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8/17/2019 Património - Políticas e Práticas Culturais (1) http://slidepdf.com/reader/full/patrimonio-politicas-e-praticas-culturais-1 1/27 Património - políticas e práticas culturais: para uma abordagem comunicacional Eduardo Esperança Universidade de Évora Capítulo I – Questões metodológicas e conceptuais 1. Introdução; (a) Localização da pesquisa – Instru- mentalidade e redução; (b) Unidade e multiplicidade das vias de progressão; 2. O interesse da ciência e a transdiscipli- naridade dos campos; 3. Transversalidade e processos de nave- gação; (a) Ecletismo e perspectivas; 4. A abordagem comunicacional; (a) Que "Comunicação"?; (b) Esboço de um modelo comunica- cional; (c) Relação e revelação: o contraste e a especificidade do objecto; 5. Uma noção multidimensional de “expe- riência”; Resumo da tese de doutoramento em Ciências da Comunicação, defendida na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 6. Uma noção de Campo Social – para uma observação operacional; 7. Conclusão Este capítulo inicial destina-se essencial- mente a fornecer algumas coordenadas para a leitura e apreciação de todo o trabalho que se segue, um enquadramento epistemológico mais geral. Essascoordenadascomeçam por delimitar as práticas e os campos de saber envolvidos, adentro da capacidade possível num estudo transversal como este se apresenta, aplicado ao tema específico que o exige. Começam por se observar as formas de instrumentali- zação e redução que as metodologias das ci- ências sociais plasmaram de um positivismo reinante e fonte de todas as legitimações dis- cursivas que partilham o seu modelo. São igualmente observadas algumas característi- cas inerentes à complexidade do campo em análise e o modo como se podem encontrar formas de abordagem, heuristicamente mais rentáveis, no cruzamento de campos de saber tradicionalmente sectorializados. Em seguida, observam-se algumas alter- nativas possíveis em termos do encarrila- mento metodológico deste trabalho, a partir das condições prévias conhecidas e assumi-

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Património - políticas e práticas culturais: para umaabordagem comunicacional∗

Eduardo EsperançaUniversidade de Évora

Capítulo I – Questões

metodológicas e conceptuais

1. Introdução;

(a) Localização da pesquisa – Instru-mentalidade e redução;

(b) Unidade e multiplicidade das viasde progressão;

2. O interesse da ciência e a transdiscipli-naridade dos campos;

3. Transversalidade e processos de nave-gação;

(a) Ecletismo e perspectivas;

4. A abordagem comunicacional;

(a) Que "Comunicação"?;

(b) Esboço de um modelo comunica-cional;

(c) Relação e revelação: o contraste ea especificidade do objecto;

5. Uma noção multidimensional de “expe-riência”;

∗Resumo da tese de doutoramento em Ciênciasda Comunicação, defendida na Faculdade de CiênciasSociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

6. Uma noção de Campo Social – parauma observação operacional;

7. Conclusão

Este capítulo inicial destina-se essencial-mente a fornecer algumas coordenadas paraa leitura e apreciação de todo o trabalho quese segue, um enquadramento epistemológicomais geral.

Essas coordenadas começam por delimitar as práticas e os campos de saber envolvidos,adentro da capacidade possível num estudotransversal como este se apresenta, aplicadoao tema específico que o exige. Começampor se observar as formas de instrumentali-zação e redução que as metodologias das ci-ências sociais plasmaram de um positivismoreinante e fonte de todas as legitimações dis-cursivas que partilham o seu modelo. Sãoigualmente observadas algumas característi-cas inerentes à complexidade do campo emanálise e o modo como se podem encontrarformas de abordagem, heuristicamente maisrentáveis, no cruzamento de campos de sabertradicionalmente sectorializados.

Em seguida, observam-se algumas alter-nativas possíveis em termos do encarrila-mento metodológico deste trabalho, a partirdas condições prévias conhecidas e assumi-

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das como, por exemplo, o estatuto de com-plexidade da experiência que se aborda, as-sim como as formas de localização e rastrea-mento das fronteiras e relações cruzadas en-tre o campo em análise, as suas periferias epontos de relação mais distantes; isto nummodo de espacialização – até uma proxémica– que auxilie o recorte das posições dos ele-mentos, da estrutura relacional que atravessao campo, e que auxilie igualmente a observa-ção das formas de operacionalidade específi-

cas, práticas próprias do campo, e as formashomólogas aos outros campos em geral.

Encontrada e trabalhada a melhor formade abordagem ao objecto de investigação, énecessário observar, ainda que localmente, ocampo de onde parte a abordagem, algumasformas de constituição dos elementos que as-sumem o papel de sujeitos activos nesta in-vestigação. Isto começa pela análise do in-teresse da ciência e o modo como ela pró-

pria, na sua positividade e interesse opera-tivo/produtivo, recorta o seu campo em dis-ciplinas que depois encontram alguma di-ficuldade em se articular na abordagem àsexperiências que elege como objecto de in-vestigação. Esta, uma transdisciplinaridadeque deve, pelo menos, ser estatuída e as-sumida para permitir encontrar, nessa trans-versalidade disciplinar, os melhores proces-sos de navegação, indispensáveis à aborda-gem de qualquer experiência que se consti-tua como objecto de estudo. O ecletismo,por vezes aparente, por vezes real que da-qui resulta, é igualmente necessário a estaperspectiva que parte do princípio que a aná-lise da experiência, mesmo localizada, nãoadmite uma sectorialização do seu escopo,dada a forma global como qualquer experi-ência ocorre e, por analogia, é suposto seracompanhada pela abordagem científica que

a reconstitui. Alguns problemas se desta-cam nestas considerações, e estes ocorremparticularmente nos processos de procura,levantamento e observação dos objectos depesquisa; na utilização de "instrumentos denavegação"epistemológica e constrangimen-tos emergentes; na observação das múltiplasperspectivas envolvidas e da qualidade deste"ecletismo".

O modelo comunicacional que a seguir semostra, serve apenas de guia aos modos de

abordagem à relação e formas de relaciona-mento dos elementos constituintes da experi-ência em análise. É igualmente a melhor viaque encontramos de, teoricamente, fazer des-tacar a importância da estrutura de relaçõescomunicacionais e das suas formas específi-cas de matização numa economia do inter-câmbio simbólico. Este modelo destaca pre-cisamente o eixo da relação e da revelação.Como mais à frente veremos, ao entender o

 património como campo de práticas que seconstituem numa experiência relativamenteautónoma, de uma outra forma se destaca no-vamente esse polo da relação.

São a seguir definidos, no âmbito destaabordagem e seu enquadramento teórico,dois conceitos centrais: “experiência” – noseu sentido pluridimensional, e “campo so-cial”, no modo como se estabilizam lógicasde legitimação e coerência de procedimentosnos diversos espaços de acção social.

Este capítulo introdutório e de exposi-ção metodológica e conceptual apresentou,por vezes, alguma fragmentação, mesmo naabordagem aos pontos principais que quería-mos ver tratados na passagem pelos diver-sos territórios epistemológicos que atraves-samos. Essa fragmentação é o preço que te-mos de pagar pela extensão dos territóriosque abordamos, pela pluridimensionalidade

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que assume o nosso objecto de estudo – opatrimónio. De qualquer modo, acreditamosque ficou clara a orientação epistemológicadesta pesquisa transectorial, o modo como épossível encontrar o suporte-fundamento dearticulação deste estudo.

Passamos, de seguida, ao próximo capí-tulo, onde iniciamos a abordagem às diver-sas formas de representação do património,em particular as mais definitórias; um traba-lho que permite, depois, iniciar o questiona-

mento do que se representa e define – a pro-blematização do património.

Capítulo II – Rastreio e

problematização do património,

experiência patrimonial e

imaginário simbólico;

1. Introdução - objectivos deste capítulo;

2. Possibilidades de construção de umacartografia das enunciações envolvendoo património e suas "formas de expres-são";

(a) Génese etimológica e percursos daexpressão património;

(b) A noção de   propriedade; vizi-nhanças;

3. As definições de " património", come-çando pelas mais estabilizadas;

(a) A urgência de problematizar aquestão patrimonial – modos dequestionamento;

(b) A produção do juízo como pri-meiro elemento questionável;

4. Sobre o inventário, as modalidades ecampos de inventariação;

(a) Casos concretos de experiênciasdiferentes: os patrimónios daIgreja Espanhola e Portuguesa;

5. Experiência patrimonial – imaginário eobjectos simbólicos;

(a) O Imaginário Simbólico;

(b) A Dinâmica Simbólica na estáticageral – funções de estabilização;

6. Conclusão;

Após a caracterização da generalidade dosproblemas metodológicos de produção e deleitura que este trabalho encontra1 passamos,neste capítulo, a uma fase mais específicaque tenta abrir, por duas vias essenciais, ocaminho para a análise e abordagens possí-veis à experiência patrimonial. Assim:a) Uma primeira via tenta detectar os  mo-dos possíveis de problematização  do patri-mónio, o mesmo é dizer, os modos de questi-onamento  e definição do que aqui se busca– a experiência patrimonial. Tenta, essen-cialmente, despistar os diversos modos deemergência e enunciação, do mais discursivoao mais pragmático, evidenciados nas diver-sas dimensões em que a experiência patri-monial se manifesta e constitui na sua tota-

lidade. Esta detecção dos diversos modos deemergência da experiência acontece imedi-atamente antes, quando não em simultâneo,com a sua problematização, de um modoque tenta cruzar e ultrapassar a forma posi-tivista que estatui e delimita apenas o imedi-atamente visível, sem o questionar.

1Que são, aliás comuns a todas as abordagens nãopositivistas.

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São inicialmente observados os segmen-tos essenciais que percorrem a linha etimo-lógica e, depois, as diversas formas de cons-tituição do sentido da expressão património.Este ponto começa com uma cartografia dasenunciações envolvendo a expressão  patri-mónio, passando-se de seguida à etimologiae desdobramento de usos e significados, as-sim como da observação de algumas raízesconceptuais que investem sentido na expres-são, como é o caso de   propriedade  e   inte-

resse público. A questão fundamental domodo como  a noção de património repre-senta algo, é feita representar algo para quema enuncia; o modo como, através de sujeitosdiferentes, em cada actualização da expres-são se cruzam formas de representação quea expressão Património aglutina2 em parti-cular na sua função social, ao mesmo tempocolectiva e individual. Uma função que tentainvestir coesão em grupos heterogéneos à

volta de uma adesão comum, ajudando cadamembro da sociedade a definirse individual-mente face a uma herança colectiva. Fun-

2"Causalidade linear. Sujeito e objecto permane-cem separados e bem reais. A realidade é objectivae universal, exterior ao sujeito que a representa. Arepresentação  e as suas características constituem opróprio fundamento da acção e da percepção.(...) Arepresentação  é a única forma de garantir a realidadedo sujeito e a realidade da natureza. A representaçãoassegura a sua coincidência.(...)  Representação é um

meio útil de ligar os elementos estocásticos, atomi-zados para obter a ligação poderosa que exige a vidaem sociedade: hierarquias, ligações verticais e hori-zontais, representação de representação por meio designos e sinais.Expressão é ligação interna e partici-pação total. Se algumas etapas e hierarquias são exigi-das para alimentar entre si certos elementos que, pordefinição, são já totalidades, é para convocar algunsníveis específicos de ligação em domínios particula-res."Crítica da Comunicação, Lucien Sfez, ed. Inst.Piaget, p.63,64.

ção particularmente importante numa épocade esvanecimento geral de identidade.

Continuando esta exploração das diversasformas de enunciação, e passando às maisestabilizadas, são a seguir destacadas e ana-lisadas, as que, pela sua força normativa edefinitória, tanto na dimensão da experiên-cia como na dimensão teórica, nos parecemmerecer mais atenção: são as definições enormas produzidas pelas principais conven-ções internacionais; a lei portuguesa do pa-

trimónio; as recomendações do IPPAR; al-gumas observações e definições teóricas dequem se debruçou sobre o assunto desde me-ados do século passado. Em síntese, po-dem então observar-se algumas conclusões:– existe uma dominância do   cronos  e for-mas de experiência Moderna nas represen-tações observadas, pressupondo tanto umaexperiência fragmentada em esferas e cam-pos autónomos, como uma concepção lie-

nar do tempo por contraposição à possibili-dade de observar uma concepção indivisa epluridimensidonal da experiência; observa-se uma evolução definitória que descentra oeixo histórico e pericial, e coloca ao centro opúblico/comunitário; aumenta sem cessar aextensividade e abrangência definitória e, fi-nalmente, nenhuma das exposições se ques-tiona minimamente acerca do perfil de raci-onalidade do que está a tentar definir.   Sãoestas definições e a sua articulação (ou não)que nos podem oferecer um  corpus estrutu-ral da experiência a ser problematizada. Éo que a seguir se propõe com os  modos dequestionamento e entendimento da experi-ência patrimonial como problemática. Sãoassim observados os juízos centrais articula-dos em volta dos valores mais envolvidos na

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sua constituição, isto é, na génese do campo3

em que se constitui a experiência; são ob-servadas as modalidades e campos de inven-tariação como actos iniciais dessa constitui-ção e analisados alguns casos concretos –os patrimónios da Igreja Espanhola e Por-tuguesa. Conclui-se provisoriamente que aglobalidade da experiência se apresenta, emsi, inesgotável; que as definições que tentambalizar o campo dificilmente o conseguem e,nalguns casos, chocam fronteiras e se contra-

dizem.b) Por uma segunda via faz-se um trabalhode detecção e caracterização do modo comoo simbólico se funcionaliza socialmente, eaté que ponto se constitui como imagináriototalizante. São observadas algumas mani-festações exemplares pelo modo como ope-racionalizam a sua acção sob o vector domais alto rendimento simbólico. No es-paço de um imaginário simbólico cada vez

mais reificado é dada especial atenção ao te-cido institucional, em particular no seu modode segmentar e aparelhar campos simbólicosem determinados contextos.

Após esta exploração das formas centraisde constituição do campo e operacionaliza-ção da experiência patrimonial que nos per-mite reconhecer alguns padrões performa-tivos nos mais diversos contextos, estamosmais aptos ao recorte e análise desses pa-drões, nos capítulos seguintes.

Após este percurso, já explicitado na in-trodução a este capítulo, pudémos, essen-cialmente, colocar algumas questões às di-versas formas pelas quais o património sefaz representar, e observar mais demorada-mente o modo simbólico que envolve a ge-

3Sobre a noção de Campo, mais precisa neste con-texto, ver à frente o ponto 4. deste capítulo.

neralidade das suas representações; a cen-tralidade das dinâmicas simbólicas que habi-tam o imaginário-tipo em que o patrimóniose constitui.

Passamos agora ao próximo capítulo emque iremos observar a generalidade das cir-cunstâncias em que estas dinâmicas emer-gem e evoluem na Modernidade – aquilo aque chamámos, "as condições de emergên-cia da experiência patrimonial".

Capítulo III – Modernidade e

condições de emergência da

Experiência Patrimonial

1. Introdução.

2. Onde estamos; as temporalidades da re-lação;

(a) A extensão dos presentes e o que

daqui se vê;

3. Experiência e Modernidade – da expe-riência indivisa à sua fragmentação;

(a) Fixar o devir; as estratégias da es-tabilização;

(b) A racionalização da experiência:Max Weber e o desencantamentodo mundo;

4. A estetização da Experiência;

(a) A dimensão afectiva;

(b) A insondável imagem emotiva;

(c) Do espaço envolvente e vivido;caracterizações da experiência es-pecífica;

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5. Formas específicas de racionalização eestabilização – as funções técnica e ju-rídica;

5.1 A Formação da Experiência Patri-monial como uma forma de Estabiliza-ção;

6. A fundamentação positiva do campo doPatrimónio pelo Direito;

6.1 O que se passou em Portugal

6.2 O Direito positivo aplicado ao patri-mónio;

6.2.1 Práticas de classificação;

7. Modos de agenciamento e emergênciadas instituições administradoras do pa-trimónio;

(a) A Museologização e a exorbitaçãoarquivista –Museus, museologia e museologi-zação social

(b) O Lugar do Arquivo;

(c) A institucionalização da experiên-cia patrimonial; a rede positiva;

(d) Um caso paradigmático – o ar-quivo de filmes e os museus de ci-nema;

8. A Constituição de um imaginário posi-

tivo;

(a) A produção de um agente ideal -"a defesa do património"e a suaideologia;

9. Património e ecologia; novos signos etotalidades; narrativas e manifestaçõestotais/absolutas, arche e telos ao mesmotempo.

10. Conclusão

No capítulo anterior ensaiámos a proble-matização possível da experiência patrimo-nial e concluímos na observação da fragili-dade de constituição do campo assente emnormas e definições de   património. Ob-servámos igualmente algumas caraterísticasque ajudam a caracterizar a experiência pa-trimonial pelas suas formas de produção derendimento simbólico, por exemplo através

de imaginários mais reificados, assim comonas suas homologias com o sagrado.

Neste capítulo tentamos analisar o per-curso e o perfil das formas de experiênciaque, desde o século passado, caracterizaramo campo do património, as mutações sofri-das, assim como os elementos base de su-porte para as ideias essenciais que dinami-zam a acção que hoje se reivindica "do pa-trimónio". Observa-se, neste campo, o  ob-

 jecto   como central e grande mediador nalógica da patrimonialização, entendendo-seaqui por objecto, aquilo que se materializacomo foco de atenção do sujeito, numa expe-riência que assim se constitui, tanto do ladoda emissão como da recepção. Interessa ob-servar é como chegamos a esta objectualiza-ção tão materializante/objectulizante na ac-tualidade, e que se caracteriza por essa ne-cessidade de encontrar um objecto material econcreto a mediar todas as transacções e for-mas de relação, inclusivamente aquelas quetradicionalmente passavam ainda pelo ima-terial. O que acontece é que os própriosobjectos investidos do cruzamento de senti-dos dominantes no social do seu tempo, aca-bam por se tornar igualmente grandes me-diadores e "cofres"para a generalidade decategorias e conceitos institucionais vigen-tes: "direito", "propriedade", "herança", "pa-

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trimónio", "história", etc. Interessa-nos in-vestigar o processo de constituição da "so-lidez"reificante dalguns destes conceitos, sepossível para lá dos quadros tradicionais dastaxinomias adoptadas pela História. Maisque isto, entendido que o  património   e ocampo que o compreende só podem ser in-vestigados enquanto forma de uma experiên-cia dos sujeitos na história, cabe-nos agora

 procurar as suas condições históricas deemergência. Se não a sua totalidade, pelo

menos as condições determinantes da confi-guração experiêncial que hoje ele assume.

Começamos, assim, por descrever mini-mamente a situação e o que caracteriza a ac-tualidade neste âmbito do património parapodermos, depois, descortinar os percursosque nesta experiência vêm desembocar. Oprimeiro levantamento debruça-se sobre ouniverso integrado e indiviso (pela tutela deDeus e a mão da Igreja) que se vem de-

pois a fragmentar e, em particular, o modocomo ocorrem as formas de fragmentaçãoda experiência na Modernidade; os protago-nistas principais dessa fragmentação e a he-rança que até hoje nos chega da racionali-dade investida como forma de equilíbrio douniverso despolarizado, agora na falta do an-terior eixo central (Deus) e ordenador da ex-periência. Max Weber é quem melhor nosmostra a emergência dessa racionalidade eos processos de desencantamento do mundonuma experiência que atira para as margens,quando não para o proibido, toda a acção quese faça nortear por outra que não a raciona-lidade oficialmente estabilizada pelo tecidoinstitucional.

Pelo   modo compensatório   como se ob-serva, nos campos mais marginais à razão,a  estetização da experiência  aparece comouma estabilização da atmosfera dessa rigi-

dez racional, tentando manter a exterioridadedo seu vortex estético relativamente à razão.Esta era uma demarcação territorial para ahipótese de  construção de um espaço parao re-encantamento Moderno, numa re-acçãoaos processos de desencantamento e reifi-cação dominantes. São, por isso, observa-das algumas formas desta estabilização e, emparticular, o modo como o agenciamento daideia de património em formas de experiên-cia patrimonial se constitui como um grande

eixo de estabilização entre outros (as dimen-sões de compensação – estética e afectiva;sua localização e balizamento institucional).

É então feito um rastreio da generalidadedas práticas institucionalizadas de promoçãoda experiência patrimonial, como é o casodos museus, arquivos, reservas e outras for-mas institucionalizadas de produção da ex-periência, na busca e confirmação dos pa-drões estruturantes de organização da expe-

riência patrimonial. Entre estes, destacam-seos suportes técnico e jurídico, como instru-mentos privilegiados de estruturação e esta-bilização. Observa-se então como se cons-titui uma fundamentação positiva do campodo património através do Direito, passando-se em seguida a uma resenha histórica do quese passou, nesta perspectiva, em Portugal. Omodo constitutivo e técnico como o Direitoé aplicado ao património, os momentos emque é evocado e os procedimentos que im-plica, são a seguir observados, em particularpelas suas práticas de classificação. Expõe-se aqui um universo razoavelmente estabili-zado por uma racionalidade "programante"e"reificante", mas totalmente limpa de qual-quer forma de manifestação não positiva ouintegrada, originando, quando não a margi-nalização, pelo menos a colocação locali-zada dos campos mais propícios ao desen-

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volvimento de dinâmicas de encantamento erentabilização simbólica – o caso do  patri-mónio.

Sobre o agenciamento e emergência dasinstituições administradoras do património,são feitas algumas considerações acerca docarácter espectacularizante em que se banhatoda a esfera da cultura, e o modo como ocampo político alimenta e se alimenta dessaforma de visibilidade e exposição; a rela-ção de concomitância que aí se cruza e su-

porta também o nascimento dos museus, ar-quivos e formas gerais de institucionalizaçãopatrimonial. É este o precurso que se segue,na observação do processo de institucionali-zação da experiência patrimonial através daconstituição de uma rede positiva. Dá-se,depois, uma atenção especial ao caso do ci-nema e ao arquivo de filmes e imagens emmovimento.

Estabilizada a institucionalização, é um

imaginário positivo que emerge da produçãode todas estas instâncias, imaginário no qualse destaca "a defesa do património"e a suaideologia como representantes de um agenteideal de referência para todo o campo do pa-trimónio e rede institucional.

Num último ponto derivado, é feita umaanálise das diferenças e homologias entre

 património e ecologia, suas narrativas e ma-nifestações totais/absolutas, seu arche e telosao mesmo tempo; uma análise que nos per-mite clarificar estratégias de acção de campoe situar a sua articulação no social.

Neste capítulo percorremos, com algumaextensão, não só as condições de emergên-cia da experiência patrimonial como os mo-dos da sua estabilização, institucionalização,e positivização a vários níveis – das formasde racionalização à constituição de um ima-

ginário positivo, suporte de uma ideologiapatrimonial.

Até aqui, o nosso trabalho tem-se pautadoessencialmente pela exposição e análise doconstituído, assim como dos seus fundamen-tos expressos e latentes. Com esta base me-lhor recortada e conhecida passamos, no ca-pítulo que se segue, ao que se poderia deno-minar uma segunda parte mais analítica mas,essencialmente operativa. Numa perspectivapragmática vamos então tentar destacar os

modos de articulação de esferas e camposde acção com que o campo do património secruza; a forma como veste de tons diferentesa experiência patrimonial que legitima, con-forme as diferentes esferas de acção que in-tersecta. O trabalho que se segue só é possí-vel articulado sobre o suporte conceptual damediação – forma de entendimento privile-giada da acção e dinâmicas dos campos que,logo de início, começamos por definir.

Capítulo IV – As formas de

mediação entre esferas de acção

social

1. 1. Introdução

2. Noção da presença do medium   e ne-cessidade de observação da sua perfor-mance;

(a) A Razão Mediática; processos eformas de mediação geral;

(b) A Razão Mediática – o mediumlinguagem;

i. Os media de difusão;

(c) Operacionalidades diferentes,processos diferentes, diferentesformas de mediação;

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3. O modelo mediático da acção patrimo-nial;

(a) A lógica de operação do modelopatrimonial;

(b) Origem das tensões entre a lógicado modelo patrimonial e o con-texto das outras lógicas;

4. Tensão entre esferas – a dominância daesfera económica e a eficiência da me-

diática;

5. Conclusão;

No capítulo anterior foram explicitadas di-versas formas de estabilização da experiên-cia patrimonial, e observadas algumas parti-cularidades da sua forma de ocorrência forada racionalidade oficialmente instituída. Ob-servámos como se constitui toda a organiza-ção "encantatória"do imaginário simbólico eoutras formas de compensação da aridez eautomatização relacional, características daracionalidade Moderna.

Neste capítulo tentamos destacar os mo-dos de articulação de esferas e campos deacção com que o campo do património secruza; a forma como veste de tons diferentesa experiência patrimonial que legitima, con-forme as diferentes esferas de acção que in-tersecta. O trabalho que se segue só é possí-

vel articulado sobre o suporte conceptual damediação – forma de entendimento privile-giada da acção e dinâmicas dos campos.

De início começamos por fazer notar apresença do medium e a necessidade de ob-servação da sua performance, desde o pontode vista da filosofia, aos modos mais con-cretos e contemporâneos de entender a suaarticulação. No ponto a seguir observamos,

em síntese, os processos e formas de medi-ação em geral que se podem constituir na-quilo a que denominamos uma   razão me-diática. Nesta, especifica-se melhor a no-ção de  mediação  com que estamos a lidare as características dos "aparelhos"e dispo-sitivos envolvidos neste processo e forma deperspectivar a acção. A “linguagem” é o ge-ral e original medium por excelência, e a elaconsagramos um ponto em que observamosa sua forma de mediação para a utilizarmos

como referência nos outros géneros de  me-dia  a abordar. Conclui-se deste ponto, en-tre outras coisas, da existência de um deter-minismo de origem no emprego de qualquerlinguagem, determinismo inerente ao modocomo o medium enforma o sentido e deter-mina as suas direcções num campo finito demovimentos. Essa determinação inerente àforma é partilhada pelos  media  de difusão,os campos que os configuram e determinam.

É necessário então produzir um modelo maisesquemático da articulação geral de esferas ecampos de acção, no modo como agenciamos diversos dispositivos e operadores coloca-dos no terreno; como evoluem segundo lógi-cas de acção específicas; como se cruzam eque efeitos produz o cruzamento destas ló-gicas o mais das vezes díspares. Observadaesta esquematização que nos oferece, aindaque heuristicamente, alguma visibilidade so-bre um universo complexo e aparentementeindeterminado, podemos passar a um mo-delo mais específico das formas de mediaçãoinerentes ao campo patrimonial e sua lógicade acção; o modo como é obrigado a nego-ciar o cruzamento da sua lógica com a de ou-tros campos para atingir o seu objectivo queé a produção de reserva patrimonial. Isto sóé hoje conseguido:

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1. Tentando captar a atenção dos   mediapara o foco dos seus interesses;

2. Persuadindo o "espaço público"vulgo"opinião pública"da nobreza dos seusintentos;

3. Uma vez adquirida essa "força pú-blica"com o auxílio dos media,iniciando os procedimentos politico-burocráticos para o sancionamento eprodução jurídica por parte do campopolítico.

Este, um processso hoje mais complexoque, ainda não há muitos anos, se centrava noterceiro ponto, sendo os dois primeiros per-corridos muito mais insipidamente.

Dados os cruzamentos que a lógica patri-monial tem de encetar para atingir o seu ob- jectivo, observam-se tensões em todos essespontos em que o modelo patrimonial, mais

ortodoxo, é obrigado a fazer cedências, ouentão a perder definitivamente em benefíciode lógicas hoje dominantes como as da es-fera económica e da mediática. Observa-se por isso, analiticamente, a tensão que ocampo patrimonial produz no cruzamentocom a esfera económica e com a mediá-tica, devido ao seu modelo "reservista"(paraa produção de reserva patrimonial) de acção.Um modelo conflitual com o económico, quetudo absorve e dissolve, como com o mediá-tico que, do seu ponto de vista, tudo expõe e,por isso, não só desgasta (em termos de ima-gem), como o sujeita aos perigos do desejoprivado.

De forma mais esquemática ou, por vezes,mais descritiva, foram expostas e analisadasdiversas formas de mediação e lógicas de ac-ção inerentes às várias esferas e campos poronde o património evolui. Ficámos com uma

perspectiva mais clara e localizada das regrasdo jogo em que se envolvem estes agentes eas expectativas que da sua configuração geralse podem induzir.

Conhecendo assim melhor a sua forma deacção passamos, no próximo capítulo, a ob-servar mais circunstanciadamente a   lógicada racionalidade patrimonial aqui exposta eos modos como faz emergir “valor”  dentrodo campo, por contraposição a outras for-mas de valoração substancialmente diferen-

tes e de origem diversa, – produzidas noutroscampos.

Capítulo V – Formas de valoração

e conversão de bens patrimoniais;

1. Introdução

2. A metáfora da cultura, suporte paraa reificação dos produtos culturais em

bens patrimoniais – observação do su-porte analógico da cultura;

(a) A tragédia da Cultura e a autono-mia do produzido. A visão pessi-mista da Cultura;

3. O mercado do consumo cultural – umaforma de mediação dominante;

(a) Mercadologias – A racionalização

mediática do consumo;(b) Modos de Distribuição e Acesso –

Condicionamentos;

(c) A Morfologia espectacular da me-diação pelo consumo – a evolu-ção/deslize para o novo modelo davisibilidade;

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4. Precisão da noção de “valor” e es-boço de uma tipologia dos processos deemergência do “valor”; – uma noção de“valor” mais abrangente;

(a) A “colecção” como operador devaloração;

(b) O auxílio das estratégias reifican-tes;

5. O dinheiro como medium axiologi-

zante;

(a) O dinheiro como mediação peloconsenso à priori acerca das pau-tas de transacção;

6. Para uma tipologia axial das formas devaloração;

(a) A emergência de formas de con-

versão de bens-de-valor. A ope-racionalidade da conversão entrecampos;

7. A produção do “valor” na reconstruçãoracional do discurso patrimonial;

(a) A génese do valor a partir das rela-ções do campo patrimonial, com oauxílio da reificação das represen-tações;

(b) As formas de conversão patrimo-niais e o rendimento simbólico;

(c) A Produção de   aura   e fascíniosimbólico;

8. Constelação dos valores polarizados;

(a) A fragilidade do bem como fun-damentação do valor e da pro-tecção da memória: o eixo dapreservação/não- preservação;

(b) O eixo do valor-de-antiguidade;

(c) O eixo do valor-de-culto – a mi-mese da reverência;

(d) O eixo do valor-de-presença; oestar-ali;

i. A presença da imagem; ocaso exemplar da fotografia,no trabalho de Bazin;

9. Conclusão

Tinham sido explicitadas diversas formasde estabilização da experiência patrimonialno terceiro capítulo, e observadas algumasparticularidades da sua forma de ocorrênciafora da racionalidade oficialmente instituída.

Observámos depois como se constitui todaa organização "encantatória"do imagináriosimbólico e outras formas de compensaçãoda aridez e automatização relacional, carac-terísticas da racionalidade Moderna. No ca-pítulo anterior, com  a mediação como ins-trumento conceptual, observámos as formasde articulação das diferentes esferas de acçãocom que o campo do património se cruza,e os modos de ocorrência desses cruzamen-

tos; as estratégias de legitimação e valora-ção dos campos que o rodeiam. Precisa-mos agora de descer aos modos de articu-lação dessas formas aparentemente margi-nais de acção "compensadora"e "encantató-ria"características deste campo. Tentaremos,para isso, fazer emergir um  modelo de gé-nese do valor  e de  uma economia das for-mas de valorização das experiências. Um

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modelo que se caracterize pela sua transver-salidade morfológica de modo a permitir re-cortar os pontos pivot de articulação entre ashomologias que se observam na comparaçãocom outros campos e formas de valoração –particularmente no eixo tensional existenteentre o económico e o patrimonial.

Finalizámos o capítulo anterior obser-vando precisamente essa tensão que o campopatrimonial produz no cruzamento com a es-fera económica e com a mediática, devido

ao seu modelo "reservista"(para a produçãode reserva patrimonial) de acção. Um mo-delo conflitual com o económico, que tudoabsorve e dissolve, como com o mediáticoque, do seu ponto de vista, tudo expõe e,por isso, não só desgasta (em termos de ima-gem), como sujeita aos perigos do desejo. Omodelo patrimonial inerente ao campo queo baliza, evolui num contexto de imersão,que aqui podemos denominar   uma morfo-

logia envolvente do cultural-mediático. É,por isso, importante observar   a metáforada cultura  como suporte para a reificaçãodos produtos culturais em bens patrimoni-ais. Uma observação do suporte analógicoda cultura que permita melhor definir o con-texto, mesmo que diversificado e complexo,que atravessa o campo do património, cons-titui boa parte das suas periferias, e afinaldetermina as suas evoluções e resistências.Um contexto muito mais vasto, com um per-curso que é importante rastrear, onde é possí-vel observar a materialização e autonomiza-ção de ideias, imagens, conceitos e até, ob- jectos, que acabam por fugir às rédeas doscampos de origem, ensaiando evoluções in-determinadas ou apenas guiadas por forçasdos campos dominantes na altura da sua ac-tualização.

Importa, por isso, atender às formas dematerialização da cultura em que navega ocampo patrimonial para percebermos, dentrode uma lógica híbrida e ainda dominada peloeconómico e o mediático, como o mercado eo consumo se destacam enquanto operadorescentrais dessa materialização. Operadores aque o próprio campo patrimonial tem de ce-der alguns princípios de forma a manter a suacapacidade de reprodução; ser consumido éaqui sinónimo de ser mostrado e ser visto.

O mercado é um efeito desse consumo, esta-bilizado pelas estruturas económicas de pro-dução e permuta. É ao cruzar-se com es-tas esferas, ainda que em processo tensional,que o campo patrimonial recolhe a sua quotado “valor” que se produz e reproduz no es-paço público. Este cruzamento acontece en-tão como uma necessidade de aquisição do“valor” produzido na "bolsa"do espaço pú-blico. Torna-se assim importante, no nosso

trabalho, especificarmos as características emorfologia desse “valor” que nos serve aquide instrumento para o esboço de uma tipo-logia axiológica geral e, depois, uma maisespecífica em que se integre o campo do pa-trimónio. Esta é uma análise que nos levaao destaque das formas reificantes que emer-gem para a "lubrificação"da máquina de ex-posição e consumo sobre a qual emerge o“valor” mais ou menos estabilizado, mais oumenos indexado aos campos de origem. Sãoos efeitos produzidos pela acção de reifica-ção que a racionalidade Moderna proporcio-nou, assim como a facilitação que um campode representações reificadas proporciona àconstituição do valor a partir da interacção erelação entre representações estabilizadas. Épreciso atentar ainda no papel da troca en-quanto acção de intercâmbio na génese deum valor supra-campo, indexado a um ou-

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tro estalão e uma outra racionalidade axioló-gica com base no valor de troca produzidono cenário do consenso possível e circuns-tancial do momento e da situação contextual.Pelo papel preponderante e transversal a to-dos os campos, a moeda/dinheiro enquantomedium axiologizante estudado por GeorgSimmel, fornece-nos uma analogia esclare-cedora dos modos de formação do valor nocampo económico. O dinheiro é um des-ses "lubrificantes"por excelência, e merece

alguma atenção, em particular na referênciaque é "A Filosofia do Dinheiro"de Simmel,e o modo como nos explicita esses processosde reificação do valor através desta forma demediação.

No seguimento da tipologia que havia fi-cado delineada no início do capítulo, ensai-amos então a produção de um  modelo das

 formas de conversão de bens-de-valor  entreesferas de acção. Um modelo geral que a se-

guir tentamos observar na especificidade daacção e conversão patrimonial. Para isto, co-meçamos por olhar com mais atenção a es-pecificidade da produção do valor adentro dareconstrução racional do discurso patrimo-nial e formas de racionalização da sua ex-periência. Aqui tentamos descortinar, co-locando sob forma de hipótese, os modosde operacionalização de actos de conversãode representações e valores produzidos noseio da experiência patrimonial. Estes ac-tos, como os objectos que os atraem e polari-zam, são investidos de convertibilidade pelascondições de produção e colocação da expe-riência específica do património face às ou-tras experiências e campos de produção devalor convertível. Isto observa-se na trans-versalidade em que emerge o “valor” incor-porado em diversas categorias agregadas eafectas aos vários campos. Estes valores são

aferidos pelo consenso indexado a um mer-cado contingente e estabilizado por represen-tações de valor produzidas com base na ve-locidade da troca e na margem de "lucro lí-quido"de cada acto; no que cada campo, eem particular o patrimonial, consegue con-verter para fora do seu território de exclusi-vidade, como investimento, na esperança deum retorno maior.

Igualmente no seguimento da tipologiadelineada desde o início, procedemos depois

à descriminação e análise da constelação devalores polarizados na experiência patrimo-nial. Valores localizados em eixos de arti-culação mediados por uma forma específicade atenção e emergência. Começamos pela

 fragilidade do bem como fundamentação dovalor e da protecção da memória: o eixo dapreservação/não-preservação na forma cen-tral como hoje justifica qualquer intervenção– tudo o que é frágil deve ser preservado por

estar condenado a não durar. Passamos pelovalor-de-antiguidade na forma como Riegl odelineou e veio evoluindo até hoje nas práti-cas concretas. Depois, o valor-de-culto que,através da mimese da reverência e da vene-ração, se reproduz no campo social das di-versas esferas. E, finalmente, o  valor-de-

 presença, levando-nos às considerações on-tológicas que nos podem dar a perceber osmais contemporâneos modos de imediatezaxiológica, como o são os da imagem, emexemplo abordado a partir do trabalho deAndré Bazin.

Ensaiámos, neste capítulo, uma tipologiageral e outra específica para as axiologiasque nos permitem clarificar as formas deemergência do “valor” e conversão de bensem geral, e de bens patrimoniais, em parti-cular. Isto permitiu-nos gizar um modelo deacção e conversão do campo patrimonial, a

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partir das formas de mediação e valoraçãodas diversas esferas, e o modo como o campopatrimonial entre elas evolui.

No capítulo que se segue passamos, emsequência, a observar a crise de fundamen-tos de que a emergência do campo é, afi-nal, já um indício, no modo como se atém aomodelo aqui delineado e aos seus princípiosmais ortodoxos, devido essencialmente:a) à generalidade das contradições em que omodelo incorre, já expostas nos capítulos an-

teriores e que, perante os novos contextos,tendem a acentuar-se;b) à predominância da lógica mediática queenvolve já toda a esfera da Cultura;c) aos novos desenvolvimentos tecnológicosque se perfilam e põem em causa boa partedesses princípios, dissolvendo a sua funda-mentação.

Capítulo VI – Novas Tecnologias e

Modelo Alternativo

1. 1. Introdução

2. Tratar a matéria e o corpo domonumento– Conservação, restauro ereconstrução.

3. A Emergência de novos dispositivos ealteração das formas de manifestação;

(a) Observação de Casos Nacionais(b) As novas tecnologias e o novo

contexto tecnológico;

4. O vector do desenvolvimento tecnoló-gico e as incompatibilidades com a ratiomoderna ; a luta entre arche e telos – osparadoxos emergentes;

(a) A monumentalidade esfumada;

5. Atenção ao novo modelo de sujeito;

6. Culturas e esbatimentos;

7. Preâmbulo de um tempo de crise;

8. Hipótese de construção de um modeloalternativo;

9. Conclusão

No capítulo anterior foram esboçadas umatipologia geral e outra específica para as axi-ologias que nos permitem clarificar as for-mas de emergência do “valor” e conversãode bens em geral, e de bens patrimoniais emparticular. Isto permitiu-nos gizar um mo-delo de acção e conversão do campo patri-monial a partir das formas de mediação e va-loração das diversas esferas, e o modo comoo campo patrimonial entre elas evolui.

Por isso, começamos por destacar a neces-sidade de repensar as formas de investimentode “valor” no campo patrimonial como, porexemplo, a noção de monumentalidade e deruína  que nos chegam do séc. XIX. Estasnoções têm em si, implicadas, um  carácter de imanência sacral do material  que as in-corpora. Quando se trata a matéria e o corpodo monumento, se procede à conservação erestauro, está-se a tocar o ponto sensível do

campo que defende a imanência sacra do ma-terial; a manutenção da imagem, do corpoe da aura. Revelador desta premissa que ocampo quer fazer articular em volta da no-ção de autenticidade, é a imposição da re-versibilidade de qualquer intervenção  numobjecto. Uma (im) posição que acaba poracentuar ainda mais a sacralidade investidano material do medium.

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Capítulo VII – Preâmbulo de um

tempo de crise

Krisis  é, em grego, o "momento decisivo,momento crítico"onde se enceta o movi-mento que faz pender o prato da balança paraum lado ou para o outro.4

Nesta observação, a "crise"vem destacar omomento no processo, em que se começama desvanecer as fundamentações que guia-ram e orquestraram a generalidade das ac-

ções até esse tempo. O desaparecimento dofundamento implica o aparecimento do fun-dar novo e do seu poder constituinte, ob-serváveis num espaço de tempo mais curtoou longo, conforme a estabilização do pro-cesso. Em termos mais pragmáticos, tendoem atenção o modo como a acção é pilo-tada pelo fundamento, descobre-se que há aí nessa passagem (da crise) um tempo de "nãofundação"em que se radicalizam as tentati-

vas e as lutas pelo domínio do núcleo do fun-damento. "por outro lado, a experiência só édescritível, na medida em que já constituída,institucionalizada, estabilizada, em torno deuma dada figuração do fundar. É o fundadoque serve de fundamento à acção. O efeitoessencial é a opacidade do fundar no seiodo fundado".   5 Uma opacidade que enco-

4Para Hegel, este período crítico de evolução deum processo, é aquele em que "o espírito que se con-figura, amadurece lentamente e em silêncio até à suanova configuração, desintegrando fragmento a frag-mento o edifício do seu mundo precedente, enquantoque o aparecimento deste mundo se mostra apenas porsintomas esporádicos: a insatizfação e o enfado queatingem o que ainda subsiste, o vago pressentimentodo desconhecido, são os sinais premonitórios de algoque se prepara.""Prefácio"à   Fenomenologia do Espírito, Hegel, ed.Vozes, Petropolis, 1990, p. 7

5"Experiência e crise", em  Analítica da Actuali-

bre a fragilidade e transitoriedade do funda-mento; uma vez que para existir como tal,o fundamento só aparece enquanto estabili-zado e cristalizado em discursos e imagensde aparência sólida. Escavar este processode constituição, é trabalho quase operacio-nalmente análogo ao diagnóstico e recupera-ção de recalcamentos no sujeito nevrosado;passa sempre para lá do manifesto.

A admitir um estado-de-crise contemporâ-nea, esta emerge precisamente na concorrên-

cia das diversas visões totalitárias e exclusi-vistas. Até que ponto a herança pesada dasideias modernas que o presente tenta superar,admite o diagnóstico de uma crise? Como éque esta se define e se apresenta, por exem-plo, frente aos niilismos nietzschenianos eheideggerianos?  6

dade, Bragança de Miranda, J., ed. Vega, Lisboa,1994, p.70Para J. Bragança de Miranda, é a crise aberta pelo

desaparecimento do fundamento que determina osprocessos de agenciamento da experiência. Proces-sos de constituição abstractos e concretos que impli-cam "um trabalho de figuração, de ficcionalização domundo, para o pôr plasticamente ao alcance do agir".No processo de estabilização destes procedimentos,observar-se-íam basicamente dois géneros de agenci-amento: "os escriturais e os tecnológicos, e a sua co-pertença à linguagem confere-lhes uma ambiguidadeinsolúvel. No caso extremo de controlo absoluto, abo-lindo ficção e ambiguidade, os procedimentos referi-dos estabilizar-se-íam em formas rígidas, a saber:1) ao nível escritural – a cristalização da experiên-cia em normas e regras explícitas e codificadas, redu-zindo a constituição da experiência ao rigor do forma-lismo jurídico; e 2) ao nível da tecnologia – a produ-ção das práticas e das condições da existência (tempo,espaço e sujeitos), inscrevendo-as em automatismosde repetição “eterna”. "ibid. Analítica da Actualidade p. 89-90.

6"... a modernidade pode caracterizar-se, de facto,como dominada pela ideia da história do pensamentocomo “iluminação” progressiva, que se desenvolve na

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Apesar de desgastada, quando falamosde mudança e diagnosticamos a falência ouo desvanecimento dos modelos instituídos,não parece sobrar outra expressão mais apro-priada que esta; a crise como espaço/tempode passagem na mudança. A sua função aquié a de destacar, com base no percurso que fi-zemos, não só a transitividade dos modelosque se sucedem, como a difícil admissão deum modelo estável num futuro próximo.

Um dos indicadores mais materiais deste

tempo de crise, que ainda não referi-mos e afecta sobremaneira o património,configura-se naquilo a que Pierre Rosanval-lon denominou, também, a crise do Estado-Providência. "O Estado-providência está do-ente com a crise que atravessa. O diagnós-tico é simples: as despesas sociais continuama aumentar aos ritmos anteriores, aceleram-se, por vezes (...), enquanto as receitas (im-postos e quotizações sociais), que são por

natureza indexadas pelo nível da actividadebase de cada vez mais ampla apropriação e reapropri-ação dos “fundamentos” – os quais amiude são con-siderados também como “origens”, de modo que asrevoluções, teóricas e práticas da história ocidental seapresentam e legitimam principalmente como “recu-perações”, renascimentos, retornos. A noção de “su-peração”, que tanta importância tem em toda a filoso-fia moderna, concebe o curso do pensamento, comoum desenvolvimento progressivo, em que o novo seidentifica com o valor através da mediação da recupe-ração e da apropriação do fundamento – origem."

ibid.  O Fim da Modernidade, Vattimo, G., ed. Pre-sença, Lisboa, 1987, p.8.Vattimo continua, chamando a atenção para o factode tanto Nietzsche como Heidegger, terem posto emquestão a noção clássica de fundamento e de pensa-mento como fundação. A máxima estabilidade do seracontece no acontecimento, quase happening, . ”Aontologia não é mais que a interpretação da nossacondição ou situação, já que o ser não é nada forado seu “acontecimento”, que sucede no seu e nossohistoricizar-se.”

económica, se reduzem."7 Isto origina umproblema financeiro óbvio, particularmentesentido nos países industrializados, e quetende a acentuar-se (a aumentar) devido es-sencialmente á inércia da máquina de repro-dução burocrática do Estado no abarcar dedespesas que já não comporta. Em termosmais económicos e numa perspectiva gestio-nária, a generalidade dos modelos de funci-onamento do Estado-providência, enquantosempresas de suporte do risco e redistribuição

dos rendimentos, não só apresentam uma efi-ciência altamente negativa, como caminhaminexoravelmente para a insolvência. Sub-sídios de desemprego, pensões de reforma,de invalidez, pensões sociais de todo o tipoe subsídios que se reproduzem como fun-gos. Esta é apenas a face exposta do Estado-Providência que não é mais que uma exten-são e um prolongamento do Estado-Protectormoderno, tal como foi "pensado e construído

do século XIV ao século XVIII"8

. Um Es-tado que vem cobrir a providência divina e

7 A Crise do Estado-Providência, Rosanvallon, Pi-erre, ed. Inquérito, Lisboa, 198?, p.7.

8ibid., A Crise do Estado-Providência, Rosanval-lon, Pierre, ed. Inquérito, Lisboa, 198?, p.18. Nestaperspectiva, Rosanvallon sintetiza nestes termos aevolução do Estado moderno:

"1. O Estado moderno define-se fundamentalmentecomo um Estado-protector.

2. O Estado-provid∼encia é uma extensão e umaprofundamento do Estado-protector.

3. A passagem do Estado-protector ao Estado-providência acompanha o movimento pelo qual a so-ciedade deixa de se pensar a partir do modelo docorpo para se conceber sob o modo do mercado.

4. O Estado-providência visa substituir a incertezada providência religiosa pela certeza da providênciaestatal.

5. É a noção de probabilidade estatística que tornapraticamente possível e teoricamente pensável a inte-gração da ideia de Providência no Estado."ibid. p.23

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religiosa que já se dava como incerta, com acerteza da providência estatal  9 .

Ora, mas onde é que o   património

9(O Estado enquanto dispositivo de institucionali-zação do poder num determinado território, em con-formidade com as exigências racionais da ordem acor-dada é, essencialmente, um conceito racional, umconceito de síntese, representante do cruzamento dosdiversos campos de legitimação das várias ordens quesubmetem o social. Esta noção implica igualmenteuma ideia de poder perene que transcende as vontadesparticulares e que é legitimada precisamente pela sua

capacidade de representar a vontade colectiva, pelomenos ideologicamente. É, assim natural que, a pri-meira substância estruturante do seu corpo surja sobforma jurídica. Não são elementos de facto mas ele-mentos de direito que determinam a sua essência, quesão o seu núcleo de sustentação. O Estado enquantodispositivo de institucionalização do poder num deter-minado território, em conformidade com as exigên-cias racionais da ordem acordada é, essencialmente,um conceito racional, um conceito de síntese, repre-sentante do cruzamento dos diversos campos de legiti-mação das várias ordens que submetem o social. Esta

noção implica igualmente uma ideia de poder pereneque transcende as vontades particulares e que é legiti-mada precisamente pela sua capacidade de represen-tar a vontade colectiva, pelo menos ideologicamente.É, assim natural que, a primeira substância estrutu-rante do seu corpo surja sob forma jurídica. Não sãoelementos de facto mas elementos de direito que de-terminam a sua essência, que são o seu núcleo de sus-tentação.) A definição de "Estado"aqui sintetizada,ainda é a que "se aprende na escola-- a versão ofi-cial. Este Estado-de-Direito já quase se não conseguedar a ver. Este é igualmente um dos contributos paraa crise geral. Foucault faz uma crítica radical a esta

noção e ao modo como o Estado é assim entendido.A partir do séc. XVIII, começou a emergir na so-ciedade moderna o poder disciplinar e racionalizado,mais difundido e eficiente que o do Estado tradicio-nal, e que este não demorou muito a absorver. Esteera o poder dos especialistas (poder pericial) e dos sa-beres que normalizavam e disciplinavam as subjecti-vidades num mapa actorial previsível. Segundo Fou-cault, este conjunto de poderes teria esvaziado maiso poder político-jurídico. Ver Pouvoir-corps, MichelFoucault, Revista Quel Corps, no2, septembre 1975,

é contaminado por esta crise do Estado-Providência?

Alguns países de mercado mais activo eextenso conseguiram subtraír boa parte dosustendo do património ao Estado – por viado mecenato, benefícios fiscais e outras for-mas de canalização de verbas. Acontece que,relativamente à generalidade dos países me-diterrânicos, ainda mais pesados em termosde património, se instituíram modelos de su-porte mais próximos do françês – pioneiro na

institucionalização da protecção patrimonial.Este, apesar de mais recentemente admitir eencorajar as diversas formas de mecenato, vêemergir todas as contradições inerentes à in-compatibilidade das lógicas de mercado ver-sus   lógica de Estado-Protector. Em paísesmediterrânicos e periféricos, como é o casode Portugal10, assiste-se ao conflito dessaslógicas mas, num contexto de maior fragili-dade em que, por isso, um terceiro elemento

sobressai – a contingência, mais forte quenos cenários em que os outros elementos serevelam mais sólidos.

Enquanto elemento pesado do saco dedespesa do Estado-protector, o patrimóniofunde-se com todos os outros sectores que sepodem alarmar com a insolvência próxima,sem grandes soluções à vista. Aqui o outrolado do cenário crítico que atinge o patrimó-nio.

Mas, a ameaça de insolvência do Estado éapenas o pano de fundo mais escuro sobre oqual evolui a actualidade. Uma série de ou-tras circunstâncias que se podem configurarem variáveis e formas de mediação impor-

p.2-5, ver também La Volonté de Savoir , Michel Fou-cault, ed. Gallimard, Paris, 1976

10Portugal pertence a essa fatia de países periféri-cos em que o Estado-providência começa a soçobrarainda antes de ser efectivo. Uma triste estória...

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tantes devem aqui ser destacadas para que seperceba melhor tanto o cenário actual comoo do futuro próximo. Entre essas variáveiscontam-se:

– a forte contingência, acima referida,característica da fragilidade das forças emcampo, mediadas por lógicas antagónicas;

– a opacidade das relações sociais re-sultante da mediação do Estado-Protector-Redistribuidor;

"...o Estado-providência, como agente

central de redistribuição e, portanto, de or-ganização da solidariedade, funciona comouma grande   interface: substitui o frente-a-frente dos indivíduos e dos grupos. (...) De-senvolvimento das interfaces e multiplicaçãodos efeitos sociais perversos geram-se, as-sim, reciprocamente. A   interface  é produ-tora de irresponsabilidade e contracção so-cial. (...) Actualmente, a interface estataltornou-se largamente opaca e sobretudo os

mecanismos de expressão da solidariedademecânica estão cada vez mais isolados dasformas de sociabilidade intermédias. (...) Aperda de autonomia e o isolamento crescentedos indivíduos para quem o Estado é o prin-cipal recurso alimentam a crise... Já não há“social” suficiente entre o Estado e os in-divíduos. É por esta razão que   os limitesdo Estado-providência devem entender-se a

 partir das formas de sociabilidade que induze não principalmente a partir do grau de so-cialização que procura."11

– as formas de visibilização (artificiais)do Estado enquanto  interface entre os indi-víduos e o “social”;

Em particular, a visibilidade artificial ca-

11ibid.  A Crise do Estado-Providência, Rosanval-lon, Pierre, ed. Inquérito, Lisboa, 198?, p.33, 34 e39.

racterística do marketing justificativo das de-cisões post-facto, em que se "vende"o actoe a justificação do acto post-decisão. Algoque acontece principalmente quando, nal-gum ponto da esfera mediática, se formamcontra-correntes12 .

– a despersonalização e indiferença geralque essa opacidade faz cultivar, coabitandocom um sistema deficiente de representaçãoe intervenção do cidadão nas decisões políti-cas;

Algo que atira a generalidade dos pontosde articulação das decisões para a esfera me-diática e veículos de mediação da visibili-dade, tanto do Estado como do social13.

– a ineficácia (pelo menos em termos devisibilidade) dos mecanismos de redistribui-ção;

"É numa perspectiva semelhante (na basede um cálculo custos-vantagens) que osteóricos liberais contemporâneos criticam o

Estado-providência. Mostram que a redistri-buição que efectua é globalmente ineficaz eque conduz mesmo a efeitos contrários aoque era desejado. Analisam a redistribui-ção como uma forma de regulação: a regu-lação das relações sociais e das situações so-ciais."14

–o custo económico e político da provi-dência, não compensatório   (politicamente)para o governo administrante;

Estamos já a desfolhar os compêndios da

12Ver, a este propósito, "As tecnologias do fazer-acreditar", em O Estado Sedutor  , Debray, Regis, ed.Vozes, Petrópolis, 1994, p.59, or.   L’État séducteur:

 Les révolutions médiologiques du pouvoir , ed. Galli-mard, Paris, 1993.

13Ver, a este propósito, "IV. O Preço da Audiência",em O Estado Sedutor  , Debray, Regis, ed. Vozes, Pe-trópolis, 1994, p. 131.

14ibid.  A Crise do Estado-Providência, Rosanval-lon, Pierre, ed. Inquérito, Lisboa, 198?, p. 51

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Património - políticas e práticas culturais   19

acção política aqui encarnada pelo Estadoinstituído e representante15 dos poderes pú-blicos que assume e define as relações soci-ais desse patronato com poder decisório so-bre os privilégios a conceder – encomendas,subsídios, apoios, etc.

É neste estado-de-coisas, um "estado nas-cente", até do ponto de vista institucional,que geralmente emerge um "Instituto"ou um"Ministério"para tutelar uma série de práti-cas e procedimentos que prometem alguma

autonomização legislativa. Esta é uma insti-tuição que vai crescendo, nalguns casos atéatingir dimensões monstruosas e quase indo-mináveis16 do ponto de vista executivo. Noscasos em que a tutela se dispersa por cam-pos de acção envolvendo objectos e suportesmuito diferentes, o normal é a emergênciade micro-instituições17 aparelhadas à tutelacentral com uma autonomia mínima. Estaautonomia varia, o mais das vezes, em fun-

ção do peso da imagem pública da personali-dade que ocupa a presidência da instituição eda qualidade das suas relações com a tutela.

– a  periodização eleitoral que coordena aacção política e dá origem à sua incoerênciae instabilidade;

Quando o governo empossado se conse-gue manter no poder por um período maisou menos longo – mais que uma eleição le-gislativa – acontece um progressivo fenó-meno de "lubrificação"dos circuitos execu-

15No sentido de "o que assume poderes por dele-gaçïo".

16Como é o caso do Ministério da Educação portu-guês.

17Sobre Análise Institucional e a dinâmica do te-cido institucional, ver A Análise Institucional, RenéLourau, ed. Vozes, Petrópolis, 1975; ver também

 L’Analyse Institutionnelle, Remy Hess, ed. PUF, Pa-ris, 1991.

tivos. As personalidades que se encontramem postos-chave e se mostram menos simpá-ticas ao novo poder, conforme as circustân-cias e estratégias centrais, são hostilizadas demodo a conduzirem-se a uma auto-demissão,ou são assediadas à adesão e simpatia tácitas.Deste modo, o tecido institucional e admi-nistrativo português, que se constitui como aface exposta do Estado, é altamente vulnerá-vel à periodização eleitoral e política, o quecria as conhecidas dificuldades na prossecu-

ção de políticas estáveis de médio e longoprazo.

No seguimento do movimento ondulató-rio eleitoral, que no caso português pode sermais ou menos estabilizado, o Estado acabapor se caracterizar em função dessas osci-lações de tutela e política tutelar. "A cen-tralidade do Estado português enquanto Es-tado semiperiférico distingue-se assim e an-tes de mais dos Estados dos países centrais

por ser mais autoritária e menos hegemónicae por ser mais difícil determinar onde o Es-tado acaba e o não-Estado começa.(...)A pri-mazia do político (...) coexiste, deste modo,com a sua dependência em relação aos outrosespaços e nessa medida a forma do poderdo Estado, a dominação, exerce-se, na prá-tica, em complexas combinações com as for-ças de poder características de outros espa-ços estruturais, o que confere grande particu-larismo à actuação do Estado (clientelismo,nepotismo, corrupção, etc.)"18. Sabemos que

18"Ao contrário do que se passa nos países centrais,não se trata de influências exercidas sobre o Estado esua acção mas da configuração interna do próprio po-der do Estado. O autoritarismo estatal, por ser relati-vamente ineficaz, é não só incompleto como contradi-tório, o que, por sua vez, contribui para a grande he-terogeneidade e fragmentaridade da actuação do Es-tado". Uma dessas formas de heterogeneidade "reside

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o autor destas frases tem provas para docu-mentar tudo o que diz, mas tal quase nãoé necessário pois a generalidade das práti-cas das quais Boaventura Sousa Santos de-canta este modelo e apreciações, entram-nostodos os dias pelos olhos e a carne aden-tro. Quando não é em contacto directo comeste Estado, que ora nos classifica como es-tranhos (alienus) ora como íntimos, é nocontacto indirecto através, essencialmente,da imprensa e dos casos mais "espectacula-

res"19, isto é, os mais visíveis. O poder eleitoe a máquina administrativa do Estado infil-trado é hoje extremamente sensível, contra-ditoriamente, não à totalidade da exposiçãopública, mas à exposição mais espectacular.Relativamente ao escandalo que é a desfun-cionalidade e erosão social que provocamgrande parte dos organismos de Estado, o po-der executivo mostra-se praticamente indife-rente ou com atenções de superfície e irre-

levantes, como se assumisse o irremediávelestado da máquina administrativa, e a conse-

no modo como a actuação da burocracia do Estadooscila entre a extrema rigidez, distância a formalismocom que obriga o cidadão anónimo e sem referências(a que chamo sociedade civil estranha) a cansar-se aosbalcões de serviços inacessíveis, a preencher formulá-rios ininteligíveis, e a pagar impostos injustos e a ex-trema flexibilidade, intimidade e informalidade comque trata, para os mesmos efeitos, o cidadão conhe-cido e com boas referências (a sociedade civil íntima).Trata-se de uma oscilação entre os Estado predador eo Estado protector segundo uma lógica de racionali-dade totalmente oposta à do espaço de cidadania..."

"O Estado e os modos de produção de poder so-cial", Pela Mão de Alice, Boaventura Sousa Santos,ed. Afrontamento, Porto, 1994, pps 115-117.

19A hegemonia da espectacularidade é, em Portu-gal, ainda recente e não foi devidamente analisada;tem a ver com a preponderância da imagem públicanascida nos anos 70 e com a recente abertura dos no-vos canais de televisão em Portugal.

quente impotência na sua alteração. Já relati-vamente à sua exposição aos media e conse-quente espectacularização do seu exercício,o poder executivo é extremamente sensível ecuidadoso.20

– a cada vez maior  disjunção e automa-tização dos mecanismos de decisão   produ-zindo, frequentemente, efeitos diferenciaisabruptos entre sectores de despesa;

Isto é algo que demora um pouco maisa explicitar devido, entre outras, à opaci-

dade e sectorialidade em que se encontraencerrada a máquina estatal. Esta disjun-ção aparece quando comparamos por secto-res as quantias neles dispendidas e, a par-tir daí, eventulmente, inferimos prioridadespolíticas. Quando colocamos questões in-cómodas, que normalmente envolvem deze-nas de milhões de contos, tentando averiguardo fundamento das decisões. Essas ques-tões circulam em volta dos sectores croni-

camente carenciados: habitação (barracas),emprego/formação (desemprego), droga (in-diferença e crise social), educação (o desca-labro), segurança (insegurança), etc.

Quando qualquer um destes sectores é co-locado ao lado da “cultura”   21, emerge umgénero de   tensão   bastante evidente. Umatensão que dela afasta e repele qualquer re-tórica do poder administrante mas que pode,

20 Há excepções, como o jogo de tensão que o go-

verno de Cavaco Silva, na sua pessoa, gosta de provo-car à Comunicação Social, acusando os jornalistas deincompetentes e mentirosos por altura da criação deuma Escola Superior de Comunicação Social afectaao seu campo de poder.

21Estamos a referir-nos a uma cultura que, geral-mente, não se cruza com nenhum dos sectores ante-riormente referidos. Não é uma “cultura” necessaria-mente "oficial", nem necessariamente "de elite". masé suficientemente depurada de todos os cruzamentosincómodos.

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Património - políticas e práticas culturais   21

ao contrário, constituir-se como ponto atrac-tor da retórica política concorrente22.  Pontoque, mesmo assim, deve ser minuciosamenteestudado para evitar os apelidos fáceis de de-magogia. Em qualquer dos casos, um pontoperigoso. Este perigo advém do modo nebu-loso como hoje subsistem as éticas concor-rentes possíveis, sem que se vislumbre umamaior definição ou destaque de uma delas oque, nesta contingência do mercado ético-político, mais contribui para o cenério de

crise.É com base neste pré-diagnóstico que po-

derá vir a ser desenvolvido; nas premissasaceites deste contexto de transitividade, quepartimos para o esboço do que poderá com-preender – relativamente ao património – ummodelo alternativo de acção e publicit-acção,possível e exequível, pelo menos num futuropróximo e de médio prazo.

Conclusão – Hipótese deconstrução de um modelo

alternativo

Este ponto, formalmente de conclusão masnão conclusivo, pretende oferecer algumaspistas e orientações para o que se pode en-cetar ainda neste tempo de passagem, combase neste trabalho.

22O poder em exercício, pura e simplesmente fu-

girá ou não admitirá qualquer comparação, limitando-se a assumir, melhor ou pior, o "queijo"em que se vi-zualisa a distribuição das verbas por sector no OGEao fim do ano. Os poderes concorrentes, raramentecomentam ou questionam os factos, dado que estessó são visíveis bem depois de merecerem comentário(com rendimento político). Assim, só por acidente es-tas questões subirão à esfera mediática da imagem (te-levisão). Quando muito, a estas questões, poderá umarticulista mais afoito a elas referir-se e questionar-senos jornais, mas nem isso é garantido.

No final, apenas uma síntese do que se ten-tou demonstrar, para o remate (virtual) de umtrabalho que, idealmente, implica um  cres-cendo sem fim. Tal como o demonstra La-katos, "Um programa de investigação temêxito se conduzir a uma mudança progres-siva de problemática; fracassa se conduz auma mudança regressiva".(...)Podemos ava-liar os programas de investigação, inclusiva-mente depois de terem sido “eliminados”, apartir do seu poder heurístico: quantos fac-

tos produziu ? De que dimensão era a suacapacidade para explicar as sua refutaçõesdurante o seu crescimento?"23 O esboço deprograma que abaixo enunciamos pretendeassumir estas propriedades e não é, por isso,mais preciso quanto às actividades e procedi-mentos a levar a cabo; pretende ficar aberto anovas evoluções e reflexões sobre o mesmoobjecto. Enunciar aqui uma heurística po-sitiva ou negativa para aplicação restrita a

este programa seria algo tautológico. Todoeste trabalho, observadas as traves mestras(metodologias e formas de abordagem) queseguram a sua evolução, se pode constituircomo orientação heurística. Não desejamosé que essa orientação se fique pela sua fini-tude, mas que possa, a partir dela, dar ori-gemordmale a novos estudos, abordagens econfigurações heurísticas eventualmente di-ferentes.

É assim possível, congregando as diver-sas observações amostrais que vieram sendoexpostas como exemplares de práticas cons-tituintes da experiência patrimonial; com aproblematização e análise dos principais fe-

23Traduzido de "Una metodología de los progra-mas de investigación científica-- , La Metodología delos Programas de Investigación Científica, Imre La-katos, Madrid, 1989, p. 66, p.71. Ver, no mesmolivro, "el requisito de crecimiento continuo", p.117.

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22 Eduardo Esperança

nómenos que com elas se relacionam, esbo-çar as premissas que podem ajudar a encon-trar um modelo alternativo de operacionali-zação desta experiência. Com base no per-curso que nos deixou chegar até aqui, é pos-sível começar por estabelecer algumas pre-missas por que esse modelo se orientaria.Assim, o modo de entendimento e experiên-cia de um fenómeno enquadrado como cultu-ral, e localizado enquanto patrimonial, subs-crito a um campo que o enquadra mantém,

da parte do campo:a) Uma  auto-observação numa perspectivamacro, no modo como evolui nas formas deconstituição das suas experiências;b) Implica a detecção e reflexão em volta daemergência de nódulos ou premissas antité-ticas no seio do próprio campo e territóriosperiféricos;c) Permanece   aberto a novas hipóteses deevolução nas traves mestras do seu núcleo

experiencial;d) Privilegia o modo relacional extra e intracampo, tanto no processo de reflexão sobre,como nas operações de tecitura e consecus-são dos seus objectivos.e) Perante a   dominância da videosfera  e aomnipresença dos dispositivos de imagem,assim como as capacidades das novas tecno-logias, o campo e o seu modelo de acção de-veriam ensaiar uma reflexão permanente so-bre o seu posicionamento e evolução entreestes novos contextos;f) Procura uma maior articulação e transpa-rência na relação do expert com os podereseconómico e político.

A ter em conta estas premissas, um modelocom novas orientações performativas, pode-ria iniciar-se com um programa de pesquisaoperacional mais alargado.

Independentemente da instabilidade e da

fragilidade racional que possam caracterizaros modos de gestão das manifestações pa-trimoniais; instabilidade e fragilidade quecondicionam e contaminam a construção deum modelo, não seria lícito chegarmos atéeste ponto deste trabalho sem, pelo menos,tentarmos esboçar os princípios orientado-res para a constituição de um "observató-rio"para o permanente rastreio, pesquisa eanálise das questões aqui expostas. Esse ob-servatório poderia começar por:

1) Investigar e produzir orientações facili-tadoras da progressão do campo perante no-vas premissas do modelo e contextos exter-nos;

Esta seria a função principal deste obser-vatório, função da qual decorrem todas asoutras.

2) Para tal aperfeiçoar , com base em tra-balho empírico mais extenso, as matrizes de

 pesquisa24 esboçadas neste trabalho e, even-

tualmente, descobrir novas matrizes;Este trabalho de pesquisa, aqui prestes aconcluir-se, poderia considerar-se uma basede arranque  para a configuração das acti-vidades de investigação deste observatório,sem qualquer restrição quanto a novas orien-tações fundadas em estudos empíricos poste-riormente realizados.

3) Investigar a generalidade das formasde valoração (e conversão) das experiências,constituição de axiologias e (abuso de) dis-positivos de controlo do imaginário;

Este ponto constitui-se como especifica-ção do anterior e pretende orientar a atençãoda pesquisa para os problemas da génese dovalor e dispositivos de controlo do imaginá-

24Referimo-nos às matrizes sobre as formas de me-diação, formas de valoração e, enfim, à generalidadedos instrumentos de pesquisa esboçados neste traba-lho, com capacidade de posterior desenvolvimento.

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Património - políticas e práticas culturais   23

rio, abordados nos capítulos anteriores. Pre-tende ainda que se estabeleça um dispositivode referência e aferição das diversas formasde condicionamento do olhar .

4) Proceder aos inquéritos e sondagens ne-cessárias ao conhecimento das diversas for-mas de relação com o património – formasde uso (utentes e não utentes) de produção erecepção;

Uma vez cumpridas as regras básicas queorientam as metodologias, tanto qualitativas

como quantitativas, este ponto não pareceoferecer dúvidas quanto à aquisição de infor-mação/dados para a progressão dos estudos;

5) Introduzir, nestes procedimentos, umaheurística com um maior campo de mano-bra inicial para o levantamento da estratégiae metodologias de pesquisa;

Queremos, com este ponto, apenas pros-seguir o modo aberto de construção e levan-tamento dos programas de pesquisa produ-

zindo, quando muito, alguma percentagemde heurística negativa25 para a condução dosprogramas. Deixamos que seja o processode rastreamento (scaning) e os próprios da-dos coligidos a orientar, nas suas tendências,o posterior sentido do programa.

Passamos, então, a sintetizar o que nestecapítulo foi tratado.

Havíamos, no capítulo anterior, esboçado

25"O programa é formado por regras metodoló-

gicas: algumas indicam-nos as rotas de investiga-ção que devem ser evitadas (heurística negativa) en-quanto outras nos indicam os caminhos que devemseguir-se (heurística positiva)"

Traduzido de "Una metodologia de los programasde investigación científica",  La Metodologia de losProgramas de Investigación Científica, Imre Lakatos,ed. Alianza Universidad, Madrid, 1989, p. 65. Ver,igualmente, "4.5 – Heurística", "Cap. 4 - Problema",

 La Investigación Científica, Mario Bunge, ed. Ariel,Barcelona, 1985, pp 224-227.

uma tipologia geral e outra específica para asaxiologias que nos permitem clarificar as for-mas de emergência do “valor” e conversãode bens em geral, e de bens patrimoniais emparticular. Isto permitiu-nos gizar um mo-delo de acção e conversão do campo patri-monial a partir das formas de mediação e va-loração das diversas esferas, e o modo comoo campo patrimonial entre elas evolui.

Já neste capítulo passámos, em sequência,observando a crise de fundamentos de que a

emergência do campo é, afinal, já um indí-cio, no modo como se atém ao modelo aquidelineado e aos seus princípios mais ortodo-xos, devido essencialmente:a) à generalidade das contradições em que omodelo incorre, já expostas nos capítulos an-teriores e que, perante os novos contextos,tendem a acentuar-se;b) à predominância da lógica mediática queenvolve já toda a esfera da Cultura;

c) à crise geral e, em particular, economi-camente insolvente em que está envolto oEstado-providência;d) aos novos desenvolvimentos tecnológicosque se perfilam e põem em causa boa partedos princípios do modelo patrimonial, dis-solvendo a sua fundamentação.

Por isso, começamos por destacar a neces-sidade de repensar as formas de investimentode “valor” no campo patrimonial como, porexemplo, a noção de monumentalidade e deruína que nos chegam do séc. XIX. Estasnoções têm em si, implicadas, um  carácter de imanência sacral do material  que as in-corpora. Quando se trata a matéria e o corpodo monumento, se procede à conservação erestauro, está-se a tocar o ponto sensível docampo que defende a imanência sacra do ma-terial; a manutenção da imagem, do corpoe da aura. Revelador desta premissa que o

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24 Eduardo Esperança

campo quer fazer articular em volta da no-ção de autenticidade, é a imposição da re-versibilidade de qualquer intervenção  numobjecto. Uma (im) posição que acaba poracentuar ainda mais a sacralidade investidano material do medium.

Com a emergência de novos dispositivos,novos media, vão-se alterando as formas demanifestação dos objectos e vai-se igual-mente perdendo a possibilidade de segurarno material a sacralidade das obras. Os no-

vos media e as novas tecnologias estão aindaem processo de aquisição (pública) de cré-dito, isto é, não têm ainda a confiança to-tal dos indivíduos, muito menos das insti-tuições. Observando alguns casos históri-cos como a introdução da imprensa ou dasmáquinas voadoras, verifica-se a rápida al-teração dos índices de confiança nas novastecnologias. Desse nível de confiança estádependente, a breve prazo, a deslocação da

sacralidade para fora do material, algo que já se tem observado nalgumas acções insti-tucionais no estrangeiro. Referenciamos en-tão uma abordagem razoavelmente exaustivaque Gerard Genette faz às formas de mani-festação dos objectos artísticos; algo que nospode ajudar a tipologizar e circunscrever me-lhor o modelo patrimonial antes esboçado,pela heteromorfia que já hoje tem implicado,dissolvendo ainda mais os pressupostos deimanência do material. A dissolução de al-guns desses pressupostos é observável emsectores mais periféricos do património por-tuguês, como são os casos do  cinema e dasartes e ofícios tradicionais. A observaçãode algumas práticas e políticas patrimoniaisrevelam, neste sector, um modelo nacionalfrágil, instável e contingente, apenas equili-brado pela garantia da inevitável globaliza-

ção da emergência destas práticas de produ-ção de valor.

As novas tecnologias e o novo contextotecnológico, por seu lado, abrem a introdu-ção à possibilidade de mudanças e altera-ções que estão já a ocorrer e a afectar o mo-delo patrimonial mais tradicional. Atravésda capacidade de digitalização da informa-ção, é uma nova dimensão (mais virtual) queemerge e deve ser tida em conta, tanto pelonovo tipo de objectos que já produz como

pelo auxílio que pode prestar à manutençãodos antigos. Nessas capacidades incluem-sea replicação/reprodução26 de objectos, o quechoca contra as paredes do núcleo duro domodelo patrimonial.

No ponto que se segue, observam-se aindaos abalos que as novas tecnologias podemintroduzir devido às suas incompatibilidadescom a ratio moderna; o modo como se dese-nha, na contemporaneidade, uma luta entre

arche (a defesa das origens) e telos (a defesado que virá). As inovações e os choques queocorrem entre o modelo tradicional e as po-tencialidades que se abrem, mas se demorammais a configurar, começam por abalar a no-ção histórica de monumentalidade. Os novossuportes dificilmente admitem essa noção e,o próprio fundamento da necessidade de pre-servação é construído no mesmo campo. Oparadoxo que daqui emerge prende-se como facto de se estar, com os novos suportes,a anular o agente central mobilizador dasforças patrimonializantes – o desgaste natu-ral, a obsolescência natural dos objectos  no

26Este é um ponto que merece uma abordagem bemmais extensa e aprofundada que a que lhe foi aqui re-servada. No entanto, como se observa mais à frente,este é um ponto de reflexão central à alterações quepode sofrer um novo modelo do património.

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Património - políticas e práticas culturais   25

tempo. Eliminando esta ameaça motora daideologia patrimonial, pergunta-se:

– Admitindo, mesmo que em termosde simulacro, a capacidade de tudo repli-car/reproduzir, a questão que se levanta se-ria, então, que novo agente iria ocupar esseespaço central objectivado no tempo delapi-dante? Ir-se-ía desvanecer essa urgência pa-trimonializante ou configurar-se noutra mor-fologia diferente?

Aconteça o que acontecer, é igualmente

um novo tipo de sujeito que se vai constituirnos próximos tempos, muito mais envolvidocom a máquina, isto é, com os procedimen-tos estabilizados. Percebe-se que é precisoestar atento ao modo como evolui a experiên-cia do sujeito contemporâneo, em particularna sua relação com a máquina; como se pa-dronizam as relações dentro dessa experiên-cia, e que género de sujeito produzem. Esteespaço de passagem, de constituição de um

novo modelo, (espaço mais ou menos longoconforme as determinações e contingênciasenvolvidas) pode denominar-se um espaçode "crise", precisamente pela falta de esta-bilização modelar que ocorre nos tempos de"passagem".

Um dos indicadores mais materiais destetempo de crise que afecta sobremaneira o pa-trimónio, configura-se naquilo a que PierreRosanvallon denominou, também, a crise doEstado-Providência. "O Estado-providênciaestá doente com a crise que atravessa. Odiagnóstico é simples: as despesas sociaiscontinuam a aumentar aos ritmos anteriores,aceleram-se, por vezes (...), enquanto as re-ceitas (impostos e quotizações sociais), quesão por natureza indexadas pelo nível da ac-

tividade económica, se reduzem."27 Isto ori-gina um problema financeiro óbvio, e quetende a acentuar-se (a aumentar) devido es-sencialmente á inércia da máquina de repro-dução burocrática do Estado no abarcar dedespesas que já não comporta. Em termosmais económicos e numa perspectiva gesti-onária, a generalidade dos modelos de fun-cionamento do Estado-providência, enquan-tos empresas de suporte do risco e redistri-buição dos rendimentos, não só apresentam

uma eficiência altamente negativa, como ca-minham inexoravelmente para a insolvência.O  património  é contaminado por esta crisedada a sua dependência do suporte do Es-tado. Uma série de outras circunstânciasque contribuem para o cenário de crise sobo pano de fundo do Estado, são destacadase explicitadas. Entre essas variáveis contam-se:

– a forte contingência, acima referida,

característica da fragilidade das forças emcampo, mediadas por lógicas antagónicas;– a opacidade das relações sociais re-

sultante da mediação do Estado-Protector-Redistribuidor;

– as formas de visibilização (artificiais)do Estado enquanto  interface entre os indi-víduos e o “social”;

– a despersonalização e indiferença geralque essa opacidade faz cultivar, coabitandocom um sistema deficiente de representaçãoe intervenção do cidadão nas decisões políti-cas;

– a ineficácia dos mecanismos de redistri-buição;

–o custo económico e político da provi-

27 A Crise do Estado-Providência, Rosanvallon, Pi-erre, ed. Inquérito, Lisboa, 198?, p.7

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26 Eduardo Esperança

dência, não compensatório   (politicamente)para o governo administrante;

– a periodização eleitoral que coordena aacção política e dá origem à sua incoerênciae instabilidade;

– a cada vez maior  disjunção e automa-tização dos mecanismos de decisão   produ-zindo, frequentemente, efeitos diferenciaisabruptos entre sectores de despesa;

Perante isto, o mais que podemos fazeré, com base neste trabalho, propôr algumas

premissas para a constituição de um modeloalternativo, essencialmente mais aberto aocontexto, e reflexivo quanto às suas possibi-lidades de acção. Estas são premissas geraisque podem ser "afinadas"num espaço de de-bate e reflexão. Podemos ir diagnosticandopossibilidades, à luz deste modelo e seu  mo-dus faciendi, os problemas que poderão vira emergir no contexto contemporâneo e defuturo próximo, em particular com a emer-

gência e estabilização performativa das no-vas tecnologias e seus efeitos. Para a pos-sibilidade desse debate e reflexão, será inte-ressante dispôr de estudos e dados que pos-sam fornecer uma orientação a esse espaçode debate, confirmar ou não hipóteses, ali-nhamentos de acção, e contribuir para a colo-cação e resolução dos problemas que emergi-rem. É aqui que contribuímos com a síntesede um programa para a  constituição de umobservatório  nestas áreas. Tentando inves-tigar e produzir orientações facilitadoras daprogressão do campo perante novas premis-sas do modelo e contextos externos, este pro-grama poderá ainda aperfeiçoar as matrizesde pesquisa esboçadas neste trabalho; apro-fundar o trabalho empírico de sondagem dasdiversas formas de relação com o patrimó-nio; introduzir uma nova heurística com ummaior campo de manobra; Investigar a gene-

ralidade das formas de valoração das experi-ências, constituição de axiologias e disposi-tivos de controlo do imaginário.

Na prática, este programa conclui o tra-balho de pesquisa que aqui se desenvolveu,progredindo nas diversas áreas que achámospoderem afectá-lo.

Para concluir, podemos afirmar em sín-tese, e com alguma selecção, que neste tra-balho, tentou demonstrar-se:

– Que o conjunto de actos que se reivindi-

cam como tutelados pela legitimidade patri-monial, se organizam num campo formadopela especificidade das suas relações;

– Que estas se articulam com base no fun-damento de uma experiência (patrimonial)que tem vindo ao longo dos tempos a ser re-definida.

– Que essa experiência circunscrita aocampo patrimonial, após a estabilização raci-onal operada na Modernidade, encontra hoje

novas formas de produção de valor que ex-travazam a sua teleologia;– Que essa produção axiológica é resul-

tante da possibilidade de cruzamento comoutros campos de produção – o económicoe o dos media, funcionando o primeiro comoelemento fiduciário e o segundo como plata-forma agenciadora de actos de conversão devalor entre os diversos campos;

– Que o encontro do campo patrimonialcom outros campos de experiência operadossob outros modelos de legitimação, pode re-velar formas anti-téticas de legitimação dovalor;

– Que o padrão encontrado nas formas deconversão suportadas pelo cruzamento doscampos (em particular na cultura dos media)pode funcionar como índice das tendênciascontextuais de polarização dos valores;

– Que a análise de algumas práticas e po-

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8/17/2019 Património - Políticas e Práticas Culturais (1)

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Património - políticas e práticas culturais   27

líticas patrimoniais revelam um modelo na-cional frágil, instável e contingente, apenasequilibrado pela garantia da inevitável glo-balização da emergência destas práticas deprodução de valor;

– Que a emergência de novas tecnologiasaltera as formas de manifestação dos objec-tos patrimoniais e abala o modelo tradicio-nal sustentado pelo campo patrimonial, debi-litando os cânones herdados do romantismoenvolvendo noções tradicionais de autentici-

dade, monumentalidade e imanência sacralinvestida no material do medium.

Sem grandes veleidades, quisémos aquideixar esboçado um programa que possacontribuir para o aprofundar destas perspec-tivas sobre o património. Um programa queobserve um índice de exequibilidade aceitá-vel perante os condicionalismos presentes.Um programa que, no seguimento desta ex-posição, possa destacar o papel da Universi-

dade e da capacidade pericial que ainda lheresta, no contributo para uma evolução me-nos contingencial e fragilizada da sua rela-ção com as forças socialmente produtivas.

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