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PATRIMÔNIO RURAL DO CAFÉ NO SUL DE MINAS E VALE DO PARAÍBA: Uma proposta de proteção Cruz, Eneida Carvalho Ferraz* IPHAN-SP - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Superintendência do IPHAN em São Paulo Av. Angélica, nº 626 - Bairro Santa Cecília CEP: 01228-000 - São Paulo/SP E-mail: [email protected] RESUMO Visando à preservação proteção e valorização do patrimônio cultural rural e urbano criado pela produção de café, nos séculos XIX e XX na região sudeste do Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN deu início ao inventário do Patrimônio Rural do Café nas regiões da Serra da Bocaina, no Vale do Paraíba Paulista e da Mantiqueira no Sul de Minas com o levantamento dos remanescentes materiais, desse patrimônio de importância nacional. A escolha partiu do reconhecimento de que o café, mais que trazer divisas econômicas ao Brasil, mormente nos séculos XIX e XX, produziu um patrimônio cultural de incalculável valor. Como parte de seu processo histórico de ocupação modificou a paisagem gerada tanto pelas lavouras como por toda infraestrutura construída para beneficiamento do produto, além da reconhecida influência que teve na paisagem urbana traduzida pelos solares e edificações recreativas e culturais com que foi possível equipar as cidades, marcando indelevelmente suas paisagens e costumes. Em que pese alguns bens isolados pertencentes ao patrimônio do Café, tanto rural como urbano, já se encontrem tombados pelo IPHAN ou por órgãos estaduais de proteção, o estudo do patrimônio rural do café objetivava a salvaguarda da paisagem cultural em conjunto. Em 2010, o IPHAN criou um grupo de trabalho formado por representantes do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização, suas superintendências nos estados do Sudeste - São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo-, dos órgãos estaduais do patrimônio cultural, de universidades vinculadas ao tema, além de representantes de associações como as cooperativas de produtores de café e da sociedade civil organizada em cada estado. Envolveu vários segmentos na garantia da participação e reforço do conhecimento, apropriação e discussão dos diferentes âmbitos de interesse e atuação, para formalização de um pacto entre os setores com objetivo de promover salvaguarda desse patrimônio. A forma de proteção seria a criação de uma chancela da Paisagem Cultural, aos moldes dos Roteiros Nacionais de Imigração, instituído pelo IPHAN no Estado de Santa Catarina, que culminou com a assinatura entre os agentes do Termo de Cooperação Palavras-chave: Patrimonio, Rural, Café

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PATRIMÔNIO RURAL DO CAFÉ NO SUL DE MINAS E VALE DO PARAÍBA: Uma proposta de proteção

Cruz, Eneida Carvalho Ferraz*

IPHAN-SP - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Superintendência do IPHAN em São Paulo

Av. Angélica, nº 626 - Bairro Santa Cecília

CEP: 01228-000 - São Paulo/SP

E-mail: [email protected]

RESUMO

Visando à preservação proteção e valorização do patrimônio cultural rural e urbano criado pela produção de café, nos séculos XIX e XX na região sudeste do Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN deu início ao inventário do Patrimônio Rural do Café nas regiões da Serra da Bocaina, no Vale do Paraíba Paulista e da Mantiqueira no Sul de Minas com o levantamento dos remanescentes materiais, desse patrimônio de importância nacional. A escolha partiu do reconhecimento de que o café, mais que trazer divisas econômicas ao Brasil, mormente nos séculos XIX e XX, produziu um patrimônio cultural de incalculável valor. Como parte de seu processo histórico de ocupação modificou a paisagem gerada tanto pelas lavouras como por toda infraestrutura construída para beneficiamento do produto, além da reconhecida influência que teve na paisagem urbana traduzida pelos solares e edificações recreativas e culturais com que foi possível equipar as cidades, marcando indelevelmente suas paisagens e costumes. Em que pese alguns bens isolados pertencentes ao patrimônio do Café, tanto rural como urbano, já se encontrem tombados pelo IPHAN ou por órgãos estaduais de proteção, o estudo do patrimônio rural do café objetivava a salvaguarda da paisagem cultural em conjunto. Em 2010, o IPHAN criou um grupo de trabalho formado por representantes do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização, suas superintendências nos estados do Sudeste - São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo-, dos órgãos estaduais do patrimônio cultural, de universidades vinculadas ao tema, além de representantes de associações como as cooperativas de produtores de café e da sociedade civil organizada em cada estado. Envolveu vários segmentos na garantia da participação e reforço do conhecimento, apropriação e discussão dos diferentes âmbitos de interesse e atuação, para formalização de um pacto entre os setores com objetivo de promover salvaguarda desse patrimônio. A forma de proteção seria a criação de uma chancela da Paisagem Cultural, aos moldes dos Roteiros Nacionais de Imigração, instituído pelo IPHAN no Estado de Santa Catarina, que culminou com a assinatura entre os agentes do Termo de Cooperação

Palavras-chave: Patrimonio, Rural, Café

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

As fazendas na paisagem criada pelo café

De acordo com Ab’Saber (2003) a paisagem é sempre uma herança dos processos naturais

de longa duração, base material, a matéria-prima para a ação cultural, e como tanto, herança

do trabalho humano.

Nas regiões da Serra da Bocaina, e da Mantiqueira ainda se encontram exemplares da

arquitetura do período do café com as características originais em grande parte preservadas,

com pequenas adaptações para receber inovações da cultura que até nossos dias continua a

ser a atividade econômica predominante.

As observações aqui feitas não se restringiam somente às casas de vivenda, mas também

apontaram para a paisagem da região e o entorno das fazendas para proporcionar uma

melhor noção do conjunto,

As fazendas são um complexo produtivo, composto por um conjunto edificações como

lavadores, secadores, tulhas, armazéns, dispostos ao redor do terreiro, - onde também

ficavam as antigas senzalas- provendo a infraestrutura necessária, pois o café demanda um

beneficiamento elaborado até chegar ao ponto de ser encaminhado para torrefação ou

exportação. Substitutas das senzalas, as colônias, marcam presença na paisagem. Estações

e paradas de trem vieram no rastro da produção do café. Capelas e ermidas traduzem no

suporte material da espiritualidade do povo.

Paisagem rural na Serra da Bocaina

Cidades visitadas no Vale do Paraíba Paulista: São José do Barreiro, Bananal, Arapeí, Areias,

Silveiras e o Bairro Rural de Formoso.

Principais fazendas visitadas na Serra da Bocaina: São Miguel, São Francisco, Catadupa, da

Barra, Guanabara, Palmeiras, São Francisco de Paula, Luanda, São Luís, Coqueiro, Boa

Vista, Três Barras, Casa Grande, Bom Retiro, Bela Vista, Vargem Grande, Boa Vista, São

Sebastião e São Geraldo.

Relevo

A região compreendida por estas cidades localiza-se na serra da Bocaina, desdobramento da

Serra do Mar. Aí as concentrações urbanas - vilas, bairros ou cidades - foram implantadas nas

áreas mais planas, de menor altitude, pela maior facilidade de transporte, acesso e

comunicação, entre vargens e ao pé do morro. Como o intuito da ocupação no século XIX era

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a produção de café, os elementos geográficos foram muito bem analisados pelos

colonizadores: distância da corte e dos portos, topografia, clima, regime de chuvas, altitudes.

Águas

Em região muito bem servida de águas, todas as propriedades que aí se implantaram no

século XIX, são abastecidas por córregos caudalosos. A boa apropriação dessa fartura de

água constituiu fator de suma importância para instalação dos complexos cafeeiros na região.

Sendo o café uma cultura de características agrícola-industriais, a infraestrutura de

benfeitorias associada ao cultivo, chega a ter a mesma importância que a lavoura. Terreiros,

lavadores, descascadores, maquinário de beneficiamento, dependem da água direta ou

indiretamente como força motriz.

Vegetação, Agricultura e Pecuária

Apesar das grandes propriedades rurais que ainda restam, a economia também parece girar

em torno de pequenos sítios próximos aos núcleos urbanos, com eucaliptos e capineiras para

o trato do gado. Pastos, taquarais nas vargens e nos morros, matas nativas em grotas e no

topo dos morros. Erosões mostram uma terra com camada pequena de solo. Palmeiras

imperiais na paisagem são indício de casa de fazenda do ciclo do café na região. A atividade

rural é voltada para a pecuária mista e/ou de corte com rebanho mestiço. Somente em uma

das fazendas antigas produtoras de café foi encontrada grande estrutura para gado de leite.

Arquiteturas e artefatos

Na paisagem rural atual da região, casas muito simples ao longo dos caminhos, da primeira

metade do século XX: paredes estruturais de tijolo maciço, cobertura em duas águas de telhas

francesas e janelas de madeira. Folha de flandres substituindo a esteira de taquara de

fabricação manual em carro de bois; estes com rodas de pneu de borracha, sem a tradicional

roda de madeira com aro de ferro. Carroça puxada por juntas de bois, cochos para sal de

troncos de árvores caídas, escavados internamente, suspensos do solo por suporte de galhos

bifurcados. De troncos também são as pinguelas, com um corrimão de taquara ou pau roliço,

tudo isso dá a dimensão da adaptação que o homem faz dos recursos disponíveis.

Esse é o sentido da cultura, que aí se mostra no movimento de transformação do ambiente

que, por ser também resultado da atuação humana, é continuamente reformulado.

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Gente

“O meio rural não é apenas uma forma peculiar de ocupação territorial, mas de um

universo dotado de identidade própria, um mundo rico em símbolos e em diversificadas

formas de ser, de viver, de saber e de fazer. ” (DELPHIM, 2009, pág 131).

A região dos caipiras é uma faixa geográfica que abrange a parte paulista do vale do Paraíba,

atravessa o sul de Minas ao sul do Rio Grande, e continua a oeste no estado de São Paulo,

seguindo de leste para oeste os rios afluentes do Paraná. Nas casas de roça e mesmo nas

fazendas visitadas a hospitalidade é total depois da desconfiança inicial. Não se sai de uma

casa, sem antes tomar um café, um suco de frutas ou mesmo um copo de leite tirado na hora,

seja o dono da casa rico ou pobre.

Nas casas-sede de fazenda, se luxo houve, foi na época do café. Hoje as grandes casas não

têm o piso encerado, nem mobiliário fino ou caro para os padrões atuais. Presta-se para lazer

de fim de semana. Algumas fazendas, mesmo funcionando como hotel, não são

economicamente viáveis, devido à grande distância da estrada principal e à dificuldade de

acesso.

Paisagem rural na Mantiqueira

...“ há duas formas de se fazer uma paisagem: intervindo-se fisicamente no sítio por

meio de caminhos, plantios e edificações ou interpretando seu significado. Quanto

mais se aprende sobre uma paisagem, mais ela se organiza, mais o caos primordial,

ordenado pelo conhecimento, se transforma em cosmos. ” (DELPHIM, 2009, pág. 31).

Acrescento a estas uma terceira, a representação gráfica, que aqui se procurou fazer através

dos croquis que permeiam o texto.

Estação Biguá – Delfim Moreira, MG. Tipologia própria de Estação: Telhado de duas águas, com varanda sobre mão francesa, rampas para embarque de carga.

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Cidades visitadas no Sul de Minas: Conceição dos Ouros, Cachoeira de Minas, Piranguinho,

Itajubá, Piranguçu, Dom Viçoso, Carmo de Minas, Cristina, Pedralva e São José do Alegre.

Principais fazendas visitadas na Serra da Mantiqueira: Monjolinho, Cachoeira, Chapada, São

José, Santa Helena, Capituba, Santa Tereza, Rancho Santana, Água Limpa, Barreiro, Villa

Maria, Primavera, da Barra, dos Coli, Pimentas, Canducho, Rosário, Granja, Boa Vista, do

Engenho, São Gabriel, Palmital, Coqueiro, das Palmeiras, Três Barras, Pouso Alegre, da

Divisa, Boa Vista, Graminha, Pinhal, Água Limpa, da Pedra, Três Pinheiros e Santa Luzia,

além das estações e paradas de trem de ferro: Estação Ribeiro e Estação Biguá.

Conceição dos Ouros, Cachoeira de Minas e o Rio Itaim

Rumo às fazendas Chapada e Cachoeira - de estrutura autônoma de madeira - a paisagem

seca do inverno traz tons amarelados, a plantação ressente, mas as matas se mantêm e os

pastos estão secos, mas os rios são perenes, apenas algumas nascentes diminuem. A

vargem que acompanha os rios Itaim e Sapucaí Mirim guarda meandros abandonados.

Araucárias nativas e plantações de eucalipto. Pasto para criação de gado de leite e de corte e

edificações para infraestrutura, cercas de esteira de taquara dividindo terrenos e escorredores

de mandioca para fazer polvilho.

Na fazenda Cachoeira um arrimo nos fundos do terreiro de café, o separa mata nativa,

delimitando o que é da natureza do que é construído pelo homem. A água corrente é

aproveitada para o abastecimento das casas e do lavador de café e força motriz do maquinário.

Itajubá, Piranguçu e o Morro da Piedade

De Itajubá a Piranguçu aos pés do morro da Piedade, com plantações de arroz nas vargens,

agricultores de calças arregaçadas e metidos até a canela no charco são figuras em extinção.

Entre morros suaves, sorgo e milho para silagem, nos pastos vê-se cochos de pneus de trator.

A atividade pecuária se faz presente nas capineiras, estábulos e cocheiras, cercas de régua

ou de arame farpado. Pequenas casas de sitiantes construídas de tijolo autoportante

acompanham o pé do morro, acima da linha de inundação. Cobertura de duas águas, algumas

com panos de telhado desencontrados, à moda do modernismo.

Delfim Moreira e Venceslau Brás – dois presidentes

Em região de vargens inundáveis, imprópria para o cultivo da rubiácea, somente algumas

fazendas, com casas do segundo quartel do século XX, cultivam pequenas lavouras de café,

nas encostas de morros. Casas de tijolo, menores e próximas umas das outras, aponta para a

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estrutura fundiária de sítios, com lavouras menos perenes e dispendiosas que o café. Ao lado

de uma linha de trem desativada, resta uma estaçãozinha de trem. A atual estrada de

rodagem aproveitou o antigo leito da ferrovia com inclinação suave, devido ao traçado

cuidadoso e bem planejado.

Em maior altitude e muitas araucárias e eucaliptos e os rios são limpíssimos, um cenário onde

vicejam buganvílias, entre jabuticabeiras e cabritos, caminho em curva vencendo suavemente a

subida, se alteia a sede de uma fazenda. A implantação mais acima da estrada e no pé do morro

protege das intempéries e permite o domínio da paisagem próxima. Em uma região de difícil

acesso, os moradores se sentem honrados com as visitas e querem retê-las por mais tempo. Na

Fazenda da Barra, onde o rio Lourenço Velho recebe dois afluentes, ribeirão dos Pintos e rio

Claro, a mata é densa cheia de araucárias.

Maria da Fé, Dom Viçoso e altitudes

O vale do ribeirão dos Pintos corre em grande altitude e se desenvolve em linha reta por cinco

quilômetros, ao longo dos quais se distribuem pequenos sítios com suas casas constituindo um

bairro rural. Região muito fria para café, é produtora de hortaliças. Em clima de temperaturas

extremamente baixas nas noites de inverno, mas com dias quentes e muito ensolarados, as

casas mantêm um agradável conforto térmico, voltadas para a face soalheira do vale.

Cruzando o divisor de águas passa-se da bacia do Sapucaí para a do rio Verde, muda um pouco

a paisagem: desce-se mais rapidamente o vale de 1500m para 900m de altitude em poucos

quilômetros de estrada. Lavouras de café predominam na face voltada para o norte.

Carmo de Minas e cafés especiais

Estação Ribeiro, Fazenda Pouso Alegre, Carmo de Minas, MG. Próxima ao núcleo da fazenda para escoamento da produção e chegada de insumos.

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No vale do Ribeirão do Carmo, município de Carmo de Minas à beira da rodovia e

antigamente da ferrovia, localizam-se inúmeras fazendas produtoras de café. É a região dos

melhores cafés do Brasil, conquistando os primeiros prêmios em concursos e onde há

registros de produção datados de 1823 (JUNQUEIRA, 2004). Na década de 1970 renovou os

cafezais e no século XXI, dedica-se aos cafés de qualidade, sendo a primeira região

demarcada como produtora de cafés finos. A geografia, a história, aliados à técnica

demonstram a vocação para a cultura.

Situados à meia encosta, para proteção contra os ventos, abastecimento de águas e

proximidade das estradas para escoamento da produção e chegada de insumos, o núcleo da

fazenda busca ocupar um patamar plano, de dimensões suficientes para conter os terreiros de

café, o curral e as casas de apoio. São cercadas por morros cobertos de cafezais plantados

em espaçamento adensado. Além das lavouras, as araucárias marcam sua presença na

paisagem. A banana e o leite são produtos que sustentam a economia e dão o aspecto

característico à propriedade e suas estruturas construídas.

Cristina, Vargem Alegre e a Pedra Branca

Em torno do bairro Vargem Alegre floresceram muitas fazendas no século XIX: Pinhal, Água

Limpa, da Pedra de Baixo, da Pedra de Cima, Transwal. Emoldurando esse núcleo uma

cadeia de montanhas que culmina com a Pedra Branca.

Em uma das antigas fazendas produtoras de café tanto a casa sede como a ambientação do

núcleo, foram bastante alteradas pelas mudanças de atividades, para se transformar em

hotel-fazenda. O antigo jabuticabal no nível da cozinha da casa, foi um dos elementos

preservados da fazenda original.

Pedralva e engenhos

Com algumas com sedes do século XIX ainda preservadas, a economia rural de Pedralva é forte

em banana e cana, e construções de engenhos e alambiques reforçam a atividade. Ruína de um

engenho encontra-se ao lado da cidade: construção de três pavimentos, com uma bela chaminé

de tijolos de secção circular, mas lhe falta o telhado.

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Estrutura para produção do café

“A expansão do cafeeiro fez surgir uma paisagem nova – a paisagem do café. Onde era

mata virgem, apareceram as fazendas autossuficientes, emoldurando o planalto,

povoando as vastas extensões do sul mineiro e provocando o crescimento de muitas

cidades. Multiplicaram-se as vias férreas, substituindo as trilhas onde predominavam as

tropas de burros” (FILETTO e ALENCAR, 2001).

No Sul de Minas o café recém-chegado no início do século XIX encontrou fazendas já

montadas e embasadas em outras atividades econômicas. Adaptações foram feitas para

receber a nova cultura que até nossos dias continua a ser a atividade econômica

predominante. A arquitetura, que perdurou durante todo o século XIX e entrou pelo XX afora,

ainda está em parte preservada.

A primeira consideração que ocupa o produtor que procura estabelecer-se é a escolha

do local e a qualidade dos terrenos. O local deve ser sadio, regado a águas, e ter

comunicações fáceis, por mar ou por terra com o mercado onde os produtos acham

extração...qualidade dos terrenos, ...faltando... facilidade de comunicação,(...)nunca

um lavrador fará grande fortuna:(...) antepor a escolha do local á das terras . (TAUNAY,

2001, p. 43)1.

O agricultor que montou uma fazenda pode não ter exatamente lido “O Manual do Agricultor

Brasileiro”, de Taunay, um dos primeiros tratados agrícolas impressos no Brasil prescrevendo

medidas para dinamizar a economia escravista brasileira, mas tinha conhecimento de muitas

das recomendações feitas no manual, ou por experiência, ou por tradição, de maneira que

além da lavoura, a implantação do núcleo da fazenda era muito bem estudada. Em relação

aos caminhos e comunicação podemos notar que a maioria das casas de fazenda do sul de

Minas se localiza em cotas entre 850 e 900 metros de altitude, por onde passam as estradas.

1 Sobre o assunto ver “O Manual do Agricultor Brasileiro” publicado no original em 1839, e reeditado em

2001pela Companhia das Letras, com organização de Rafael de Bivar Marquese. Foi um dos primeiros

tratados agrícolas impressos no Brasil, prescrevendo medidas para dinamizar a economia escravista

brasileira.

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Núcleo das fazendas

Fazenda Chapada – Conceição dos Ouros, MG. Nela as construções secundárias ficam atrás da casa principal: tulha e paiol, suspensos do solo e casa do administrador.

“A casa da fazenda não é uma construção isolada, faz parte de um conjunto de edifícios

dispostos equilibradamente entre si, segundo critérios funcionais e simbólicos. A cena

era composta da seguinte maneira: nas cotas mais elevadas desse conjunto, estava

sempre a moradia principal, evidente, soberana; no plano médio, ficavam as

instalações produtivas e as senzalas e, ao fundo, a vargem. ” (CRUZ, 2007, p.56)

Cada fazenda é um conjunto rural, com traçado próprio (estradas, ruas, carreadores)

organização dos espaços para atividades específicas (gado, café, etc.), fluxos (chegada do

produto da lavoura, beneficiamento, armazenamento, saída), hierarquia das construções

(principais, definitivas, temporárias, provisórias).

O complexo produtivo é composto por um conjunto edificações como lavadores, secadores,

tulhas, armazéns, dispostos ao redor do terreiro, onde também ficavam as antigas senzalas. As

construções anexas para beneficiamento e tratamento da produção agrícola, são parte

indispensável do complexo produtivo, chegando a ser uma agroindústria, pois o café passa por

um longo processamento de beneficiamento até que esteja pronto para a exportação,

torrefações ou indústrias de café solúvel. A quantidade dessas benfeitorias fazendas pode girar

em torno de 15, 20, 30 ou mais casas satélites. Esta característica caminha rapidamente para a

mudança, devido às novas relações de trabalho, à contratação de mão de obra temporária e à

mecanização das lavouras.

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Terreiros

Fazenda Cachoeira – Cachoeira de Minas, MG. Estrutura complexa para processar grande produção de café. Nela se destacam, além da casa sede, de época mais remota, o terreiro, com armazém e tulha.

Apesar das fazendas terem sido construídas antes da predominância do café como produto

líder na economia, elas se prestaram perfeitamente ao propósito, com a instalação de

terreiros ao lado da casa, servidos por água para lavador e força motriz do maquinário.

Um muro de pedra seca, mais ou menos da altura de um homem, rodeia em parte um

pátio muito vasto, no fundo do qual ficam enfileiradas, umas ao lado das outras, as

casas dos negros, as pequenas construções, que servem de depósitos e locais de

beneficiamento dos produtos agrícolas, e a casa do dono. ” (SAINT-HILAIRE, p. 46

apud CRUZ, 2007, p.56).

Essa implantação ainda persiste, levando-se em conta o fluxo seguido pelo café após sair da

lavoura até o ponto de ensacamento. Em torno do terreiro gira a vida produtiva da fazenda:

lavadores, tulhas, secadores, armazéns e demais equipamentos.

O café em coco é obtido após o grão já seco, e para isso o terreiro era fundamental. A seca

lenta faz com que os grãos se conservem uniformes. Atualmente existem outros métodos de

secagem, mas ainda não superaram o velho terreiro, de terra batida, tijolos, cimento ou

asfalto. Necessariamente extensos e em nível, exigiam muros de arrimo devido à declividade do

terreno, ou eram vários, construídos próximos a outras instalações como os tanques de lavagem

(lavadores), canais de alimentação das rodas d’água, casas de pilões, de trabalhos de

classificação, armazenamento e estocagem, razão da busca de um sítio plano.

Antes de ser espalhado o café passa pelo lavador à montante do terreiro, enquanto o secador

ficará à jusante. Depois de seco vai para a tulha de descanso que deverá ser ao lado. A

máquina de benefício pode estar localizada junto às tulhas e secadores, sistema que

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funcionou desde o século XIX, quando o maquinário era importado de países industrializados,

até nossos dias. Nas fazendas do Vale do Paraíba, com o fim da produção de café no final do

século XIX, os equipamentos e infraestruturas para beneficiamento foram desativados. Ao

contrário do que ocorreu no Vale do Paraíba, no Sul de Minas os terreiros de café funcionam

em plena atividade, inclusive com ampliação e novas construções a cada ano.

Armazém e Casa de Máquinas

Lavadores e canais são elementos presentes no processamento do café desde o século XIX e

ainda hoje é usado o lavador de tanque, construído de tijolos e cimentado. Máquinas para

beneficiamento de café se parecem com as do século passado, porém estão se modernizando,

como o lavador industrializado, o descascador, o despolpador, secadores de vários modelos e

meios de funcionamento e a abanadeira, que veio substituir a tão fotogênica peneira. Rodo, lona

(pano) para cobrir, abanadeira, carrinhos de mão, rastelo e carroça de tração animal, jerico e

toda sorte de máquinas e implementos agrícolas são elementos necessários ao

beneficiamento do café.

Tulhas e paióis

As tulhas são construções de madeira ou de tijolos forrada de madeira, destinadas à

uniformização da umidade do grão, ao descanso após sair do secador. Majoritariamente são

de porte pequeno para guardar e descansar o café em coco, antes de seguir para o

descascador e ensacamento e enviando à cooperativa, onde o café é estocado em grandes

armazéns, por serem mais seguros e práticos que os particulares.

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Colônias

Fazenda São José - Santa Rita do Sapucaí, MG. As casas da colônia pertencem ao proprietário da fazenda, são conservadas e pintadas na mesma época. Em torno de cada uma há sempre um espaço cercado para horta, pomar e para pequenos animais de propriedade do camarada que aí reside.

A colônia foi uma necessidade de ter a mão de obra próxima ao trabalho. Veio substituir a

antiga senzala, com o trabalhador livre, mas ainda habitando a fazenda. A colônia na maioria

das vezes é composta de casas iguais, quando se é planejada e construída de uma só vez.

Além das casas de habitação há a igreja e às vezes uma escola. A tipologia das casas varia

de acordo com vários fatores, como o geográfico, a intenção social, o religioso (proximidade

da igrejinha). Podem ser em linha acompanhando a curva de nível, próximas umas das outras

ou distantes, com área em volta para cultivo de verduras e frutas para o consumo da família.

Às vezes formam em torno de uma praça central.

Esses conjuntos apresentaram uma linguagem arquitetônica coesa, até segunda metade do

século XX. Ainda se encontram colônias em funcionamento, mas algumas tiveram o uso

remanejado, de acordo com as novas necessidades decorrentes da mudança de atividade

econômica. Algumas fazendas possuem uma casa distinta das demais para o administrador

que ali resida, de preferência localizada na entrada da propriedade. Quanto às escolas rurais,

com a reforma do ensino, estão sumindo da paisagem.

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Construções para outras atividades

Embora não tivessem sido construídas para o cultivo do café, as fazendas foram adaptadas

para tal, porém essas fazendas não abandonaram as outras atividades. Nas regiões visitadas,

especialmente no do sul de Minas, a pecuária sempre foi ligada ao cultivo do café, com raras

exceções. Motivo para se registrar as manifestações arquitetônicas, dessa atividade rural,

como cochos, cocheiras e estábulos. Portanto, na paisagem rural das serras da Bocaina e da

Mantiqueira, a atividade pecuária marca sua presença com pastagens, silos, estábulos retiros,

cocheiras, cochos.

Em relação aos engenhos diz Carlos Lemos:

“As primeiras fazendas de café derivaram desses estabelecimentos agrícolas,

acrescentados de edificações específicas para a sua produção. Os engenhos de

açúcar foram a primeira grande manifestação arquitetônica do estabelecimento da

população no campo, tendo grande presença da segunda metade do século XVIII até

meados do século XIX. Sua organização era constituída por casa-grande, capela e

fábrica. A implantação variava, mas preferencialmente localizavam-se próximos aos

cursos d’água, para utilizar a energia hidráulica para mover as moendas. (LEMOS,

1999, p.136-138; BENICASA, 2003).

Os engenhos de rapadura e alambique (fábrica de aguardente) coexistiram com o café e

ainda continuam ocupando o espaço na paisagem de algumas fazendas de café.

Pequenas obras

Porteiras, cercas, pontes e muros de pedra em torno da sede, cercando currais e pomares,

transformando-se em arrimos das casas sede, muros de adobe nas proximidades da casa: as

pequenas obras de engenharia rural, assim como a maneira de trabalhar a terra, além dos

elementos naturais que compõem a paisagem rural, falam de um povo e de um território

específico e revelam a cultura da sociedade que ali vive. Mais que isso, fazem parte da

paisagem construída pelo homem: das tradições trazidas de sua terra, dos conhecimentos

adquiridos em contato com outros povos e dos processos de evolução no tempo, com os

novos agenciamentos devidos à evolução de necessidades e aperfeiçoamento das técnicas.

Na zona rural, essa paisagem, modificada pelo homem, evolui mais lentamente que nas

cidades, podendo guardar vestígios de épocas pretéritas, seja através de maneiras de falar,

de vestir, de cozinhar ou construir. Por isso faz-se urgente que se registre o que ainda resta

desses hábitos para que, entendendo o que fomos, possamos conhecer melhor a nós

mesmos, saber quem somos, como um povo e uma nação.

Sobre porteiras diz SAINT-HILAIRE, em Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e

São Paulo. “Não devo também esquecer de dizer que se entra no pátio por uma das portas a

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que se chama porteira, também empregada para fechamento dos pastos. Constam tais

porteiras de dois esteios e algumas tábuas. ” (SAINT-HILAIRE, p. 46. Apud CRUZ 2007,

p.56).

Pomares, hortas e jardins

Fazenda Três Barras – Carmo de Minas, MG. Fechando o grande quadrilátero a casa sede, o paiol e a senzala, “o grande pomar em forma de ferradura circundava o paiol, terreiros, garagens, tulha e galinheiros próximos à casa. Era um belíssimo pomar formado por quase uma centena e meia de

enormes jabuticabeiras, das mais variadas qualidades”. (JUNQUEIRA, 2004)

Se a arquitetura teve influências estrangeiras, “O jardim tampouco nasceu aqui, foi trazido

como se fazia lá fora e foi sendo transformado à medida que se formava uma sociedade nova

(OLIVEIRA, in DELPHIM, 2005, p. 12).

Na passagem dos séculos XIX para o XX, os jardins e os pomares, tão importantes quanto as

edificações das casas, faziam parte do planejamento de toda fazenda. Pequenos jardins de

flores e ervas, murados ou cercados, de traçado geométrico, ao lado de casas, acabaram por

caracterizar uma época e um modo de vida. Os espaços reservados a eles são indissolúveis da

casa. Mesclando espécies nativas com as trazidas de outras plagas, como aconteceu com

nossa cultura, formavam o conjunto de conhecimentos e costumes que se desenvolveram pari

passu à nova sociedade do café no século XIX como parte do processo de colonização do

território com a introdução de novos hábitos. “Até o Império são poucos os registros de jardins

no Brasil” (MARX, 1980, p.62).

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O pomar de frutas variadas poderia se localizar no quadrado cercado por muros de adobe aos

fundos da casa. Enquanto as mangueiras ficavam esparsas em terreno aberto nos fundos e

lados da casa, o jabuticabal se localizava sempre junto a um riacho, para irrigação

permanente. A escolha do sítio obedecia a contingências físicas como provimento de água, o

sentido dos ventos, a topografia do terreno e também a proximidade da casa sede para os

cuidados necessários e controle da coleta dos frutos, sempre em época certa do ano, na

dependência do regime de chuvas, incidência de sol, frio e calor.

“...junto aos engenhos de açúcar e aos terreiros de café ou aos solares dos grandes

exportadores nas cidades, como nos palácios das autoridades nacionais, a palmeira

imperial trazida de outras terras, confere também aos jardins públicos daquela época

um cunho especial e à paisagem brasileira um toque característico. (MARX, 1980, p.

62)

A palmeira imperial é um caso especial na relação com o café e suas fazendas produtoras.

Passa a impressão de poder e de imponência, nas fazendas do Vale do Paraíba, marcam a

presença e a adesão ou afinidade com o império.

Sistemas construtivos - tijolo e pau a pique

Luís Saia afirma que as “Fazendas do Vale do Paraíba” tinham a “finalidade precípua de

produzir café”. Eram “fazenda de monocultura do café”, com o mesmo “estilo de exploração

econômica e estilo de compleição edificatória [...] ocupação territorial associada ao café desde

suas primeiras épocas de seu cultivo como produção do tipo colonial”. A fazenda Pau d’Alho

era um exemplar clássico, “no sentido de conter, em substância, todas as soluções que

fizeram carreira, com variantes condicionantes a zonas e épocas, nestes 150 anos de

economia cafezista”. (SAIA, 1978, p.66).

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Fazenda Chapada - Conceição dos Ouros, MG. Estrutura autônoma de madeira. Todo o conjunto fica dentro de um quadrilátero, contido por muro pedras grandes, aliadas a pequenas pedras de mão.

Como a economia baseada no café como principal produto de exportação perdurou por

muitas gerações antes do êxodo para a cidade, por volta dos anos 1970, nada mais normal

que as construções rurais ligadas a ele refletissem os vários estilos e materiais e técnicas

construtivas de cada época. Às vezes, apesar de modernas, construídas com técnicas novas,

algumas casas mantinham a mesma implantação, o mesmo programa e a mesma distribuição

dos espaços das fases construtivas anteriores.

Sem um recorte temporal na fase de levantamento, diversos momentos históricos e fases

distintas na arquitetura do café, muitas vezes coexistiam no mesmo espaço ao mesmo tempo.

Nesses casos estudados predominam duas tipologias e sistemas construtivos: estrutura

autônoma de madeira, também chamada de pau-a-pique, e alvenaria autoportante de tijolos,

sem uso de cimento. São duas arquiteturas e técnicas construtivas em extinção e, portanto,

merecedoras de estudos e registros.

O primeiro desses sistemas aparece em fazendas tradicionais desde o final do século XVIII,

obedece a regras e critérios bem definidos e inicia a transição quando do surge o tijolo cozido,

em finais do XIX, primeiro timidamente, usado em vedação, depois substituindo toda a

estrutura, porém com os alicerces ainda de pedra e os assoalhos de madeira sobre barrotes.

As proporções de uma arquitetura para outra, de pau a pique para tijolos, mudam, sendo a

primeira mais espraiada e a segunda mais robusta. A inclinação do telhado e o modelo de

telha usada na cobertura são responsáveis em parte por essa diferenciação, mostrando aí a

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influência do material na forma da arquitetura. Apesar das diferenças, os materiais de ambas

são os mesmos: a pedra, o barro e a madeira.

Fazenda Santa Thereza - Piranguçu – MG. Chalé de alvenaria de tijolos maciços autoportantes. Ao redor da casa, grande área contornada por muros brancos, com balaústres de cimento, sobre arrimos escorados por gigantes.

A pedra solta, encontrada em grande quantidade nas regiões de estudo é utilizada sempre e

somente para o embasamento, escadas, soleiras das portas e lajeados de pátios, em forma

de cantaria ou enxilharia. Não se usa pedra para umbrais e vergas.

Na arquitetura de pau-a-pique o barro está presente no preenchimento da trama de paus

roliços e taquara, como adobe em algumas e poucas soluções e nas telhas de capa e canal,

de fatura manual. Nas estruturas autoportantes, o barro comparece em forma de tijolo cozido

nas paredes maciças e como cerâmica para a cobertura de telhas francesas.

A madeira é estrutural na casa de pau-a-pique, fazendo a gaiola sobre o plano do alicerce de

pedra e a estrutura da cobertura. Está também nos fechamentos de portas e janelas, nos

pisos, forros e demais pormenores construtivos. A casa de tijolo restringe o uso da madeira

ao assoalho, portas e janelas, estrutura do telhado e forro. Em todas essas aplicações, a

madeira já passou por processo de industrialização. (LEMOS, 1999). Outros materiais como

bambu, vidro, azulejos, ferro, tinta, cal e areia contribuem nessas edificações.

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Conclusão

A ação de levantamento e inventário nas regiões da Serra da Bocaina, no Vale do Paraíba

Paulista e na da Mantiqueira no Sul de Minas, iniciativa do Instituto do Patrimônio Histórico e

Artístico Nacional – IPHAN, mostrou uma região com história marcante e particular, de uma

paisagem construída pelo homem ao longo dos séculos XIX e XX e que ainda guarda

conservados e preservados bens arquitetônicos e técnicas culturais, com plenas

potencialidades que aliam as tradições herdadas com o desenvolvimento de tecnologias de

ponta relativos ao café, produto até hoje de forte presença na pauta de exportação do país.

Ao encabeçar a criação do grupo de trabalho para agrupar estudos, conhecimentos e

reflexões sobre patrimônio rural legado pela economia do café, o IPHAN apontou para a

importância de além proteger, preservar e valorizar a paisagem que trouxe divisas

econômicas ao Brasil, produziu um patrimônio cultural de incalculável valor e modificou a

paisagem gerada tanto pelas lavouras como por toda infraestrutura construída para

beneficiamento do produto, gerando uma nova paisagem cultural.

Passada quase uma década, o tema continua atual apontando para a necessidade a

retomada dos trabalhos de patrimonialização - reconhecimento e valorização - dessa

paisagem como objeto da memória nacional, testemunho da história da técnica, do trabalho,

da sociedade e da cultura do Brasil.

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Créditos * Graduada em Arquitetura, pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EAUFMG) Arquiteta e urbanista da Superintendência do Iphan em São Paulo. e-mail: [email protected]