas afirmações de seus panfletos e histórias eram, sem dúvida, exageradas. Sua grandeza, entretanto — intocada por seus detratores — está na forma com que denunciou o processo histórico do qual fazia parte e se dissociou dele. Na medida em que a obra de vida de Las Casas estava fundamentada em suas convicções de cristão, frade e bispo, inclui-se entre os grandes reformadores e ´libertadores` da história da Igreja.” 60 SOUZA FILHO, 1992, p. 7.

43

daqueles que fossem apanhados em guerra. Não havia muita opção para os índios,

vez que a evangelização significava a submissão e a entrega de seus territórios.

As lições de Josep M. Barnadas61 são bastante esclarecedoras sobre essa

questão:

Quando Colombo chegou pela primeira vez às Antilhas, o papado já vinha há mais de meio século intervindo em expedições de exploração e conquista, tanto de Portugal quanto de Castela (...) Em troca dessa legitimação de direitos que reivindicavam num continente conquistado ou explorado apenas em parte, os monarcas católicos eram obrigados a promover a conversão dos habitantes das terras recém-descobertas e a proteger e manter a Igreja militante sob o patronato real. A coroa de Castela assumiu o controle da vida da Igreja num grau até então desconhecido na Europa (exceto na recém-recuperada Granada). A política eclesiástica tornou-se mais um aspecto da política colonial coordenada após 1524 pelo Conselho das Índias. A coroa reservava-se o direito de indicar candidatos aos cargos eclesiásticos em todos os níveis e assumiu a obrigação de pagar salários e construir e dotar as catedrais, as igrejas, os mosteiros e os hospitais com os dízimos cobrados sobre a produção agrícola e pecuária. A Coroa reservava-se igualmente o direito de autorizar o envio de pessoal eclesiástico para as Índias e, em 1538, ordenava explicitamente que toda e qualquer comunicação entre Roma e as Índias devia ser submetida à aprovação do Conselho (o pose regio, ou exequatur.. E, enquanto, de um lado, Felipe II fracassava, em 1560, em sua tentativa de criar dois patriarcados com poderes soberanos na América, Pio V, em 1568, malograva em seu empenho de enviar núncios papais às Índias. À Igreja na América fora confiada uma missão prática: apressar a submissão e a europeização dos índios e pregar a lealdade à Coroa de Castela. Qualquer resistência por parte da Igreja ao cumprimento dessa função era considerada um problema político e seria tratada de maneira correspondente. (...) As duas décadas após 1519 representam a fase decisiva na dominação da América por parte de Castela. A partir de sua base nas Antilhas, os espanhóis conquistaram o México e a América Central e depois rumaram para o sul, a partir do Panamá e de Venezuela via Pacífico, para conquistar o império inca. Os conquistadores pisaram num mundo desconhecido. A expansão territorial significou a descoberta de sociedades complexas, organizadas de acordo com sistemas totalmente estranhos aos da Europa. Além disso, suas estruturas religiosas estavam funcionalmente enraizadas na vida dessas sociedades. Somente depois que o horizonte geográfico e humano se descortinara de forma tão esmagadora é que a Igreja percebeu a dimensão da tarefa de evangelização que agora se exigia dela no Novo Mundo. Os próprios conquistadores foram impelidos em parte por fervor religioso a executar suas ações titubeantes. Estavam convencidos de que, ao subjugar populações antes desconhecidas da Cristandade, estariam servindo igualmente ao seu monarca como vassalos, a sua fé como missionários e a si mesmos como homens de honra. Uma vez estabelecida a autoridade espanhola, as ordens missionárias entraram em cena para evangelizar os povos conquistados. Os frades, por sua vez, eram sempre apoiados pela espada repressiva da autoridade. Assim, a conquista militar e política chegou em primeiro lugar, seguindo-se depois a conquista espiritual. Tanto a Igreja quanto o Estado tinham necessidade dos serviços que se prestavam mutuamente.

61 BARNADAS, p. 522 passim.

44

Carlos Frederico Marés de Souza Filho62 classifica os conflitos entre os

portugueses e os indígenas como conflito de jurisdição. Essa definição é

fundamental para qualificar as relações entre os povos indígenas e os Estados nos

séculos seguintes.

Assim, a terra indígena se traduzia em território ou controle de um povo sobre um espaço determinado. A disputa entre portugueses e índios não se deu, nem poderia ter se dado, em questões formais de direito de propriedade, mas em jurisdição sobre um espaço territorial. A questão era muito mais de Poder, do que de Direito. O Brasil era, portanto, um espaço ocupado. Cada povo entendia seu território segundo sua cosmovisão e cultura e embora houvesse enfrentamentos e disputas, as populações viviam em razoável harmonia e paz.

Manuela Carneiro da Cunha ao discorrer sobre a doutrina e legislação

referente à terra indígena, demonstra que no período colonial ocorreram debates

exaustivos e foram reconhecidos os direitos territoriais e a soberania indígena63.

A soberania dos povos indígenas da América foi questão fundamental na discussão da legitimidade dos títulos espanhóis e portugueses sobre o Novo Mundo. Certas teses teriam tido, para os reis ibéricos, uma conveniência imediata. O Ostiense (Henrique de Susa, cardeal-arcebispo de Ostia, canonista do século XIII e autor da Summa Aurea), por exemplo, sustentava que os povos gentios só haviam gozado de soberania até o advento de Cristo, que, tendo vindo ao mundo, havia desde então sido investido de todos os poderes espirituais e temporais. Por delegação de Cristo, tanto o império quanto o sacerdócio cabiam ao papa. Assim os infiéis podiam ser despojados de seus remos e bens pela autoridade papal. Apesar de sua conveniência evidente para justificar os títulos que o papa distribuíra a leste e a oeste de Tordesilhas, as teses do Ostiense e as que sobre elas se apoiaram não prevaleceram. Ao longo do século XVI firmou-se, ao contrário, na Espanha e em Portugal a doutrina que negava o poder temporal do Papa sobre os infiéis e a jurisdição européia nas terras recém-descobertas. Afirmava a plena soberania original das nações indígenas. Esta posição baseava-se em teses tão antigas quanto as do Ostiense: o papa e canonista Inocêncio IV, no século XIII, sustentara que o papado não podia despojar os infiéis de seus domínios e jurisdições (Apparatus ad quin que libras 1)ecretaliutn, III, 34,8). E São Tomás de Aquino, distinguindo entre direito divino e direito humano, afirmava, contra o Ostiense, que a vinda de Cristo não havia anulado os bens e a soberania dos povos gentílicos (Secunda Secunilculo, lO). Quanto à Inglaterra, como seria de se esperar, a rainha Elizabeth não entrou em considerações jurídicas para contestar o direito com que o “bispo de Roma” distribuía as terras recém-descobertas.

62 SOUZA FILHO, 2003, p. 50. 63 CUNHA, 1987, p. 53 passim.

45

Conforme Manuela Carneiro da Cunha64, o Frei Francisco de Vitória,

jurista fundador do direito internacional, consultor de Carlos V, refutou os

argumentos de que deveriam retirar as terras dos indígenas por serem infiéis. “A

infidelidade (a heresia) ou qualquer outro pecado mortal não impede que os

bárbaros sejam os verdadeiros donos e senhores, tanto pública quanto

privativamente, e não podem os cristãos tomar-lhes seus bens por esse motivo”.

Negava também que o papa fosse o dono do mundo, e “mesmo que o fosse, não

poderia transmitir seu poder temporal aos príncipes seculares.” Contestava ainda

que a descoberta fosse título sobre o Novo Mundo, uma vez que:

os bárbaros eram os verdadeiros donos, pública e privadamente. É do direito das gentes que conceda ao ocupante o que não é de ninguém, como diz no parágrafo “Ferae Bestia” (Instituições de Justiniano, De Rerum divisione, § Ferae Besia (...) (mas) estas terras já têm dono, não podem cair sob esse título.

Embora se tenham reconhecidos os direitos territoriais e a soberania

indígena, isso não significou que os colonizadores passassem a respeitá-los. Nesse

sentido, a citada autora faz os seguintes comentários65:

Nas leis portuguesas para o Brasil, a soberania indígena e o direito dos índios aos territórios que ocupam é freqüentemente reconhecida: trata-se, como se sabe, de um reconhecimento de jure que mil estratagemas tentam contornar na prática; mas tal reconhecimento legal mostra pelo menos a consciência e a má consciência da Coroa acerca dos direitos indígenas.

De acordo com James Anaya, os colonizadores adotaram posturas

ambíguas e contraditórias. A despeito de não prevalecer a tese de Sepúlveda que

defendia a submissão dos indígenas a qualquer custo, alegando que se tratava de

infiéis que deveriam ser submetidos à autoridade dos espanhóis, tendo sido

refutado por Vitória, que por sua vez defendia a soberania indígena, tal

reconhecimento na prática não conduziu a outros fins, pois, serviu como pretexto

para declarar as chamadas guerras justas contra os povos indígenas.66

Francisco de Vitória, professor de Teologia na Universidade de Salamanca, se uniu a Las Casas em defesa da humanidade essencial dos índios do continente Americano. Vitória que nunca cruzou o Atlântico, preocupou-se menos por encerrar os abusos castelhanos contra os índios, centrando-se mais na definição

64 CUNHA, 1987, p. 56 passim. 65 Ibid., p. 58. 66 ANAYA, 2004, p. 39 et. seq.

46

de uma série de parâmetros morais e jurídicos para regular a conquista européia dos territórios americanos. Vitória sustentava que os índios possuíam certos direitos de autonomia e títulos sobre suas terras que os europeus estavam obrigados a respeitar. Ao mesmo tempo, Vitória sistematizou os argumentos em virtude dos quais os europeus podiam adquirir validamente as terras dos índios e declarar seus domínios sobre essas (...) Vitória elaborou portanto uma construção jurídica para regular o contato europeu com os povos indígenas não europeus. Por um lado, Vitória defendeu que os índios americanos tinham direitos em virtude de sua essencial natureza humana. Porém, por outro lado os índios podiam perder seus direitos como resultado da conquista posterior a uma guerra “justa”, no entendimento de que precisamente o sistema de valores europeus que determinava os critérios de definição da “justiça” da guerra.

De fato, a declaração de guerra pressupõe o reconhecimento do povo e da

soberania. Mas esse reconhecimento estava voltado para legitimar a conquista, e,

não os direitos originários dos povos indígenas. A evangelização e a doutrina da

guerra justa tiveram vigência até o século XIX e causaram o extermínio de

diversos povos no Brasil e nos países de colonização espanhola. Não foi por

ignorância que os colonizadores agiram de tal forma, e sim, por interesse nas

terras e riquezas.

O Estado moderno teve inicio com o Tratado de Westfalia em 1648, que

pôs fim à Guerra dos Trinta Anos, ocorrida na Europa no período de 1618 a 1648.

Esse Tratado estabeleceu o princípio da igualdade jurídica entre os Estados,

instaurando o direito internacional positivo. Nessa época iniciou-se também a

ciência do direito internacional positivo.67 Com a instauração do Estado moderno

ocorreu uma notável mudança no pensamento jusnaturalista.

James Anaya68 faz esclarecimentos sobre esse período nos seguintes

termos:

A instauração do estado moderno ocorreu paralelamente a uma notável evolução do pensamento jusnaturalista. Os pensadores europeus transformaram o conceito de direito natural, inicialmente concebido como um código moral universal para a humanidade, em um regime bicéfalo que compreendia os direitos naturais dos indivíduos e dos direitos naturais dos estados.

Thomas Hobbes (1588 – 1679) em sua obra Leviathan (1651) sustentava

que os indivíduos viviam em um estado da natureza antes de unir-se e formar a

sociedade civil, que correspondia ao estado. De acordo com Hobbes, a vida na

67 SILVA & ACCIOLY, 2002, p. 11. 68 ANAYA, 2004, p. 48.

47

sociedade da natureza era solitária, pobre, tosca, embrutecida e breve. O estado

surge quando os indivíduos conferem todo o seu poder e força a um homem ou a

uma assembléia de homens para substituir a pluralidade de vontades por uma

única vontade, que passa a representar a todos. Essa pessoa que passa a

representar a todos era o estado. Hobbes defendia que do mesmo modo em que

havia os direitos do individuo, existiam também os direitos do estado. Esta foi a

base pela qual foi desenvolvida a divisão entre os direitos individuais e a

soberania dos estados.

John Locke69, ao contrário, defendeu que a sociedade da natureza era uma

sociedade de paz e harmonia. A origem do estado teria ocorrido como forma de

substituir os indivíduos na resolução dos conflitos e para proteger a propriedade.

O conceito de jurisdição enquanto órgão substitutivo das partes para compor o

litígio adotado pelas ciências jurídicas na atualidade vem da filosofia de Locke.

Sua teoria sobre a propriedade foi a base para a formação do Estado liberal. Dizia

Locke que os bens encontrados na natureza foram colocados por Deus à

disposição de todos. “Deus, mandando dominar, concedeu autoridade para a

apropriação; e a condição da vida humana que exige trabalho e material com que

trabalhar necessariamente introduziu a propriedade privada.”

O trabalho realizado individualmente para obter os bens retirados da

natureza representa a passagem para a formação da propriedade privada. Assim,

os frutos colhidos na natureza ou a caça apanhada pelo caçador pertencem a quem

realizou o trabalho para adquiri-lo. Do mesmo modo, a terra cultivada era de

propriedade de quem a cultivou. Mas a colheita dos frutos devia ser limitada a

capacidade de consumo de quem as colheu. Logo, um homem não poderia colher

mais do que o necessário para seu consumo.

A propriedade poderia ser fixada tanto quanto o trabalho do indivíduo

alcançasse, mas sem causar desperdícios, posto que “o excedente ultrapassa a

parte que lhe cabe e pertence a terceiros.” Porém, a troca de bens perecíveis por

bens duráveis para o sustento do indivíduo era permitida. Segundo esse raciocínio

um indivíduo não poderia colher um montante de maças que viessem perecer,

todavia poderia fazer uma colheita desses frutos para trocá-los por nozes e

garantir sua alimentação o ano inteiro.

69 LOCKE, 1994.

48

O ser humano inventou a moeda para intermediar as trocas, atribuindo

valores ao ouro, prata ou outros tipos de metais, que não eram perecíveis e podiam

ser acumulados. Esses metais de pouca utilidade teriam servido para formar um

consenso entre os homens, pelo qual era permitido uma pessoa ter a propriedade

mais extensa do que a outra pessoa. Como recompensa, essa outra pessoa recebe

aqueles metais que podem ser guardados sem causar prejuízos a terceiros, uma

vez que esse metais não se deterioram nas mãos de quem os possui.

Essa possibilidade de uma pessoa ter mais terra do outra só era possível

nas sociedades que conhecessem a moeda. No caso dos habitantes das Américas

não se aplicava essa teoria. Portanto, na visão de Locke não cabia a propriedade

comunal dos indígenas, porque ele tratou apenas da propriedade individual. Ele

admitia que os indígenas teriam a propriedade individual da terra em

conseqüência do emprego de seu trabalho na lavra. Mas tão somente a

propriedade individual.

O Estado moderno consolidou a proteção da propriedade privada com base

na filosofia de Locke. Na mesma direção foi acolhida a teoria da dicotomia

estado/indivíduo formulada por Hobbes.

James Anaya ressalta que os teóricos Samuel Puffendorf (1632-1754) e

Christian Wolf ((1679-1754) assumiram a visão de Hobbes sobre a humanidade

como uma dicotomia entre estados e indivíduos, e começaram a desenvolver um

ordenamento jurídico enfocado exclusivamente nos direitos dos estados –

denominado como Direito das Gentes.

O diplomata suíço Emmer de Vattel (1714-1769), discípulo de Wolf,

aprofundou o desenvolvimento do conceito do Direito das Gentes voltado aos

estados europeus, no qual cada um reclama sua própria autonomia. Na visão de

Vattel, o Direito das Gentes nada mais é que o direito natural, ao qual se aplicam

princípios universais, ressalvando que há diferenças entre os direitos do Estado e

os direitos do indivíduo, e por isso deve haver uma aplicação acomodada “a cada

objeto” que são diferentes.

A dicotomia estado/indivíduo subjacente à construção de Vattel teve uma grande influência no pensamento liberal ocidental. A diferença dos teóricos jusnaturalistas, ao esquema estado/indivíduo reconhece os direitos dos indivíduos por uma parte e a soberania do coletivo social completo por outra. Sem embargo, esta construção não presta atenção para a grande variedade de formas de outras culturas humanas, nem está idealizado para prescrever a esses grupos outros

49

direitos que para eles possam ser deduzidos da liberdade do indivíduo e prerrogativas dos estados. Pelo contrário, a teoria e a ordem jurídica derivados da dicotomia estado/indivíduo assumem que o estado representa o paradigma da associação e aspiração humanas. 70

Essa teoria reflete o pensamento de Hobbes que concebia o Estado como a

associação dos indivíduos, que configurava a nação pelo comprometimento de

todos para realizar o bem comum, compreendendo-se as necessidades

indispensáveis para a comodidade, prazeres e felicidade humana, e a defesa contra

a violência exterior.

O conceito de nacionalismo emergiu na Europa com o objetivo de reconhecer, validar e designar grupos politicamente conscientes, consolidados pelo poder monárquico e coesos por uma série de características culturais, sociais e étnicas comuns. Por sua parte, a estatalidade se desenvolveu em referência à comunidade política pós-westfaliana e o aparato burocrático vinculado a esta, cuja característica organizativa dominante era o território. Estado que se reforçaram mutuamente, daí o termo ‹‹estado-nação››. A convergência conceitual do estado e nação não é senão um corolário da dicotomia estado/indivíduo. 71

Desse modo foram assentadas as bases da doutrina da soberania estatal e

seus corolários de jurisdição exclusiva, integridade territorial e não ingerência nos

assuntos internos. Ressalte-se que essa teoria tem como pressuposto um estado

formado por uma sociedade civil de indivíduos iguais que se unem para defender

sua própria segurança e autopreservação.

Considerando que a proteção jurídica estava voltada para a dicotomia

estado/indivíduo, verifica-se que os povos indígenas só poderiam ser

contemplados se fossem considerados como nação ou como indivíduos. Porém, o

conceito de nação era voltado aos estados europeus, definidos pelo domínio de

uma base territorial, autoridade hierárquica e centralizada. Esse conceito não

poderia ser aplicado aos povos indígenas, que se organizavam por vínculos tribais

ou de parentescos, contavam com estrutura políticas descentralizadas e viviam em

territórios compartilhados ou sobrepostos com outros povos. A inclusão dos

direitos indígenas na esfera individual seria contraditória porque se referia à

propriedade privada da terra, que conforme já exposto, é antagônica à categoria de

70 ANAYA, 2004, p. 50. 71 VATTEL, apud ANAYA, 2004, p. 51.

50

direitos coletivos dos povos indígenas. Logo, a dicotomia estado/indivíduo ou

estado/nação não compreendia os povos indígenas.

Ressalte-se que o direito colonial da Espanha e de Portugal, embora tenha

adotado institutos ambíguos, que inclusive foram aplicados contra os povos

indígenas, como exemplo as guerras justas, incorporou os direitos indígenas,

ainda que em situação de inferioridade.

Já o sistema jurídico do Estado clássico não concebia a existência de

qualquer agrupamento que não fosse enquadrado entre o público e o privado.

Os preceitos do Renascimento, do Iluminismo, da Revolução Francesa e

dos Estados Constitucionais que se consubstanciavam no direito de igualdade e

liberdade, propugnando uma sociedade livre e fraterna, tendo conduzido

mudanças nos valores, nas formas de governar, nas ciências e religião na Europa,

não foram convertidos em benefícios para as populações indígenas das Américas.

De igual maneira, a independência dos Estados das Américas não

contemplou os povos indígenas. Ao contrário, serviu para fortalecer o poder das

oligarquias que se estabeleceram no novo continente. Assim, a ruptura do

colonialismo não implicou o fim da exploração dos povos indígenas.

O século XIX foi marcado na América Latina, pela criação de Estados nacionais, alguns majoritariamente indígenas, mas construídos à imagem e semelhança dos antigos colonizadores: Estado único e Direito único, na boa proposta de acabar privilégios e gerar sociedades de iguais, mesmo que para isso tivesse que reprimir de forma violenta ou sutil as diferenças cultuais, étnicas, raciais de gênero, estado ou condição. A idéia de que todos os indivíduos estariam convertidos em cidadãos, ou pelo menos de que todo o indivíduo teria direito a se tornar cidadão, traduzia-se na assimilação, absorção, ou integração dos povos culturalmente diferenciados. Esta integração que do ponto de vista dos dominantes era o oferecimento de ‘conquistas do processo civilizatório’, sempre foi vista pelos dominados como política de submissão dos vencidos. A projetada interação jamais se deu, não só porque as sociedades latino-americanas não ofereceram oportunidades de integração, mas também porque a integração nunca pôde ser sinceramente aceita pelos povos indígenas. A idéia de integrá-los, que se iniciou, talvez, como uma boa intenção, transformou-se rapidamente em deslavado cinismo. A integração passou a ser discurso culto dos textos e das leis, enquanto na prática, a cordialidade de integração se transformava na crueldade da discriminação. Um sistema jurídico que se pretende uno e regido por um Estado impessoal e poderoso não podia fazer melhor do que os conquistadores portugueses e espanhóis. A nova sociedade tirou dos indígenas tudo o que eles tinham, especialmente a sua identidade, para lhes oferecer uma integração que nem mesmo os brancos pobres, embebidos pela cultura burguesa lograram conseguir. Os colonialistas roubavam o ouro, a madeira, a vida dos indígenas, dizendo que

51

queriam purificar sua alma, não para entregar a um deus, mas para igualá-las a de todos os pobres e, então, despojados de vontade, apropriar-se de seus bens.72

Os indígenas tornaram-se invisíveis perante o direito não só porque os

Estados os omitiram, mas porque suas constituições diziam que existia uma única

cultura, um só povo, todas as pessoas tinham direitos iguais, sem diferenças

étnicas.

3.1.

Como a Espanha tratou as terras indígenas - O direi to indiano

A conquista da América pela Espanha atingiu um amplo território. Tanto a

conquista como a manutenção das colônias exigia uma estrutura administrativa e

um corpo normativo para o controle das terras e da população.

A monarquia espanhola criou o Conselho das Índias, situado em Madri,

como órgão de consulta sobre os negócios da colônia. O Conselho era formado

por pessoas de confiança do monarca.

Foram nomeados os governadores, que inicialmente eram as autoridades

máximas da colônia, e do mesmo modo dos donatários portugueses no Brasil, eles

podiam dispor de terras e indígenas. Posteriormente foram criados o Vice-Reinado

do México e o Vice-Reinado do Peru, que passaram a representar a coroa na

colônia.

O direito indiano é o conjunto de normas que foram aplicadas pela

Espanha durante o período colonial nas Américas. Esse conjunto de normas foi

formado com base em institutos medievais e feudais com influência de

instituições indígenas. O direito indiano recebeu influência direta do debate entre

o Frei Bartolomé de Las Casas e Francisco de Vitória. A proposta de Las Casas

era pela retirada do império. Vitória discordava da forma como estava sendo

aplicado o direito indiano, mas mantinha uma postura ambígua, propondo que

fossem estabelecidas normas para disciplinar as relações de modo que atendesse à

diversidade dos povos, o que originou o direito das gentes.73

Assim, foram criados institutos que incentivaram o avanço sobre novas

terras, a exploração das riquezas e submissão dos povos indígenas. Dentre tais

72 SOUZA FILHO, 1999a, p. 63. 73 Ibid., p. 51.

52

institutos, destacam-se os repartimentos, as encomendas, os resguardos e a mita,

que viabilizaram a formação de fazendas, exploração da agricultura, extração de

minérios, a manutenção da colônia e das missões.

Os repartimentos correspondiam à divisão dos territórios e povos

indígenas após a pacificação para o pagamento de tributos para a autoridade

espanhola. A administração dos repartimentos era de responsabilidade dos chefes

indígenas.

As encomendas consistiam na entrega de uma terra e de seus índios para

um espanhol, que tinha o direito de explorar a terra e os indígenas. Na primeira

fase, a encomenda era um instituto de servidão - encomenda de serviços” - e

posteriormente foi adaptada para a arrecadação de tributos - “encomenda de

tributos”. Inicialmente a encomenda era intransferível e limitada a curto espaço

de tempo. Com o passar dos anos foi ampliando o período de exploração para toda

a vida e mais tarde se estendeu para uma próxima geração. O encomendeiro

cobrava e recebia os impostos para a coroa, porém não podia explorar os serviços

dos indígenas. Esse sistema foi aplicado entre os povos que já mantinham um

sistema de arrecadação de tributos (maias, astecas, incas).

Os resguardos, os quais eram entregues aos caciques, eram formados por

determinadas porções de terras repassadas a uma comunidade para fins de

moradia e exploração. A coroa mantinha a terra sob seu domínio e nomeava uma

autoridade para controlá-la; o “corrigidor de índios”, que juntamente com o padre

e o cacique controlava os bens materiais dos indígenas, incluindo os lucros

oriundos da comercialização dos produtos dos resguardos. Na prática, o resguardo

significava o domínio e a submissão do povo indígena.

A mita, a qual se aplicava aos povos submetidos aos resguardos, era uma

instituição trabalhista, caracterizada pelo trabalho obrigatório e remunerado dos

indígenas. Esta instituição apresenta semelhanças com a servidão feudal, exceto o

caráter de perpetuidade.

3.2.

Como Portugal tratou as terras indígenas - As sesma rias

Portugal editou várias leis sobre os povos indígenas, contudo não chegou a

construir um sistema parecido com o do direito indiano. Durante o período

53

colonial foram aplicadas integralmente as Ordenações do Reino, que eram

dirigidas a Portugal e foram adaptadas por meio de interpretações ao Brasil. Não

houve em Portugal teóricos com destaque semelhante aos jusnaturalistas

espanhóis. O debate entre Las Casas e Francisco de Vitória também influenciou o

direito aplicado pela coroa portuguesa.

Basicamente a legislação colonial determinou bom tratamento aos índios

que se submetessem à catequese e a guerra justa aos que se mostrassem inimigos.

Reiteradamente as leis proibiam a escravização dos indígenas, o que faz

presumir que essas leis eram constantemente violadas. A proibição da escravidão

indígena acontecia – não por livre vontade dos portugueses, mas em decorrência

da revolta dos indígenas que causavam danos ao colonizador.

Destaca-se na legislação colonial, o instituto da sesmaria, criado por lei

pelo rei D. Fernando, no dia 2 de junho de 1375, obrigando a lavra da terra aos

seus possuidores, sob pena de perdimento no caso de não cultivá-las. Na ocasião,

o país se encontrava afetado pela fome generalizada enquanto sobravam terras

para o cultivo. De acordo com a lei, as terras não cultivadas eram transferidas para

terceiros que quisessem trabalhar. A lei contribuiu para o aumento significativo da

produção agrícola em Portugal, que no século seguinte tornou-se uma importante

potência mundial.

As Ordenações Manuelinas reestruturaram as sesmarias em 1514. A

definição legal final aconteceu em 1603, nos seguintes termos.

Sesmarias são propriamente dadas de terras, casas ou pardieiros, que foram ou são de algum senhorio, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são. As quais terras e os bens assim danificados e destruídos podem e devem ser dados em sesmarias pelos Sesmeiros, que para isso forem ordenados.

O texto desse instituto foi reiterado pelas ordenações Filipinas em 1789.

Entretanto, ao contrário dos seus efeitos em Portugal, onde obrigou a lavra da

terra, no Brasil sua ambigüidade serviu para criar o latifúndio improdutivo.

Com a descoberta do Brasil, apesar da realidade totalmente diferente, o Instituto foi aplicado, sem alterações legais, durante todo o período colonial. Não havia, no Brasil, terras de lavradio abandonadas, as terras eram ocupadas por povos indígenas que tinham outras formas de ocupação e de uso. Os povos indígenas, na sua maioria, mantinham plantações e roças em sistema rotativo, permitindo a regeneração permanente da floresta. O Instituto em Portugal era aplicado para terras que já haviam sido lavradas e estavam abandonadas, quer dizer eram terras que já tinham produzido e deveriam

54

voltar a produzir alimentos locais. No Brasil não, o sentido da concessão das sesmarias era o de ocupação, desbravamento, conquista, desrespeitando qualquer tipo de uso indígena. Na verdade a ocupação tinha o sentido de tomar posse das terras em nome do rei e da coroa portuguesa, em sua disputa com a espanhola e outras nações européias. Quer dizer que enquanto em Portugal as sesmarias tiveram o sentido de proporcionar a produção de alimentos para a população, no Brasil foram instrumento de conquista. Pode-se dizer que a intenção de Portugal, ao conceder sesmarias no Brasil, não foi aplacar a fome, mesmo porque a população local era formada por inúmeras nações indígenas, cada qual com sua especificidade e sua dificuldade, mas sem fome. A sesmaria foi, portanto, a forma que Portugal encontrou para promover a conquista do território brasileiro. Na realidade eram concedidas terras para quem quisesse vir ao Brasil, em nome da coroa, ocupá-la, mesmo que para isso fosse necessário perseguir, escravizar, prear ou matar populações indígenas. Era uma espécie de presúria tardia, centralizada e organizada.

O instituto da sesmaria reconheceu aos índios o direito originário das

terras que ocupavam. O instituto direito originário determinava que na concessão

de terras pela coroa deveriam ser reservados os direitos territoriais indígenas.

Manuela Carneiro da Cunha transcreve a Cartas Régias de Felipe III, de 10

de setembro de 1611, pela qual fica afirmado o domínio dos índios sobre seus

territórios e terras que lhes são alocadas nos aldeamentos.74

(...) os gentios são senores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer molestia ou injustiça alguma, nem poderão ser mudados contra suas vontades das captianias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quizerem fazer (...)

O Alvará 1º de abril de 1680 declara explicitamente que a Coroa

Portuguesa ao conceder as sesmarias deveria manter reservado o direito dos

indígenas às terras, que eram seus “primários e naturais senhores”.

Nesse mesmo sentido, o Alvará de 1.4.1680, parágrafo 4, estabelece que:

(...) E para que os ditos Gentios, que assim decerem e os mais, que a de presente, melhor se conservem nas Aldeas: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer molestia. E o Governador com parecer dos ditos Religiosos assinará aos que descerem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, cultivarem, e não poederão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontadem nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejam dadas em Sesmaria e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muita mais se entende, e quero se entenda ser resevado o prejuízo, e direito os índios, primários e naturais senhores delas (...).

74 CUNHA, 1987, p. 58.

55

O instituto do direito originário era permeado de ambigüidades, vez que

era sesmeiro quem definia o que era a terra a ser reservada para os indígenas. Na

prática, as terras reservadas foram aquelas utilizadas para a formação dos

aldeamentos após a pacificação.

De qualquer modo, o instituto do direito originário, direito cogenito ou

indigenato foi o principal instrumento de defesa das terras indígenas e firmou-se

na legislação brasileira. João Mendes Junior argumentou que desde o domínio

colonial português, os direitos territoriais indígenas são reconhecidos, por serem

anterior à existência do próprio Estado. Sendo assim, a demarcação das terras

apenas reconhece um direito preexistente.75

A Constituição Federal de 1988 adotou a teoria do indigenato ao

reconhecer os direitos originários dos povos indígenas sobre as terras que ocupam

tradicionalmente, definindo como ocupação tradicional as áreas ocupadas para

fins de habitação, desenvolvimento de atividades produtivas, preservação do meio

ambiente e bem - estar social conforme seus usos e tradições.

3.3.

Legislação indigenista do Brasil

O Brasil é habitado por cerca de 220 povos indígenas, com população de

aproximadamente 400 mil pessoas, que falam 180 línguas. Os povos indígenas

localizam-se em 626 terras, totalizando 104.932.650 hectares, que representam

12, 33% do território nacional. Na Amazônia localizam-se 405 T.I., com extensão

de 103.483.167 hectares, representando 20, 67% da desta região e 98,61 % das

terras indígenas do país.76

Até 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal, a legislação

brasileira determinava a integração do índio na sociedade, ou seja, a sua

transformação em não-índio. A política integracionista gerou conflitos

permanentes com a cultura e os sistemas tradicionais de saúde, educação e

sustentação econômica dos povos indígenas.

75 Ver MENDES JUNIOR. 76 Disponível em: <http://www.socioambiental.org>.

56

Com a Constituição Federal de 1988, iniciou-se um processo de mudanças

significativas para o direito dos povos indígenas, ao dedicar um capítulo inteiro à

temática. O art. 231 reconheceu expressamente a organização social, costumes,

línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários sobre as terras que

tradicionalmente ocupam.

Ao proteger a organização social, os usos e costumes, a Constituição

derrogou a legislação infraconstitucional, especialmente o Estatuto do Índio (Lei

6001/1973) no que se refere à integração do índio na sociedade nacional e

garantiu a continuidade dos modos de vida e culturas dos diferentes povos

indígenas.

O § 1° do artigo 231 da Constituição de 1988 preceitua:

são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

No que se refere a gestão territorial indígena, a Lei 6001/1973 estabelece

que o órgão indigenista é responsável pela administração do patrimônio indígena.

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 2.05719/1991, o qual tem a

previsão de que a gestão do patrimônio indígena será feita pelos próprios

indígenas. Pela nova lei, quando aprovada, o órgão indigenista será responsável,

apenas pela qualificação dos indígenas para a gestão territorial. Nesse sentido, a

Convenção 169 da OIT, ratifica pelo Brasil em 2002, portanto, integrante do

ordenamento jurídico brasileiro, prevê que os povos indígenas devem participar

de todas as instâncias administrativas e legislativas que tratam dos seus direitos e

interesses, notadamente relacionadas ao território.

De acordo com o § 2°do artigo 231, as terras indígenas destinam-se à

posse permanente dos índios, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do

solo, dos rios, e dos lagos nelas existentes. No tocante aos recursos minerais e sua

exploração, quando situados em terras indígenas, dependerá de autorização do

Congresso Nacional, ouvidas as comunidades indígenas e assegurando a elas a

participação nos resultados da lavra.

57

3.4.

Legislação indigenista da Colômbia

O território colombiano tem uma superfície de 1.100.000 km². O país é

habitado por 81 povos indígenas, com população de 620.020 pessoas, que

representa 1,16% de toda população colombiana.77

Durante um século, a Lei 89 de 25 de novembro de 189078, que institui os

resguardos indígenas, foi o principal instrumento jurídico de proteção dos

territórios indígenas. O capítulo I da lei, que trata das disposições gerais e

transitórias, estabeleceu que a “a república geral não regirá para os povos

indígenas, que terão um estatuto especial de autogoverno e auto-administração.”79

Com base nessa lei, os povos indígenas da Colômbia lutaram para exercer a

autonomia sobre seus territórios.

O principal efeito político e social desta regulamentação foi a consolidação dos primeiros resguardos indígenas, nos quais se mantinha a propriedade coletiva e inalienável dos territórios índios, administrados autonomamente por suas autoridades e segundo seus usos e costumes. Os povos Indígenas adaptaram a instituição dos resguardos, desenhada para reduzi-los e obrigá-los a começar um processo de assimilação cultural e desaparecimento definitivo, a um espaço vital de conservação, no qual puderam continuar seu desenvolvimento cultural sem interferências estatais, religiosas e privadas.80

Com o transcorrer do tempo, a maioria das comunidades indígenas se

encontravam protegidas pelos resguardos. Todavia, insurgiram-se movimentos

contrários por parte dos colonos que fizeram pressão para extinguir os resguardos,

alegando que estes limitavam a propriedade da terra.

O movimento contrário aos direitos territoriais indígenas resultou na

edição da Lei 55 de 1905, que declarou “como vacantes os globos de terrenos

reconhecidos como ‘Resguardos Indígenas’, e se reconheceu como título legal de

propriedade desses terrenos os adquiridos por rematadores em hasta pública.81”

Em reação à extinção dos resguardos indígenas, surgiu o movimento

indígena Quintim Lame, liderado pelas etnias Páeces, que promoveu um levante 77 Dados sobre a população indígena nas Américas em 1995, citados pela Fundação Nacional do Índio – Funai. In. Informações sobre os índios e sobre a questão indígena no Brasil. 78 A Lei 89 de 1890 tinha como título: La manera como deben ser governados los selvajes que vayan reduciéndose a la vida civilizada”. 79 Citado por ROJAS, p. 10. 80 Ibid., p. 10. 81 Ibid., p. 11.

58

nos anos de 1916 e 1917 no Departamento de Cauca. Esse movimento

reivindicou a recuperação das terras dos resguardos e sua ampliação, o

fortalecimento da administração dos resguardos e o não pagamento impostos pela

terra, dentre outras medidas. Essas questões seguiram como bandeira do

movimento indígena durante todo o século XX.

Os anos seguintes aos levantes de 1916 e 1917 foram marcados pela

tentativa do Estado em impor uma legislação e políticas assimilacionistas e a

resistência dos povos indígenas em defesa de seus direitos territoriais e culturais.

Na década de 1980 quase todos os resguardos estavam reconhecidos. Os

povos indígenas seguiram lutando em defesa do reconhecimento de suas terras e

lograram participar na Assembléia Nacional Constituinte em 1991, por meio de

seus representantes. A participação dos representantes indígenas foi tão relevante,

que foram criadas duas vagas especiais para a eleição de senadores indígenas,

garantindo assim, a participação de representantes indígenas no Congresso

Nacional. A exigência fixada para a eleição do senador é de que o concorrente

tenha exercido algum cargo de direção da comunidade ou de uma organização

indígena.

A Constituição da Colômbia de 1991 inovou significativamente ao tratar

dos direitos indígenas. O art. 7 afirma o caráter multiculturalista do país,

reconhecendo e determinando proteção à diversidade étnica e cultual.

O art. 286 estabelece que “São entidades territoriais os departamentos, os

distritos, os municípios e os territórios indígenas.” Desse modo, as terras

indígenas receberam expressamente o status jurídico de entidade territorial.”

Nos termos do art. 287, as entidades territoriais gozam de autonomia para

a gestão de seus interesses dentro dos limites da lei e da Constituição. Em virtude

da autonomia têm os seguintes direitos: governar-se por autoridades próprias;

exercer as competências que lhes correspondem; administrar os recursos e

estabelecer os tributos necessários para o cumprimento de suas funções; e

participar das rendas nacionais.

De acordo com o art. 329, a conformação das entidades territoriais

indígenas será definida em lei orgânica de ordenamento territorial, e sua

delimitação far-se-á pelo governo nacional, com a participação dos representantes

59

das comunidades indígenas e prévio conceito da comissão de ordenamento

territorial. Os resguardos são de propriedade coletiva e inalienável.

O art. 330 estabelece que os territórios indígenas serão governados por

conselhos conformados e regulamentados conforme os usos e costumes das

comunidades e exercerão as seguintes funções:

a) Velar pela aplicação das normas legais sobre o uso do solo e povoamento dos

seus territórios. b) Desenhar e desenvolver as políticas, os planos e programas de desenvolvimento

econômico e social dentro de seu território, em harmonia com o plano nacional de desenvolvimento.

c) Promover as inversões públicas em seus territórios e velar por sua devida execução.

d) Receber e distribuir recursos. e) Velar pela preservação dos recursos naturais. f) Coordenar os programas e projetos promovidos pelas diferentes comunidades em

seu território. g) Colaborar com a manutenção da ordem pública dentro de seu território de acordo

com as instruções e disposições do governo nacional. h) Representar os territórios ante ao governo nacional e as demais entidades das

quais se integram; e as que dispuserem a Constituição e a lei. i) Parágrafo. A exploração dos recursos naturais nos territórios indígenas ocorrerá

sem deteriorar a integridade cultural, social, e econômica das comunidades indígenas. Nas decisões que se adotem a respeito da dita exploração, o governo propiciará a participação dos representantes das respectivas comunidades.

Como se pode observar, a Constituição da Colômbia elencou

significativamente as competências da autoridade indígena nas questões

relacionadas à gestão da terra. Comparando com a legislação brasileira em que a

herança da tutela tem levado a interpretações ambíguas que têm permitido ao

órgão indigenista decidir sobre a gestão do patrimônio territorial indígena,

verifica-se que a Carta Política supera essa visão estatocêntrica.

O art. 246 confere poderes para as autoridades dos povos indígenas

exercerem as funções jurisdicionais no interior de suas terras, de acordo com suas

próprias normas e procedimentos, devendo atuar de acordo com a Constituição e

as leis da República. A lei 270 de 7 de março de 1996, que regulamentou o

presente artigo preconizou que:

As autoridades dos territórios indígenas previstas na Lei exercem suas funções jurisdicionais unicamente dentro do âmbito de seu território e conforme as suas próprias normas e procedimentos, os quais não poderão ser contrários à Constituição e às Leis, Estas últimas estabelecerão as autoridades que exercem o controle de constitucionalidade e a legalidade dos atos proferidos pelas autoridades dos territórios indígenas.

60

Desse modo, foram estabelecidos como critérios para a jurisdição indígena

a atuação relacionada ao âmbito interno da comunidade e o controle estatal da

constitucionalidade e legalidade do atos.

Acrescente-se que em 1991 a Colômbia ratificou a Convenção 169 da OIT.

3.5.

Legislação indigenista do Equador

O Equador tem uma superfície de 283.600 Km². O país é habitado por 12

povos indígenas, totalizando uma população de 5.400.000 pessoas, representando

43% da população geral.82

A construção do Estado Nação do Equador não considerou a existência

dos povos indígenas. Seguiu a linha de um estado monista, impondo a

evangelização, a escolarização, o ensino do espanhol e a tutela aos indígenas.

Em sua única menção aos índios, o art. 68 da Constituição de 1830

expressou o pensamento da época: “Este Congresso Constituinte nomeia os

venerais curadores paroquiais por tutores e pais naturais dos indígenas, incitando

seu ministério de caridade em favor desta classe inocente, abjeta e miserável.”

Assim, evidenciava que para o Estado os povos indígenas eram

relativamente incapazes para exercer seus direitos. A ideologia da Constituição

era voltada para firmar um estado, excludente, homogêneo e, portanto, negador da

diversidade existente.

De 1835 até 1929 foram promulgadas 12 constituições pelo Equador sem

fazer referência específica aos povos indígenas como sujeito de direito.

A legislação que se formou no primeiro século republicano apenas tratou

os indígenas enquanto camponeses, negando-lhes a identidade própria. Como

reação, os indígenas encaminharam suas lutas no espaço permitido, participando

do movimento sindical do país.

82 Informe de Nina Pacari, Ecuador, apresentado no Encontro Estratégico de Organizações-Redes pela Incidência, realizado na Costa Rica no período de 19 a 21 de agosto de 2003, com apoio do Instituto Interamericano de Direitos Humanos – IIDH.

61

Nina Pacari83 afirma que em matéria de legislação sobre os povos

indígenas, ocorreu a total ausência de reconhecimento dos direitos indígenas

desde 1830 até 1998, quando foi promulgada a Constituição.

O art. 1º da Constituição preconiza que o Equador é um Estado

pluricultural e multiétnico.

A Constituição abordou amplamente os direitos coletivos. Diz o art. 84:

O Estado reconhecerá e garantirá aos povos indígenas, de conformidade com esta Constituição e a lei, o respeito à ordem publica e aos direitos humanos os seguintes direitos coletivos:

a) Manter, desenvolver e fortalecer sua identidade e tradições relacionadas ao espiritual, lingüístico, social, social, político, e econômico.

b) Conservar a propriedade imprescritível das terras comunitárias que serão inalienáveis, inembargáveis, e indivisíveis, salvo a faculdade do Estado para declarar a utilidade pública. Estas terras estarão isentas do pagamento de imposto predial.

c) Manter a posse ancestral das terras comunitárias e obter sua adjudicação gratuita, conforme a lei.

d) Participar do uso, usufruto, administração e conservação dos recursos naturais renováveis existentes em suas terras.

e) Ser consultado sobre planos e programas de prospecção, e exploração dos recursos não-renováveis que existam em suas terras e que possam afetá-los ambiental ou culturalmente; participar dos benefícios que esses projetos reportem, e no que seja possível receber indenizações pelos prejuízos socioambientais que lhes causem.

f) Conservar e promover políticas de manejo da biodiversidade e de seu entorno natural.

g) Conservar e desenvolver suas formas tradicionais de convivência e organização social, de geração e exercício de autoridade (...)

Consoante o art. 191:

as autoridades dos povos indígenas exercerão as funções da justiça, aplicando normas e procedimentos próprios para a solução de conflitos internos de conformidade com seus costumes ou direito consuetudinário, sempre que não sejam contrários à Constituição, e às leis.

O art. 228 estabelece uma administração autônoma para as circunscrições

indígenas a ser definida por leis.

Verifica-se que a Constituição do Equador foi influenciada pela

Convenção 169 da OIT. Foram reconhecidos os direitos territoriais, cultuais, a

83 Informe de Nina Pacari, Ecuador, apresentado no Encontro Estratégico de Organizações-Redes pela Incidência, realizado na Costa Rica no período de 19 a 21 de agosto de 2003, com apoio do Instituto Interamericano de Direitos Humanos – IIDH.

62

autonomia, a jurisdição e a governança indígena. Todavia falta regulamentar a

Constituição.

3.6.

Legislação indigenista do Panamá

A superfície do Panamá totaliza 75.520 km². Vivem no país 8 povos

indígenas, com população de 285.231, que corresponde a 10% de toda

população.84

O Panamá fazia parte da Colômbia até separar-se em 1903. Antes, as

autoridades da Colômbia subscreveram um convênio com os chefes Dules (Kuna),

reconhecendo as terras desse povo, denominando-as comarcas (1870-1871).

A Constituição de 1941 estabeleceu a categoria de comarcas na divisão

territorial do Panamá e permitiu que as comarcas indígenas fossem reconhecidas

como unidades administrativas.

Cada comarca é administrada por um congresso e autoridades tradicionais

indígenas. A comarca é criada por lei, tendo autonomia administrativa. É

expressamente definido que as autoridades da comarca não têm competência na

área penal. Em razão dessa questão, o Panamá ainda não ratificou a Convenção

169 da OIT, que cria a possibilidade dos indígenas interferirem na administração

da justiça de acordo com seus usos e costumes. A interferência deve obedecer aos

princípios universais dos direitos humanos. Ainda assim, o Panamá não se

convenceu suficientemente para ratificá-la.

84 Informe de Hector Huertas, Panamá, . apresentado no Encontro Estratégico de Organizações-Redes pela Incidência, realizado na Costa Rica no período de 19 a 21 de agosto de 2003, com apoio do Instituto Interamericano de Direitos Humanos – IIDH.

63

4

Autodeterminação, autogoverno e autonomia dos povos

indígenas

Nas últimas décadas vem acontecendo um intenso debate entre os povos

indígenas e os Estados sobre a autodeterminação, autogoverno e autonomia

indígena. Nesta parte do estudo será abordado o Projeto de Declaração das Nações

Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em tramitação na ONU, e o Projeto

de Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, que tramita na OEA.

Tanto a participação dos indígenas nos fóruns destas instituições, que são

organismos de Estados, assim como o conteúdo dos projetos de declaração, vêm

seguindo um longo processo de negociação e convencimento dos Estados.

James Anaya85 apresenta o histórico da participação indígena junto à ONU

e a OEA fazendo referência aos anos sessenta, quando indígenas dos Estados

Unidos educados segundo as fórmulas da sociedade que historicamente os havia

oprimido, iniciaram discussões sobre suas demandas enquanto comunidades

diferenciadas, especialmente em questões relacionadas à terra e à cultura. Na

década de setenta, foram feitos esforços no âmbito internacional, por meio de

conferências e pronunciamentos diretos das lideranças junto às instâncias

intergovernamentais. Tais esforços consistiram em verdadeiras campanhas de

âmbito global, apoiadas por organizações não - governamentais internacionais,

bem como por uma importante produção acadêmica sobre as perspectivas morais,

sociológicas e jurídicas da situação indígena. A produção acadêmica contribuiu

para legitimar as demandas dos povos indígenas nos círculos e elites intelectuais

mais influentes. Em 1977, as organizações indígenas foram credenciadas para

participar na condição de observadores do Conselho Econômico e Social da ONU

– ECOSOC.

85 ANAYA, 2004.

64

Concomitante às manifestações indígenas, desencadeou-se um processo de

afirmação dos direitos indígenas. No ano de 1971, o ECOSOC autorizou a

Subcomissão de Prevenção de Discriminação e Proteção das Minorias das Nações

Unidas a realizar um estudo sobre a discriminação das populações indígenas. O

estudo teve como relator especial José Martinez Cobo. Os informes dos estudos

foram distribuídos entre os anos de 1981 e 1983.

Em 1982, com base nas recomendações do estudo de José Martinez Cobo

e manifestações de representantes indígenas e de ONGs, a ONU criou o Grupo de

Trabalho sobre Populações Indígenas. Este Grupo de Trabalho era vinculado à

Subcomissão para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, que por sua vez

era um órgão da Comissão de Direitos Humanos do ECOSOC.

No ano de 1985 o Grupo de Trabalho foi encarregado de elaborar um

projeto de declaração dos direitos dos povos indígenas. O Grupo de Trabalho

realizou diversas sessões e aprovou o Projeto de Declaração das Nações Unidas

sobre os Direitos dos Povos Indígenas em 1993. O projeto foi encaminhado para a

Subcomissão de Prevenção de Discriminação e Proteção das Minorias, que o

acolheu em 1994 e em seguida o submeteu à Comissão de Direitos Humanos. O

texto do projeto correspondia às demandas dos povos indígenas, mas sofreu

resistência por parte de muitos Estados.

A Comissão de Direitos Humanos criou um grupo de trabalho ad hoc para

estudar o projeto de declaração, que o submeteu a novas discussões entre os

representantes indígenas e os Estados.

A Resolução 60/251 da Assembléia Geral da ONU, de 15 de março de

2006, criou o Conselho de Direitos Humanos, em substituição à Comissão de

Direitos Humanos, atribuindo – lhe como missão subsidiar diretamente a

Assembléia Geral.

Em sua primeira sessão o Conselho colocou em pauta a discussão do

projeto de declaração, o qual foi aprovado no dia 29 de julho com trinta votos a

favor, dez abstenções, dois contra e cinco ausentes.86 O projeto de declaração será

86 Votos a favor: Camarão, Ilhas Maurício, África do Sul, Zâmbia, China, Índia, Indonésia, Japão, Malásia, Paquistão, República da Coréia, Arábia Saudita, Sri Lanka, República Checa, Azerbaijão Polônia, Romênia, México, Peru, Brasil, Cuba, Equador, Guatemala, Uruguai, Suíça, Finlândia, França, Alemanha, Holanda, United Kingdom. Votos contra: Canadá e Federação Russa. Abstenções: Marrocos, Argélia, Gana, Nigéria, Senegal, Tunísia, Bangladesh, Filipinas, Ucrânia e Argentina. Ausentes: Djibouti, Gabão, Mali, Jordânia, Bahrain.

65

encaminhado para a Assembléia Geral da ONU, que decidirá em última instância

a respeito de sua aprovação.

O art. 3 do projeto de declaração diz o seguinte:

Os povos indígenas têm o direito à livre determinação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e político. Os povos indígenas, ao exercer seu direito de livre determinação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, assim como os meios para financiar suas funções de autonomia.

Uma vez que dentre outros direitos, o texto reconhece a autodeterminação,

o autogoverno e a autonomia dos povos indígenas, o Caucus (Conclave) indígena,

que acompanhava a sessão do Conselho, na mesma data manifestou – se favorável

aos termos do projeto de declaração e convidou os Estados para atuarem por sua

aprovação final.

No âmbito regional, em 1989 a Assembléia Geral da OEA aprovou a

Resolução 1022 (XIX-089), pela qual propôs a adoção de um instrumento para a

defesa dos direitos humanos dos povos indígenas. Em cumprimento à Resolução,

a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH fez uma rodada de

consulta aos Estados e aos povos indígenas dos continentes americanos sobre qual

deveria ser o conteúdo do referido instrumento. Os resultados da consulta foram

publicados no Informe Anual 1992/1993 da CIDH. No dia 26 de fevereiro de

1997, a CIDH aprovou o Projeto de Declaração Americana dos Direitos dos

Povos Indígenas. Em 1999 a Assembléia Geral da OEA criou um grupo de

trabalho formado por representantes dos seus Estados membros e vinculado ao

Comitê sobre Assuntos Jurídicos e Políticos do Conselho Permanente, para

discutir o projeto de declaração. Desde 2001 esse Grupo de Trabalho vem

realizando sessões anuais em Washington com a participação de representantes

indígenas.

O Grupo de Trabalho também tem promovido reuniões especiais com

expertos indígenas e rodadas de negociação para buscar o consenso e aprovação

do projeto de declaração. Atendendo às solicitações do movimento indígena, em

2005 o Grupo de Trabalho realizou uma sessão na Guatemala e na segunda

quinzena de março de 2006 no Brasil. A partir das reuniões realizadas no território

dos Estados membros, os representantes indígenas esperam sensibilizar seus

66

governos para fortalecer a participação indígena no processo de discussão do

projeto de declaração e avançar nas negociações com os Estados.

Tendo em vista que a OEA é um organismo de Estado, que pelo seu

procedimento comum o direito à palavra seria de exclusividade dos Estados,

pode-se considerar um avanço que em suas reuniões haja a participação dos

indígenas com direito a voz, cujas manifestações estão sendo anotadas como parte

dos documentos oficiais. Essa foi uma reivindicação do movimento indígena na

primeira sessão realizada em 2001, que chegou a ameaçar de retirar-se dos debates

se suas palavras não fossem consideradas no processo de formulação do projeto

de declaração, o que no mínimo resultaria em constrangimento aos Estados.

As controvérsias deste projeto são as mesmas relacionadas ao projeto de

declaração da ONU, o que é uma conseqüência natural, já que os países

integrantes da organização regional também fazem parte do organismo mundial.

Considerando a aprovação do Projeto de Declaração Universal dos Direitos dos

Povos Indígenas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, espera-se que essa

decisão venha se refletir favoravelmente aos andamentos do Projeto de

Declaração Americana da OEA.

No momento, fica a expectativa de que a Assembléia Geral da ONU e o

Grupo de Trabalho da OEA impulsionem a aprovação final dos seus projetos de

declaração. Observe-se apenas que uma declaração não tem efeito jurídico

vinculante87, como acontece com as convenções. De qualquer modo, a aprovação

dos projetos de declaração da ONU e da OEA poderão servir para estabelecer

novas relações entre os povos indígenas, os Estados e os organismos

internacionais.

Feitos os comentários sobre os andamentos dos projetos de declaração da

ONU e da OEA, seguem as questões controvertidas.

Os representantes indígenas argumentam que deve ser adotada a expressão

povos indígenas para expressar sua organização social, política e cultural,

enquanto o termo população tem significado impróprio, vez que não reflete a

existência das instituições indígenas. Eles defendem também que a expressão

território indígena se relaciona adequadamente à sua cosmovisão sobre as áreas

que ocupam, enquanto terra tem um conceito limitado e privatista.

87 Flávia Piovesan discorda desta interpretação “legalista”. PIOVESAN, 2002, p. 163.

67

As lideranças indígenas defendem que os Estados reconheçam-lhes a

autodeterminação, o autogoverno, a autonomia e o direito costumeiro para que os

próprios indígenas possam administrar seus territórios. Na visão das lideranças

indígenas, a autodeterminação é o direito pelo qual os povos indígenas

desenvolvem sua identidade política, econômica, social e cultural.

De acordo com tais lideranças, o autogoverno é constituído pelas

autoridades, instituições e as formas próprias das comunidades se organizarem

internamente para decidirem sobre suas vidas.

O direito costumeiro na concepção indígena é o sistema de normas

desenvolvidas por suas comunidades secularmente e que orientam suas relações

internas.

Na proposta do movimento indígena internacional, os conceitos de povos,

territórios, autodeterminação, autogoverno e direito costumeiro se inter-

relacionam e se complementam, por isso devem ser interpretados de forma

conjunta.

Os Estados apresentam resistência, quando não se opõem a reconhecer os

direitos coletivos indígenas, alegando que estes já são protegidos pelos princípios

universais dos direitos humanos. Defendem que sejam utilizadas as expressões

populações indígenas em vez de povos, e terras no lugar de territórios. Não

admitem incluir entre os direitos indígenas a autodeterminação, a autonomia, o

autogoverno e o direito consuetudinário, afirmando que todos esses termos são

próprios para fazer referência aos Estados e se fossem aplicados em relação aos

povos indígenas implicaria prejuízos à soberania estatal, possibilitando que os

povos indígenas criassem novos Estados.

Os povos indígenas argumentam que não pretendem criar novos Estados e

que uma declaração não se prestaria para esse fim. Na realidade, as alegações dos

Estados são de natureza política e demonstram a falta de interesse para acolher os

direitos coletivos específicos dos povos indígenas. Além disso, nem sempre as

discussões nos fóruns internacionais são fundamentadas tecnicamente.

Há representantes de Estados que argumentam que pelo fato de a ONU ser

formada por 198 países e a OEA por 35 países, com distintas realidades políticas,

jurídicas e culturais, seria normal a falta de consenso para aprovar os projetos de

declaração. De certo modo esse argumento é válido já que se trata de um

expressivo número de países tratando de temas tão complexos. Mas essa

68

diversidade de países não pode obstacularizar os andamentos dos projetos de

declaração.

Letícia Borges da Silva88 esclarece que os tratados de direitos humanos em

geral estabelecem “patamares mínimos de proteção”. Esses tratados definem

“princípios básicos, um piso abaixo do qual os direitos não podem cair, mas não

representam um teto, isto é, o máximo de direitos que se pode alcançar” É

necessário, portanto, que haja flexibilidade para que sejam afirmados os princípios

básicos dos direitos indígenas.

Há lideranças do movimento indígena internacional que defendem que o

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que são tratados que afirmam que

“todos os povos têm direito autodeterminação”, também contemplariam a

autodeterminação dos povos indígenas.

Ocorre que a interpretação dos Estados é de que os dispositivos do Pacto

Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais referem-se apenas à autodeterminação do Estado

e que aos índios aplicam-se os demais dispositivos extensivos a todos os cidadãos.

O art. 1º, item 3, da Convenção 169 da OIT faz a ressalva de que “a

utilização do termo ‘povos` na presente Convenção não deverá ser interpretada no

sentido de ter implicação alguma no que tange aos direitos que possam ser

conferidos a esse termo no direito internacional.”

A Convenção I69 da OIT foi escrita com essa ressalva para mediar o

confronto entre os Estados e os representantes indígenas. Se por um lado o

pragmatismo viabilizou a promulgação da Convenção, que indubitavelmente traz

avanços significativos, também é verdade que as lideranças indígenas nunca se

conformaram com tal ressalva.

Embora seja quase infinita a controvérsia sobre a autodeterminação e a

autonomia dos povos indígenas, sobejam dúvidas sobre o significado e as suas

conseqüências jurídicas desses institutos.

Vejam-se as lições de Norberto Bobbio89 sobre a autodeterminação:

Geralmente entende-se por Autodeterminação ou autodecisão a capacidade que populações suficientemente definidas étnica e culturalmente têm para dispor de si

88 SILVA, L., 2006, p. 133. 89 BOBBIO et. al., 1995, p. 72 et seq.

69

próprias e o direito que um povo dentro de um Estado tem para escolher a forma de Governo. Pode portanto distinguir-se um aspecto de ordem internacional que consiste no direito de um povo não ser submetido à soberania de outro Estado contra sua vontade e de se separar de um Estado ao qual não quer estar sujeito (direito à independência política) e um aspecto de ordem interna, que consiste no direito de cada povo escolher a forma de Governo de sua preferência.

O citado autor esclarece que os primeiros enunciados do princípio da

autodeterminação surgiram com a Revolução Francesa. Apresenta como exemplo

o relato de Merlin Douai, encarregado pela Constituinte para estudar a questão da

Alsácia, que fez a seguinte afirmação: “O povo alsaciano uniu-se ao povo francês

por sua própria vontade. Apenas sua vontade e não o tratado de Münster legitimou

a União.”

A revolução Americana também contribui para a formação da doutrina da

autodeterminação, tendo proclamado o direito à vida, à liberdade e à igualdade, e

o direito de cada povo para organizar e mudar sua forma de governo livremente.

Foram limitados os poderes do governo ao consenso dos governados.

Após a Revolução Francesa, o conceito de Estado patrimonial foi

substituído pelo de soberania da nação. Formou-se a consciência do cidadão e não

do súdito de pertencer a um determinado grupo social, encontrando na consciência

coletiva o conceito de nacionalidade. As doutrinas filosóficas também

contribuíram para a afirmação do princípio da autodeterminação como princípio

de ação política, especialmente os argumentos de Kant sobre a autonomia do

indivíduo e da liberdade como condição de autonomia. Assim, o conceito de

autodeterminação passou a ser desenvolvido juntamente com o conceito de nação

e nacionalidade e do Estado como condição da liberdade humana. Inspirados em

ideais nacionalistas, irrompeu-se na Europa no século XIX, movimentos

inssurrecionistas que culminaram na independência da Grécia, Romênia, Bulgária,

e a Sérvia, tendo também gerado a unificação da Itália e Alemanha.

Norberto Bobbio também esclarece que de um modo geral a doutrina

internacional, baseando-se apenas no aspecto internacional, afirma que a

autodeterminação é um direito que deve ser reconhecido aos povos submetidos à

dominação colonial, a regimes raciais, ou ao domínio estrangeiro, admitindo que

tal direito também seja aplicado aos povos que se encontram sujeitos a um

governo não representativo. Compreende-se como governo não representativo não

somente o Governo racista, mas também aquele que mantém de fato um dos

70

povos que componham a comunidade submetida numa posição de dependência.

Para Bobbio, esta acepção do conceito de representatividade é restritiva e deve-se

ampliar a faixa dos titulares do direito de autodeterminação.

Trata-se, na realidade, de um direito universal: a Autodeterminação, em sua dupla acepção de direito interno e internacional, deve assegurar a qualquer povo a própria soberania interna e as liberdades constitucionais fundamentais, sem as quais a soberania internacional do Estado é bem pouca coisa. É um direito que não se esgota com a aquisição da independência, mas que acompanha a vida de todos os povos, nenhum Governo, seja qual for a cor com que se cobre ou a ideologia em que se inspira, tenha ele nascido de um processo revolucionário ou da descolonização, ou então afunde suas raízes em tradições democráticas e constitucionais antigas ou recentes, pode, apoiado em seus méritos passados, pretender manter-se livre de um cotidiano ‘controle de idoneidade’ e excluir o povo que governa do número dos titulares do direito de Autodeterminação. É neste sentido que se expressa, de forma extremamente clara, entre outras, a Declaração universal dos direitos dos povos de Argel, que afirma que todos os povos (sem distinção) têm direito a um regime democrático, representativo da totalidade dos cidadãos, capaz de garantir a todos o respeito efetivo dos direitos do homem e das liberdades fundamentais (art. 7º).

Desta forma, a autodeterminação compreende dois significados: na

acepção internacional significa o direito de cada povo não ser submetido por outro

Estado, e na acepção interna de que o governo não pode manter nenhum povo

submetido em condição de dependência, devendo ter a promoção dos direitos

humanos para toda a comunidade.

Para James Anaya, a concepção estatal de autodeterminação ‹plena›

consiste em alcançar um Estado independente ou de eleger um estado

independente. Ele defende que a autodeterminação seja aplicada aos povos

indígenas no sentido de promover os direitos humanos. Argumenta que nesse

sentido os textos de direitos humanos e as instituições competentes têm acolhido

as demandas sobre a autodeterminação de forma relacionada aos valores de

liberdade e igualdade, que são relevantes pra todos os povos, inclusive para os

indígenas. Faz parte da autodeterminação o direito de não ser discriminado, a

proteção às terras, às riquezas naturais e ao meio ambiente. Ele reitera o

argumento de que não há por parte dos povos indígenas reivindicações para se ter

um Estado separado, não há justificativa para a secessão. Mas há reivindicações

para efetuar mudanças nas estruturas dos Estados.90

90 ANAYA, 2004, p. 31.

71

(...) durante uma parte de sua história o direito internacional se preocupou somente com os direitos e deveres dos soberanos independentes, sem se preocupar com o destino da humanidade, apenas com o do soberano. Porém, no sistema contemporâneo de direitos humanos, o direito internacional se preocupa cada vez mais por reconhecer direitos que se consideram inerentes às pessoas, tanto individual como coletivamente. Derivado dos valores fundamentais de liberdade e igualdade, associados expressamente com os povos e não com os Estados, e proclamado em vários instrumentos de direitos humanos, o principio de autodeterminação surge dentro do marco do direito internacional dos povos indígenas e portanto beneficia os seres humanos enquanto que seres humanos, e não as entidades soberanas como tais.

O pensamento de James Anaya vai ao encontro do que disse Norberto

Bobbio uma vez que ambos tratam da autodeterminação junto à idéia de

promoção dos direitos humanos. A diferença é que Bobbio não faz referência

específica sobre os direitos indígenas e Anaya trata especialmente da

autodeterminação dos povos indígenas.

Passar-se-á agora a examinar em que consiste o autogoverno. Nas lições

de Norberto Bobbio91, o termo autogoverno apresenta multiplicidade de

significados. Na Inglaterra, representava um complexo sistema de organização

que servia para orientar as relações entre o aparelho central e os poderes locais.

De acordo com esse sistema, o local government era formado por diversas

entidades, que realizavam um largo número de funções com um amplo grau de

independência do governo central, as quais eram geridas por pessoas eleitas pela

comunidade dos administrados.

Esse sistema passou por diversas reformas desde a revolução industrial até

os dias atuais, para se adequar às novas demandas quanto à definição da

competência para a prestação dos serviços locais tanto no que se refere ao

aparelhamento como ao seu conteúdo. Do mesmo modo, acompanharam a

evolução do autogoverno diversas crises decorrentes dentre outros problemas da

confusão das responsabilidades, da tensão entre o poder central e o poder local, e

dos conflitos entre o sistema normativo e a ordem real.

Merece diferenciar a autogestão de autogoverno. A primeria é de natureza

econômica e refere-se a atividades administrativas seguindo um formato de uma

direção socializada que pretende superar a burocracia estatal, ou mesmo na sua

acepção política que tem a ver com a superação da autoridade administrativa por

91 BOBBIO et. al., 1995, p. 85.

72

conselhos delegados, como é o caso de conselhos operários e conselhos de

bairros. O autogoverno é instituição política territorial.92

Veja-se também nas palavras de James Anaya93, do que se trata o

autogoverno:

O autogoverno constitui a principal dimensão da autodeterminação continuada. As concepções sobre os elementos normativos de autogoverno sobre os elementos normativos variam em razão das distintas versões teórico-políticas em que elas estão baseadas. Sem embargo, pode identificar-se um núcleo de acepção geral em torno do conteúdo do conceito. Este núcleo consiste basicamente na idéia de que os sistemas políticos devem funcionar de acordo com os desejos dos e das governadas. O autogoverno se contrapõe assim às instituições que concentram injusta e desproporcionalmente o poder estatal, caso esta concentração ocorra de dentro da própria comunidade (como no caso de regimes despóticos ou de discriminação racial) ou de fora da mesma (como no caso de dominação estrangeira).

Anaya enfatiza que desde o tempo da descolonização vem acontecendo um

movimento em favor da democratização contra os regimes autoritários, o qual tem

ocorrido por diversos processos no âmbito global, tendo sido promovido pela

ONU e outras instituições. Esse movimento vem acontecendo mesmo que em

diferentes lugares não tenham sido consolidados ou simplesmente não tenha

ocorrido. Há uma extensa literatura acadêmica relacionada ao direito de

participação política, o que inclui o direito à democracia no direito internacional,

desafiando os governos autoritários que, todavia, permanecem entrincheirados em

toda parte do mundo. Há um vínculo direto entre o direito de participação e os

processos contemporâneos de democracia e os valores de integração política, que

propugnam que as decisões devem ser tomadas no nível mais local possível. Do

mesmo modo, vem se desenvolvendo a noção de pluralismo cultural. O

movimento em favor do pluralismo cultural rompe com os conceitos do Estado-

Nação enquanto jurisdição única, o qual somado aos princípios da participação

política e tomada de decisões no nível local, favorece a autonomia governamental

ou administrativa dos povos indígenas.

Dessa maneira, o autogoverno se refere à legitimidade do governante, à

participação política dos povos indígenas nas questões de seus interesses e ao

92 BOBBIO et. al., 1995, p. 76. 93 ANAYA, 2004, p. 224.

73

pluralismo cultural. A noção de autogoverno confronta o autoritarismo e o

monopólio político, jurídico e cultual do poder estatal.

Quanto à autonomia, Norberto Bobbio94 trata o assunto como

centralização ou descentralização política ou administrativa.

A centralização e a descentralização em geral (e também a centralização e a descentralização administrativa) não são instituições jurídicas únicas, mas fórmulas contendo princípios e tendências, modo de ser de um aparelho político e administrativo, são, portanto, diretivas de organização no sentido mais lato e não conceitos imediatamente operativos. Além disso, se for verdade que eles representam dois tipos diferentes e contrapostos de ordenamentos jurídicos, é também verdade que se trata de figuras encontradas na sua totalidade somente em teoria, Se, de um lado, a descentralização total leva a romper a própria noção de Estado, também de outro, foi detectado o caráter utópico de uma centralização total no Estado moderno, caracterizado por uma grande quantidade e complexidade de finalidades e de funções, Isso significa que os ordenamentos jurídicos positivos são parcialmente centralizados e, em parte, descentralizados, isto é, que, considerando a centralização e a descentralização como dois possíveis valores, não existe um sistema político-administrativo que esteja exclusivamente orientado para a otimização de uma ou de outra.

Para Bobbio95, a centralização ou a descentralização são questões que

estão sempre presentes e em movimento gradual para abrandar as tendências que

num sentido ou no outro tenha sido julgada em desacordo com a realidade efetiva,

o que significa a necessidade de manter um equilíbrio entre as duas tendências em

cada sociedade.

Sempre que for aceita esta premissa e esclarecido que centralização e descentralização totais são apenas pólos ideais, pode também ser aceito, com objetivos descritivos, o critério do mínimo indispensável para poder-se falar de descentralização. Temos centralização quando a quantidade de poderes das entidades locais e dos órgãos periféricos é reduzida ao mínimo indispensável, a fim de que possam ser considerados como entidades subjetivas de administração. Temos, ao contrário, descentralização quando os órgãos centrais do Estado possuem o mínimo de poder indispensável para desenvolver as próprias atividades.

A descentralização pode ser política ou administrativa. Entende-se por

descentralização política a autonomia política das entidades territoriais. A

descentralização administrativa é a derivação dos poderes da instituição política

administrativa.

94 BOBBIO et. al., 1995, p. 329 et. seq. 95 Ibid., p. 329 passim.

74

A descentralização política distingue-se da administrativa, não apenas pelo tipo diferente de funções exercidas, mas também pelo ‘título´ que caracteriza o seu fundamento. A Descentralização política expressa uma idéia de direito autônomo, enquanto na Descentralização administraria específica temos um fenômeno de derivação dos poderes administrativos, que por sua vez, derivam do aparelho político-administrativo do Estado, isto, é, do Estado-pessoa. A Descentralização política, porém, não coincide com o federalismo. Um estado federal é, certamente, politicamente descentralizado, mas temos Estados politicamente descentralizados que não são federais. Somente quando a Descentralização assume os caracteres da Descentralização política podemos começar a falar de federalismo, ou a nível menor, de uma autonomia política das entidades territoriais. 96

As lições de Norberto Bobbio servem para esclarecer que ao se tratar de

autonomia política territorial não implica tratar de secessão; e sim, de um

mecanismo próprio do Estado federativo para definir, equilibrar e proteger os

interesses locais e gerais com base no critério do mínimo indispensável. A partir

desse princípio é que se confere a autonomia às unidades da federação e aos

municípios.

Assim, é possível falar da autonomia política territorial dos povos

indígenas sem implicar qualquer forma de secessão. Cabe verificar qual o nível da

autonomia territorial que se confere aos povos indígenas e qual o nível de

interferência do Estado. A pergunta é: qual o mínimo indispensável da

responsabilidade do Estado sobre os territórios e qual o mínimo indispensável de

poderes dos povos indígenas para decidirem sobre seus territórios.

De acordo com James Anaya, muitas comunidades vêm mantendo de fato

suas instituições próprias e governos autônomos, vinculados, parcialmente com

seus padrões históricos de controle social e político. Esses sistemas incluem

normas consuetudinárias ou escritas, assim como mecanismos de resolução de

conflitos. Ele argumenta que os Estados estão obrigados a reconhecer o livre

desenvolvimento, as instituições próprias e os costumes dos povos indígenas nos

termos da Convenção 169 da OIT.97

Independentemente do nível de autonomia que tenham mantido, os povos indígenas têm o direito a desenvolver um sistema de governo autônomo apropriado às suas circunstâncias que lhes permita garantir o exercício de sua autodeterminação continuada. No geral, considera-se que o governo autônomo dos povos indígenas resulta como instrumento para controlar o desenvolvimento de suas culturas diferenciadas, incluídos seu uso da terra e os recursos.

96 BOBBIO et. al., 1995, p. 331. 97 ANAYA, 2004, p. 228.

75

Verifica-se que na visão de Anaya a autodeterminação, autogoverno e

autonomia dos povos indígenas são direitos que se complementam e têm como

fundamento a democracia. O citado autor busca superar a relação colonizadora e

garantir o desenvolvimento econômico, social e cultural desses povos, incluindo

especialmente o fortalecimento das suas instituições tradicionais e o controle das

terras e riquezas naturais.

A Convenção 169 da OIT, que preconiza o direito dos povos indígenas de

serem consultados nas questões que afetam seus interesses e que o

desenvolvimento econômico de suas comunidades deve ser de acordo com seus

anseios, fundamenta os argumentos de Anaya. Embora a Convenção não tenha

tratado expressamente da autodeterminação, autogoverno e autonomia, traz em

outros termos os princípios relacionados a esses direitos, no caso o

reconhecimento dos direitos territoriais, das instâncias tradicionais, do direito

costumeiro e do princípio do consentimento prévio.

Carlos Frederico Marés de Souza Filho, em palestra proferida durante a

realização da Conferência Regional da Funai, em data de 18 de agosto de 2005,

em Florianópolis, tratou amplamente da autodeterminação, autogoverno,

autonomia, direitos costumeiros e tutela. A partir de seus esclarecimentos verifica-

se que os Estados se apropriaram de todos os espaços territoriais, criaram um forte

sistema jurídico interno e internacional para proteger a propriedade privada,

limitaram o campo jurídico aos termos expressos por suas constituições, passando

por cima das sociedades tradicionais e de seus direitos costumeiros.

No final do século passado, cada pedaço da terra foi dividido entre as nações organizadas. Não se podia admitir que um território ou povo estivesse fora da tutela de um Estado e, neste, conceito, Estado seria o ente público reconhecido internacionalmente. Para ser reconhecido precisava ter uma Constituição. E para ter uma Constituição deveria assegurar os direitos individuais, como a propriedade. Isto significou que os povos ou territórios que não queriam ou não estavam interessados em escrever uma Constituição, passaram a ser tutelados por outros (...) Sob a cultura de que não pode haver nem território, nem povo, sem Estado, o direito à autodeterminação dos povos passou a ser o direito a constituir-se em Estado. Nas décadas de 60 e 70 deste século, grandes movimentos de libertação nacionais agitaram o mundo com guerras marcadas por atos heróicos de povos inteiros, que acabaram destruindo antigos e sedimentados impérios coloniais e até mesmo infringindo derrotas ao que se chamou de imperialismo norte-americano. Os povos em armas logo se transformaram em Estados carentes de políticas, de mercados e leis. A autodeterminação dos povos se converteu, a partir da criação

76

dos Estados em autodeterminação dos próprios Estados. A vitória dos povos nos campos de batalha transformava-se em vitória do Estado de Direito estatal. A partir da constituição do Estado livre e soberano, com uma Constituição que garante direitos individuais, não se poderia mais falar de povos integrantes deste Estado, mas somente de um povo, que corresponderia a toda a população daquele território, este é o dogma do Estado contemporâneo. Os povos minoritários passaram a ser oprimidos, ter suas manifestações culturais proibidas, perderam seus direitos de povo e, no máximo, adquiriram direitos individuais de cidadania e de integração. É a versão constitucional da política integracionista. Aos Estados assim constituídos ficou transferido o direito de autodeterminação. Quer dizer, autodeterminação dos povos, significa ainda hoje, autodeterminação dos Estados nacionais. Exatamente aí radica a dificuldade dos organismos internacionais, e os Estados nacionais que os criaram, em aceitar a denominação povo quando se referem aos indígenas, buscando subterfúgios como populações ou pessoas. Para evitar qualquer dúvida, a Convenção 169, da OIT ao utilizar a palavra povo, explica que este termo não deve ser interpretado no sentido lhe que lhe empresta o Direito internacional. No momento da constituição de um Estado, isto é, quando ademais de escrever uma Constituição Política, ele passa a ser reconhecido pelos demais Estados, há uma transferência do direito de autodeterminação do povo para o ente recém - formado. As relações externas a este Estado são reguladas pela autodeterminação e as internas se transforma em soberania. Neste momento os povos minoritários que por razões de sua vontade, disposição ou cultura não participaram da criação perdem também, aos olhos da comunidade internacional e do poder constituído, o direito à autodeterminação. Esta é a lógica do sistema internacional. Portanto, pode-se dizer que autodeterminação é um direito dos povos se constituírem em Estados. Até que efetivamente se constituam, ou até que a comunidade internacional considere que há uma legítima Constituição, sempre há a hipótese de uma Constituição não ser reconhecida como legítima, ou mesmo ser interpretada como inexistente. Pode-se contar as raras exceções, que só fazem confirmar a regra, de povos que ainda sem Estado ou sem território, têm reconhecido internacionalmente o seu direito à autodeterminação, como o caso dos palestinos. Desta forma entendida, a autodeterminação não é mais do que um direito concedido e reconhecido pela comunidade internacional, que pode a cada momento dizer a quem concede e a quem nega, dependendo do Estado nacional contra o qual conflita o povo.

Desse modo, ficou demonstrada a construção do conceito de

autodeterminação na concepção estatal que atribui ao termo o significado de

direito do estado.

Outra coisa totalmente diferente é a autodeterminação baseada na auto-estima de um povo. Cada povo tem regras internas de convivência social. Que forma o seu Direito, como já vimos. Nestas regras e nestas relações sociais evidentemente está o direito de se submeterem ou não às regras dos Estados que os envolveram, embora este direito não seja reconhecido nem pelo Estado nem pela comunidade de Estados, internacionalmente. Por outro lado, assim como já vimos, que nos Estados latino-americanos o Direito não pode ser entendido como apenas aquele que dita o Estado. Porque cada povo indígena tem seu próprio Direito, não pode ser limitado o Direito

77

Internacional aos ditames dos organismos criados pelos Estados, porque no seio de um povo indígena não se pode falar da vigência ou eficácia das normas estatais, nem das internacionais. (...) A questão que fica pendente é a seguinte: pode um povo ter direito à autodeterminação sem desejar constitui-se em Estado? Do ponto de vista do direito internacional parece que não. Do ponto de vista de cada povo, evidentemente que sim, porque a opção de não constituir-se em Estado e de viver sob oura organização estatal, é uma manifestação de sua autodeterminação. Mais do que isto, os povos que vivem sem Estado, hoje precisam apenas de Estado que os proteja do próprio Estado, das classes que têm o poder no Estado de outros Estados. Este é o seu paradoxo. Isto quer dizer que a autodeterminação (...) como diz o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e*5 Culturais de 1996, tem um duplo entendimento. Quando dito a partir das organizações internacionais estatais, significa o povo do Estado, considerado, apesar das diferenças, como um só. Quando dito a partir do próprio povo, antropologicamente falando, diz respeito à vontade coletiva de um grupo socialmente organizado.98

Ressalte-se também a diferença entre autodeterminação e soberania, que

consiste no fato de a primeira pertencer ao povo e a segunda ser típica do Estado.

Algumas vezes, autodeterminação é confundido com soberania, entretanto, a soberania, essa sim é do Estado, não é do povo. Povo é autodeterminação, soberania, o Estado. É, mais ou menos assim que está feita essa história. Entretanto, existem povos que não estão identificados, não estão ligados a esse Estado. Esses povos, dentro dos Estados reclamam autodeterminação. E o que significa, em última instância reclamar autodeterminação? Significa, que este povo que está dentro do Estado, quer ele mesmo constituir outro Estado, quer fazer outro Estado. Então, se tem um povo, dentro do Estado, que não quer estar ligado a esse Estado, nós dizemos, então, que esse povo tem autodeterminação de constituir-se em outro Estado. Nós temos algumas situações, de alguns povos assim no mundo. O exemplo que nós temos dos Bascos no norte da Espanha. Eles dizem que não querem o espanhol, não querem saber do Estado Espanhol, eles querem ser um Estado independente, portanto, eles reclamam a sua autodeterminação, deste Estado. Há um outro povo, que é o Irlandês, católico do norte da Irlanda, dizem que não querem mais ser um Estado do sul da Inglaterra, eles querem um Estado independente (...) eles querem a autodeterminação. Existe o exemplo, de todos o mais concreto, que é do povo Palestino, que quer ter autodeterminação, portanto, querem construir o Estado. Pois bem, essa é a idéia de autodeterminação. Quando nós falamos da América Latina e dos povos indígenas da América Latina, não conhecemos nenhum povo indígena que reivindique sair do Estado em que está e construir um Estado novo, outro Estado. Nós temos historicamente um exemplo na América, que é o povo Mapuche que vive no Chile, que, num determinado tempo de sua história resolveu fazer um Estado próprio, acabou não conseguindo. Hoje não tem essa proposta, hoje, deixou de lado essa proposta e quer viver no Estado Chileno. Todos os povos indígenas da América quando reclamam liberdade, direito de continuar a ser índio etc reclamam o direito de continuar sendo índio sem perder o direito de ser cidadão do Estado, portanto, sem perder sua integração com o

98 SOUZA FILHO, 1999a, p. 76 et. seq.

78

Estado, portanto, não estão reclamando o direito de autodeterminação, propriamente dito (...). Quer dizer que os povos indígenas não têm direito e autodeterminação? Não! Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Todo povo tem direito à autodeterminação. Em tendo, o direito, podem querer ou não ser um Estado independente. Disso se trata a autodeterminação. Então, os povos indígenas da América, que eu conheço, exercem o seu direito de autodeterminação, dizendo que querem continuar sendo integrados à um Estado nacional (...). Claro, e aqui vou fazer um parêntese para dizer o seguinte: Quando um povo resolve ter seu Estado independente, muitas vezes, ele enfrenta uma briga duríssima com o Estado nacional. Eu citei aqui o caso dos Bascos e citei o caso dos católicos, irlandeses (...). Esses dois povos estão em guerra! Um, com a Espanha e outro com a Inglaterra para poder ser independente. É uma guerra mesmo! Guerra de arma, de dar tiro. É guerra de poder, porque a Espanha não quer dar a independência e a Inglaterra não quer que a Irlanda do Norte seja independente, o exercício desse direito não é tão fácil, mas, ele existe. O fato de não ser fácil não quer dizer que não existe o direito. Pois bem, a maior parte das (...) organizações, das constituições se fez assim, se fez lutando para conseguir. Discutindo com alguns povos da América e tendo visto que alguns povos no exercício de sua autodeterminação dizem: Não! Eu não quero deixar de ser um povo do Estado Brasil. Quero que o Estado brasileiro reconheça meus direitos e assim, tem sido na Colômbia, tem sido no México, tem sido no Chile. Pois bem, esse conceito de autodeterminação, essa idéia de autodeterminação, é uma idéia que está presente a todos os povos indígenas. A cada momento tem que ser refletido isso, porque se os índios perdem sua característica de ser reconhecidos como povo, ele, naturalmente, perde também o direito de autodeterminação. No direito internacional (...) eles dizem que a autodeterminação do povo está representada pelo Estado, portanto, quando um povo constrói um Estado, (...) ele exerce a autodeterminação, portanto, também exerce a soberania.

Veja-se também em que consiste a autonomia, o autogoverno por

intermédio das instituições indígenas, que nem sempre inclui a representação

como condição para a governança indígena. Pelo contrário, os povos indígenas

organizam-se por meio de sistemas tribais ou de parentesco, conforme já

apresentado, e as funções de chefe indígena devem respeitar a vontade geral da

aldeia.

O segundo conceito, o de autonomia, é um conceito um pouco diferente de autodeterminação do governo próprio, no lugar próprio. E aqui não se trata mais de criar o Estado, de se independente, do Estado, de não ter nenhuma ligação com o Estado, não se trata mais disso. Trata-se de, internamente, na comunidade, exercer ou não exercer os direitos, de usos, costumes e tradições, que assim são chamados. Mas, que na verdade, a própria organização social tem o direito dela, quero dizer, autonomia é o poder que tem uma comunidade de gerir seu próprio destino, de fazer sua autogestão, de fazer suas próprias leis, suas próprias normas internas. Se nós não estamos falando de independência dos Estados, porque a autodeterminação é que gera a independência dos Estados (...). Se nós não queremos ser independentes do Estado, nós estamos, em primeiro lugar, admitindo que o estado, que as regras do Estado são regras que temos que respeitar, fora da comunidade, dentro da comunidade, a autonomia faz com que

79

se respeite as regras internas, segundo os usos e costumes da própria comunidade. Autonomia pode ser maior ou menor autonomia, dependendo inclusive das leis do Estado. As leis do Estado podem dar maior ou menor autonomia. Quando a lei do Estado não trata dos povos indígenas, como é o caso de alguns países e, como foi o caso de, algum tempo, aqui no Brasil, então, essa autonomia praticamente não existe. Essa autonomia existe de fato porque as comunidades se elegem, mas, para o Estado não existe essa autonomia. O Estado não concede essa autonomia, não dá autonomia, não tem autonomia, portanto. Pois bem, quando eu falo de regras internas, eu estou falando de regras muito precisas, de regras gerais, de convivência humana. Uma comunidade convive com outra e existem regras internas de convivência. As regras internas, o direito interno são as regras de convivência tradicionais. Então, isso é possível, ter relações, tanto de civismo, relações de casamento, relações de uso das coisas, de uso do espaço, de distribuição do espaço, de distribuição de riqueza, de produção de riqueza. Todas essas regras podem ser regras internas da comunidade, não precisam ser regras exatamente iguais ao direito estatal, que é (...) o direito de contrato. E aqui, não! Aqui não é contrato, é uma relação harmoniosa da comunidade que se estabeleceu segundo os usos e costumes da própria comunidade. Portanto, essas regras internas que a gente chama de civis, são as que regulam essas relações, troca de bens, casamento, uso do espaço etc. Hierarquia. Quem é o chefe, quem é que faz, quem é que não faz (...) E também, as regras de como se pune aqueles que não cumprem as regras. Então, quando alguma pessoa não cumpre as regras (...) como é que se pune? Qual é a punição que se dá. Isso também faz parte daquilo que a gente chama de autonomia. Define-se qual é o tipo de punição existente. E nessas regras internas que se chama autonomia, também estão contidas as regras de representação do próprio povo. Então, a comunidade diz: “como é que eu me represento? Vou ter que assinar um papel. Quem é que assina por toda a comunidade? Eu conheço alguns povos que não têm regras internas de representação, portanto, é muito difícil haver representação porque não há nas regras internas. As regras internas de representação são de pequenos grupos, não há uma representação de toda comunidade, de todo o povo. Eu sempre lembro desse tipo de organização, o povo Xavante, por exemplo, que não tem uma representação geral, tem uma representação por pequenas comunidades (...). Esse povo não tem normas internas de representação. Não tem, porque não precisam ter, dentro de sua autonomia, eles podem ter, como não ter. Se eles têm essas regras é a que valem. (...) No governo do estado brasileiro, é bem amplo, o reconhecimento dessas regras. O Estado brasileiro na constituição de 88, disse, que “O Estado brasileiro reconhece não só terra, mas, também, a organização social das populações indígenas”. E, se reconhece a organização social, reconhecem-se, em conseqüência, todas essas regras de autonomia, entretanto, ressalta algumas coisas, embora a constituição não faça ressalva expressa.

Assim, conclui-se que a autodeterminação na concepção estatal é um

direito apenas dos Estados. Não é esse o entendimento de Carlos Frederico Marés

de Souza Filho, que demonstrou que este é um direito dos povos. O fato de os

povos indígenas não pretenderem se tornar um Estado, é o exercício desse direito.

É reconhecida a autonomia dos povos indígenas nos termos da Convenção 169,

que determina a proteção de suas instituições e costumes. Todavia aplica-se

80

limitações a tais normas, conforme dispõe o direito interno de cada país, o que

corresponde a dizer que se trata de uma autonomia relativa.

81

5

Conclusão

Durante a colonização, Portugal e Espanha adotaram uma legislação que

reconheceu os direitos territoriais e a jurisdição indígena. O reconhecimento

desses direitos, em vez de servir para a proteção dos indígenas, foi adotado como

base para declarar as guerras justas e a implantação da colônia. A Espanha criou

um conjunto de normas – o direito indiano, o qual reunia influências medievais e

feudais dos povos indígenas das Américas.

A filosofia do jusnaturalista John Locke fundamentou a propriedade. Outro

jusnaturalista, Thomas Hobbes, afirmou que existem direitos dos indivíduos e

direitos dos estados. Essa dicotomia estado/indivíduo se transformou no alicerce

do estado moderno.

Os povos indígenas foram excluídos pelo estado moderno que não

conhecia nada além daquilo que se enquadrasse como estado/indivíduo ou

público/privado. Tendo em vista que os direitos indígenas são coletivos, eles não

se enquadravam nessas categorias. A independência dos estados latino-

americanos, em vez de favorecer a liberdade dos povos indígenas, negou o

reconhecimento da diversidade cultural.

As constituições latino-americanas passaram a reconhecer os direitos

territoriais, a organização social e os costumes indígenas, inclusive a autonomia e

a jurisdição indígena. Esse reconhecimento não significa uma autonomia absoluta

porque é limitado ao que está disposto nas constituições. Além disso, as

constituições dependem de regulamentação.

O ideal é que a gestão seja regulamentada conforme os usos e costumes

indígenas. Ocorre que muitos povos indígenas têm alterado os usos e costumes e

constituído núcleos urbanos ou próximos a isto em suas terras, por isso nem

sempre a forma tradicional pode resolver todos os problemas que surgem.

82

A gestão, além de manter e garantir os próprios usos e costumes, deve

assegurar a qualidade de vida e cultura, preservando o meio ambiente

ecologicamente equilibrado.

Acrescente-se que há uma permanente tensão entre o direito estatal e o

direito de cada povo, principalmente no que se refere à questão ambiental,

organização do município, áreas de fronteira, democracia interna e direitos

humanos. Portanto a gestão não pode dispensar uma solução para esses

problemas.

O direito de ser consultado sempre que houver medidas que relacionadas

aos direitos e interesses indígenas, conjugado com as normas que determinam a

proteção do meio ambiente, das terras indígenas e da cultura, e ainda com os

princípios que propugnam que as decisões devem ser tomadas no âmbito mais

local possível, fundamentam a autonomia indígena.

83

6

Referências bibliográficas

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