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PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO: ESPETÁCULO CONTEMPORÂNEO? Uma reflexão mais complexa e crítica sobre a noção de patrimônio cultural e as práticas de intervenção urbana que lhe são tributárias toma-se cada vez mais urgente com relação às cidades contemporâneas. Através da discussão das idéias e ideais contemporâneos tanto de cultura quanto A competição local por turistas ou empreendedores estrangeiros é acirrada. As municipalidades se empenham para melhor vender a imagem de marca da sua cidade, em detrimento das necessidades da própria população local, ao privilegiar basicamente o visitante, através de seu maior chamariz: o espetáculo. O patrimônio cultural urbano passa, assim, a ser visto como uma reserva, um potencial de espetáculo a ser explorado. • Professora da Faculdade de Arquitetura da UFBA [email protected] de urbanidade, pode-se questionar a própria pertinência, hoje, dos instrumentos de preservação do patrimônio urbano e suas implicações sociais, culturais e urbanísticas. A questão mereceria ser revista de forma mais aprofundada e teórica. O que são exatamente esses patrimônios urbanos ou ambientes culturais contemporâneos a serem ou não preservados e requalificados? O que significa a atual "patrimonialização" ou "museificação"2 das cidades? E o que dizer do uso contemporâneo que se faz da cultura como estratégia principal dos novos projetos de revitalização urbana? Nos últimos vinte anos, vêm se acentuando, em todo o mundo, iniciativas que podem ser classificadas de "culturalização" (MEYER, 1999) ou "musealização" (HUYSSEN, 2(00) das cidades. Essas intervenções, muitas vezes, se iniciam por uma patrimonialização ou museificação das próprias cidades, ou de seus centros ou monumentos ditos históricos, tendo em vista uma revitalização urbana que possibilitaria uma efetiva inserção dentro de uma competitiva rede global de cidades ditas culturais ou turísticas. A referida culturalização das cidades contemporâneas, ou seja, a utilização da cultura como instrumento de revitalização urbana (JACQUES, VAZ, 2001), tão em voga hoje, parece fazer parte de um processo bem mais vasto de utilização da cultura como instrumento de desenvolvimento econômico, o que Otília Arantes classificou de " culturalismo de mercado" (1998) ou de "uma estratégia fatal" (2000). Esse processo

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Page 1: PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO: ESPETÁCULO … · Essas duas correntes dopensamento urbano contemporâneo, apesar de aparentemente antagônicas, tendem a um resultado bem semelhante:

PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO:ESPETÁCULO CONTEMPORÂNEO?

Uma reflexão mais complexa ecrítica sobre a noção de patrimôniocultural e as práticas de intervençãourbana que lhe são tributárias toma-secada vez mais urgente com relação àscidades contemporâneas. Através dadiscussão das idéias e ideaiscontemporâneos tanto de cultura quanto

A competição local por turistas ouempreendedores estrangeiros é acirrada.As municipalidades se empenham paramelhor vender a imagem de marca da suacidade, em detrimento das necessidades daprópria população local, ao privilegiarbasicamente o visitante, através de seumaior chamariz: o espetáculo. Opatrimônio cultural urbano passa, assim, aser visto como uma reserva, um potencialde espetáculo a ser explorado.

• Professora da Faculdade deArquitetura da UFBA

[email protected]

de urbanidade, pode-se questionar aprópria pertinência, hoje, dosinstrumentos de preservação dopatrimônio urbano e suas implicaçõessociais, culturais e urbanísticas. Aquestão mereceria ser revista de formamais aprofundada e teórica. O que sãoexatamente esses patrimônios urbanosou ambientes culturais contemporâneosa serem ou não preservados erequalificados? O que significa a atual"patrimonialização" ou "museificação"2das cidades? E o que dizer do usocontemporâneo que se faz da culturacomo estratégia principal dos novosprojetos de revitalização urbana?

Nos últimos vinte anos, vêm seacentuando, em todo o mundo, iniciativasque podem ser classificadas de"culturalização" (MEYER, 1999) ou"musealização" (HUYSSEN, 2(00) dascidades. Essas intervenções, muitas vezes,se iniciam por uma patrimonialização oumuseificação das próprias cidades, ou deseus centros ou monumentos ditoshistóricos, tendo em vista umarevitalização urbana que possibilitaria umaefetiva inserção dentro de umacompetitiva rede global de cidades ditasculturais ou turísticas.

A referida culturalização dascidades contemporâneas, ou seja, autilização da cultura como instrumentode revitalização urbana (JACQUES,VAZ, 2001), tão em voga hoje, parecefazer parte de um processo bem maisvasto de utilização da cultura comoinstrumento de desenvolvimentoeconômico, o que Otília Arantesclassificou de " culturalismo demercado" (1998) ou de "umaestratégia fatal" (2000). Esse processo

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seriamais um reflexo de um período de globalização neo-liberal, uma conseqüência da evolução das estruturassocioeconômicas pós-industriais mundiais, que tambémteriam influência no próprio conceito de culturacontemporânea (JAMESON, 1997; HARVEY, 1992;FEATHERSTONE, 1995) e, por conseguinte, na noção depatrimôniocultural (JEUDY, 200 1).

Hoje, há um momento de crise da própria noção decidade,que se torna visível principalmente através das idéiasdenão-cidade: seja por congelamento - cidade-museu epatrimonialização desenfreada -, seja por difusão - cidadegenéricae urbanização generalizada. Essas duas correntesdo pensamento urbano contemporâneo, apesar deaparentemente antagônicas, tendem a um resultado bemsemelhante: a "espetacularização" das cidadescontemporâneas.

A corrente mais conservadora, pós-modernista tardiaou neoculturalista, radicaliza a preocupação pós-modernacomas culturas preexistentes e preconiza a petrificação ouopastiche do espaço urbano, principalmente de centroshistóricos, provocando tanto uma museificação epatrimonialização quanto o surgimento da cidade-parque-temático e da disneylandização urbana (SORKIN, 1992),exemplos típicos da cidade-espetáculo. A corrente ditaprogressista, neomodernista, retoma alguns princípiosmodernistas - sem a mesma preocupação social ou utopiadosprimeiros modernos -, principalmente a idéia de TabulaRasa e faz a apologia da grande escala (XU) e dos espaçosurbanoscaóticos, geralmente periféricos ou de cidades daperiferiamundial:junkspaces, cidades genéricas, cidades-shoppings ou espaços terminais do capitalismo selvagem,que também são mostrados de uma forma totalmenteespetacular.4

Essa quase esquizofrenia dos discursos contemporâneossobrea cidade - preservar o antigo ou construir o novo-vemsurgindo muitas vezes simultaneamente em uma mesmacidade, com propostas preservacionistas para os centroshistóricos, que se tornam receptáculos de turistas, e com aconstruçãode novos bairros ex-nihilo nas áreas de expansãoperiféricas, que se tornam fontes para a especulaçãoimobiliária.Muitas vezes, os atores e patrocinadores dessaspropostastambém são os mesmos, assim como é semelhanteanão-participação da população em suas formulações, e agentrificação5 das áreas como resultado, demonstrando queas duas correntes antagônicas são faces de uma mesmamoeda:a espetacularização mercantil das cidades.

De fato, nas políticas e nos projetos urbanoscontemporâneos, principalmente dentro da lógica do

planejamento estratégico, existe uma clara intenção de se'mostrar, reforçar ou até mesmo forjar uma imagem singularde cidade. Essa imagem seria fruto de uma cultura própria,da identidade de uma cidade. A promoção e a venda dessaimagem de cidade corresponde à venda da própria cidadecomo uma mercadoria. A cidade-mercadoria funciona comouma empresa, de alcance multinacional. O que se vendeinternacionalmente é, sobretudo, a imagem de marca dacidade e, paradoxalmente, essas imagens de marca decidades distintas, com culturas distintas, se parecem cadavez mais. Haveria, então, um padrão internacional de imagemde cidade? Um consenso mundial sobre um modelo de criarimagens, logotipos urbanos, ou ainda, de se vender cidades?Ou estaríamos diante de um tipo de "internacionalismo doparticularismo" ? (FERNANDES, 200 I).

Nesse novo processo urbano do mundo globalizado, acultura vem se destacando como estratégia principal darevitalização urbana e a ênfase das políticas urbanas recaicada vez mais sobre as políticas culturais. Como a pretensaespecificidade de cada cidade se encontra fortemente ligadaa uma cultura local, é principalmente através dessa culturaprópria que as cidades poderiam se individualizar,acentuando suas diferenças. Esses particularismos geramslogans que marcariam um lugar singular no competitivomercado internacional, onde cidades do mundo tododisputam turistas e investimentos estrangeiros. Essacontradição - as imagens de cidades, a princípio fruto deculturas distintas, que curiosamente acabam se parecendocada vez mais entre si - pode ser explicada: cada vez maisessas cidades precisam seguir um modelo internacionalextremamente homogeneizador, imposto pelos financiadoresmultinacionais dos grandes projetos de revitalização urbana,sejam esses agências multilaterais ou outros. Esse modelovisa, basicamente, ao turista internacional- e não o habitantelocal- e exige um certo padrão mundial, um espaço urbanotipo, padronizado. Como já ocorre com os espaços padronizadosdas cadeias dos grandes hotéis internacionais, ou ainda dosaeroportos, das redes de fast food, dos shopping centers,dos parques temáticos ou dos condomínios fechados, quefazem todas as periferias das grandes cidades mundiais separecerem cada vez mais, como se fossem todos uma únicaimagem: paisagens urbanas idênticas, ou talvez, genéricas(KOOLHAAS, 1995).

No centro das cidades ditas históricas, o que ocorreainda é mais inquietante, uma vez que essas áreas, aprincípio, deveriam preservar a memória cultural de um lugar,de uma população e, muitas vezes, de toda uma nação. Omodelo de gestão patrimonial mundial, por exemplo, seguea mesma lógica de homogeneização, ao preservar áreashistóricas de forte importância cultural local, pois seguemnormas de intervenção internacionais, que não são adaptadas

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de acordo com as singularidades locais. Assim, esse modeloacaba tornando todas essas áreas - em diferentes paísesde culturas das mais diversas - cada vez mais semelhantesentre si. Essas áreas não somente se parecem cada vezmais, como se parecem cada vez mais com seus próprioscartões-postais, que também seguem um padrãointernacional. É um processo de "museificação" urbana emescala global: os turistas visitam o mundo todo como sevisitassem um grande e único museu (JEUDY, 2001). Amemória da cultura local - o que a princípio deveria serpreservado - perde-se em prol da criação de grandescenários para turistas. E o mais grave: na maior parte dasvezes, a própria população local, responsável e guardiã dastradições culturais, é expulsa do local da intervenção, peloprocesso de gentrificação.6

O processo contemporâneo de espetacularização dascidades é indissociável dessas estratégias de marketingurbano, ditas de revitalização, que buscam construir umanova imagem para a cidade, que lhe garanta um lugar nanova geopolítica das redes internacionais. Nessa nova lógicade consumo cultural urbano, as grandes vedetes são tantoos novos equipamentos culturais, as franquias de museuscom suas arquiteturas monumentais de "griffe" de arquitetosdo "star system" internacional- cada vez mais especularese visados pela mídia e pela indústria do turismo -, quepassam assim a ser âncoras de megaprojetos urbanosinseridos nos novos planos estratégicos, quanto os antigoscentros históricos, que passam a ser requalificadospara setransformarem em algo parecido com "parques temáticos"ou "shoppings culturais" para turistas, em um clarofenômeno de "disneylandização" urbana generalizada. Emresumo: tanto a cultura quanto a cidade passaram a serconsideradas como mercadorias, manipuladas comoimagens de marca. A competição entre cidades por turistasou empreendedores estrangeiros é acirrada e asmunicipal idades se empenham para melhor vender a imagemde marca da sua cidade, em detrimento das necessidadesda própria população local, ao privilegiar basicamente ovisitante estrangeiro, através de seu maior chamariz, oespetáculo. O patrimônio cultural urbano passa, assim, aser visto como uma reserva, um potencial de espetáculo aser explorado.

PATRIMÔNIO EM TRÊSMOMENTOS: ESTÉTICO, ÉTNICOEECONÔMICO

O conceito de cultura, fundamentalmente inter ou trans-disciplinar, possui diferentes definições, tendo em vista osdiferentes campos disciplinares que o contemplaram ao longoda história. De uma forma geral, seria possível identificaralguns momentos-chave de definição do termo. Em seu

sentido mais clássico e, portanto, mais restrito, o conceito"cultura" remete às obras de arte, principalmente as obraseruditas. O entendimento do conceito se restringe à idéiade cultura erudita, que está diretamente relacionado aosistema "Beaux Arts" e que prioriza seu caráter artístico,ou melhor, estético. O conceito se torna mais abrangenteem seu sentido antropológico e etnológico, ao adotar aacepção mais aberta do termo, ou seja, "cultura" passa aser tudo aquilo que caracteriza um "modo de vida" de umasociedade, seja essa "civilizada" ou "primitiva", urbana ourural. A abrangência do conceito se amplia até as noçõesde cultura primitiva, vernácula e, sobretudo, através da idéiade cultura popular, passando assim a incluir o seu caráteridentitário, ou seja, étnico. Um conceito mais contemporâneode cultura, ao contrário, passa a generalizar e globalizar aprópria noção, tendo em vista principalmente a sua produçãoe difusão em larga escala. A partir do desenvolvimento,cada vez mais acelerado, dos meios de comunicação emmassa e posteriormente dos próprios produtos ditos culturais,o conceito de cultura se alarga ainda mais, passando aabarcar também a idéia de cultura de massa. O conceitopassa a priorizar, de uma forma cada vez mais explícita, oseu caráter mercantilista, mercadológico, em suma,econômico.

Haveria, então, basicamente, três momentos-chave decompreensão conceitual de "cultura": a "cultura-estética",a "cultura-étnica" e, por fim, a "cultura-econômica". Essacontextualização do conceito de cultura, apesar desimplificada ao extremo, é fundamental para que se possamelhor entender o processo atual de utilização da culturapara fins econômicos, que se insere no sentido conceitualclassificado como "cultura-econômica". Éevidente que setrata aqui de uma proposta de classificação, pois essessentidos se misturam, uma vez que esses momentos-chavesão complementares e se sobrepõem no tempo. Além disso,os próprios teóricos da cultura divergem não só na separaçãodas diferentes acepções do termo em cada momento, mastambém na própria divisão histórica dessas diferentes noçõesde cultura. Não há propriamente um consenso, mas algunsautores também situaram o conceito "cultura" em trêsmomentos distintos, como, por exemplo, Félix Guattari(1993: 17) no texto "Cultura: um conceito reacionário?", ondeo autor define as noções de "cultura-valor", "cultura-almacoletiva" e "cultura-mercadoria". Utilizamos essa distinçãoem três momentos como uma hipótese de trabalho, paraque possamos tentar identificar o seu rebatimento na próprianoção de patrimônio cultural, que também passaria por trêsmomentos principais: o "patrimônio-estético", o "patrimônio-étnico", e o "patrimônio-econômico".

No momento inicial, que corresponderia ao "patrimômio-estético", preservava-se basicamente obras de arte, ou seja,

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obras de reconhecido valor e que eram julgadasesteticamente. Em sua maioria, os bens tombados eramobrasmonumentais, monumentos propriamente ditos ouobrasdeclaradas como monumentos históricos. As cidadestambémeram preservadas a partir de princípios artísticos.A cidade inteira, ou seu centro histórico, era vista comoumaobra de arte em si, um monumento unitário e homogêneoe,assim sendo, só o conjunto era julgado. O documentomaisimportante dessa fase é a Carta de Atenas, de 1931,pela restauração de monumentos históricos, ocasião doPrimeiroCongresso Internacional de Arquitetos e TécnicosdeMonumentos Históricos na cidade grega, berço dos bensque foram um dos primeiros alvos de intençõespreservacionistas internacionais.7

No segundo momento, que seria do "patrimônio-étnico",iniciam-se as preocupações efetivas com a preservação daculturapopular, da arquitetura dita vernácula e das maisdiversas tradições culturais ou folclóricas. Passa-se apreservar sem uma preocupação prioritariamente artística,massim étnica ou regional. Considera-se objeto de estudode preservação tanto cidades sem valor propriamenteartístico, mas representativas culturalmente para umadeterminadacomunidade ou região, quanto obras ou práticasimateriais. Os documentos mais expressivos dessa fase, osquaisapontam para essa ampliação do campo de atuaçãoda patrimônio, são: a Carta Internacional sobre aconservação e restauração de monumentos e sítios, ditaCartade Veneza, de 1964, ocasião do segundo CongressoInternacional de Arquitetos e Técnicos de MonumentosHistóricos,nessa cidade conhecida internacionalmente comocidade-museu; e a Recomendação relativa à preservaçãodeconjuntos históricos ou tradicionais e seu papel na vidacotidiana, conhecida como Recomendação de Nairobi,anunciada durante a conferência geral da ONU em 1976 e,não por acaso numa cidade na África, continente que possuitradiçõesculturais milenares, ainda muito presentes na vidacotidiana e que, na maior parte das vezes, não são bensconstruídos, materiais, além de serem transmitidasoralmente.8

O terceiro e último momento, que corresponderia ao"patrimônio-econômico", além de ser o momento atual, é operíodo que foi menos estudado e discutido e, por essemesmo motivo, nos interessa particularmente, sendo omomentocentral do questionamento ora proposto. É nesseperíodo que ocorre a mercantilização do patrimônio,principalmente por intermédio das revitalizações dos sítioshistóricos com fins comerciais. O turismo cultural seintensifica em todo o mundo e as cidades competem cadavez mais para receber esses novos visitantes globais,seduzidos pelo patrimônio cultural local. Um documentosintomático dessa situação é a carta revisada do ICOMOS

..sobre o turismo cultural de 1999. Outro sintoma é o interessede bancos internacionais na preservação de patrimôniosurbanos: enquanto o World Bank financia projetos, semináriose mesmo livros sobre o tema como" Historic Cities andSacred Sites, Cultural Roots for Urban Futures "(SERAGELDIN et alii, 2001), o BID também lança umprograma internacional de revitalização de sítios históricosurbanos, o "Monumenta", que exige a auto-sustentabilidadeeconômica das intervenções. Parcerias com o setor privadosão estimuladas e, hoje, a preservação do patrimônio urbanojá é considerada por muitos empresários um empreendimentolucrativo, que tem base no turismo cultural globalizado.9

É importante que se possa vislumbrar que o principalproblema da terceira e mais atual categoria - a "cultura-econômica" ou o "patrimônio-econômico" - seria o fato deesse momento não se preocupar com as questões levantadaspelos momentos anteriores, desprezando tanto o caráterartístico e estético da noção, segundo Guattari (1993: 17),"sistemas de valor distintivos", quanto aquele identitário eétnico, ou, ainda segundo Guattari, "níveis territoriais dacultura". Na realidade, essas diferentes noções de culturasão complementares e deveriam ser consideradas nomomento atual, mas o que poderia e parecia ser, a princípio,uma democratização da cultura - ou, na questão patrimonial,um incentivo àpreservação popular e voluntária (de" baixopara cima ") - corre o risco de se tomar cada vez maisuma pura e simples diluição da compreensão de cultura e,por conseguinte, do patrimônio cultural, esvaziando,banalizando essas noções e transformando o patrimônio emum cenário espetacular.

CRíTICA EM TRÊS ~OMENTOS: INDU~TRIALlZAÇÃO,ESPETACULARIZAÇAO EGLOBALlZAÇAO

As críticas contra esse processo de utilização da culturasimplesmente como vetor econômico já se fazem sentir háalgum tempo, e seria possível traçar um rápido histórico dopensamento teórico-crítico da noção de "cultura-econômica",que poderia, por sua vez, ser dividido em três tempos outemas principais, e também teria reflexos na noção depatrimônio cultural. Esses três novos momentos, quetambém funcionam aqui como ferramentas hipotéticas dereflexão, seriam: a "industrialização", a "espetacularização"e a "globalização" tanto da cultura quanto do patrimônio.

A expressão hoje corrente de "indústria cultural", queliga a cultura à sua produção em massa, em escala industrial,foi originalmente utilizada pelos teóricos da escola críticade Frankfurt, Theodor W. Adorno e Mark Horkheimer, notexto "A indústria cultural: o esclarecimento comomistificação das massas", de 1944. O texto visava a alertarque a produção em massa, a reprodução em série de bens

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culturais, colocava em perigo a própria criação artística, umavez que a preocupação era com a quantidade em vez daqualidade e que se acentuava, assim, uma função da arte,além do puro prazer estético. Mostrava ainda que a "cultura-econômica" emergente estava destruindo a "cultura-estética" e que a cultura, que a princípio suscitavaesclarecimento através da experiência estética das obrasde arte, passou, a partir do momento em que as obras dearte foram simplificadas para sua melhor difusão e consumomassificados, a ser puro entretenimento, diversão(ADORNO, HORKHEIMER, 1985: 126).

Poderíamos efetivamente pensar em termos de uma"indústria patrimonial" a partir do momento em que os sítiosurbanos ditos históricos passam a se valorizar cada vez mais,através de uma estreita ligação com a indústria do turismocultural. A indústria do patrimônio estaria, sobretudo,relacionada à proliferação dos locais de memória ouidentitários, dos monumentos locais e, principalmente, denovos museus. Tratar-se-ia de uma fase de desestetizaçãoda arte, sugerida por Adorno, ou até mesmo de estetizaçãodo social (JEUDY, 1986), quando tudo pode ser declaradocomo um valor cultural e, por conseguinte, ser exposto emmuseus ou tombado como patrimônio cultural.

A crítica à "espetacularização" da cultura (e tambémdas cidades) se inicia basicamente nos anos 1960, marcadosmundialmente pela organização das "minorias culturais", pelosmovimentos de "contracultura" ou de culturas "alternativasou marginais", pelas manifestações revolucionárias e pelasreivindicações sociais e culturais mais diversas. Um dosmaiores símbolos da época, a manifestação estudantil de maiode 68 em Paris, reuniu vários grupos ditos revolucionários oucontraculturais e, entre eles, aqueles que formaram a baseteórica do movimento, os situacionistas. 10

A crítica situacionista - que possui raízes na "Crítica davida cotidiana" de Henri Letebvre e vai ter reflexos nasteorias de pensadores como Michel de Certeau e JeanBaudrillard, entre outros - continua ainda hoje pertinente,sobretudo se pensarmos na patrimonialização das cidadescomo uma "espetacularização" patrimonial, ou seja, umatransformação de patrimônios urbanos em cenárioscomerciais, através de uma pasteurização dos projetos derevitalização. E o antídoto situacionista, a participação social,também poderia ainda ser rediscutida, uma vez que essa" espetacularização " do espaço urbano tende a ocorrerquando não há uma apropriação efetiva desses espaçospreservados pela população local, principalmente por causado processo de gentrificação.

Tanto o processo de industrialização quanto o deespetacularização da cultura, anunciados por Adorno eDebord, só se acentuam cada vez mais com odesenvolvimento contemporâneo do processo de

globalização da economia. Vários pensadores da dita "pós-modernidade" denunciaram o caráter alienante euniformizador da cultura-econômica, a sua tendência àsuperficialidade e ao pastiche cultural. Com a globalização,a cultura perderia, de uma só vez, suas característicasantagônicas de singularidade e de universalidade. Aglobalização dos mercados implica uma concorrência entretodos os produtores mundiais de bens culturais, tendendopara a produção de uma cultura globalizada, ou seja,uniformizada pela cultura dominante mundialmente.

A problemática principal desse momento atual seria oesvaziamento do conceito de cultura do seu caráteridentitário, de diferenças e singularidades da cultura-étnica,mas também dos valores ditos universais da cultura-estética,em prol do puro mercantilismo da cul tura-econômica. Essacultura globalizada poderia ser vista como um simulacro(BAUDRILLARD, 1981) da própria noção de cultura, purarepresentação e imagem de si mesma. A preservação dopatrimônio cultural urbano passa a ter de, ao mesmo tempo,manter a especificidade cultural local e se manter dentro deum padrão global, visando ao turismo internacional. O queprovoca uma estandartização das áreas urbanaspreservadas, uma dissolução da especificidade local em prolda padronização de imagens turísticas para seremconsumidas globalmente.

Como já vimos, o resultado disso é que os mais diversoscasos de patrimônio universal da humanidade passam, cadavez mais, a se parecer entre si e com seus próprios cartões-postais. André Castel e Jean-Pierre Babelot (1994: 104) dizemque o turismo cultural atual seria o equivalentecontemporâneo do "Denkmalkultus"ll moderno. Poderíamosaté dizer que a atual patrimonialização seria o cultocontemporâneo do patrimônio cultural urbano. Além de seruma questão central no debate sobre a culturacontemporânea, a preservação do patrimônio cultural urbanotambém é um ponto nevrálgico no debate sobre a cidadecontemporânea.

Três pontos de tensão que mereceriam ser alvosprincipais de observação e análise mais apuradas constituemum convite à reflexão. O primeiro diz respeito à citadadicotomia entre os discursos preservacionistas e "neo-liberais", ou seja, entre a atitude "preservar tudo" e a de"destruir tudo". Como já vimos, as duas atitudes são ladosde uma mesma moeda. Deveríamos estar atentos apropostas alternativas, hibrídas e não generalizantes. O textode Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1986), "Preservarnão é tombar, renovar não é pôr tudo abaixo", é um bomexemplo de uma mediação possível. Os outros pontos são

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complementares: um diz respeito à prioridade ainda dadaao "patrimônio material", construído, em detrimento do"patrimônio imaterial", não construído. Essas duas noçõesdeveriam atuar juntas, uma vez que a " ambiência culturalurbana" seria constituída de ambas, além de a culturabrasileiratambém ser bem menos material que, por exemplo,aeuropéia (PEREIRA, 2000). Esse já é o terceiro e últimoponto a ser considerado, ou seja, a manutenção dahegemonia da visão eurocêntrica na questão do patrimônio,apesar dajá mais que reconhecida especificidade culturalnacional.Os três pontos estão relacionados ao que podemoschamarde uma "naturalização conceitual".

Parece que a própria noção de "Patrimônio CulturalUrbano" e seus conceitos correlatos, historicamenteconstruídos, encontra-se hoje de tal forma "naturalizada",queessa "naturalização", a despeito de certas experiênciasinovadoras, de modo geral, se rebateria nos própriosprocedimentos técnicos e práticos de intervenção epreservação dos patrimônios urbanos. De que forma essesprojetos urbanos explicitam, em suas práticas, noções decultura e, por conseguinte, de patrimônio cultural, ou seja,quais são os conceitos básicos que orientam esses projetosequal seria a natureza dos discursos que definem as políticaspatrimoniais urbanas que embasam esses projetos? Até queponto noções hegemônicas de cultura e de patrimôniocultural continuam sendo naturalizadas nessas ações, ouainda,essas noções foram revistas na prática? Até que pontoesses projetos incorporam, em suas propostas deintervenções urbanas, tanto a complexidade cultural e socialdascidades e sociedades contemporâneas, quanto a própriacrítica advinda dos trabalhos teóricos que tentaram"desnaturalizar" essas noções básicas?

De fato, a naturalização dos procedimentos técnicos,decorrente da naturalização das noções conceituais, pareceserde tal ordem, que indicaria haver uma correlação entreosdiscursos teóricos, práticos, institucionais e políticos sobrea questão. Entretanto, em um outro sentido, a revisãoconceitual que vem se processando nos últimos anos,principalmente nas instituições acadêmicas, parece penetraremum ritmo bem mais lento no campo da prática profissional,oque parece indicar profundas rupturas no campo disciplinare, particularmente, uma desarticulação entre os camposconceitual e empírico.

A partir dos anos 1960, podemos notar o desenvolvimentodeum urbanismo "pós-moderno" ou "neo-culturalista", quetevecomo questão-chave a preservação do patrimônio urbano,principalmente na Europa. Nos anos 1970 e 80, a ênfase sedeunos espaços públicos, na diversidade, na história e memóriaurbanas, o que, conseqüentemente, valorizava o patrimôniocultural urbano, e, em particular, a arquitetura vernácula eregional. Nos anos 1980 e 90, surgiu a idéia do planejamento

estratégico, vultosos recursos foram investidos em algumasedificações, principalmente nos centros históricos dotadosde boa visibilidade midiática e capazes de disseminar as ditas"contaminações positivas" sobre a cidade, contribuindo paraa formação de uma nova imagem urbana. Dos anos 1990 emdiante, os projetos urbanos foram progressivamentedesenvolvidos como conseqüência direta da crescentecompetitividade entre as cidades ditas globais. Através deprojetos estratégicos de revitalização urbana, baseados natríade cultura-Iazer-turismo, passou-se a enfatizar aspectospuramente imagéticos, tendo em vista a promoção e a vendade uma imagem de marca (KLEIN, 2(00) da cidade de modoglobal. Como vimos, é precisamente nessa globalização dacultura urbana que a preservação do patrimônio urbano sedestaca hoje como uma das principais estratégias para orenascimento de certas cidades, ao inseri-Ias no mapa turísticocultural mundial.

Um ponto crucial a ser pensado, que merece preocupaçãoe deveria ser levado em consideração, diz respeito àsimplicações sociais desses projetos de revitalização urbana.Deveríamos nos manter atentos às questões levantadas nostrês momentos do pensamento crítico sobre a questão: aindustrialização, a espetacularização e a globalização dacultura e do patrimônio. Os indícios advindos dessas críticas,principalmente nos textos situacionistas, nos chamam aatenção para o fato de que, além da questão arquitetônica eurbanística propriamente dita, a questão social parece serfundamental no resultado obtido por esses projetos. Uma dasmaiores interrogações dessas intervenções diz respeito àmanutenção ou não da população local nas áreas afetadas euma grande parte dos projetos provoca a gentrificação dessesespaços, principalmente aqueles centrais e ditos históricos(JACQUES, VAZ, 200 I).

A manutenção da população local de origem parece serum fator determinante para o bom êxito dos projetos derevitalização urbana.12 Manter as pessoas significaria manteras atividades cotidianas, as tradições locais e, por conseguinte,a cultura (e a própria cidade) "viva". A preservação, nessecaso, deveria vir de "baixo para cima" e, no seu caso extremo,poderíamos até nem mais necessitar de tombamentos. Oscasos orientais, principalmente das cidades japonesas (ABÉ,1980; JEUDY, 2001) - onde a questão do patrimônio nãotem muita importância, uma vez que as tradições ancestraisse mantêm vivas no cotidiano da população - podem ser vistoscomo um contraponto aos casos europeus, ou seja, à atualmuseificação e petrificação das cidades européias, quechegam a ser consideradas como cidades mortas(KOOLHAAS,1995). Os casos brasileiros parecem estarentre esses dois "modelos": patrimonialização (européia) enão-existência-da-noção-de-patrimônio (oriental). Pensaruma outra forma de intervir, principalmente nos casos

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nacionais híbridos, parece-nos urgente, diante da tensão atualentre forças de preservação e destruição, que tem comoprincipal palco de batalha as cidades contemporâneas, cadadia mais espetacularizadas.

Nos parece que uma boa pista nesse sentido foilevantada pelos situacionistas no fim dos anos 1950, iníciodos anos 1960, momento de uma primeira espetacularizaçãourbana nos moldes contemporâneos. Essa dicotomia entreas forças de preservação e de destruição (modernização)foi rapidamente notada pelos situacionistas em Paris:

"O centro de Paris está sendo radicalmenteremodelado pela organização para os automóveis,o que não exclui uma tendência complementar a serestaurar velhos quarteirões urbanos, como objetosde um espetáculo turístico, simples extensão domuseu clássico, todo um quarteirão podendo setornar um monumento. "1J

A partir da negação de uma concepção estática dacidade, os situacionistas anteciparam também - além daconhecida e radical crítica ao funcionalismo do movimentomoderno e sua separação de funções - uma crítica à"museificação" das cidades, principalmente à transformaçãodas cidades em espetáculos urbanos estáticos e nãoparticipativos. A idéia do urbanismo unitário (UU) propunhaum "modelo" alternativo: a utilização da cidade existentepara a construção da cidade futura.

"O UU vai contra o espetáculo passivo, princípiode nossa cultura, onde a organização do espetáculose estende na medida em que mais escandalosamenteaumentam os meios de intervenção humana. Umavez que hoje as próprias cidades se tornaram umlamentável espetáculo, um suplemento aos museus,para turistas que passeiam em ônibus envidraçados,o UU propõe o meio urbano como um lugar para ojogo participativo. O UU não é idealmente separadodo terreno atual das cidades. Ele se forma a partirda experiência desse terreno e a partir dasconstruções existentes. Nós devemos tanto exploraros cenários atuais, pela afirmação do espaçourbano lúdico tal qual o faz se reconhecer peladeriva, quanto construir novos, totalmente inéditos.Essa interpenetração (uso da cidade presente,construção da cidade futura) implica a manipulaçãode um desvio arquitetônico. O UU é oposto àfixaçãodas cidades no tempo. "14

Assim, o uso, a experiência, a vivência dos espaçosurbanos pela população local passariam a ser determinantespara uma escolha que deveria ser coletiva e que diz respeitoà preservação, adaptação ou destruição dos seus antigospatrimônios culturais urbanos, assim como a construção denovos. Se o patrimônio cultural urbano se tornou, de fato,

um simples espetáculo contemporâneo, poderíamos tentarnos servir do principal antídoto situacionista contra oespetáculo, ou seja, o seu oposto: a participação ativa dosindivíduos em todos os campos da vida social, principalmenteno da cultura. Podemos até sugerir a existência de umarelação inversamente proporcional entre espetáculo eparticipação, ou seja, quanto mais espetacular for o uso dacultura nos processos de revitalização urbana'5, menor seráa participação da população nesses processos e vice-versa. 16 E quanto mais passivo (menos participativo) for oespetáculo, mais a cidade se torna um cenário, e o cidadãoum mero figurante; e, no sentido inverso, quanto mais ativofor o espetáculo (que no limite deixa de ser um espetáculono sentido debordiano), mais a cidade se torna um palco e,o cidadão (antes simples espectador), um ator protagonista.

I Este texto é uma adaptação do trabalho Patrimônio cultural urbano: algumasquestlies contemporâneas, apresentado no III Seminário Internacional"Patrimônio e cidade contemporânea: políticas. práticas e novosprotagonistas" ,realizado em Salvador, em maio de 2002 e pode serconsiderado como um desenvolvimento, para a questão do patrimônio, dotexto Reflexlies sobre o uso da cultura nos processos de revitalização ur-bana, redigido com Lilian Fessler Vaz, publicado em "Anais do IX EncontroNacional da ANPUR", Rio de Janeiro, 2001, pp. 664/674.

2 Uma distinção semântica se faz necessária: museificação diria respeito atransformação da própria cidade em museu, e musealização seria a proliferaçãode museus nas cidades contemporâneas. Os museus são instituições patrimoniaispor excelência, acervos e vitrines dos mais variados bens artísticos e culturais,que a cada dia se transformam mais em centros ditos culturais, mas comfeições comerciais.

3 Alusão à "Bíblia" neo-moderna, o livro S,M,L.XL, New York, The MonacelliPress, 1995, de um dos maiores representantes dessa corrente, o arquitetoholandês Rem Koolhaas.

4 Um bom exemplo recente desse tipo de espetacularização foi a exposiçãoMutations (2000/2001), em Bordeaux; ver catálogo publicado por ACTARe Arc en Rêve, BarcelonalBordeaux, 2001.

, Elitização, expulsão da população mais pobre. Ver Neil Smith em The newurban frontier, gentrijication and the revanchist city. Londres, Routledge,1996.

• Nas periferias, isso não chega a ocorrer, uma vez que essas já nascemdevidamente gentrificadas, e ainda oferecem um nível de vigilância total,também dentro de um padrão internacional de segurança, que serve comojustificativa para um amplo processo de privatização de espaços públicos, quevem ocorrendo na maioria das áreas de expansão das cidades contemporâneas.

7 No Brasil, é nessa década que ocorre a institucionalização do patrimônioatravés da criação do SPHAN em 1937, e esse período inicial corresponde àchamada fase "heróica" dessa instituição federal, que terá como personagensprincipais Mário de Andrade, Rodrigo MeIo Franco de Andrade e LúcioCosta. Apesar de serem encontradas, no anteprojeto original de Mário deAndrade, alusões à cultura popular e até mesmo a bens imateriais, os benstombados pelo serviço, nesse momento, são basicamente bens materiais(edificados) reconhecidos e já considerados como parte da cultura erudita,além de possuírem valor estético e histórico indiscutíveis (principalmenteobras coloniais e barrocas). Nessa fase, a preservação do patrimônio é aindacrucial na construção de identidades nacionais.

" No Brasil, esse momento corresponde ao fim da " era" Rodrigo MeioFranco de Andrade na direção do SPHAN e, sobretudo, à chegada de Aluísio

Page 8: PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO: ESPETÁCULO … · Essas duas correntes dopensamento urbano contemporâneo, apesar de aparentemente antagônicas, tendem a um resultado bem semelhante:

Magalhães e à criação da Fundação Nacional Pró-Memória em 1979, o quecorresponde também à abertura política nacional. Nesse período, a preservaçãodo patrimônio é vista basicamente como uma valorização ou resgate dememórias comunitárias e tradições regionais.

9 Uma outra característica típica dessa fase mais recente é o deslocamento daspropostas e gerenciamento de projetos de preservação de patrimônios urbanosdaesfera federal (IPHAN) para as esferas estaduais e principalmente municipais.As municipalidades descobriram que a preservação do patrimônio pode serlucrativa e passaram a investir em revitalizações urbanas, muitas vezesempreendimentos puramente comerciais, que visam a satisfazer interesseseconômicos diversos ou, então, são simples ações midiáticas, para efeitos demarketing político eleitoral. Essas intervenções, que devem ser realizadasrapidamente, para satisfazer calendários políticos, provocam tanto umenobrecimento dos espaços, ao expulsar a população original de baixa rendadasedificações a serem recuperadas, quanto uma transformação do patrimônioem cenários, ao só manter as fachadas que são restauradas sem grandespreocupações quanto ao valor histórico, artístico e cultural das edificações,para promover a instalação de novos restaurantes de luxo, bares ou centrosditos culturais.

111 A Internacional Situacionista era um grupo de jovens artistas, liderados porGuy Debord, que lutava contra o espetáculo, a cultura espetacular, contra a"espetacularização" generalizada, ou seja, contra a não-participação, a não-intervenção, contra a passividade e a alíenação da sociedade. Em 1967,Debord publicou seu livro-manifesto "A sociedade do espetáculo", ondepreconiza que o principal antídoto contra o espetáculo seria a participaçãoativa dos indi víduos em todos os campos da vida social (Debord, 1967 e1992). O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas ocorre pelaimportância dada por eles ao meio urbano como terreno de ação, de produçãode novas formas de participação e de luta contra a passividade da sociedade.VerJacques, P. B. (org), IS, Apologia da deriva, escritos situacionistas sobrea cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, no prelo.

" Alois Riegl, presidente da comissão de Monumentos Históricos da Áustria,escreveu, em 1903, o que pode ser considerado ainda hoje um texto dereferência sobre a questão do patrimônio, "O culto moderno dos monumentos"("Der moderne Denkmalkultus, sein Wesen und seine Entstehung").

" Utilizamos o termo revitalização (no sentido de dar nova vitalidade) e nãooutros - reabilitação, requalificação ou regeneração - precisamente devido àsua conotação de vitalidade pela presença da população, e não somente comoreferência às condições físicas ou econômicas do local.

L1 lnternationale Situationniste nO 9, agosto de 1964, texto coletivo"L'urbanisme comme volonté et comme représentation ".

" Internationale Situationniste n° 3, dezembro de 1959, texto cole ti vo"L'urbanisme unitaire à Ia fin des années 50 ". O urbanismo unitário - unitáriopor ser contra a separação de funções modernas - não propôs novos modelosou formas urbanas, mas sim experiências efêmeras de apreensão do espaçourbano através da proposta de novos procedimentos, como a psicogeografia,e novas práticas, como a deriva. Ver Apologia da deriva. escritos situacionistassobre a cidade. op.cil.

" Acreditamos que uma revitalização efetiva só se realiza quando ocorre umaapropriação popular e participati va do espaço público urbano. A própriapreservação de monumentos depende de seu uso social. uma vez que só sepode manter "vivo" um monumento se este ainda pode ser útil para umapopulação, mesmo que simbolicamente.

" A relação entre espetacularização e gentrificação, ao inverso, é diretamenteproporcional, ou seja, a espetacularização urbana costuma trazer consigouma gentrificação espacial e cultural.

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