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ESPAÇOS REVISTA SEMESTRAL DE TEOLOGIA 2011 — Ano 19/1 ISSN 1677-4833 INSTITUTO SãO PAULO DE ESTUDOS SUPERIORES SãO PAULO

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ESPAÇOSREVISTA SEMESTRAL DE TEOLOGIA

2011 — Ano 19/1

ISSN 1677-4833

InstItuto são Paulo de estudos suPerIores

são Paulo

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ESPAÇOS ISSN 1677-4833

2011 ano 19 número 1Revista Semestral de Teologia do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP)

CONSELHO EDITORIAL

Heinrich Alexander Otten – SistemáticaMaria Cecília Domezi – HistóriaJosé Luiz Cazarotto – EditoriaLuiz Augusto de Mattos – MoralLuiz Gonzaga Scudeler - SecretárioEliana Massih – CiênciasNivaldo Feliciano da Silva – PráxisShigeyuki Nakanose – Bíblia

CONSELHO CONSULTIVO

Agnese Costalunga – ITESPJoão Edênio dos Reis Valle – PUC-SP Enio José da Costa Brito – PUC-SP Joaquim Piepke – Sankt Augustin, AlemanhaJames W. Heisig – Nanzan University, JapãoJosé Ademar Kaefer – ITESP José Oscar Beozzo - ITESPLúcia Helena Rangel – ITESP Luiz Augusto de Mattos – ITESP Márcio Fabri dos Anjos – ITESP Paulo Suess – ITESP

REDAÇãO:Revista ESPAÇOS

Rua Dr. Mário Vicente, 1.108Te.: (11) 2914-6036

Diagramação, impressão e acabamentoGráfica e Editora Santuário

Em Sistema CTcPRua Pe. Claro Monteiro, 342

Fone 012 3104-2000 / Fax 012 3104-203612570-000 Aparecida-SP

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Editorial

Já se tornou lugar comum dizer que a migração é o fenômeno humano de maior envergadura nos últi-mos tempos. Não que isto tenha começado agora, mas nos tempos atuais esta dimensão tem se tornado uma onipresença. Migrar – imigrar e emigrar – tem sempre ocorrido já desde o out of Africa milhares de anos atrás. Mas nos dias de hoje, além de o processo ser bastante rápido, encontra aspectos singulares: a migração no maior das vezes é questão de sobrevivência para quem migra e também para quem acolhe, mas não se deve esquecer que quem está fora de sua casa está numa situação fragilizada. Na Europa – e mesmo nos Estados Unidos – está ficando cada vez mais patente a sensação difusa de que o migrante não veio só para fazer alguma coisa, mas veio para substituir povos em extinção. Isto de um modo mais ou menos denso e profundo acontece sempre nas migrações. Qual o resultado deste cultural shock é talvez prematuro prever na situação atual, mas algumas fumaças já sinalizam o fogo.

Tendo este pano de fundo, o presente número da Espaços em colaboração estreita com os missionários scalibrinianos, apresente diversas reflexões que têm em vista tanto elucidar o fenômeno quanto lançar luzes de um trabalho pastoral de acolhida e de integração dos seres humanos relacionados com a mobilidade humana.

A primeira reflexão é de Anna Fumagalli que a partir de um referencial bíblico lança um olhar denso e muito rico sobre a experiência do migrar, da busca de sentido, das esperanças e desesperos da vida.

Alfredo Gonçalves, presidente da ASPES, em sua contribuição apresenta dimensões sociológicas e hi-stóricas da migração e algumas características típicas do migrante contemporâneo e a influência disto para

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uma pastoral consistente e respeitosa. De um modo ge-ral o migrante busca um novo lugar para morar; ele não é um turista.

Como a Igreja, no seu todo, tem lidado com este fenômeno? Paolo Parise percorre os Documentos ofi-ciais das Conferências episcopais da América Latina tendo em mente a temática da mobilidade humana e sua influência nas propostas pastorais da Igreja; gradual-mente, o tema deixa de ser assunto de alguns e passa a ser de todos.

Ainda persiste o fenômeno da migração campo-campo, mas no geral, hoje em dia, trata-se mesmo da migração campo-subúrbio-cidade. Como fica a expe-riência religiosa dos deslocados? Para apresentar um pano de fundo mais sólido e contribuir com novos da-dos, João Décio Passos e Afonso Maria Ligório Soares elaboram suas reflexões onde a teologia e a religiosidade em processo de transformação são analisadas e algumas sugestões são apresentadas.

O prezado leitor pode ainda enriquecer-se com as contribuições de Antônio Carlos Oliveira Souza – o Ba-tismo e seu significado teológico e pastoral – e o teste-munho dramático do trabalho com migrantes da Ama-zônia de Gelmino Costa.

Por fim, duas contribuições para se conhecer o Bra-sil: o Cemitério do Valongo, no Rio de Janeiro e seu sentido antropológico (Enio José da Costa Brito) e a recensão de um livre especialmente interessante a res-peito da vida cultural de uma tribo indígena brasileira na Amazônia (José Luiz Cazarotto).

Tenha pois o leitor uma boa leitura e que a mesma o enriqueça no conhecimento e seja uma luz para se lidar com um fenômeno complexo e atual.

José Luiz CazarottoDiretor

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BíBlia, MigraçõEs E EspiritualidadE

Anna Fumagalli*

Resumo:A reflexão de Anna Fumagalli relaciona de um modo ori-ginal três temas: temas bíblicos, o fenômeno da mobi-lidade humana e as aspectos espirituais envolvidas nas atividades pastorais. O sonho de Jacó e Pentecostes são os textos bíblicos que servem de moldura para sua refle-xão. Tendo este pano de fundo, ela analisa alguns temas dramáticas do migrar referindo esta temática à Sagra-da Escritura (migração e Antigo Testamento, Jesus e os estrangeiros e as primeiras comunidades cristãs): busca da sobrevivência, de sentido, carências, abandono, mas também caminho de vida com sentido, novidade e cresci-mento e esperanças para a vida.

Palavras-chaves: Pastoral da mobilidade humana; Bíblia: migração; Espiritualidade e Migração.

Abstract:This Anna Fumagalli’s conference puts together in an original way three subjects: some biblical issues, the human mobility phenomenon and the spiritual dimensions deeply involved in the pastoral activities. Jacob’s dream and the Pentecost are biblical texts used as a kind of framework to the general subject. With this background she analyses some dramatic issues on the human mobility at large having the Holy Scripture as a lecture key (Migration and the Old Testament, Jesus and the foreigners and this issue related to the first Christian Communities): struggle for surviving, quest for life meaning, needfulness, abandon,

artigOs

*Missionária secular scalabriniana.

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but also meaningful way of life, newness and growth and hope for the life. Key words: Human mobility pastoral issues; Bible: mi-gration; Spirituality and Migration.

Introdução1

Quando recebi o programa deste seminário em São Pau-lo, vocês podem imaginar com quanta atenção comecei a ler! Quando cheguei no tema de quinta-feira, encontrei: Bíblia, Migrações e Espiritualidade.

Bíblia – E devo logo dizer quanta gratidão tenho por ter sido enviada a estudar a Bíblia, quando já tinha percorrido alguns anos de caminho na vida missionária. Desse modo, pude levar comigo, nesses estudos, não somente minhas per-guntas, minha sede, mas as perguntas e a sede de muitos.

Migrações – Entre nós, vários são os especialistas no tema das migrações, seja nos aspectos das problemáticas mundiais, seja naqueles mais específicos da América Latina! E isso é muito importante: sabemos que estamos tocando uma realidade complexa, que traz consigo a vida de tantos homens e mulheres com suas histórias, situações muito di-versas, injustiças terríveis, exploração, problemas e também grandes possibilidades!

E ainda: Espiritualidade! E disse: Oh, não! De espirituali-dade tenho dificuldade de falar!. E vejam que tantos pensam que seja algo que tem a ver especialmente com as mulheres, mais que com os homens. Então, por que tenho dificuldade?

Espiritualidade – sabemos – é um termo muito usado hoje, porém, com os mais diversos significados! O interes-sante é que esses significados, na maioria das vezes, não são explicitados: cada um entende o termo a seu modo, mais do que isso, muitas vezes, cria-se o próprio significado, aquele que mais agrada, recolhendo aqui e ali, um pouco de tudo!

Nessa situação, é claro que não podemos falar de espiri-tualidade hoje, se não nos colocarmos, antes de mais nada, algumas perguntas fundamentais: o que é espiritualidade? e: o que é espiritualidade cristã? Sem precisar esses termos, o discurso fica muito vago.

É claro que são perguntas que não podemos enfrentar em poucas linhas! Porém, precisamos ao menos nos dar algumas pis-tas e principalmente manter essas perguntas vivas, dentro de nós!

Anna Fumagalli – Bíblia, Migrações e Espiritualidade

1 Elaboração de Conferência do II Seminário Latinoamericano sobre Teologia, Migração e Missão e XIV Semana Teológica; ITESP de São Paulo. Tradução: Elaine Cristina Camillo da Silva mss

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Na realidade, reconhecemos que se trata de perguntas importantes para nós, para nossa missão, mas também im-portantes para os homens e as mulheres de hoje, que – atra-vés dos mais diferentes percursos (filosofias, psicologias, mé-todos de meditação, cultos neo-pagãos, etc., etc.) – buscam espiritualidade!

Parece-me muito significativo o título dado a uma série de aulas ministradas por vários professores, anos atrás, na Faculdade de Teologia católica da Universidade de Viena, li-derados por um grande pastoralista, Paul Zulehner. O título é Espiritualidade – mais do que um megatrend.2 A questão é: esta busca difundida de uma dimensão religiosa nas nossas sociedades, atualmente, é somente uma moda passageira ou algo mais? Tem uma sede a ser levada a sério?

É diante dessa situação que temos a responsabilidade de nos perguntarmos: o que é espiritualidade cristã? É signifi-cativo que na publicaçao da Ir. Analita Candaten mscs, sobre Espiritualidade de um povo a caminho, o primeiro capitulo trata da questão: o que é espiritualidade cristã?3

Então, falar de espiritualidade cristã é falar de vida, vida segundo o Espírito Santo, vida que se deixa guiar pelo Es-pírito Santo. E, dado que o Espírito Santo não tem outra missão, outro projeto, que tornar próximo a nós, atual para nós, a vida, morte e ressurreição de Jesus – em outras pala-vras: fazer crescer o nosso batismo, ou seja, a nossa vida que se torna uma só coisa com a vida de Jesus4 – então, falar de espiritualidade cristã significa falar da vida em Cristo, vida de filhos no Filho, ou seja – como para Jesus – vida toda em re-lação com o Pai e, por consequência, em relação com todos.

Percebemos que a espiritualidade é algo muito concreto: é a concretude da vida, de uma vida com, uma vida em alian-ça: não em primeiro lugar nossa aliança com Deus, mas a sua aliança conosco.

Portanto, não fé de um lado e vida do outro, não teologia daqui e prática de lá, não oração separada da missão, mas fé e vida, teologia e prática, oração e missão – isso é espiritualidade: antes de tudo, portanto, uma profunda unificação da pessoa! É interessante: podemos ter as mais diferentes opiniões sobre tantas coisas, mas, se formos sinceros, reconhecemos que essa unifica-ção é aquilo que todos, no fundo, desejamos: um desejo, assim, que aproxima profundamente até as pessoas mais diferentes!

De fato, devemos rever nosso modo de pensar!No nosso modo de pensar, aquilo que é espiritual é dis-

tante daquilo que consideramos concreto... Mas, pelo contrá-

2 Cf. P. M. ZULEHNER, (Ed.), Spiritualität – mehr als ein Megatrend. Stuttgart: Schwabenverlag, 2004.

3 Cf. A. CANDATEN, Espiritualidade de um povo a caminho. Elementos para uma espiritualidade no contexto migratório. http://www.cemcrei.org.br/elementos_da_espiritualidade_e_metodologia_da_pastoral_dos_migrantes.pdf4 Paulo cria alguns termos para poder expressar essa realidade (por exemplo, o termo grego syn-phytoi em Rm 6,5).

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rio, espiritualidade cristã é algo de muito concreto, que toca a vida e todos os aspectos da vida!

E, ainda, no nosso modo de pensar, diversidade e comu-nhão se contrapõem: quanto maior a diversidade – esponta-neamente pensamos – menor a comunhão, e vice-versa! Po-rém, lá onde o Espírito Santo é deixado livre para trabalhar, cresce a comunhão e, ao mesmo tempo, tornamo-nos sempre mais diferentes – como no corpo, no qual cada membro faz o seu dom único e insubstituível para o bem de todo o corpo!

Seria terrível se o pé quisesse fazer o que faz o olho, se a mão quisesse ser como a orelha..., mas não é assim! Somente o olho vê, mas seu olhar é para todo o corpo, o pé caminha para todo o cor-po. Assim na Igreja: homens e mulheres, famílias e comunidades, vocações diferentes, carismas diferentes, grupos diferentes, cada um com seu dom, a serviço da comunhão, para o bem de todo o corpo: um corpo que é chamado a viver, não para si mesmo, mas para uma missão, para o bem de toda a humanidade.

Com essa consciência, enfrentamos nosso tema em sete pontos. O primeiro e o último são um pouco diferentes dos outros: no início e no final, de fato, nos deteremos sobre uma página da Bíblia.

1. Teve um sonho: Eis que uma escada se erguia sobre a terra (Gn 28,10-22)

É um texto muito conhecido. Geralmente, vamos logo ao conteúdo do sonho, quase não levando em consideração a situação na qual se encontra Jacó, descrita no início do relato, de modo muito sintético (vv. 10-11). É um momento muito duro da vida de Jacó.

A situação de Jacó (vv. 10-11)

Jacó está viajando: uma longa viagem. Tratava-se de per-correr ao menos 1.600 quilômetros a pé, através da Palestina e da Síria, para entrar na Mesopotâmia (atual território ira-quiano), para chegar à cidade da qual tinha partido Abraão: Harã, hoje em território turco.

Jacó tem medo: sua viagem – como sabemos – é uma fuga, uma fuga dramática. Foi obrigado a se afastar da própria fa-mília e do próprio grupo a causa do conflito com seu irmão, que ele mesmo enganou! E agora, o irmão quer matá-lo. É o drama da luta entre irmãos, que começou com Caim e Abel, e continuará com José e seus irmãos. A Bíblia, desde as primeiras

Anna Fumagalli – Bíblia, Migrações e Espiritualidade

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páginas, não esconde a situação na qual nos encontramos: não sabemos viver como irmãos. O mais admirável, porém, não é somente esse realismo sobre a situação do homem, mas que a Bíblia, no seu realismo, não redimensiona a meta, a esperança, a confiança que é possível viver como irmãos.

Jacó está sozinho: pelas indicações nos textos, teriam passado ao menos três dias de viagem, já está longe de seus pontos de referência. Por outro lado, a meta ainda está muito distante. Não sabe precisamente onde se encontra. O texto fala de um lugar, do qual não se diz nem ao menos o nome (saberemos somente no final do relato), um lugar anônimo, totalmente estranho para Jacó.

Quando chega a noite, encontramos Jacó se organizando para dormir sem nenhum reparo, a céu aberto. No entanto – vamos saber no final do relato – o lugar onde se encontra é próximo de uma cidade: uma situação anormal em uma cultura na qual a prática da hospitalidade tinha um grande valor. Então, na sua situação de fugitivo, Jacó não encontrou ou não pode encontrar acolhida: um detalhe importante para compreender o sentido do que acontece depois.

Em síntese, nos é apresentada uma situação difícil, que não desejaríamos a ninguém, mas aquilo que está para acon-tecer de algum modo nos sugere que até mesmo a situação mais difícil não deve ser considerada uma situação sem saída. Como veremos, pode-se abrir a perspectivas inesperadas...

O sonho de Jacó (vv. 12-15)

Com o que sonha Jacó? Sonha com uma escada, que une a terra ao céu, uma escada por meio da qual Deus se faz próximo. Da escada, fala-se em somente um versículo (v. 12). Diz-se so-mente que é percorrida por anjos que sobem e descem. O que quer dizer? Que o céu e a terra estão bem unidos? É ainda pou-co! De fato, a dupla de verbos usados é uma dupla importante, com a qual (não importa a sequência na qual sejam empregados) a Bíblia frequentemente sintetiza a obra de Deus, a liberação de seu povo, a salvação: Deus desce para fazer subir seu povo do Egito (por exemplo, cf. Ex 3,8). O Deus da Bíblia é um Deus que salva, por isso desce, se faz próximo ao homem, para libertá-lo e fazê-lo subir. Ele se faz próximo também de Jacó, deste homem que está fugindo porque enganou o irmão, que está em um lugar totalmente estranho e não tem ninguém que o proteja.

Com efeito, Deus se faz próximo e conversa longamente com Jacó (esta é a parte mais longa do relato: vv. 13-15!). Brevemente, podemos dizer: o que Deus faz com Jacó – con

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um homem naquela situação – é uma promessa que supera toda expectativa.

A experiência de Jacó (vv. 16-17)

Ao acordar, Jacó antes de tudo expressa a sua surpresa: Eu não o sabia! Aquele que para ele era um lugar desco-nhecido, no qual tinha se sentido sozinho e abandonado por todos, tornou-se um lugar cheio da presença de Deus. E, agora, aquele lugar é reconhecido por Jacó como “uma casa de Deus e a porta do céu”.

São palavras muito significativas, por meio das quais en-tendemos que a experiência que Jacó fez é aquela de ser aco-lhido em uma casa, na própria casa de Deus!

Isso será confirmado pelo nome novo que receberá aque-le lugar, até então, anônimo: um nome que será para sempre memória da experiência que Jacó tinha feito: Betel, ou seja, casa de Deus. Esse é o foco da experiência de Jacó como ex-periência de saber-se acolhido por Deus.

A resposta de Jacó ao compromisso de Deus (vv. 18-22)

Os gestos de Jacó, narrados como conclusão (uma pedra erguida e ungida com óleo; um nome novo dado ao lugar; um compromisso expresso com um voto) nos dizem que ele levou a sério a experiência que teve e quer recordá-la, quer responder também com seu compromisso.

A escada é Jesus em pessoa (cf. Jo 1,51)

No Evangelho de João, com uma frase que se impõe à aten-ção (justamente porque aparece de repente, isolada em relação ao resto do relato), Jesus fala de si referindo-se ao sonho de Jacó: Vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem. E os dois verbos voltam: subir e descer.

Aquilo que Jesus diz é: Eu sou a escada em pessoa! En-tão: o sonho de Jacó se realizou de modo definitivo, a aco-lhida de Deus para com o homem tem um rosto concreto: aquele de Jesus. É ele que com a sua vida – uma vida toda por nós – revelou a medida dessa acolhida da parte de Deus: uma acolhida sem medidas.

Se estamos participando deste seminário, significa que nos preocupamos com a acolhida do outro, principalmente de quem é estrangeiro. Justamente, perguntamo-nos sobre nossa acolhida do outro. Mas a experiência de Jacó nos colo-ca na pista do segredo que pode nos tornar capazes de aco-

Anna Fumagalli – Bíblia, Migrações e Espiritualidade

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lher, e de acolher sempre, a todos: a alegria de nos sabermos, antes de tudo, pessoalmente acolhidos por Deus.

Até aqui, o relato do sonho de Jacó: são somente algumas observações que nos confirmam que vale a pena abrir a Bíblia.

2. A água, a sede, os canais

Temas ligados à experiência do migrar – isto é, partir da própria terra, viver como estrangeiro, fechamento e acolhida em relação ao estrangeiro, medo e estima pela diferença, etc. – são familiares para a Bíblia, da primeira à última página! Poderíamos tentar fazer uma lista: Quantas histórias, perso-nagens, leis, imagens, experiências, reflexões, tanto no Anti-go quanto no Novo Testamento! Portanto, podemos dizer: a água tem, e tem em abundância!

Porém, não basta que exista a água, é preciso também encontrar quem tenha sede! De fato, hoje, a sede existe! O fenômeno das migrações, atualmente, suscita muitos ques-tionamentos e, diante da complexidade do fenômeno, – com-plexidade essa capaz de desencorajar até os mais corajosos – cresce a exigência de poder referir-se a um projeto seguro, de poder compreender as situações e os acontecimentos à luz do projeto de Deus para o mundo.

Encontramos essa exigência:

- antes de tudo, entre os próprios migrantes: muitos deles são homens e mulheres de fé que buscam na Bíblia a luz para seus passos, às vezes pessoalmente, mas frequentemente gra-ças à possibilidade de rezar junto a outros;

Mas pensemos também:

- em tantos cristãos que se dedicam diretamente, lado a lado com os migrantes (por exemplo, tantas organizações cristãs de voluntariado) e que buscam na Palavra de Deus o sentido de seu serviço;

- pensemos nos tantos agentes de pastoral nas várias dio-ceses do mundo – principalmente aqueles empenhados na pastoral migratória ou na pastoral bíblica, e na sua busca de motivações capazes de reavivar em suas dioceses o sentido da acolhida e da estima por quem é estrangeiro, migrante, em um tempo com uma tendência contrária, no qual cresce o medo e a tentação de se fechar;

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- pensemos também em tantos estudiosos no âmbito acadêmico, naqueles que são mais sensíveis e se questionam sobre como colocar sua competência a serviço das problemá-ticas mais atuais, como a migratória.

A sede, portanto, existe – assim como a água! É neces-sário trabalhar para que a água e a sede se encontrem! É esse o objetivo entusiasmante que torna precioso o nosso estar aqui, hoje, o objetivo que torna preciosa a dedicação de quem pesquisa, estuda, escreve sobre Bíblia e Migra-ções!

A Resenha Bibliográfica sobre Migrações e ciências teo-lógicas, publicada em 2009 pelo Cserpe de Basel, disponível também on line,5 mostra, inclusive, que também no campo bíblico temos agora a disposição numerosas publicações: artigos em revistas especializadas, anais de congressos, en-saios, comentários.

Além disso, em junho deste ano, foi publicada no número 178 de Studi Emigrazione, a revista do CSER de Roma, uma série de ensaios, fruto do trabalho de vários professores do SIMI. Eles tentaram fazer uma leitura crítica das publicações que temos a disposição nos diversos campos da teologia so-bre as diversas temáticas migratórias. Pude trabalhar na parte bíblica, consultando também Pe. Gabriele Bentoglio Cs, que no SIMI é responsável pela disciplina Fundamentos bíblicos da pastoral da mobilidade humana.

Dado que esse trabalho foi publicado recentemente,6 não vou me deter em apresentar as publicações atualmente dispo-níveis sobre Bíblia e Migrações. Gostaria, porém, de retomar brevemente três pontos:

- uma anotação positiva;- uma observação crítica;- uma possível pista para o futuro.

A anotação positiva:

Muitas das publicações, que hoje temos a disposição, fo-ram solicitadas pelo diálogo entre biblistas e agentes de pas-toral, ou seja, entre estudiosos do texto bíblico e aqueles a quem é confiada a preocupação pastoral da Igreja diante do fenômeno migratório! É preciso favorecer e continuar esse diálogo!

Uma observação crítica:

5 Cf. G. TASSELLO – L. DEPONTI – F. PROSERPIO, (Eds.), Migrazioni e scienze teologiche. Rassegna Bibliografica (1980-2007). Basel: CSERPE, 2009. http://www.cserpe.org/Rassegna%20bibliografica2.pdf

6 Cf. A. FUMAGALLI, Leggere la Bibbia nel contesto migratório. StuDi EMigRAziOnE, 2010, 178, p. 291-316.

Anna Fumagalli – Bíblia, Migrações e Espiritualidade

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Infelizmente, devemos reconhecer que, também nos estu-dos bíblicos, as barreiras linguísticas e culturais fazem sentir seu peso. Existem, por exemplo, válidos estudos em língua italiana e portuguesa, que nunca são citados em publicações de língua alemã ou inglesa. Nessa situação, os congressos internacionais são ocasiões realmente preciosas e devem ser incentivados!

Uma possível pista para o futuro:

Deriva, em parte, das duas observações precedentes, mas se coloca em um horizonte mais amplo, que é este: A inter-pretação da Bíblia, na Igreja, exige sempre ser acompanhada pelo diálogo entre diferentes âmbitos eclesiais; não pode ser realizado em compartimentos fechados e, muito menos, per-manecer como monopólio de um único âmbito, nem somente daquele acadêmico, nem somente do pastoral-institucional.7

Também em relação à Bíblia, Migrações e Espiritualida-de, portanto, é o diálogo que tem de ser intensificado: não somente entre estudiosos da Bíblia e responsáveis da pasto-ral, mas também entre os próprios estudiosos de diferentes áreas linguísticas e de diferentes escolas. E não somente isso!

O caminho poderá se tornar ainda mais fecundo se crescer também o diálogo entre estudiosos e simples leitores da Bí-blia. De fato, de um lado, é urgente que os frutos da pesquisa bíblica sejam colocados a disposição dos fiéis, dos leitores da Bíblia. Ao mesmo tempo, estamos certos que a pesquisa pode se enriquecer quando os estudiosos se colocam em atitude de escuta das perguntas e das intuições que a leitura da Bíblia suscita nos fiéis, seja naqueles que vivem na própria pele a experiência do migrar, seja naqueles que se empenham a favor dos migrantes. Essa escuta pode trazer muitos frutos!

3. Algumas anotações de método

3.1 Bíblia e contexto de vida

A esta altura, para prosseguir no tema, pedimos ajuda a uma objeção. Sim, porque as objeções atrapalham, são incô-modas, mas também... nos ajudam!

A objeção a que me refiro surge quando, na origem de um estudo sobre um texto bíblico (pode ser tanto de tipo científico como no âmbito da leitura popular) existe um interesse espe-cífico, no nosso caso, um interesse solicitado por um contexto

7 Para um aprofundamento sobre a necessidade desse diálogo, posso recomendar a tese de doutorado de Ralf Huning, um jovem Missionário Verbita alemão. Cf. R; HUNING, Aprendiendo de Carlos Mesters. Hacia una teoria de lectura bíblica. Estella: Verbo Divino, 2007.

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migratório vivo, por uma preocupação pastoral, por uma ex-periência direta de emigração, podendo facilmente acontecer que venham à luz aspectos do texto bíblico que, de outro modo, permaneceriam na sombra (também quando se trata de estudos muito válidos que, porém, não têm esse interesse específico).

Essa disparidade pode nos tornar suspeitosos, descon-fiados diante daquelas interpretações que têm como ponto de partida um questionamento particular, por exemplo, li-gado a um particular fenômeno social, seja por um interesse histórico do passado seja – como no nosso caso – por uma exigência de atualização da mensagem bíblica.

A objeção, então, seria: a especificidade do questiona-mento de partida impediria um estudo objetivo?

Tocamos, assim, uma grande questão, que não diz respeito somente ao nexo entre Bíblia, migrações e espiritualidade, mas em geral a cada interpretação do texto bíblico. É o desafio que cada contexto de vida traz para a interpretação do texto bíblico.

Provavelmente, muitos entre nós já enfrentamos essa questão em nossos estudos teológicos. Certamente, não é uma questão nova. Temos à disposição muitas publicações a esse respeito. Mas não podemos falar de Bíblia, Migrações e Espiritualidade sem considerar essa questão, sem colocá-la sobre a mesa. De fato, queremos evitar trazer conosco – ain-da que de modo latente – essa suspeita!

Hoje temos a consciência de que, na interpretação do texto, a neutralidade é uma ilusão! Temos consciência que a leitura – inclusive aquele particular tipo de leitura que é a interpretação – é sempre condicionada pelo contexto de vida de quem lê, mas também pode ser decididamente enrique-cida por tal condicionamento – justamente pelo fato que o texto funciona de modo dialógico, na interação com o leitor.

Poderíamos até dizer: não basta ler e interpretar a Bíblia, é preciso ler e interpretar a Bíblia no contexto de vida! Isto é: ir ao encontro da Bíblia trazendo conosco os questionamen-tos sugeridos pelo contexto no qual vivemos, porque são jus-tamente nossas perguntas que permitem aos textos bíblicos expressar toda sua riqueza e atualidade de suas mensagens!

3.2 Bíblia e história

É necessário – sabemos disso – ter sempre em mente o caráter histórico do texto bíblico, do testemunho bíblico. Isso traz algumas consequências:

Levar a sério o caráter histórico do testemunho bíblico significa que, mesmo quando temos a urgência de atualizar

Anna Fumagalli – Bíblia, Migrações e Espiritualidade

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a mensagem para nós, hoje, ainda assim é preciso dedicar atenção aos aspectos culturais de um texto bíblico, ao am-biente e à época nos quais teve origem, à sua posição em relação às diferentes etapas da história do povo da aliança, as suas releituras ao longo do tempo!

A esse respeito: A Semana Bíblica realizada no espaço do Pontifício Instituto Bíblico, em 1994, sobre O estrangei-ro na Bíblia, continua sendo um válido ponto de referência, justamente por sua particular atenção à história e ao cenário cultural dos textos bíblicos.8

Levar a sério o caráter histórico do testemunho bíblico sig-nifica renunciar à pretensão de uma mensagem homogênea e, ao invés disso, reconhecer e valorizar as diferenças, até mesmo as ambiguidades e as contradições presentes na Bíblia. Ainda em relação ao nosso tema, vem ao nosso encontro não uma visão ideal, não um quadro homogêneo, não uma regra de comportamento, mas a história de um povo, em toda sua rea-lidade! É dentro dessa história – nunca podemos nos esquecer disso – que se revelou o projeto de Deus para a humanidade.

No nosso caso, isso significa reconhecer presentes na Bí-blia uma lógica da acolhida e uma lógica da exclusão, em um entrelaçamento dinâmico de uma com a outra.9

Quando esse entrelaçamento não é considerado, encon-tramos nos estudiosos duas atitudes opostas: ou se vira rapi-damente a página do Antigo Testamento, porque o conceito de eleição – que na Bíblia, muitas vezes, conhece a tentação de ser interpretado no sentido exclusivo – nos traz um mal estar, e então se corre para o Novo Testamento, onde final-mente se abre o horizonte em uma acolhida sem limites; ou, o que seria a atitude oposta: se vê na Bíblia, Antigo e Novo Tes-tamento, um quadro ideal de acolhida ao estrangeiro, seja no âmbito da legislação seja na prática da hospitalidade. Ambas as atitudes, ainda que opostas, esquecem que o projeto de Deus se revela a partir de dentro de uma história, com suas etapas, suas fadigas, seu processo de transformação.

4. A centralidade do tema migratório no Antigo Testamento

O Antigo Testamento – como sabemos – oferece um campo de pesquisa extremamente rico para nosso tema! As publicações à nossa disposição já são numerosas.

É importante notar que os diversos textos e temas podem ser direcionados para dois eixos temáticos principais: não só

8 Cf. I. CARDELLINI, (ed.), Lo ‘straniero’ nella Bibbia. Aspetti storici, istituzionali e teologici. RiCERCHE StORiCO BiBliCHE, (1996), 8, p. 1-2.

9 Cf. Th. RöMER, em 1997: le peuple élu et les autres: l’Ancien Testament entre exclusion et ouverture. Aubonne: Du Moulin, 1997.

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a relação com o estrangeiro, mas também o reconhecimento da própria condição de estrangeiro. E, ainda, vale notar que esses dois eixos temáticos estão entre eles profundamente in-terligados.

Destacamos que não se trata só de um tema presente de modo abundante, mas de um tema central, fundamental para o testemunho bíblico. Pensemos na história do povo de Deus – com suas etapas decisivas da saída do Egito e do exílio na Babilônia – e pensemos na geografia do povo de Deus, ou seja, à particular posição da Terra prometida; uma faixa de território, um corredor de passagem, de encontro e desen-contro entre as grandes civilizações de cada época!

Tudo isso se torna ainda mais significativo se considerar-mos que o povo da aliança reconheceu, na saída do Egito, o acontecimento fundante da própria história, o acontecimento à luz do qual compreender tanto a história precedente – de modo especial a experiência vivida pelos patriarcas e suas fa-mílias – como aquela sucessiva – com o retorno do exílio.

Sabendo que poderíamos discorrer durante um semes-tre sobre Antigo testamento e Migrações sem exaurir o tema; paro por aqui, porque a bibliografia que hoje temos à dispo-sição aborda sobretudo o Antigo Testamento.

5. Jesus estrangeiro – Jesus e os estrangeiros

Quando o estudo bíblico coloca ao centro a figura de Je-sus de Nazaré, tem a consciência de se encontrar no centro da revelação do rosto de Deus. Cito um trecho extraído das conclusões do estudo de Gabriele Bentoglio:

A teologia bíblica coloca em evidência que a revelação de Deus acontece por meio de um ato histórico que contém todas as características do estranhamento, vale dizer que Deus, para se fazer conhecer ao homem, escolhe de fazer-se estrangeiro [...].10 O nosso Deus, portanto, é um Deus que, por amor ao homem, fez-se estrangeiro, migrante: deixou sua pátria para vir morar na nossa.

A esse dado fundamental se acrescenta o fato de que os Evangelhos encontraram na categoria do estrangeiro uma das categorias apropriadas para apresentar a pessoa de Jesus.

Jesus, na condição de estrangeiro: Logo lembramos de algu-mas páginas do evangelho: Por exemplo, certamente pensamos no relato da fuga ao Egito (Mt 2, 13-23), na página do juízo universal (Mt 25, 31-46), naquela dos dois discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35). Mas não se trata somente dessas páginas!

10 Cf. G. BENTOGLIO, ‘Mio padre era un arameo errante...’ Temi di teologia biblica sulla mobilità umana. QuADERni SiMi, (2006), 4, p. 221.

Anna Fumagalli – Bíblia, Migrações e Espiritualidade

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Se considerarmos a ligação entre a condição de estran-geiro e questões como a proveniência, a língua e a compre-ensão, a acolhida e a rejeição, então o campo de estudo se amplia decididamente e descobrimos que em diversos mo-dos os evangelhos se servem da categoria de estrangeiro para apresentar a pessoa de Jesus.

Pensemos na genealogia de Jesus, a qual encontramos no início do Evangelho de Mateus (1,1-17); pensemos naque-la cena de Jesus na sinagoga de Nazaré, a sua pátria, uma página muito importante do Evangelho de Lucas (4,16-30); pensemos no tema do mistério sobre a identidade de Jesus ao longo do Evangelho de Marcos, ou também ao tema das origens de Jesus no Evangelho de João; pensemos nos acon-tecimentos da paixão, morte e ressurreição de Jesus.

Em muitos textos dos quatro evangelhos, portanto, en-contramos a categoria de estrangeiro em referência à pessoa de Jesus. Mas em qual sentido Jesus é apresentado na condi-ção de estrangeiro?

Nos estudos, a categoria de estrangeiro é, muitas vezes, ligada ao tema da rejeição experimentada por Jesus em sua missão! Ou seja, Jesus torna-se estrangeiro porque é rejei-tado! Mas existem também outras hipóteses de estudo, nas quais emerge o uso positivo da categoria de estrangeiro em referência à identidade de Jesus, como também à possibilida-de de um autêntico encontro com ele.

A esse propósito, tenho que fazer ao menos uma indicação ao estudo de Lucio Cilia, Jesus estrangeiro entre os seus no Evangelho de João.11 O autor mostrou que, no Evangelho de João, a condi-ção de estrangeiro referida a Jesus não é primeiramente uma con-sequência da rejeição, mas uma característica que lhe é própria por causa de sua identidade e que se revela providencial para um autêntico encontro com ele. Em síntese: Jesus é estrangeiro por causa de sua origem e só quem não pretende já conhecê-lo pode verdadeiramente encontrá-lo e pode descobrir nele o verdadeiro rosto do Pai. É uma pista de estudo que merece ser aprofundada.12

Se a bibliografia sobre Jesus estrangeiro é ainda pouca, até agora, como sabemos, encontrou, por outro lado, muito mais atenção o tema do encontro de Jesus com os estrangei-ros: neste âmbito, as publicações são bastante numerosas. Destaco aqui somente um aspecto:

Jesus com os estrangeiros

Sabemos que os encontros de Jesus com os estrangei-ros, como os Evangelhos nos testemunham, são poucos.

11 Cf. L. CILIA, gesù straniero tra i suoi nel Vangelo di giovanni. RiCERCHE StORiCO BiBliCHE, (1996), p. 233-250.

12 Cf. A. FUMAGALLI, Gesè straniero. In BATISTELLA, G. (Ed.), Dizionario socio-pastorale sulle migrazioni, no prelo.

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Sabemos que a sua missão é decididamente orientada para o seu povo: essa prioridade, porém, não exclui os outros!

Nesse sentido, o anúncio de Jesus não deixa dúvidas. Pensemos em suas palavras sobre o banquete escatológico (cf. Mt 8,11-12); pensemos em sua apreciação em relação a pessoas do passado, como a viúva de Sarepta e o sírio Naamã (cf. Lc 4,25-27), a rainha do sul e os habitantes de Nínive (cf. Mt 12,41-42; Lc 11,31-32); pensemos em seu encontro com a mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30; Mt 15,21-28) ou com o centurião de Cafarnaum (Lc 7,1-10; Mt 8,5-13); pen-semos na parábola na qual Jesus coloca ao centro nada mais nada menos que um Samaritano (Lc 10,29-37) ou ainda na-quele episódio do único leproso – também samaritano – que retorna para agradecer (Lc 17,11-19).

Os Evangelhos nos testemunham, de modo particular, a coragem e também a simplicidade com as quais Jesus, encon-trando os estrangeiros, rompe com as suas próprias coorde-nadas culturais, supera dentro de si suas resistências iniciais – nem mesmo para Jesus, o encontro com o estrangeiro é algo óbvio, automático – e se deixa envolver.

A memória dessa abertura de Jesus será decisiva para as primeiras comunidades cristãs e para a sua atitude em rela-ção aos não judeus.

6. O testemunho das primeiras comunidades cristãs

Geralmente, somos levados a pensar que o nosso tema seja um tema mais familiar ao Antigo Testamento que ao Novo. Porém, se intensificarmos a nossa busca no Novo Tes-tamento, ficaremos surpreendidos como o tema é tão pre-sente.

Com efeito, para os cristãos de origem judaica, confessar a sua fé em Jesus de Nazaré, o Crucificado ressuscitado, sig-nificava logo serem rejeitados por sua própria gente, tornar-se estrangeiros para o seu próprio povo. O Novo Testamento nos testemunha essa experiência dolorosa, que conheceu os tons fortes da polêmica, do conflito violento e da exclusão recíproca. É a experiência de rejeição da parte de seu próprio povo.

Porém, como para Jesus, também para o discípulo a con-dição de estrangeiro não se esgota na experiência da rejeição, mas toca a sua própria identidade.

Podemos dizer: se aquele que crê, de Abraão em diante, é o homem a caminho, se Deus mesmo se revelou ao longo

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da história da aliança como o Deus que caminha com o seu povo e como o Deus que em Jesus se fez ele mesmo migrante, assumindo a nossa condição – tanto mais os discípulos de Jesus que têm a Páscoa como ponto de partida!

De fato, se nos acontecimentos da Páscoa de Jesus o pro-jeto do Pai se cumpriu, por consequência o discípulo de Jesus é aquele que vive a história – também dentro de uma cidade como São Paulo com os seus fortes contrastes!!! – na certeza que a realização final é já iniciada e que a meta é uma pessoa que caminha com ele!

Por isso, a sua condição na história é aquela de estrangei-ro, ou seja, de alguém que não pode se identificar plenamente com nenhuma situação histórica, com nenhuma época, com nenhuma cultura, com nenhum objetivo alcançado. Essa distância torna-se testemunho a se viver dentro da mesma história, dentro das culturas, dentro das expectativas do ho-mem: o testemunho que é possível viver plenamente dentro da história e enfrentar os seus grandes problemas, guiados pela confiança e certeza que a realização já iniciou e cola-borar a fim de que essa realização já iniciada com a Páscoa possa vencer toda resistência e preencher a história.

Os desafios que as primeiras comunidades cristãs tive-ram que enfrentar não foram menos fortes daqueles que nós, hoje, enfrentamos. Um desafio realmente forte que os pri-meiros discípulos de Jesus, todos de origem judaica, tiveram que enfrentar foi aquele da relação com os outros, os não judeus! Se os primeiros discípulos tivessem respondido a tal desafio com uma atitude de não-abertura, o cristianismo per-maneceria dentro das fronteiras do Judaísmo e teria tomado um caminho bem diferente daquele percorrido de fato.

Não se tratava de ser mais ou menos bons, mais ou menos generosos, mais ou menos progressistas. Ao centro estava uma questão fundamental, o Evangelho a ser anunciado. Je-sus tinha ou não morrido e ressuscitado por todos? Com ele, o Pai havia ou não oferecido a salvação a todos os homens?

O Novo Testamento relata as resistências, o processo fa-digoso e a coragem dos primeiros cristãos diante de tal desa-fio que os conduzia muito além das suas convicções religio-sas e culturais.

A propósito do processo fadigoso desse percurso, é inte-ressante o destaque dado por Augusto Barbi sobre o encontro entre Pedro e Cornélio, narrado em At 10,1 – 11,18:

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A narração de lucas se esforça, sobretudo, em tirar os preconceitos que um judeu poderia ter em relação a um es-trangeiro pagão, apresentando Cornélio como um homem piedoso e de singular religiosidade e moralidade: o primeiro passo para uma acolhida dos pagãos é, portanto, aquele de olhá-los com um olhar livre dos esquemas rígidos e colher o que há de positivo neles. Sucessivamente, um judeu, como Pedro, é ajudado, por meio de uma intervenção divina e da ação do Espírito, a superar as leis de pureza alimentar e o costume de evitar os pagãos impuros para arriscar o encontro pessoal com o estrangeiro Cornélio, no reconheci-mento da igual dignidade humana: o encontro humano é, por isso, o lugar no qual as resistências podem se desfazer definitivamente e onde caem por terra os preconceitos cul-turais e religiosos que distanciam os homens, fazendo espa-ço à compreensão que, segundo Deus, ‘a nenhum homem se deve chamar de profano ou impuro’ (v. 28). livre o olhar e vivido o encontro, é possível anunciar um Deus que não faz preferência por pessoas e em Jesus, ‘Senhor de todos’, oferece a salvação a qualquer um que creia [...].13

A essa altura, faz-se necessário falar do Espírito Santo – e faremos isso nos debruçando sobre o relato de Pentecostes.

7. O evento de Pentecostes (At 2)

A Bíblia nos garante que, nos passos em direção ao outro, o discípulo de Jesus não é deixado sozinho! De modo signifi-cativo, os Atos dos Apóstolos se abrem colocando em relevo a necessidade de uma espera: no decurso de uma refeição com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que aguardassem a promessa do Pai (At 1,4; cf. também Lc 24,49; At 1,8). A espera se cumpre no Pentecostes! No even-to de Pentecostes, de fato, o Espírito Santo se revela como protagonista de uma nova possibilidade de comunicação e de compreensão entre os povos.

Vale a pena olhar mais de perto o relato desse evento em At 2. É sempre muito importante ler e reler os textos, mesmo quan-do os conhecemos bem. Vou me deter só em alguns aspectos.

É interessante notar que o relato se articula em 3 partes:- a descrição do evento e a reação das testemunhas (vv. 1-13);- a interpretação do evento por parte de Pedro e, por conse-

quência, as numerosas adesões entre os presentes (vv. 14-41);- a descrição da nova comunidade (vv. 42-47).

Anna Fumagalli – Bíblia, Migrações e Espiritualidade

13 Cf. A. BARBI, Il migrante/straniero narratore di speranza, SERViziO MigRAnti, (2006), 16(2), p. 116-117; A. BARBI, Cornelio (At 10,1 – 11,18): percorsi per una piena integrazione dei pagani nella chiesa. RiCERCHE StORiCO BiBliCHE, (1996), 8, p. 277-295.

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Em geral, quando se pensa no relato de Pentecostes, só se pensa na primeira parte! É importante, ao invés, ter presente as três partes!

O relato se abre com uma informação cronológica: tendo-se completado o dia de Pentecostes.... No entanto, a presença do verbo completar-se – um verbo importante nos Evangelhos pelo seu significado teológico (cf. por exemplo Lc 9,51) – sugere que estamos diante de algo mais que uma simples informação cronológica.

Não vamos tratar aqui do elo entre o evento narrado e o Pentecostes judaico em seus desenvolvimentos históricos, mas queremos focalizar nossa atenção no fato que a Festa hebraica das Semanas, conhecida com o passar do tempo como aquela do quinquagésimo dia, ou seja, Pentecostes, re-mete imediatamente à Páscoa e a esse único tempo de festa prolongado.

Não estamos, portanto, no final desse dia festivo (isso é confirmado no v. 15, pelas palavras de Pedro: é apenas a terceira hora do dia ou ... são somente nove da manhã!), mas estamos na conclusão da grande festa da Páscoa, no momen-to em que a Páscoa traz seu fruto e a promessa se cumpre (cf. 1,4).

O que acontece? O próprio evento é narrado de manei-ra muito sintética. Essa breve descrição que, apesar de sua brevidade, remete às teofanias bíblicas, faz referência a fe-nômenos auditivos (v. 2: um ruído, como de um vendaval impetuoso) e visuais (v. 3: línguas como de fogo), imagens por meio das quais se tenta expressar uma experiência difícil de expressar.

Mas logo se diz: ... e todos ficaram repletos de Espírito Santo (v. 4). Com essas palavras, é explicitado o significa-do dos fenômenos que estão ocorrendo. Pedro o confirmará, precisando que, agora, é o próprio Jesus ressuscitado, que após ter subido para o Pai, pode derramar o Espírito Santo nos seus (v. 33). Está acontecendo, portanto, algo de único, de novo: são as consequências da Páscoa.

É significativo que o discurso de Pedro começa com uma longa citação do profeta Joel (3,1-5). Os acontecimentos da Páscoa, de fato, dão início aos últimos tempos, a união entre céu e terra é levada ao seu cumprimento. Por isso, agora, o Espírito Santo pode descer com uma plenitude até agora impensável.

O primeiro sinal visível, o primeiro fruto desse novo iní-cio, diz respeito à comunicação: ... e começaram a falar em outras línguas.

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Essa expressão – como já sabemos – leva à discussão. Devemos, talvez, pensar no fenômeno da glossolalia, ou seja, naquele falar em línguas de caráter estático, que resulta aos outros incompreensível?14

O texto, porém, diz claramente que os apóstolos falam em outras línguas (cf. v. 4) e que os presentes os compreen-dem na sua própria língua (cf. vv. 6.8 e 11). Não estamos em condição de reconstruir o que aconteceu, mas certamente é graças ao Espírito Santo (v. 4: conforme o Espírito lhes con-cedia se exprimirem) que os discípulos de Jesus se exprimem – é o mesmo verbo com o qual é introduzido o discurso de Pedro no v. 14! – de tal modo que os presentes compreen-dem: todos nós os ouvimos anunciar em nossas próprias lín-guas as maravilhas de Deus (v. 11)!

Ao descrever as reações dos presentes, o relato destaca dois aspectos: a grande diversidade dos presentes; sua sur-presa e perplexidade. Vou me deter no primeiro aspecto, ain-da que os dois sejam importantes.

No v. 5, encontramos uma primeira indicação de caráter geral: de todas as nações que há debaixo do céu. Mas isso não basta! Mais para frente, o relato se torna mais lento para apresentar, em detalhes, as diversas proveniências dos Judeus piedosos que foram até lá a motivo do barulho. São men-cionados três povos, em um primeiro grupo, que nos leva além do limite oriental do império romano (... Partos, Medos, Elamitas...), depois um segundo grupo de nove regiões (da Mesopotâmia até a Líbia) e ainda um terceiro grupo que se distingue como Romanos residentes. A lista se conclui com ulteriores distinções, uma de caráter étnico-religioso (Judeus e prosélitos) e a outra cultural (Cretenses e Árabes, isto é, habitantes das ilhas e da terra firme). Testemunhas daquilo que está acontecendo, são, então, os representantes de toda a diáspora judaica, os quais remetem, simbolicamente, a seus diversos povos de proveniência. O relato, então, coloca real-mente em destaque a grande diversidade dos presentes!

A possibilidade de comunicar com tantas diversidades se torna um sinal: um sinal para mostrar que, a partir da Pás-coa, as diferenças de língua, etnia, cultura não devem ser mais consideradas um fator discriminante (e nem mesmo um acidente de percurso), mas devem ser valorizadas como algo que nos lembra que o projeto de Deus è um projeto de amor que abraça a todos os homens, nenhum excluído. Sim, porque os acontecimentos da Páscoa têm a ver com todos os homens!

Anna Fumagalli – Bíblia, Migrações e Espiritualidade

14 Cf. At 10,46; 19,6 e as cartas de Paulo, por exemplo, 1Cor 12-14.

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A esta altura, seria importante falar de Babel em sua re-lação com o relato de Pentecostes: uma relação que faz-se necessário repensar! Não podemos fazê-lo aqui, mas desta-camos somente um aspecto, capaz de nos mostrar o caminho rumo àquela profunda unificação entre fé e vida, oração e missão, teologia e prática, diversidade e comunhão, das quais falávamos no começo. Em uma palavra, espiritualidade.

O evento de Pentecostes encontrou homens e mulheres à espera do dom de Deus (cf. Lc 24,49 e At 1,4), uma espera que se tornou oração perseverante e unânime (cf. At 1,14).

Nós temos a tendência de considerar a espera como algo passivo! Pelo contrário: pensemos em uma mulher que arru-ma sua casa porque é necessário arrumar. Pensemos, agora, em uma mulher que arruma sua casa porque alguém muito esperado está para chegar. Faz as mesmas coisas que a outra, toda prestativa, mas: É uma outra coisa!

Então, o evento de Pentecostes encontrou homens e mu-lheres à espera do dom de Deus! E a espera da primeira co-munidade cristã não era, por nada, passiva: prova disso é a prontidão a sair do lugar no qual se encontravam!

É significativo que o relato de Pentecostes termina – de-pois do discurso de Pedro – com a apresentação de alguns traços característicos da nova comunidade, ou seja, a terceira parte do relato (vv. 42-47). O fruto do Pentecostes, então, é um novo estilo de vida – em poucas palavras: vida toda de comunhão, toda em dar e receber. A certeza que o relato de Lucas exprime, ao colocar justamente nesse ponto a descri-ção da nova comunidade, é que esse novo estilo de vida não é o resultado de sua conquista, de suas capacidades, mas um dom que deve ser esperado e recebido de Deus.

Se esse é o segredo do Pentecostes, então, compreende-mos que não se trata de um evento relegado no passado, mas de um evento sempre de novo possível, lá onde os homens reconhecem que há um dom a esperar e receber.

Conclusão

Nos últimos anos, tive a possibilidade de aprofundar os primeiros capítulos do Gênesis, os relatos da criação, e fiquei impressionada de quanto seja central, naquelas primeiras pá-ginas da Bíblia, de um alcance assim tão universal, o tema da diversidade.

Com efeito, percorrendo a Bíblia, através do fio dos temas relacionados à experiência do migrar, podemos perceber que

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não se trata de páginas que se referem somente à situação particular de um grupo de pessoas – os migrantes – ou que interessam somente a quem vive e trabalha em contato com os migrantes, com diferentes culturas, etc. (como se fosse um setor). Pelo contrário, se formos a fundo no estudo dos temas ligados à experiência do migrar, encontramos temas que tocam muito de perto o homem enquanto homem, assim como Deus o pensou desde sempre.

Um exemplo: em Roma uma de nós, missionária secular scalabriniana, médica, em seu trabalho, entre outras ativida-des, acompanha o estágio de estudantes de medicina, italia-nos, em um centro de saúde da Cáritas, para pacientes es-trangeiros. No final do estágio, alguns dos estudantes assim expressaram a experiência que tiveram: Aprendendo a escutar os pacientes estrangeiros, aprendemos a escutar qualquer pa-ciente. Penso que essas palavras expressam bem a experiência que podemos fazer também, se formos a fundo no estudo sobre Bíblia, Migrações e Espiritualidade.

Alfredo J. Gonçalves – Migração e Fé nas Cidades Brasileiras: Desafios Pastorais

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MigraçÃO E FÉ Nas CidadEs BrasilEiras:

dEsaFiOs pastOrais

Alfredo J. Gonçalves

Resumo: Alfredo Gonçalves inicia com uma ampla visão histó-rica da mobilidade humana no Ocidente (século XIX) e com uma atenção especial ao fenômeno no Brasil; milhões de seres humanos deixam suas pátrias em bus-ca de sobrevivência. Analisa também as características dos migrantes de hoje – novas fisionomias – e os dra-mas das transições destas mudanças de lugares. Por fim, retoma ainda os desafios pastorais para a acolhida destas multidões em seus processos de construção de novas ‘moradias’ nas grandes cidades e a superação do desconforto.

Palavras-chaves:Mobilidade Humana; Pastoral das Mi-grações; Pastoral urbana

Abstract:Alfredo Gonçalves set up at beginning of his essay an eyebird vision on history of human mobility in Occident (mainly XIXth century), with an special attention to the phenomenon in Brazil; crowds let their homeland back looking just for surviving. He analyses also the migrant characteristics and the dramatic transition intrinsic to this movement from place to place. Some church pastoral challenges process receive some deep insights in order welcome these crowds in their home building and over-come social distress.

Key words: Human mobility; Migrant Pastoral; Urban pastoral.

O presente ensaio não quer ser nem um texto ou estu-do exaustivo, trata-se de algumas observações, provisórias

*Presidente da ASPES.

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e preliminares, sobre a forma de pensar a teologia e a ação pastoral, simultaneamente, no campo da mobilidade humana e no universo urbano.1 Ver-se-á em seguida como os concei-tos de cidade e de mundo urbano constituem coisas distintas, embora inextricavelmente entrelaçadas. E como a Igreja Ca-tólica – aqui nos limitamos ao campo católico – encontra-se despreparada para responder aos desafios dessa nova cultura ou mentalidade urbana. Suas estruturas canônicas, jurídicas e burocráticas, bem como seu peso histórico e organização semi-feudal, representam, não raro, um entrave ao natural dinamismo da realidade urbana.

1. Um olhar histórico

Para abordar o tema Migração e fé nas cidades brasilei-ras, desafios pastorais, proposto por este Seminário sobre te-ologia, Migração e Missão, convido a olhar o retrovisor da história, particularmente no processo de amadurecimento dos tempos modernos. Proponho concentrar as atenções no século XIX, especialmente a segunda metade, tendo em vista a consolidação da modernidade. Três renomados historiado-res, cada um com sua obra monumental e com um enfoque distinto, trazem luz sobre os antecedentes e o contexto desse período conturbado da história: Fernand Brudel, Eric. J. Ho-bsbawm e Peter Gay.2 Nessa perspectiva, a chamada questão social na Igreja Católica e a preocupação com a Pastoral dos Migrantes nascem no final do século do movimento, cuja me-lhor metáfora é o trem, para utilizar os termos de Peter Gay.

O próprio movimento assume o caráter de grande me-táfora do século XIX. Em várias dimensões, a sociedade se movimenta em marcha acelerada e estonteante. Para come-çar, no decorrer de todo o século, constata-se um movimento inédito de pessoas. O êxodo rural esvazia os campos euro-peus e as cidades se incham de forma caótica. A cidade de Manchester, por exemplo, berço da Revolução Industrial, pula de 70 mil habitantes em 1820 para mais de 700 mil antes de 1900. Em maior ou menor grau, o mesmo ocorre do outro lado do canal da mancha – Munique, Paris, Milão, Berlim, Viena, etc. – e do outro lado do Atlântico – New York, Chicago, Detroit, etc.

No velho continente europeu, boa parte de contingen-te de migrantes internos era absorvido pelas fábricas que se multiplicavam de forma vertiginosa. Outros, porém, a par-tir das cidades ou diretamente do campo, viam-se forçados a cruzar os oceanos em busca de novas oportunidades de

1 Elaboração ulterior de conferência proferida no Seminário sobre teologia e Pastoral urbana, no ISPES/ITESP.

2 Cf. G. BRUDEL, Civilização Material, Economia e Capitalismo, séculos XV-XViii. São Paulo: Martins Fontes, 2005, 3 vols.; P. GAY, A Experiência Burguesa, da rainha Vitória a Freud. São Paulo: Cia das Letras, 2001, 5 vols.; E. HOBSBAWN, A era das revoluções, A era do capital, a Era dos impérios. São Paulo: Paz e Terra, 1979, 3 vols.

Alfredo J. Gonçalves – Migração e Fé nas Cidades Brasileiras: Desafios Pastorais

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vida nos Estados Unidos, Brasil, Argentina, Austrália, Nova Zelândia, entre outras localidades. Ainda de acordo com Pe-ter Gay, entre 1820 e 1920, cerca de 62 milhões de pessoas deixam a Europa em direção às terras novas. Das várias regi-ões da itália, escrevia em 1899 Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza, um número considerável de camponeses e operários emigra a cada ano. Espalha-se pelo mundo em busca de trabalho.

Numa rápida retrospectiva da época, não é difícil esta-belecer uma relação curiosa entre o Fundador Scalabrini, Leão XIII e o historiador citado. Enquanto este se refere ao trem como a metáfora do século em movimento, o pontífi-ce, na abertura da Rerum novarum, de 1891, documento inaugural da Doutrina Social da Igreja (DSI), escreve sobre a sede de inovações e a agitação febril que domina a socie-dade. Se, por uma parte, o Papa estava preocupado com a condição dos operários, subtítulo da encíclica, por outro lado, Scalabrini tinha os olhos fixos naqueles que sequer conseguiam um posto de trabalho em seu país e se viam obrigados a deixar suas terras, seus parentes e emigra para o novo continente.

É conhecida, notória e comovente a sua descrição dos emigrantes amontoados na Estação de Milão, cujos pórticos laterais e a praça adjacente encontram-se invadidos por tre-zentos ou quatrocentos indivíduos E Scalabrini continua:

eram velhos curvados pela idade e pelas fadigas, homens na flor da virilidade, mulheres que levavam após si ou carregavam ao colo suas crianças, meninos e meninas to-dos irmanados por um único pensamento, todos orienta-dos pra uma meta comum.

Às centenas, aguardavam o trem que os levariam ao por-to de Gênova, de onde deveriam tomar o navio para uma aventura por mares e terras bravias. Eram migrantes que de-positam suas esperança no sonho de far l’America. Não é à toa que a cena da Estação de Milão torna-se uma espécie de ícone para a trajetória de toda a Família Scalabriniana.

Além do deslocamento em massa de pessoas, o século XIX é testemunha de um movimento sem precedentes no campo da produção e comercialização de matérias primas e de novos bens de consumo. A era da máquina multiplica por dez, cem, mil vezes o ritmo e a capacidade de produzir mercadorias e conforto. Por outro lado, a revolução nos meios de transporte e nos meios de comunicação – trem, navios modernos, telé-

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grafo, telefone, etc. – praticamente subvertem a noção de tem-po e espaço. O ímpeto inebriante da Revolução Industrial põe em velocidade acelerada pessoas, coisas e capital.

O século XIX representa, ainda, um movimento de pas-sagem do tradicional para o novo. Desde o início dos tem-pos modernos, passando pelo renascimento e pelo ilumi-nismo, os valores tradicionais vão sendo postergados por uma crescente avalanche de inovações. A novidade passa a ganhar o status de valor primordial. De maneira progressi-va, a pirâmide medieval estática, assentada sobre a origem do berço, da linhagem e do sangue, dá lugar a uma socie-dade dinâmica, onde o dinheiro teoricamente democratiza o acesso livre ao conjunto da população. O teocentrismo é substituído pelo antropocentrismo racional, ao passo que a ciência e a tecnologia dissecam e desvendam os misté-rios da natureza, da história e do corpo humano. Surge o mundo secular e desencantado, para usar as palavras de Max Weber.

Também na Igreja Católica – e penso que as demais Igre-jas cristãs passaram por processos semelhantes - verifica-se certo movimento, traduzido pela emergência de uma nova sensibilidade social. Uma série de santos sociais encontra-se na origem de novas congregações religiosas, marcadamen-te voltadas para o apostolado. Se por um lado a Revolução Industrial trouxe avanços significativos nos transportes, nas comunicações, na medicina e no conforto das casas, por ou-tro gerou efeitos nocivos no tecido social. As transformações, para o bem ou para o mal, são sempre causa de ansiedades. O novo interpela, desinstala, joga uma pedra sobre o lago da inércia natural, assinala Peter Gay. A segunda metade do século XIX é pródiga em obras assistenciais que procuram ir ao encontro das necessidades fundamentais de determinados grupos e/ou situações sociais ameaçadas pela avalanche das mudanças.

S. João Bosco volta a atenção para os jovens, um pouco perdidos num mundo sem horizontes precisos e que foge debaixo dos pés; a inspiração de Antoine F. Ozanam, embo-ra nascida décadas antes, desenvolve-se como obra vicen-tina predominantemente nesse período; os padres e irmãs Oblatos de Maria Virgem preocupam-se com a situação das mulheres prostituídas; os órfãos e viúvas interpelam a Congregação das Irmãzinhas da Imaculada Conceição; Dom Scalabrini e Madre Cabrini dirigem seu olhar para os emigrados; a Congregação dos padres Claretianos, voltada para evangelização a partir da educação; a obra Kolping

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procura desenvolver círculos operários cristãos... Tudo isso irá encontrar sua expressão mais universal no final do sécu-lo, com a Carta Encíclica Rerurm novarum, como já vimos. Não estariam aqui os precursores do Concílio Ecumênico Vaticano II? Por outro lado, a onda ou maré vermelha do socialismo ganhava terreno particularmente entre os operá-rios de toda Europa. Convém não esquecer que o Manifesto Comunista tinha vindo à luz em 1848, quase meio século antes da encíclica de Leão XIII e, em 1844, F. Engels havia publicado sua obra sobre a condição dos operários nas ci-dades da Inglaterra, mesmo tema da do documento pontifí-cio que dá início à DSI.

No âmbito da Igreja Católica, duas figuras se sobressa-em na passagem do século XIX para o século XX: o Papa Leão XIII e J.B.Scalabrini. Enquanto o primeiro se volta para precária condição de vida e trabalho dos operários, no inte-rior da Europa, o segundo estende o olhar para aqueles que sequer conseguiram trabalho no velho continente e se arris-cam por mares nunca dantes navegados, como diria o poeta português.3 Por tudo isso, não seria exagero afirmar que a Pastoral Social e a Pastoral dos Migrantes surgem na virada do século como duas irmãs gêmeas.

Com esse voo de pássaro ao século XIX, sacudido em seus alicerces pela Revolução Industrial e suas consequên-cias, bem como às respostas encontradas pela Igreja naquele momento histórico, podemos agora entrar mais diretamente no tema que liga três conceitos hoje indissociáveis e preocu-pantes para a teologia e a pastoral: fenômeno migratório, a fé cristã e os desafios do mundo urbano.

2. Universo urbano e universo ruralO tema da Pastoral Urbana vem ganhando terreno. A per-

gunta clássica é: como traduzir a Boa Nova de Jesus Cristo nas cidades ou metrópoles? Aqui, de início, há um equivoco que é necessário desfazer. Universo urbano e cidade não são sinônimos. O termo universo não é gratuito. Ele configura um conjunto de idéias, valores e comportamentos que con-trapõe ao universo rural. Mais do que conceitos geografica-mente determinados, estamos falando de conceitos culturais. Neste sentido, os limites do mundo urbano não coincidem com os limites da cidade. Como veremos, o universo urba-no se contrapõe ao universo rural enquanto duas visões de mundo distintas, mas, ao mesmo tempo, suas fronteiras não são nítidas e precisas como ocorre, geograficamente, entre cidade e campo.

3 Cf. L. V. de CAMÕES, Os lusíadas.

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Para Manuel Castells,

quando falamos de ‘sociedade urbana’ não se trata nunca da simples constatação de uma forma espacial. A ‘sociedade urbana’, no sentido antropológico do termo, quer dizer um certo sistema de valores, normas e relações sociais possuindo uma especificidade histórica e uma lógica própria de organi-zação e de transformação.4 Já para Ulf Hannerz, nós tendemos a definir a realidade urbana, em primeiro lugar, como um particular sistema de relações sociais e só secundariamente, e em modo derivado, como um conjunto de idéias e valores dos cidadãos. Portanto, só depois de haver desenvolvido suficientemente a descrição da estrutura social que se pode definir a cultura urbana.5

Embora ambos combinem no caso das relações sociais, diferem quanto aos valores.

O próprio Concílio Ecumênico Vaticano II, em sua Cons-tituição Pastoral gaudium et Spes, se manifestou sensível à realidade urbana, não apenas como geografia da cidade, mas como conceito mais amplo:

Difunde-se pouco a pouco uma sociedade de tipo in-dustrial, conduzindo algumas nações à riqueza econô-mica e transformando profundamente as concepções e condições de vida social estabelecidas desde séculos. Cresce paralelamente a civilização urbana, não só pela multiplicação das cidades, mas pela expansão do modo de vida urbano às zonas rurais.6

Quando nos referimos ao mundo urbano, portanto, está em jogo não apenas um campo geográfico determinado e li-mitado, e sim uma nova mentalidade, um novo jeito de ser, uma nova cultura. Se quisermos, uma nova linguagem, a lin-guagem do século XXI. Confrontando urbano e rural, esta-mos pondo de um lado um mundo plural, livre, predominan-temente democrático, em constante mudança, aberto a op-ções variadas; e, de outro, um mundo marcado por um tipo de tradicionalismo fechado, repetitivo, fortemente hierarquizado, se possível imutável. No primeiro caso, é como se as pessoas nascessem revestidas de valores que passam de avô para pai e para filho, como também de destinos pessoais mais ou menos traçados. Um mundo em que as novidades não estão previstas e as pessoas se regem pelo tempo da natureza: sol, lua, esta-ções do ano, plantio e colheita, e assim por diante.

4 Cf. M. CASTELLS, A Questão urbana. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 126.

5 Cf. U. HANNERZ, Esplorare la città. Antropologia della vita urbana. Bologna: Il Mulino, 1992, p. 84.

6 Cf. Concílio Vaticano II, gaudium Et Epes, nº 6

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No segundo caso, ao contrário, é como se as pessoas nas-cessem nuas, tendo que escolher passo a passo seus valores e abrir sua trajetória de vida. Enquanto num caso, o cami-nho de cada um já vem mais ou menos determinado deste o nascimento, no outro o sujeito, em meio a uma imensa gama de atividades, tem que abrir sua picada numa selva de pedra repleta de surpresas. No caso do Brasil, com seu patriarcalis-mo histórico, mas também de muitos outros países, podemos afirmar com o filósofo Hegel que, efetivamente o ar da cida-de torna livre.

3. Fenômeno Migratório Hoje3.1 Números e rostosO Brasil é um país urbano. Nas últimas décadas sofreu

uma acentuada transição de um universo para outro. Evi-dente que o êxodo rural ajuda a intensificar essa transição do universo rural para o universo urbano. Ao redor de 40 milhões de pessoas trocaram o campo pela cidade entre os anos 60 e 70. Daí para cá o êxodo rural desacelerou-se, mas permaneceu intenso. Atualmente, menos de 20% da popula-ção continua residindo no campo, mas grande parte com os olhos voltados para a cidade. As dez maiores cidades brasi-leiras concentram perto de 50 milhões de habitantes. A man-cha urbana da maior metrópole do país e da América do Sul abriga cerca de 25 milhões de pessoas. Enquanto os pólos urbanos do interior dos estados crescem, muitas pequenas cidades vão se transformando em fantasmas, como é caso do norte do Paraná. Segundo dados do último censo do IBGE, na própria região norte do país, tradicionalmente chamada de fronteira agrícola, a urbanização segue acelerada.

Esse fenômeno combinado de urbanização, metropolização e periferização é igualmente marcante em muitos países de todo o Terceiro Mundo – América Latina, Ásia e África. Em grande parte deles, a população da capital contém um terço ou até me-tade de toda a população nacional. Basta citar os exemplos de México, Peru, Argentina, Argélia, Colômbia, Venezuela, Guate-mala, Nigéria, Indonésia, Filipinas, Coréia do Sul, entre tantos outros. China e Índia constituem casos à parte pelo gigantismo e precariedade de suas numerosas metrópoles.

Convém alertar aqui para duas observações citadas na obra de Brigitte Saviano.

Recente reportagem da Folha de São Paulo, de 28 de ju-nho de 2007, sob o título ‘População das cidades supera a rural no planeta’, salienta que ‘o mundo vivencia em

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2007 um marco histórico: pela primeira vez a população urbana se iguala à rural e, a partir de 2008, será cada vez mais predominante’.7 Por outro lado, segundo os cálculos mais novos da Onu, em 2030, pela primeira vez na his-tória, dois terços da população mundial estarão morando em regiões urbanas, enquanto atualmente já dois terços de todas as crianças no mundo inteiro crescem em cidades.8

De acordo com a obra de Olivier Mongin,

existem hoje no mundo 175 cidades com mais de um milhão de habitantes. As 13 mais povoadas dentre elas si-tuam-se na Ásia, África e América latina. Existem 33 me-galópoles anunciadas para o ano de 2015, e somente uma, entre as dez maiores, – tókio – será uma cidade rica.9

Infelizmente, as grandes cidades costumam apresentar um flagrante contraste entre centro e periferia, ou então en-tre ilhas de bem estar e um mar de miséria. Basta colocar lado a lado os condomínios fechados, de alto luxo, e as imen-sas manchas de casebres ou favelas que lhes circundam. Sem contar que muitas vezes, como dizia Dom Paulo Evaristo Arns referindo-se aos cortiços do centro degradado, a maior periferia está no centro.10

Mas a história é antiga. Tem origem na agitação febril11 que acompanhou a Revolução Industrial e o nascimento e consoli-dação do sistema capitalista de produção.

Para os planejadores de cidade, os pobres eram uma ame-aça pública, suas concentrações potencialmente capazes de se desenvolver em distúrbios devem ser impedidas e cortadas por avenidas e bulevares, que levariam os pobres dos bairros po-pulosos a procurarem habitações em lugares menos perigosos.

Assim, registra o historiador Hobsbawm, concluindo que as cidades ainda devoravam suas populações.12

3.2 Uma realidade de muitas facesAtualmente, passado mais de um século da obra e morte de

Scalabrini, o fenômeno migratório só fez aumentar. As migra-ções parecem figurar na história como ondas aparentes e su-perficiais de correntes ocultas e subterrâneas. Constituem uma espécie de termômetro de mudanças profundas, as quais são sempre precedidas ou seguidas de movimentos populacionais significativos. Os abalos sísmicos no campo socioeconômico,

7 Cf. FERNANDES ARAÚJO, S., Apresentação. In SAVIANO, B. Pastoral nas Megacidades: Um desafio para a Igreja da América Latina. São Paulo: Loyola, 2008, p. 14.8 Cf. B. SAVIANO, Pastoral nas Megacidades, op. cit., p. 22;

9 Cf. O. MONGIN, la Condición urbana: La ciudad em la hora de la mundialización. Buenos Aires: Paidós, 2006, contracapa.

10 Palestra em uma assembléia arquidiocesana, em 1988.11 Expressão utilizada pela Encíclica Rerum novarum, de Leão XIII, publicada em 15 de maio 1891. Cf. Leão XIII, Rerum novarum: sobre la condición de los obreros. ACTION CATOLICA ESPAÑOLA, Colección de encíclicas y documetnos pontifícios. Madrid: Junta Técnica Nacional, 1955, p. 353ss.12 Cf. E. HOBSBAWM, A Era do Capital 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 224.

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político ou cultural em geral vêem acompanhados de conside-ráveis deslocamentos geográficos. As migrações são sinais dos tempos, como insiste o papa Bento XVI. Atestam a existência de terremotos reais, mas às vezes imperceptíveis.

Hoje em dia, os deslocamentos humanos de massa torna-ram-se simultaneamente mais intensos, mais diversificados e mais complexos. Mais intensos, na medida em que envolvem maior quantidade de pessoas. Estima-se em mais de 200 mi-lhões o número de imigrantes que residem fora do país em que nasceram. Se a isso acrescentarmos as migrações inter-nas e temporárias, a cifra alcança cifras bem mais expressi-vas. Segundo alguns analistas, porém, o exército de reserva (K. Marx), ou seja, o potencial de trabalhadores dispostos a levantar a tenda e correr atrás de qualquer sinal de trabalho, pode ultrapassar os 500 milhões. Nesse montante, predomi-nam os jovens e cresce a percentagem de mulheres.

Nem precisa dizer que grande parte desse contingente vive em situações extremamente precárias. Como migrantes em potencial ou como migrantes de fato, experimentam no corpo e na alma a condição pobreza ou de clandestinidade; são submetidos os serviços mais degradantes, sujos, pesados e mal remunerados; muitos acabam sendo vítimas do tráfico internacional de seres humanos para fins de exploração tra-balhista ou sexual; sem documentação e com dificuldade de um emprego estável, dificulta-se igualmente o acesso à esco-la, saúde, enfim, aos direitos de uma cidadania digna.

As migrações são também mais diversificadas. Atualmen-te, poucos países do planeta estão fora de seu circuito. Como lugares de origem, trânsito ou destino, todos se vêem envol-vidos nesse imenso vaivém planetário. Novos povos, raças e grupos entram a fazer parte desse cenário nacional, regional e internacional do fenômeno migratório. Países historica-mente marcados pela imigração passam a apresentar fortes contingentes de emigrantes, como Brasil, Argentina, México, entre outros. Destinam-se predominantemente aos Estados Unidos, seguidos da Europa e Japão. Por outro lado, os paí-ses europeus, que no século XIX e início do século XX foram palco de saída, hoje recebem imigrantes hispano-americanos, africanos e asiáticos.

Diversificam-se também os fluxos e as rotas. A direção sul-norte é de longe a mais movimentada, mas, após o declí-nio da União Soviética, cresce o fluxo leste-oeste. Nos países do Terceiro Mundo, aumentam igualmente os deslocamentos regionais no interior da África, da América Latina e da Ásia, bem como o êxodo rural desenfreado e as migrações inter-

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nas. Voos curtos e voos médios, dentro de um mesmo país ou entre países vizinhos, normalmente são etapas preparató-rias para voos mais longos, de continente para continente. As assimetrias e desigualdades sociais, a violência de todo tipo, as guerras e guerrilhas, o tráfico de pessoas, o intercâmbio de técnicos e estudantes, o vaivém para as safras agrícolas, o trabalho doméstico e os serviços em geral, o turismo – são al-guns dos fatores predominantes da mobilidade humana. Sem falar dos que se deslocam por profissão ou cultura, tais como motoristas, marítimos, aeroviários, ciganos, itinerantes, etc.

Nos grandes centros urbanos é comum o encontro diá-rio com os mil rostos do outro. Jamais o mundo e o outro/diferente estiveram tão próximos, como uma gigantesca aldeia global. Novas revoluções na área dos transportes, especialmente a democratização do avião, na tecnologia das comunicações, com destaque para a televisão, e no campo da informática, com a Internet em primeiro lugar, aproximam como nunca povos, culturas e raças. A notícia torna-se cada vez mais simultânea, instantânea. Tudo isso acaba sendo, ao mesmo tempo, causa e efeito de novos fluxos migratórios.

Por fim, as migrações no momento presente apresentam um quadro cada vez mais complexo. Se, em tempos passados, os fluxos migratórios tinham uma origem e um destino mais ou menos determinados, atualmente o panorama da mobilida-de humana apresenta as mais variadas direções. O mapa das idas e vindas se complexificou. À pergunta sobre a origem do imigrante deve acrescentar-se a pergunta sobre sua proveni-ência imediata. Isto porque grande parte das pessoas que se deslocam o faz por uma, duas, três e mais vezes. Arrancada a primeira raiz, facilmente o migrante se torna um peregrino de muitos e repetidos caminhos. Não mora, acampa!

No passado predominavam as migrações de colonização. Os trabalhadores migravam com suas famílias para fixarem-se num novo lugar. Aí tratavam de recomeçar a vida. É verda-de que havia grande quantidade de terra vazia e ociosa para a instalação de grupos de colonos. Os casos dos Estados Uni-dos, Argentina, Austrália e Rio Grande do Sul, Brasil, ilus-tram isso. Nos dias atuais, ao contrário, é comum os migran-tes fazerem experimentos migratórios. De etapa em etapa, vão tentando progredir em seu projeto de vida. Fixam-se por algum tempo, preparando uma espécie de trampolim para outro pulo mais arrojado. Uma vez mais, vivem montando e desmontando a tenda. Exagerando numa caricatura, muitos roçam de endereço quase como se troca de roupa.

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Mas não dá para generalizar. Já nos séculos passados existiam aventureiros que se lançavam a uma migração cons-tante e repetida, da mesma forma que também hoje existem jovens e famílias que procuram um galho firme para cons-truir seu ninho. Ou uma terra sólida onde mergulhar as raí-zes de um sonho duradouro, o alicerce de uma nova vida. A realidade é sempre mais rica e dinâmica que nossos pobres esquemas mentais.

4. Uma transição difícilMas a transição do mundo rural para o mundo urbano

não é somente um fenômeno demográfico. Trata-se, antes, de uma passagem marcadamente cultural. Muitas pessoas sofrem essa transição sem jamais terem ultrapassado as fron-teiras de seu município na zona rural, sem jamais terem saído do campo. Outras, mesmo tendo se transferido para a cidade, seguem convivendo em uma espécie de guetos rurais, onde se vive, se fala e se comporta como se estivesse lá no norte. Na grande cidade, não é difícil encontrar um quarteirão inteiro, uma favela ou um cortiço onde quase todos os moradores são originários de uma única cidade, reproduzindo aí o estilo de vida nordestino.

Na Pastoral da Moradia, atuei pastoralmente num cor-tiço em no centro de São Paulo onde umas 30 famílias do município de Ipirá, sertão da Bahia, o conheciam como a porta de entrada na cidade e como trampolim para galgar outros degraus. Ali viviam pintores, pedreiros, empregadas domésticas, ajudantes gerais, etc.13 Já anteriormente, na zona leste de São Paulo, havia atuado numa favela onde creio que mais de 90% das famílias eram originárias da região de Serra Talhada, sertão de Pernambuco.14 Tanto na favela como no cortiço, os costumes, os namoros, a linguagem e até os ape-lidos dos lugares de origem se reproduziam no destino. Era comum o leva-traz de encomendas e de cartas nas freqüentes viagens ao norte. Eu mesmo, com a permissão de algumas fa-mílias, consegui acumular mais de 200, que posteriormente foram utilizadas num trabalho dede final de curso no Insti-tuto teológico.15

Na mudança do mundo rural para o mundo urbano, no fundo o que ocorre é a passagem de uma visão de mundo para outra. Esta transição não se dá necessariamente nem somente com a migração. Esta pode acelerar o processo que em geral é lento, mas esse processo pode começar bem an-tes das pessoas deixarem o campo. Que o digam, por exem-plo, os jovens dos grotões rurais brasileiros, como o Vale do

13 Chamado Cortiço da Rua do Carmo, ao lado da Igreja na Boa Morte, zona central da cidade.14 Favela do Iguaçu, ao lado da Vila Industrial, na divisa entre São Paulo e Santo André.15 Refiro-me ao trabalho de Paolo PARISE sobre o conteúdo religioso das cartas. Cf. P. PARISE, um rosto de Deus: Cartas de Famílias de Migrantes. São Paulo: Peres, 2000.

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Jequitinhonha, em Minas Gerais, ou o sertão e agreste dos estados do Nordeste. Neles verifica-se um modo de ser, de vestir-se e de comporta-se que se poderia classificar de uma mescla rural-urbana ou urbano-rural, de acordo com o grau de assimilação da linguagem urbana.

Também os migrantes na cidade não raro apresentam essa duplicidade de comportamento. Passar de um universo a outro não é apenas uma questão de mudar de lugar, mas muito mais uma forma de ir adquirindo uma nova maneira de entender a vida e os valores e de se posicionar perante ambos. Convém não esquecer que as luzes e tentações do mundo urbano, por vezes, fascinam e seduzem com maior força aqueles que se encontram no campo, com pouca ou nenhuma possibilidade de mudar, do que os que já se trans-feriram para a cidade.

Tudo isso nos ajuda a concluir que Pastoral Urbana não se confunde com Pastoral de Cidade. Trata-se, antes, de res-ponder pastoralmente, e socialmente, a essa difícil transição de um universo a outro. A passagem costuma ser dolorosa e abrir profundas feridas. Há os golpes provocados pela migra-ção do campo para a cidade, por um lado, mas há também os golpes causados por mudanças nos usos e costumes que essa transferência significa. De resto, muitas vezes são tais usos e costumes que com freqüência migram em sentido inverso, isto é, da cidade para o campo, via o vaivém dos migrantes, via os programas de televisão e até via Internet. A menta-lidade, cultura ou linguagem urbana se expande pela zona rural juntamente com as inovações tecnológicas das comuni-cações, dos transportes e da informática.

Na mudança há valores e contravalores. Para as mulhe-res, por exemplo, muitas vezes essa transição as liberta do controle masculino tão característico do mundo rural, seja por parte do pai, do irmão mais velho quando morre aquele, ou do marido quando se casa. Mas há também o risco, na zona urbana, de submeter-se a outros tipos de escravidão, seja de ordem trabalhista, seja de exploração sexual. Há ca-sos em que os rapazes do interior se recusam a casar com moças que já passaram algum tempo na cidade, em geral como empregas domésticas ou dos serviços em geral. Alegam que elas não são mais virgens. No fundo, o que eles temem é a visão de maior liberdade e autonomia feminina, numa união matrimonial mais igualitária.16

No caso dos homens, muitos que já tiveram experiên-cia de trabalho na cidade, normalmente são rejeitados como empregados nos projetos do agronegócio ou simplesmente

16 Devo esta observação a Vanderluce Pessoa e ao Pe. José Roberto, os quais por algum tempo, em São Paulo, acompanharam um grupo de empregas domésticas do Vale do Jequitinhonha.

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por outros pequenos e médios agricultores. São considera-dos perigosos por sua liderança. A experiência sindical e/ou dos movimentos sociais na zona urbana os ajudou a abrir os olhos para seus direitos. Como se pode ver, a transição rural-urbana comporta ambigüidade que devem ser estudadas caso a caso. no fundo, a grande cidade se revela como a arena típica onde se exprimem as contradições e as possibilidades da liberdade que o indivíduo obteve no mundo moderno!17

5. Novo mundo, novas práticas

5.1 Ambiguidade do universo urbanoSe entrarmos no mundo religioso, as ambigüidades são

ainda mais marcantes. Enquanto no universo rural, especial-mente brasileiro, a Igreja Católica constitui uma espécie de supermercado onde a pessoa encontra tudo o que necessita em termos do sagrado, no universo urbano, multiplicam-se os botecos de todos os gêneros e gostos. A marca do pluralis-mo religioso e cultural é uma das características mais signi-ficativas desse universo. Tanto a mosaico das expressões cul-turais quanto o mosaico da fé se torna infinitivamente mais variado. Com isso, a fé tende a deixar de ser uma tradição familiar para converter-se em uma escolha pessoal. Religião deixa de ser herança e passa a ser um assunto eminentemente individual. Não é sem razão que em um número crescente de famílias podemos encontrar mais de uma opção religiosa. As tensões e hostilidades nesse campo, como também o maior ou menor grau de proselitismo, são bem conhecidas.

Por outro lado, se no universo rural podemos classificar o cristão-católico de fiel, por uma participação, tradicional, inquestionável e prolongada, no mundo urbano, o que temos é muito mais um consumidor, que facilmente transita de uma religião a outra, sem qualquer tipo de escrúpulo. Isso leva não poucos a criar sua própria religião, uma espécie de col-cha de retalhos, costurada bem ou mal com valores de uma e outra. É o que alguns estudiosos chamam de religião de bricolagem ou religião do self-service, onde com um ingre-diente das várias opções religiosas, cada um faz o seu próprio cardápio religioso. Também há os que passam a interiorizar os valores religiosos, mesclando-os com outras atrações do mundo urbano, e criando uma espécie de fé sem religião. Acredito em Deus, mas não quero saber de religião, numa ati-tude que simplesmente dispensa a intermediação institucio-nal. Amplia-se, com isso, o fenômeno da religião privatizada: um conjunto de princípios que vale como uma espécie de

17 Cf. U. HANNERZ, Esplorare la città, op. cit. p. 40.

18 As observações contidas neste parágrafo devem muito aos debates promovidos pelo CERIS (Centro de Estatísticas Religiosas e Sociais) e pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Cf. A. ANTONIAZZI – CALIMAN, C, A presença da igreja na cidade. Petrópolis: Vozes, 1994.

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referencial interior, mas sem conseqüências para o posicio-namento sócio-político ou eclesial.18

Há também forte ambigüidade na autenticidade das ex-pressões religiosas. No universo rural, as pessoas tendem a seguir as tradições dos antepassados, mantêm laços primá-rios e duradouros, respeitando uma espécie de conveniên-cia social. Transgredir a tradição é expor-se à crítica social e a um severo controle da vizinhança. Visitar o padrinho por ocasião do Natal e receber dele um presente, por exemplo, é uma instituição intocável, entre tantas outras. Já no univer-so urbano, as relações tendem a costurar laços mais livres, autênticos e verdadeiros. As pessoas costumam visitar-se e desenvolver novas formas de amizade. Se é verdade que a solidariedade parece mais coesa no campo e frágil na cidade, também é verdade que por trás dessa avaliação podem escon-der-se conveniências tradicionais de dependência pessoal, às vezes inquestionáveis, ou hipocrisias tácitas e inconfessadas.

No campo das práticas sócio-pastorais, convém alertar para o risco do saudosismo, segundo o qual o mundo rural seria uma espécie de paraíso perdido, ao passo que o mundo urbano re-presentaria o lugar do pecado, da perdição e da violência. Não é difícil justificar na Bíblia, especialmente no Antigo Testamen-to, como veremos adiante, como a cidade muitas vezes aparece como a morada do pecado. Na verdade, ambos os universos desenvolvem práticas solidárias. A diferença é que, enquanto no mundo rural elas passam em geral pelas instituições religiosas e tradicionais, no mundo urbano elas tendem a ser mais livres, autônomas, plurais e também mais autênticas.

Uma das características mais evidentes da passagem do mundo rural ao mundo urbano se traduz por uma dessacra-lização da vida material. De fato, no universo rural a mate-rialidade da vida encontra-se como que encoberta por um véu: Deus providencia a água, as frutas, as plantas, o leite, os legumes, uma galinha, um porquinho... Embora a família seja em geral numerosa, os filhos se criam de forma apa-rentemente mágica, como os bichinhos. Sempre há manga, caju, coalhada, mandioca, queijo, etc. Um véu sagrado cobre a premência das necessidades básicas.

No mundo urbano, esse véu se rasga. Tudo tem custa dinheiro. As coisas não mais se encontram na natureza ou no campo. Chegam da feira, da padaria, do açougue, do merca-do... e têm preço. Deus não mais provê as necessidades ma-teriais da vida. E preciso ter emprego fixo e um salário para dar conta da sobrevivência. Isso mexe com o poder dentro da família. O pai/avô, que no mundo rural é o patriarca inques-

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tionável do clã familiar, pode perder o posto para o filho (ou a filha) mais velho. Ou para aquele que ganha mais. Os valo-res da hierarquia tradicional são substituídos pela maior ou menor capacidade de trazer dinheiro para casa. O dinheiro é a fonte do poder, o que não raro desloca os anciãos para o escanteio e causa traumas profundos em suas vidas.

Mas não é só. Na medida em que a materialidade da vida se escancara, fica exposta a natureza dos ganhos e perdas. Se, por um lado, tudo isso estava encoberto por um véu sa-grado no universo rural, por outro, uma concepção equivo-cada do Deus providência mantinha a fé tradicional do ca-tolicismo popular brasileiro. Semelhante caricatura do Deus providência desmorona com a nudez da vida material. Deus não dá nada, nada provê, abandona o homem à própria sorte. Temos de garantir tudo através do dinheiro.

O pseudo Deus providência – que nada tem a ver com a espiritualidade e a teologia da providência divina – morre e deixa um tremendo vazio. Em seu lugar surge o Deus des-conhecido e silencioso de uma fé madura. O problema é que a imensa maioria dos migrantes, ou das pessoas que fazem a transição do mundo rural para o mundo urbano, não tem condições de superar essa caricatura do Deus providência pelo Deus verdadeiro, que é sempre oculto e desconhecido. Daí o desespero! Daí a procura ansiosa de um novo Deus providência que possa garantir respostas imediatas para os problemas imediatos. Onde está Ele? Muitas vezes no pente-costalismo, católico ou não, nos movimentos espiritualizan-tes, numa fé intimista e interiorizada, e assim por diante.

Aqui está um passo difícil. Em desespero, as pessoas se agarram à primeira tábua de salvação que aparece. É difí-cil verificar que Deus é fiel não porque nos tira do fundo do poço, mas porque nos deixa aí para que possamos reunir forças e relações amigáveis para a libertação; Deus é fiel não porque coloca tapete à nossa frente para que não nos machu-quemos, mas porque nos deixa caminhar livremente; Deus é fiel porque respeita até as últimas consequências o dom da liberdade humana. Daí o silêncio de Deus. Como diz o teólo-go Bruno Forte, o silêncio de Deus é a condição da liberdade humana. Mas isso exige uma fé adulta e robusta, para a qual nem todos estão preparados, e muito menos os migrantes recém-chegados do mundo rural.19

5.2 Novos laços, novas redesO mais importante é dar-se conta que a metrópole, por

mais fragmentária que seja, também cria, rompe e recria la-

19 Cf. B. FORTE, teologia della Storia. Saggio sulla rivelazione, l’inizio e il compimento. Milano: Paoline, 1991.

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ços de amizade, de vizinhança e de solidariedade. Multidão, solidão e aproximação convivem lado a lado. Se, no mundo rural, determinadas práticas solidárias fazem parte de um imaginário já bastante consolidado, no mundo urbano elas devem ser costuradas – feitas, desfeitas e refeitas – a partir do zero, ou no máximo a partir de relações de parentesco que ainda sobrevivem ao golpe da transição. Pouco a pouco, a fé cresce não no sentido de uma visibilidade de um deus milagreiro, disposto a resolver problemas individuais, mas na manifestação do Deus verdadeiro através das ações humanas na história. Deus se revela na ação humana de Jesus de Naza-ré e se revela nos gestos e práticas solidárias de cada pessoa.

O mundo urbano, em sua ambiguidade, pode levar à per-da total das referências religiosas, mas pode também superar uma fé ingênua e às vezes infantilizada no mundo rural. No processo dessa superação, sempre lento, difícil e laborioso, damo-nos conta de que a oração não modifica nossos pro-blemas, e sim nossa maneira de encará-los. Ou então, Deus não desata magicamente os nós e contradições de nossa vida, mas a nova fé confere igualmente uma nova visão sobre as dúvidas e interrogações humanas. Longe de ser o lugar do pecado e da perdição, a cidade abre perspectivas novas para o amadurecimento da fé.

Um olhar ao Novo Testamento – Atos dos Apóstolos, Apocalipse e cartas de Paulo, por exemplo – bastará para darmo-nos conta de como a cidade é reabilitada. O próprio Jesus chora sobre Jerusalém, vendo dispersos os seus filhos e prevendo sua destruição. No capítulo 21 do Apocalipse, Deus faz da cidade a sua tenda, ou seja, Deus assume e re-veste de divindade a obra humana por excelência. O conjunto das cartas de Paulo, por sua vez, revela um apóstolo eminen-temente urbano. Suas viagens seguem as rotas do comércio e das cidades portuárias da época: Tarso, Antioquia, Coríntio, Tessalônica, Galácia, Éfeso, Atenas, Filipos, Roma, etc.

Mais do que um teólogo, o que também o é em profun-didade, Paulo se revela um homem preocupado em costurar relações novas no universo das cidades antigas. Nelas cria também núcleos de convivência a partir da instituição casa/família (oikos), na verdade os embriões das futuras comu-nidades. Com elas mantém intensa correspondência, no sentido de renovar as práticas solidárias ditadas pela ética evangélica. Em suas cartas é impressionante o número de pessoas que são citadas pelo nome, a quem ele envia sauda-ções; ou então o número de famílias a quem ele agradece a hospedagem, a acolhida. Vale a pena ler as cartas de Paulo

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surpreendendo-o não tanto como grande teólogo, mas como um amigo fraterno, com os olhos rasos de água, relembrando as pessoas a quem ama, falando de saudades, de encontros e reencontros. Suas viagens e suas mensagens fazem parte de uma nova prática solidária num mundo plural, aberto ao comércio, urbano e de variados interesses.20

Vale o mesmo para a Primeira Carta de Pedro. Também neste caso o apóstolo, escrevendo aos estrangeiros da disper-são do Ponto, da galácia e da Capadócia, insiste em que a união entre eles deverá ser a Casa de Deus. Hostilizados e perseguidos por serem ao mesmo tempo estrangeiros e cris-tãos, Pedro os exorta a se manterem firmes na comunidade, fazendo desta a sua casa/famíla (oikos).21

Estudando as origens sociais do cristianismo primitivo, Ekkehard W. Stegemam e Wolfgang Stegemam chamam a atenção para a importância da instituição casa/família no nascimento e consolidação das comunidades cristãs. Seus comentários referem-se ao contexto social dos Atos dos Após-tolos e das cartas paulinas, mas, guardadas as diferenças, podem estender-se para o universo das cartas de Pedro.22

Dizem literalmente os autores citados:

às metáforas da casa e da família correspondem também as exortações éticas do amor ao próximo e do amor fra-terno. Estas inspiram-se, a seu modo, em antigas normas de reciprocidade, em que o amor fraterno representa um comportamento solidário no seio da família nuclear ou da parentela, e o amor ao próximo a reciprocidade equilibra-da entre vizinhos e amigos... também a hospitalidade é uma forma de solidariedade no contexto da reciprocidade equilibrada.

E mais:

os que acreditavam em Cristo, comprometidos com a mis-são, encontravam nas casas dos companheiros de fé hos-pitalidade e, em caso necessário, também apoio econômi-co. As relações sociais entre os mesmos inspiravam-se na antiga solidariedade de vizinhança e de família. Assim, podemos afirmar com tranqüilidade que as comunidades cristãs, para a concepção que tinham de si mesmas e de suas relações sociais, inspiravam-se no modelo da casa antiga ou no núcleo familiar.23

20 Cf. W. A., MEEKS, Os primeiros cristãos urbanos. São Paulo: Paulus, 1992.

21 Cf. J. ELIOT, um lar para quem não tem casa. Interpretação sociológica da Primeira Carta de Pedro. São Paulo: Paulus, 1985; P. A. de NOGUEIRA, As Cartas de Pedro. O Evangelho dos sem-teto. São Paulo: Paulus, 2002. 22 Cf. A. J. GONÇALVES, Casa, família e pátria no contexto da mobilidade humana. REMHu, (2008), 20, p. 203-224.

23 E. W. STEGEMAM – STEGEMAN, W., Historia social del cristianismo primitiva. Los inicios en el judaísmo y las comunidades cristianas en el mundo mediterráneo. Stella: Verbo Divino, 2001.

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Convém, ainda, retornar às palavras do Papa Paulo VI, no começo da década de 1970:

Construir a cidade, lugar de existência dos homens e das suas comunidades ampliadas, criar novos modos de vizi-nhança e de relações, descortinar uma aplicação original da justiça social, assumir, enfim, o encargo deste futuro coletivo que se prenuncia difícil é uma tarefa em que os cristãos devem participar. A esses homens amontoados numa promiscuidade urbana que se torna intolerável é necessário levar uma mensagem de esperança, mediante uma fraternidade vivida e uma justiça concreta.24

Ou lembrar a oração de Santo Domingo, citada por Li-bânio:

Ajuda-nos a trabalhar por uma evangelização incultu-rada que penetre os ambientes de nossas cidades.25

6. O vínculo com a instituição.Outra característica que diferencia o universo rural e o

universo urbano é o tipo de vínculo que se estabelece com a instituição religiosa católica. No primeiro caso, o fiel, como o conceito indica, mantém uma participação mais ou menos as-sídua, permanente. Preocupa-se com a caminhada da sua ca-pela, comunidade, paróquia ou diocese. Tende a marcar pre-sença regular nas festas da Igreja e acompanha o calendário religioso católico. No mundo urbano, tudo isso vai mudando de uma geração a outra. A primeira geração de migrantes ain-da se preocupa em formar a comunidade, construir o templo, preparar a quermesse, constituir as CEB’s e os grupos tradi-cionais de oração e de trabalho, como participar do Apostola-do da Oração, dos Vicentinos, e assim por diante. Basta retro-ceder aos anos 60 e 70 na periferia de São Paulo, por exemplo.

Já a segunda geração, embora ainda ligada à comunidade local, começa a criar vôos mais largos, pouco a pouco vai se desvinculando de compromissos regulares com a própria comunidade ou paróquia, passa a estabelecer laços mais am-plos e menos vinculantes. Nascem, por exemplo, os grupos de música mistos, festivais inter-comunitários, os contatos entre grupos de jovens que extrapolam os limites geográficos da paróquia. Esta começa a revelar-se estreita para a visão aberta da mentalidade urbana. Além do mais, as luzes da ci-dade oferecem espetáculos muitos mais atraentes e fascinan-tes, mesmo de um ponto de vista religioso.

24 Paulo VI, Ocotgesima Adveniens, nº 12.25 Conclusões de Santo Domingo, nº 53, In:LIBANIO, João Batista. As lógicas da cidade – o impacto sobre a fé e o sob o impacto da fé, São Paulo: Loyola, 2001, pág. 140.

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Quanto à terceira geração, entra de cheio nos chamados movimentos religiosos, quando não pula para as várias opções pentecostais, inclusive as de natureza católica. O sopro do es-pírito cria as mais diferentes formas de viver a própria fé. Com a facilidade dos meios de comunicação e de transporte, estabe-lecem-se grupos comunitários por afinidade ou por interesse, seja este interesse de ordem material, emocional, religioso, psí-quico, de amizade ou de qualquer outra natureza. O dinamis-mo de uma fé viva e revigorada e os encontros e reencontros desvinculados do calendário litúrgico desconhecem completa-mente as circunscrições geográficas da paróquia ou diocese. É como se um vinho novo rompesse com o estreitismo jurídico e canônico de uma Igreja cujas estruturas se relevam obsoletas e anacrônica para a agilidade e a fluidez do mundo urbano. Citando novamente Olivier Mongin, aqui os fluxos rompem definitivamente com os lugares.26 Criam-se uma espécie de comunidades eventuais, momentâneas, efêmeras, e virtuais, sem maiores compromissos reais de continuidade. O carro, o telefone e a Internet – como meios de rápida comunicação à distância – a facilitam essa nova forma de vivenciar a fé.

A vinculação à Igreja passa muito menos por uma fide-lidade de pertença à comunidade, paróquia ou diocese, do que pela procura de interesses e motivações particulares. Utilizando uma linguagem comercial, as pessoas buscam produtos bem precisos e para fins imediatos e instantâneos. Talvez esse seja um dos motivos, entre tantos outros, para a chamada crise das CEB’s, tão vivas nos anos 70, pois as mesmas continuam fortemente vinculadas a um território, uma paróquia. Já as Pastorais Sociais e Movimentos Religio-sos, proliferaram nos anos 80, uma vez que se desenvolvem e operam à margem ou acima das circunscrições eclesiásticas.

Aliás, numa metrópole como São Paulo (e nas demais capitais brasileiras) há pessoas que residem numa diocese, trabalham numa segunda diocese e, nos fins-de-semana, visitam os parentes e amigos numa terceira diocese. Essas pessoas, se católicas, terão dificuldades quanto ao acesso aos sacramentos, devido às exigências de ordem, burocrá-tica, canônica e jurídica. Entre os tantos obstáculos do dia-a-dia, poderão encontrar na Igreja mais uma porta fechada. De resto, nesta imensa mancha urbana, quem conhece os limites de sua paróquia ou diocese? Daí a necessidade de uma adaptação das estruturas eclesiais à dinâmica e fluidez do universo urbano!

O ritmo da vida urbana e sua linguagem exigem outros ti-pos urgentes de adaptação. A metrópole é um organismo vivo

26 Cf. O. MONGIN, la Condición urbana, op. cit.

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e vibrante. Luzes e sons, cores e imagens jamais a deixam dormir. Determinadas Igrejas Pentecostais já descobriram isso e mantêm alguns tempos abertos dia e noite. Além disso, é sabido que, de um ponto de vista da acolhida, estão muito mais abertas ao grito que as pessoas trazem preso na gargan-ta. Como acolher esse grito na Igreja Católica sem encher a pessoa de perguntas!

Quanto à linguagem, nossas atividades e mensagens insistem em privilegiar a mensagem verbalizada, quando o mundo urbano se comunica com imagens, códigos e sím-bolos. O teatro, a dança, a poesia têm pouca aceitação na liturgia e na pastoral. Neste campo da linguagem, não basta passar o microfone ao povo. Mesmo que o microfone não seja monopólio dos agentes e lideranças, isso chega a criar situações altamente constrangedoras. O importante aqui é abrir espaço para outros de tipos de comunicação popular, às vezes mais ricos coreograficamente que nossos sonolentos sermões ou avisos ao final da missa.

ConclusãoAo final dessas considerações, absolutamente provisórias

e carentes de melhor averiguação, cabem algumas perguntas de ordem teológica. A primeira pode ser o desafio, cada vez mais premente, de olhar para o meio urbano como um lugar eminentemente teológico. Deus mora nesta cidade (Sl 47,9), mas principalmente, o rosto e a voz de Deus se fazem presen-te neste universo cultural que se complexifica a cada dia. O poema de Isaías (Is 65, 17ss) e o capítulo 21 do Apocalipse poderiam orientar essa descoberta de que esta é a tenda de Deus com os homens, Ele vai morar com eles (Ap 21,3). Se é verdade que a cidade é a maior de entre as obras humanas, Deus assume e santifica a história universal vindo morar nela.

Outra pergunta: como sentir a voz de Deus num univer-so marcado por um espetáculo de luzes, sons e imagens, tão movimentado e ruidoso? A experiência de Jesus aqui pode ser nosso farol: foi descendo aos infernos do sofrimento humano e chorando sobre Jerusalém, quem sabe tocado pela miséria de seus sórdidos porões, que Jesus descobre a imensa misericór-dia do Pai. O mundo urbano acumula luzes e sombras. Estas sombras, feitas de dores e violência, receberam do olhar de Jesus um brilho que pode transformá-las de forma definitiva.

Também não seria ocioso confrontar a concepção de ci-dade no Antigo Testamento e no Novo Testamento. Na anti-ga aliança, apesar dos poemas à Nova Jerusalém e Sião, nos deparamos no capítulo 11 ou 18 do Livro do Gênesis, res-

27 Cf. W. A. MEEKS, Os primeiros cristãos urbanos, op. cit.

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pectivamente, com a divisão no caso de Babel e a devassidão no caso de Sodoma e Gomorra. Ou ainda a Nínive idolatra e pagã do Livro de Jonas. Tudo isso contrasta com a cidade amada e chorada por Jesus, glorificada no Livro do Apoca-lipse e laboriosamente visitada e evangelizada pelas viagens do apóstolo Paulo.27

Por fim, como vimos, o universo urbano é fortemente marcado pelo pluralismo cultural e religioso. Em meio a uma profusão de deuses, expressões religiosas e buscas sinceras, como descobrir o rosto do Deus Verdadeiro? Talvez nos pos-sa ajudar, uma vez mais, a figura do apóstolo Paulo, no epi-sódio do Areópago, na cidade de Atenas (At 17,16-34). Ali Paulo, ao mesmo tempo em que reconhece os deuses gregos, proclama sua fé no Deus Desconhecido. Vemos aí, simulta-neamente, o respeito à cultura alheia, e a firmeza na própria crença. Abertura dialógica e confissão de fé em Jesus Cristo constituem duas faces da mesma moeda. Quanto mais o cris-tão aprofunda o conhecimento de suas origens, mais poderá abrir-se ao outro.

O Papa João Paulo II referia-se aos tempos modernos ou pós-modernos, marcadamente urbanos, como de um imenso areópago. Nele o Deus verdadeiro é sempre desconhecido, ao mesmo tempo revela e esconde sua face. Deuses demasia-damente conhecidos são deuses manipuláveis, feitos à nos-sa imagem e semelhança. Como identificar os traços de um Deus que acompanha seu povo na história, mas, ao mesmo tempo, preserva até as últimas conseqüências a liberdade de cada pessoa e de cada grupo humano?

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a MigraçÃO NOs dOCuMENtOs da igrEja Na aMÉriCa latiNa

E NO CariBE:uma abordagem teológico-pastoral

Paolo Parise*

Resumo:Paolo Parise percorre os documentos das Conferências episcopais da América Latina tendo em mente a temáti-ca da mobilidade humana e sua influência nas propostas pastorais da Igreja. Ao mesmo tempo, o autor realça a história das dimensões metodológicas – ver, julgar e agir – presentes nos documentos e como as mesmas possi-bilitam uma proposta pastoral mais adequada. Por fim, Parise apresenta, tendo como pano de fundo dimensões teológicas como a cristologia, eclesiologia e a missão, as linhas gerais dos desafios pastorais do fenômeno humano dos deslocamentos das massas humanas.

Palavras-Chaves: Pastoral da mobilidade humana; Igreja e Migração: documentos; América Latina: pastoral das migrações

Abstract:Paolo Parise goes through the Latin American Episcopal Conferences final documents having in mind the human mobility issue and its influence on the Church’s pastoral proposals. Alongside he draws up an history of method-ological dimensions – see, judge and act – in the Docu-ments and how this open up a more useful pastoral is-sues. Parise presents also with a theological background – Ecclesiology, Christology and mission theology – the main trends and challenges on pastoral theology of this human phenomenon.

Key words: Human mobility pastoral issues; Church and migrantion: documents; Latin America migration pasto-ral issues.

* Professor no Itesp

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Considerações iniciais

O título de um artigo define o assunto a ser tratado, mas, ao mesmo tempo, não consegue abranger tudo. Se, por um lado, aponta para a temática fundamental, por outro, abre muitas outras possibilidades. Por isso, a importância de si-tuá-lo em suas linhas gerais. Será o que farei no caso especí-fico deste artigo. Por esta razão, começo oferecendo alguns esclarecimentos para colocar o leitor nas coordenadas desta reflexão.

Em primeiro lugar, é necessário explicitar o que se en-tende por documentos da Igreja na América Latina e Caribe. Neste estudo me limito a aprofundar os documentos finais das cinco Conferências gerais do episcopado da América Latina e Caribe: Rio de Janeiro (1955), Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).1 Após ter delimitado a tipologia do material examinado, sina-lizo o que não tomei em consideração. Restringi o estudo aos documentos finais, deixando de lado os que fizeram parte do processo de preparação às Conferências (Documentos de Par-ticipación, de Consulta, de trabajo, de Síntesis), bem como as várias redações que foram se sucedendo em assembléia até a elaboração e aprovação final do texto e sua posterior publicação. Esta opção não elimina a consciência da impor-tância desse material. De fato, cada Conferência não pode ser entendida simplesmente a partir do documento final, mas na globalidade do evento, que inclui a etapa de preparação, a da elaboração do texto, bem como da sua recepção. Acon-tecimentos eclesiais deste porte implicam sempre um duplo circuito: da preparação até a celebração, culminando no do-cumento final, e da celebração até a recepção.

Sempre relacionado ao material em estudo, acrescento que o fato de priorizar o interesse nos documentos finais, implica em não poder dar a devida atenção aos atores e fato-res que contribuíram para a produção dos textos de caráter migratório. Impossibilita, também, não poder aprofundar o contexto social, econômico, político, cultural e religioso das Conferências. Tomo isso como pressuposto, da mesma for-ma que o faço em relação à estrutura dos documentos finais, à metodologia utilizada e aos assuntos apresentados.

Em segundo lugar, destaco a atenção dada, pelos docu-mentos, à temática migratória. Para tanto, foi necessário ex-trair dos textos conclusivos as referências migratórias, respei-tando o contexto e a natureza do material. Em alguns casos estavam explícitas, em outros, implícitas. Além disso, devo

1 Na bibliografia ao longo deste artigo aparecem as edições utilizadas dos documentos das cinco Conferências, enquanto no texto simplifico utilizando simplesmente o nome da cidade onde foram realizadas.

Paolo Parise – A migração nos documentos da Igreja na América Latina e no Caribe:

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esclarecer que o presente estudo vem somar-se a outros, já realizados a partir do mesmo material e também na perspec-tiva migratória.2 Entretanto, tem sua originalidade no fato de lidar com os cinco documentos simultaneamente, através de uma análise detalhada das referências migratórias.3

Outra observação merece registro aqui: a de que, neste ensaio, decidi manter o título original da Conferência realiza-da em São Paulo, no dia 22 de setembro de 2010, por ocasião do II Seminário latinoamericano sobre Teologia, Migração e Missão.4 Esclareço, porém, que o termo mais adequado teria sido mobilidade humana ao invés de migração. Mantive o tí-tulo, pois foi nesses termos que me foi solicitada a contribui-ção, todavia, insisto que o artigo lida com elementos de um universo bem mais amplo – o da mobilidade humana –, tal como aparece nos documentos da Igreja na América Latina e Caribe. Em muitos casos, neste estudo, o termo migração torna-se sinônimo de mobilidade humana.

Em terceiro lugar, devo dizer que a abordagem do ma-terial migratório presente nesses documentos será realizada numa perspectiva teológico-pastoral. Sinalizo isso pois exis-tem muitas outras possibilidades de aproximação. Entre elas, lembro: a bíblica, a canônica, a histórica, a ética, entre ou-tras. Como aparece explicitado no próprio título, através das palavras teológico-pastoral, esta abordagem não pretende ser nem puramente teológica, nem puramente pastoral, mas a tentativa de realizar uma convergência entre ambas.

1.Esboço da história da teologia das migrações

Antes de concentrar a atenção na abordagem específica da análise aqui proposta, é útil ampliar a visão e perceber como, nas últimas décadas, a teologia foi incluindo sempre mais a migração dentro de suas reflexões. Por isso, retomo a recente contribuição de Gioacchino Campese sobre esta ten-dência teológica. Parafraseando as palavras do autor, pode-mos afirmar que a reflexão teológica a respeito das migrações não é mais estrangeira dentro do mundo teológico.5 Gioac-chino Campese nos faz observar que foi a teologia bíblica que por primeiro despertou este interesse, enquanto a teologia sistemática o fez posteriormente.

Alguns fatores contribuíram para que a migração fosse galgando seu espaço no interior do campo teológico. Dentre eles podem ser apontados o fator social, o teológico, o pasto-ral, o existencial e o metodológico.6 Do ponto de vista social, a migração que acompanhou a história da humanidade, hoje

2 Cf. S. TOMMASI, La experiencia de la migración en Puebla. In AUZA, N. T. (Ed.), El éxodo de los pueblos. Manual de Teología y Pastoral de la Movilidad Humana. Santafé de Bogotá: CELAM, 1994, p. 351-363.3 Cf. A. J. GONÇALVES, Mobilidade humana na doutrina social da igreja. São Paulo: Loyola, 2000, especialmente capítulo 7.4 O II Seminário Latinoamericano sobre Teologia, Migração e Missão foi realizado do dia 20 a 24 de setembro de 2010.5 Cf. G. CAMPESE, Non sei più straniera, né ospite. La teologia delle migrazioni nel XXI secolo. Studi Emigrazione 178 (2010), p. 317-345.6 O artigo que estamos sintetizando explicita e aprofunda os primeiros três fatores. Os últimos dois, ou seja o existencial e o metodológico, são assim formulados por mim. Apesar de não aparecer nesses termos no artigo de Gioacchino Campese, o texto aponta implicitamente a estes dois elementos.

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alcançou proporções tão amplas que nossa época foi definida a era das migrações. Foi esta realidade social que provocou a teologia para incluir em sua agenda este fato social. Do ponto de vista teológico, a redescoberta do valor da história, dos loci teologici e a nova compreensão de teologia em termos de práxis, destacando seu papel transformador, levaram a teo-logia a privilegiar a realidade migratória. Do ponto de vista pastoral, os cristãos que atuam em estruturas a serviço dos migrantes solicitaram a contribuição teológica para iluminar este complexo e desafiador fenômeno que são as migrações. Do ponto de vista existencial, não só se encontram migrantes que interpretam sua vida a partir da migração, mas também iniciam a refletir, teologicamente, a partir de sua história. Do ponto de vista metodológico, a difusão das teologias contex-tuais valoriza a realidade histórica local como ponto de parti-da para a elaboração teológica, substituindo uma metodolo-gia dedutiva, que dominou aproximadamente até as vésperas do Concílio Vaticano II, por uma indutiva.7

Se estes foram alguns dos principais fatores que contri-buíram para o despertar do interesse teológico em relação às migrações, cronologicamente podemos sinalizar os anos ses-senta como marco inicial dessa nova sensibilidade. De fato, em 1961, o Conselho Ecumênico das Igrejas organizou, em Leysin (Suíça), um congresso sobre as migrações, incluindo uma contribuição do teólogo protestante Pieter de Jong, que pode ser considerada uma reflexão fundamentalmente bíblica a respeito da mobilidade humana. Desde então, este interesse foi ganhando espaço, tanto no âmbito teológico protestante, quanto no católico. Como exemplo, cito o caso dos Estados Unidos, onde podem ser encontradas algumas vertentes te-ológicas na perspectiva das migrações. É o caso dos latinos e asiático-americanos nos EUA. Entre os latinoamericanos surgem os nomes de Orlando Espín, Figueroa Deck, Daisy Machado. Entre os asiático-americanos aparecem Jung Young Lee, Peter Phan, Anselm Min. Isso sem falar da Black theology que pode justamente ser considerada afro-descen-dente, ou seja, filha da dramática experiência da escravidão.

Sem nenhuma pretensão de esgotar as temáticas refleti-das por estes recentes ensaios teológicos a partir das migra-ções, Gioacchino Campese aponta alguns aportes que foram, de maneira diferente, desenvolvidos: teologias das migrações e metodologias; o Deus cristão na perspectiva das migrações; o migrante como metáfora do cristão; eclesiologia e migra-ções; a catolicidade; perspectiva de gênero; os migrantes em situação irregular; teologia das migrações e diálogo inter-

7 Para teologias contextuais ver: J. DUPUIS, introdução à Cristologia. São Paulo: Loyola, 1999, p. 16-27; M. GRONCHI, trattato su gesù Cristo Figlio di Dio Salvatore. Brescia: Queriniana, 2008, p. 736-738; S. B. BEVANS, Models of Contextual theology. New York: Orbis, 20022. Este autor norteamericano apresenta seis modelos de teologia contextual: modelo da tradição, antropológico, da práxis, sintético, transcendental e contracultural.

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religioso; hospitalidade. O autor observa que estas temáticas deverão continuar a ser aprofundadas e outras incluídas.

Encerrando esta breve referência à recente teologia das migrações a partir do artigo de Gioacchino Campese, pode-se concluir que se trata de uma reflexão recente e que ainda apresenta muito campo pela frente. Como toda teologia con-textual, ela exige um profundo conhecimento da realidade, neste caso, a migratória, percebendo a complexidade e inter-disciplinariedade do fenômeno, articulando o específico e o plural. Da mesma forma, não pode prescindir da raiz vétero e neotestamentária, como memória referencial de um povo que experimentou as múltiplas facetas da migração e a própria revelação de Deus nessa dinâmica histórica.

2.Análise dos documentos em perspectiva migratória

A partir desta sintética panorâmica que ampliou o olhar, agora é possível concentrar a atenção nos documentos em questão. Com certeza, teria sido interessante ter comparado documentos semelhantes dos últimos cinquenta anos e elabo-rados por Conferências episcopais de outros contextos, mas preferi retomar a história da teologia das migrações, pois, é nesta perspectiva, além da pastoral, que tento aproximar as referências migratórias presentes nos cinco documentos finais do episcopado da América Latina e Caribe.

Antes de analisar os documentos conclusivos das Confe-rências, lembro que, ao longo da história do CELAM (fun-dado em 1955), no ano de 1987 surgiu a SEPMOV (Secre-taria para la Pastoral de la Movilidad Humana). Atualmente, a Movilidad Humana pertence ao Departamento Justicia y Solidaridad do CELAM. Em nível de Brasil, recordo que a Campanha da Fraternidade de 1980 teve como tema as mi-grações e utilizou o lema Para onde vais?. Em seguida, em 1985, nasceu o SPM (Serviço Pastoral dos Migrantes).

Do ponto de vista da frequência, apresento de maneira esquemática os dados através de duas tabelas. A primeira se limita a expor a quantidade de vezes que os documentos fa-zem referência, direta ou indiretamente, à temática em ques-tão. A segunda especifica onde encontrar, nos documentos finais das cinco Conferências, os dados anteriormente expos-tos por frequência.

Antes de expor os dados, são necessários alguns esclare-cimentos e observações. As palavras aparecem em espanhol, idioma original desses documentos. Em alguns casos, não foi fácil selecionar os termos, pois os mesmos apresentam dife-

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rentes significados. Isso aconteceu com camino e peregrina-ción que podem ter significado real ou metafórico entre ou-tros. Escolhi selecionar ambos os significados. Por exemplo, peregrinación foi sinalizada seja quando significa a caminha-da de um grupo rumo a um santuário, seja quando se refere à caminhada da Igreja ou da humanidade nesse mundo. Outro termo que escolhi incluir nessas tabelas é o de descendientes. No documento de Santo Domingo refere-se aos europeos e asiáticos enquanto em Aparecida aos afroamericanos, que no índice analítico do documento da quinta Conferência são identificados com o termo afro-descendentes. (Ver no anexo tabela I)

A tabela II em anexo, no final, expõe a frequência dos termos ligados à mobilidade humana e que estão presentes nos documentos das cinco Conferências.8

É óbvio que uma apresentação puramente quantitativa tem sua importância, porém, não deixa de ser limitada. Por isso, agrego outros ângulos de análise e outras considera-ções, sem antes deixar de esboçar algumas reflexões a partir do levantamento efetuado com relação à frequência.

Percebe-se um crescente interesse pelo fenômeno migra-tório e suas relativas problemáticas. Os enfoques são dife-rentes, mas existe uma constante e crescente atenção. Ob-servando as seções dos documentos dedicadas à realidade migratória, consta-se, no do Rio de Janeiro, uma com o título inmigración y gente de mar (90-96); no de Santo Domingo, outra com o título la movilidad humana (186-189) e, em Aparecida, outra ainda, que aparece simplesmente como Mi-grantes (411-416). Somente dois documentos finais, os de Medellín e de Puebla, não reservam uma seção específica à migração.

Chamo a atenção também para algumas ausências. Nos documentos não aparecem, por exemplo, os termos nómade, gitano, circense, camionero e migración de tránsito. Este úl-timo refere-se a uma realidade que nas últimas décadas ga-nhou grande destaque. Para tanto, é suficiente lembrar o ca-minho percorrido por muitos latinos e centroamericanos em direção aos Estados Unidos.9 A divisa entre México e EUA é um dos casos mais emblemáticos, embora não o único.

Esboçadas estas considerações gerais, dedico agora atenção a cada um dos cinco documentos, apresentado-os em ordem cronológica. Aparece assim o perfil de como cada Conferên-cia percebeu e compreendeu a realidade migratória e como articulou as respostas pastorais.

Paolo Parise – A migração nos documentos da Igreja na América Latina e no Caribe:

8 Documentos da Conferências do episcopado Latinoamericano utilizados pelo autor, foram os textos oficiais das respectivas conferências.

9 Cf. DECLARACIóN CONJUNTA DE LOS OBISPOS CATóLICOS DE MÉXICO Y LOS ESTADOS UNIDOS, Juntos en el Camino de la Esperanza. Ya no Somos Extranjeros. México/Washington, 2003. Esta declaração faz referências em várias ocasiões à migração de trânsito.

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No documento da Conferência do Rio de Janeiro existem referências à encíclica papal Exsul familia, publicada pouco antes, em 1952.10 Aplica-se, assim, um documento do ma-gistério da Igreja universal a uma realidade local, continental. O documento da Conferência de 1955 concentra sua aten-ção sobre duas categorias de migrantes: os imigrantes euro-peus e a gente de mar, com a criação ou ampliação de Stella Maris.11 Quanto aos primeiros, observo que estão presentes neste documento como atores migratórios principais, porém, progressivamente, irão desaparecendo dos documentos pos-teriores. Quanto aos segundos, continuarão a manter grande atualidade, devido à expansão do comércio marítimo, mas serão esquecidos nas sucessivas Conferências. De um modo geral, podemos afirmar que a migração é vista, fundamen-talmente, como um problema. Por fim, no que se refere ao documento do Rio de Janeiro, destaco um apelo presente no número 90: corresponde a los Paises latinoamericanos, como un deber de caridad cristiana, de justicia social y de solidari-dad, abrir sus puertas a la inmigración.

Em Medellín, a realidade migratória não ocupa o centro das atenções. O drama da pobreza e da injustiça que clama ao céu12 exige uma urgente resposta como um todo e impede de reservar uma atenção específica a todos os que são afeta-dos por este fenômeno. Encontra-se uma pequena referência aos grupos étnicos e uma preocupação com o éxodo ou fuga de profissionais para o exterior. Aponta para o desafio de acompanhar os jovens que estudam na Europa e nos EUA. Quanto à migração interna aparece a preocupação com as dificuldades geradas por este fenômeno em relação à evan-gelização.

Puebla, como a Conferência anterior, não dedica aten-ção especial ao fenômeno migratório e suas consequências. Contudo, a aproximação tem um perfil típico. Praticamente desaparecem as referências à migração histórica. Os imi-grantes europeus são considerados integrados. Em âmbito migratório, o olhar dos pastores presentes na III Conferên-cia concentra-se na problemática e no drama das migrações massivas, forçadas e desamparadas 13. Encontra-se também uma preocupação com os refugiados e exilados. É uma res-posta diante das consequências da Ideologia da Segurança Nacional e dos regimes totalitários que tomaram conta do continente e da América Central naqueles anos. Ao lado da preocupação com a justiça, acrescenta-se um enfoque cul-tural, graças à contribuição de João Paulo II. A religiosidade popular aparece incluída no texto e há um resgate do drama da escravidão. Retomo alguns desafios sinalizados ao longo

13 Cf. Puebla 29

10 Cf. PIUS XII, Constitutio apostolica Exsul família, ACtA APOStOliCA SEDiS, 44 (1952), p. 649-704.11 Os centros de acolhida dos marinheiros dirigidos pelo Apostolado do Mar são comumente conhecidos como Stella Maris. Este apostolado é uma rede internacional de associações e organizações católicas fundadas em 1922. Atualmente pertence ao Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes.12 Cf. Medellín. 1ss.

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das páginas deste longo documento, o maior dos cinco: dian-te de novas situações é necessária uma nova evangelização; diante da chegada de numerosos migrantes, as paróquias não podem ficar esperando, mas devem ir ao encontro deles; diante do universo da mobilidade humana é necessária uma atenção especial aos jovens; a pastoral migratória exige ser incluída nas pastorais que já constituem a organização ecle-sial.14

Em Santo Domingo, o fenômeno migratório alcança um bom nível de atenção. Vale a pena lembrar que na assembléia foi um dos trinta temas escolhidos pelos bispos e que aglu-tinou um grupo de estudo que aprofundou a questão. Isso explica a presença, no texto final, da seção la movilidad hu-mana.15 Contudo, a realidade migratória e suas implicações permeiam os diferentes assuntos do documento. Aparece quando se apresenta a seção da mulher, das seitas funda-mentalistas, dos novos movimentos religiosos, entre outros. Dentro do parágrafo dedicado aos rostos sofridos nos quais Cristo se faz presente, encontram-se los rostros cansados de los migrantes, que no encuentran digna acogida.16 Assim, a tradição dos rostos sofridos nascida em Puebla, recriando o texto de Mateus 25,31-46, incorpora também o rosto dos migrantes. Percorrendo as páginas deste documento, o quar-to da tradição latinoamericana das Conferências, percebe-se a atenção dedicada à migração dentro da América Latina, à emigração, fenômeno que continuará crescendo em maneira exponencial, e ao drama dos indocumentados. Observo, ao lado do destaque dado à urgência pastoral da acolhida, uma postura de denúncia profética contra tudo o que fere a dig-nidade do migrante e um esforço em colaborar com todos os organismos que tentam incidir para que sejam defendidos os direitos dos migrantes.

A última Conferência, a de Aparecida, pela primeira vez de maneira explícita, não vê a migração exclusivamente como um problema, mas também como um recurso, e apresenta o potencial evangelizador presente nos migrantes. Além disso, o migrante é redescoberto como sujeito, como protagonista, e não simples destinatário da ação pastoral. Como na Con-ferência anterior, encontra-se uma inteira seção dedicada a esta realidade, sob o nome Migrantes. Continua presente a abordagem da migração numa perspectiva cultural e sob a ótica da justiça. Aparecem diferentes tipologias migratórias, entre elas a emigração latinoamericana, a migração interna e os desplazados. Há referências à contribuição das remessas dos emigrantes latino-americanos, enviadas aos seus países

Paolo Parise – A migração nos documentos da Igreja na América Latina e no Caribe:

14 Cf. Puebla 366, 644, 1191 e 1291.

15 S. Domingo 186-189.

16 S. Domingo 178.

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de origem e que evidenciam a capacidade de sacrifício e de solidariedade para com suas famílias de origem.

Após ter oferecido uma visão quantitativa geral e outra mais particular, acrescento algumas considerações de ordem metodológica. A escolha do método, de Medellín em diante, sempre foi central e, às vezes, conflituosa. Rio de Janeiro não apresenta esta preocupação, pois adota uma impostação fun-damentalmente dedutiva, visto que cada parte se inspira nos pontos indicados na carta Ad ecclesiam Christi de Pio XII.17 Em Medellín, graças ao aporte da metodologia de Joseph Car-dijn, ver, julgar e agir, e graças às contribuições do Concílio Vaticano II – é suficiente lembrar a gaudium et Spes – a ar-quitetura metodológica é indutiva.18 Puebla continua manten-do esta impostação, Santo Domingo, porém, retrocede a uma metodologia dedutiva, antepondo o momento do julgar ao ver. Por último, Aparecida, no meio de muitos debates e a partir dos pedidos da quase totalidade das Conferências episcopais, retoma uma impostação indutiva. Contudo, não se trata de uma simples volta ao método da II e da III Conferências, pois no ver está inicialmente presente, um momento que pode ser considerado uma profissão de fé, uma explicitação de que a re-alidade será olhada a partir da visão cristã. Desta forma, o que estava, anteriormente, implícito, fica explícito desde o começo.

Dentro da impostação metodológica que se consolidou, após o Concílio Vaticano II, na tríade ver, julgar e agir é in-teressante observar onde se inserem as menções migratórias. Em alguns casos, porém, a tarefa se torna complicada, pois os documentos não oferecem sempre indicações para classificar os textos num dos momentos da tríade. Em outros casos não se encaixam em nenhuma divisão. Entre as dificuldades sina-lizo também a tipologia do documento de Rio de Janeiro que não obedece a esta estrutura. Contudo, dá pra detectar a qual momento pertencem os trechos migratórios da I Conferência.

As referências à mobilidade humana, apresentadas an-teriormente nas tabelas podem ser classificadas, a partir do método ver, julgar e agir, dessa forma:

Conferência/método

Rio Medellín Puebla S. Domingo Aparecida

ver 2 5 18 9 20julgar 7 2 4 12 23agir 1 4 25 9 21

A primeira impressão é que a mobilidade humana seja ob-jeto de reflexão teológica (julgar). Lembrando, porém, que

17 Cf. PIUS XII, Ad Ecclesiam Christi. ACtA APOStOliCA SEDiS, 47 (1955), p. 539-544.18 O sacerdote e depois cardeal belga Joseph Cardijn (1882-1967) fundou a Juventude Operária Católica (JOC) e idealizou o método ver, julgar e agir, influenciando a Ação Católica.

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muitos desses textos apresentam um significado metafórico, as referências à mobilidade humana, incluídas no julgar, mudam completamente. A partir dessa perspectiva os textos que perten-cem à iluminação teológica e que se referem à migração como fenômeno histórico – e não simbólico ou metafórico – são 1 no Rio de Janeiro, 2 em Medellín, 2 em Puebla, 5 em Santo Domingo e 1 em Aparecida. Em geral, dá para afirmar que a migração é objeto de atenção pastoral, pois é uma realidade per-cebida na sua tipologia e na sua evolução. Por isso, provoca uma ação, gera uma atuação pastoral. Por outro lado, não desembo-ca numa reflexão teológica, à exceção de raros e isolados casos.

A nossa análise abre agora espaço para uma breve leitura transversal. Utilizando os dados recolhidos até agora – em nível quantitativo, qualitativo e na perspectiva metodoló-gica – tento apontar alguns elementos e tendências que já emergiram anteriormente. Há um interesse crescente para com o fenômeno migratório. A tipologia vai se modificando. A atenção inicial dada às migrações tradicionais do conti-nente europeu deixa, progressivamente, espaço às massivas migrações internas e, em seguida, à emigração. Recuperam-se, também, páginas esquecidas das migrações forçadas, ou seja, a triste história do tráfico de escravos. Uma tipologia, porém, praticamente esquecida, é a da imigração asiática.19 De fato, há uma única referência, que no texto aparece en passant. Constata-se uma progressiva percepção da comple-xidade e das tipologias dos fluxos migratórios. Infelizmente, não foi ainda reservada atenção ao fenômeno da migração de trânsito. Do ponto de vista metodológico, descobre-se o valor de ser tratada nas partes dedicadas ao ver e ao agir e, ao mesmo tempo, a fragilidade de não ter o mesmo peso no julgar. Existe a passagem de uma aproximação à migração vista essencialmente como problema, para outra que enxerga o potencial nela presente. Além disso, passa-se da visão do migrante como destinatário da ação pastoral, a uma visão do migrante como protagonista, como sujeito.

Emerge uma Igreja que tenta acolher, assistir, defender os migrantes, denunciando as injustiças, sensibilizando a co-munidade eclesial e a sociedade civil, aprendendo e se or-ganizando diante dos migrantes. Faz-se presente uma aten-ção quanto à ligação entre Igreja de saída e de destino dos migrantes. Os enfoques para abordar a realidade migratória se somam e não se excluem: à inicial preocupação com a dimensão da justiça, acrescenta-se a da cultura e em par-ticular da religiosidade popular. No universo da migração, progressivamente se destacam rostos específicos: dos jovens,

19 Um exemplo é a migração japonesa. A partir da década de 1880 o Japão incentivou a emigração de seus habitantes através de acordos com outros governos. Após a restrição de entrada de migrantes japoneses nos EUA em 1908, iniciou um consistente fluxo rumo ao Brasil. Outros países se interessaram por esta migração japonesa, principalmente Peru e México.

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das mulheres, dos emigrantes, dos desplazados, dos indocu-mentados, das vítimas do tráfico, etc.

3.Considerações teológico-pastorais

Anteriormente, foi observado como as referências ao fe-nômeno migratório, na maioria dos casos, pertencem à par-te do ver ou do agir. Raramente estão inseridas no julgar, ou seja, na iluminação teológica. Este dado leva a fazer uma primeira afirmação quanto à reflexão teológica: na quase to-talidade dos casos, nos documentos das cinco Conferências gerais do episcopado latino-americano e do Caribe, a migra-ção não gera uma reflexão teológica. A impressão é a de que os bispos são movidos mais pela urgência e pelo clamor da realidade. Por isso, a passagem rápida do ver ao agir. A esta afirmação inicial, que parece excluir qualquer tipo de refle-xão teológica a partir dos documentos das cinco Conferên-cias, deve-se acrescentar que existem intuições teológicas. A seguir, esboço algumas contribuições que podem ser consi-deradas aportes iniciais rumo a uma compreensão teológico-pastoral das migrações na caminhada eclesial do continente.

3.1 Metodologia, cristologia e migrantes

A impostação metodológica é sempre muito importante. O material que estou considerando não constitui uma exceção. A escolha da metodologia indutiva ou dedutiva tem consequ-ências na maneira de aprofundar os assuntos escolhidos.20 Se o ponto de partida é a realidade ou a iluminação teológica, o ver ou o julgar, a consequência se estende ao objeto da refle-xão teológica. Por isso, ao tratar da migração nos documen-tos conclusivos das Conferências, é necessário prestar atenção também à impostação metodológica adotada. A escolha do método indutivo tem a vantagem de dar ouvido à realidade, deixando que fale por si mesma. Além disso, do ponto de vista pastoral, é mais operacional que o método dedutivo.

Nas Conferências, percebe-se também a presença de duas impostações cristológicas, uma ascendente e outra des-cendente. A primeira parte do homem de Nazaré para desco-brir que Ele é o Filho de Deus. A segunda tem como ponto de partida a afirmação da pré-existência do logos, para em seguida passar pela encarnação e afirmar a verdadeira huma-nidade de Jesus. Os cinco documentos testemunham a ten-dência de privilegiar a cristologia descendente, enquanto a ascendente ganha espaço minoritário.

20 Cf. J. B. LIBÂNIO, – A. MURAD, introducción a la teología. Perfiles, enfoques, tareas. México: Dabar, 2000, p. 96-99; J. M. ROVIRA BELLOSO, introducción a la teología, Madrid: BAC, 20002, p. 90-92.

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Em geral, assiste-se a várias possibilidades de combina-ção entre escolha metodológica e impostação cristológica.21 Prevalece a assunção do método indutivo – em Medellín, Puebla e, com algumas reservas, também em Aparecida – em combinação com a impostação cristológica descendente. Santo Domingo é o único caso em que a escolha do método dedutivo está associada a uma cristologia descendente. Rio de Janeiro constitui um caso a parte, seja por falta de uma explícita escolha metodológica – que é dedutiva –, seja pelas poucas referências cristológicas. Estas são as tendências do-minantes. Contudo, em todas as Conferências estão presen-tes outras que são minoritárias.

Neste ensaio, interessa-me retomar dois raríssimos casos em que há referências migratórias na iluminação teológica. Comparo dois trechos tirados do documento de Santo Do-mingo. Em ambos os casos, o método é claramente dedutivo, mas a cristologia adotada aparece sendo uma vez ascendente outra descendente.

A seção Empobrecimiento y solidaridad (Santo Domingo 178-181), do ponto de vista metodológico, está estruturada desta forma: julgar (178), ver (179) e agir (180-181). Reto-mo a parte do julgar:

Evangelizar es hacer lo que hizo Jesucristo, cuando en la sinagoga mostró que vino a evangelizar a los pobres (cf. Lc 4,18-19).

[...] Esta es la fundamentación que nos compromete en una opción evangélica y preferencial por los pobres, fir-me e irrevocable pero no exclusiva ni excluyente, tan so-lemnemente afirmada en las Conferencias de Medellín y Puebla. Bajo la luz de esta opción preferencial, a ejemplo de Jesús, nos inspiramos para toda acción evangelizadora comunitaria y personal [...]. Descubrir en los rostros su-frientes de los pobres el rostro del Señor (cf. Mt 25,31-46) es algo que desafía a todos los cristianos a una profunda conversión personal y eclesial. En la fe encontramos los rostros desfigurados por el hambre, consecuencia de la in-flación, de la deuda externa y de injusticias sociales; los rostros desilusionados por los políticos, que prometen pero no cumplen; los rostros humillados a causa de su propia cultura, que no es respetada y es incluso despreciada; los rostros aterrorizados por la violencia diaria e indiscrimi-nada; los rostros angustiados de los menores abandonados que caminan por nuestras calles y duermen bajo nuestros puentes; los rostros sufridos de las mujeres humilladas y

Paolo Parise – A migração nos documentos da Igreja na América Latina e no Caribe:

21 Para uma visão mais aprofundada a respeito da correlação entre método dedutivo e indutivo com a cristologia descendente e ascendente nos documentos finais das cinco Conferências ver: P. PARISE, Cristologie delle Conferenze generali dell’episcopato dell’America latina e Caraibi (da Rio de Janeiro ad Aparecida). Roma, 2010 (Dissertação de Doutorado, Pontificia Università Gregoriana), p. 299-343.

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postergadas; los rostros cansados de los migrantes, que no encuentran digna acogida; los rostros envejecidos por el tiempo y el trabajo de los que no tienen lo mínimo para sobrevivir dignamente.22

El amor misericordioso es también volverse a los que se encuentran en carencia espiritual, moral, social y cultural.23

Poucos números depois encontra-se uma seção com o título la movilidad humana (Santo Domingo 186-189), que está assim estruturada: julgar (186), ver (187) e agir (188-189). Retomo novamente a parte que se refere ao julgar:

El Verbo de Dios se hace carne para reunir en un solo pueblo a los que andaban dispersos, y hacerlos ciudadanos del cielo (Flp 3,20; cf. Hb 11, 13-16). Así el Hijo de Dios se hace peregrino, pasa por la experiencia de los desplaza-dos (cf. Mt 2,13-23), como un migrante radicado en una insignificante aldea (cf. Jn 1,46). Educa a sus discípulos para ser misioneros, haciéndoles pasar por la experiencia del que migra para confiar sólo en el amor de Dios, de cuya buena nueva son portadores (cf. Mc 6,6b-12).24

Do ponto de vista metodológico, ambos os textos perten-cem à iluminação teológica, que em Santo Domingo cons-titui o primeiro momento do método dedutivo, adotado em substituição ao indutivo, que tinha marcado a estrutura das duas Conferências anteriores. Porém, apesar de ser dedu-tivo, as cristologias utilizadas nessas partes são diferentes. A primeira é claramente ascendente, enquanto a segunda é descendente. Por isso, é importante não só detectar a escolha metodológica, mas também observar como se articula com outras opções. Nesse específico caso, a utilização de um tipo de cristologia leva a consequências diferentes. No primeiro exemplo, a cristologia ascendente parte da história humana do Filho de Deus para descobri-lo presente nos rostos sofre-dores, entre eles os dos migrantes que não encontram digna acolhida. No segundo caso, parte do Verbo de Deus que se faz carne, se faz peregrino, assume a experiência dos que não têm lugar. A primeira impostação cristológica é muito mais concreta, enquanto a segunda tende a ser mais abstrata.

3.2 Cristologia dos rostos A cristologia dos rostos sofridos em que Cristo se faz

presente nasce em Puebla e continua presente nas sucessivas Conferências. Apesar das mudanças metodológicas ocorri-das nas últimas três Conferências, esta tradição cristológica utiliza sempre uma cristologia ascendente.

22 (cf. CELAM, Documento de trabajo, 163). 23 Cf. Santo Domingo, 178.

24 Cf. Santo Domingo, 186.

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Os migrantes, inicialmente ausentes na cristologia dos rostos da III Conferência, são progressivamente incluídos, seja em Santo Domingo, seja em Aparecida. Em Puebla, os bispos afirmam

la situación de extrema pobreza generalizada, adquiere en la vida real rostros muy concretos en los que deberíamos reconocer los rasgos sufrientes de Cristo, el Señor, que nos cuestiona e interpela.25 E continua elencando os rostos: rostros de niños, rostros de jóvenes, rostros de indígenas y con frecuencia de afroamericanos, rostros de campesinos, rostros de obreros, rostros de subempleados y desemplea-dos, rostros de marginados y hacinados urbanos, rostros de ancianos.

Constata-se que não há nenhuma referência aos rostos de migrantes.26

Em Santo Domingo os pastores observam que a lista dos rostos sofridos assinalada em Puebla aumentou (cf. Santo Do-mingo 179c). Entre as novas feições, aparece pela primeira vez o rosto cansado dos migrantes que não encontram digna aco-lhida (cf. Santo Domingo 178). Em Aparecida as referências aos rostos sofridos se espalham em muitas páginas do docu-mento.27 São rostos dos novos excluídos. E o dos migrantes, não é mais um único rosto que engloba as diferentes variações do mesmo termo, mas se multiplica em rostos diferenciados. Se em Aparecida 65 se faz referência simplesmente aos mi-grantes, desplazados, no número 402 se elenca

los migrantes, las víctimas de la violencia, desplazados y refugiados, víctimas del tráfico de personas, como tam-bém mujeres maltratadas, víctimas de la exclusión y del tráfico para la explotación sexual. E mais adiante existe uma seção inteira dedicada aos Rostros sufrientes que nos duelen (cf. Aparecida 407-430). Os migrantes consti-tuem o segundo grupo a ser tratado, iniciando desta for-ma: Hay millones de personas concretas que, por distintos motivos, están en constante movilidad. En América lati-na y El Caribe constituyen un hecho nuevo y dramático los emigrantes, desplazados y refugiados sobre todo por causas económicas, políticas y de violencia.28

Aparecida, entre os lugares de encontro com Jesus Cristo, sinaliza o rosto sofredor dos pobres:

25 Cf. Puebla 31.

26 Os rostos que serão elencados pertencem a Puebla 32-39.

27 Cf. Aparecida, 65, 257, 354, 393, 402, 407-430.

28 Cf. Aparecida 411.

Paolo Parise – A migração nos documentos da Igreja na América Latina e no Caribe:

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También lo encontramos de un modo especial en los po-bres, afligidos y enfermos (cf. Mt 25, 37-40), que reclaman nuestro compromiso y nos dan testimonio de fe, paciencia en el sufrimiento y constante lucha para seguir viviendo. ¡Cuán-tas veces los pobres y los que sufren realmente nos evangeli-zan! En el reconocimiento de esta presencia y cercanía, y en la defensa de los derechos de los excluidos se juega la fideli-dad de la Iglesia a Jesucristo. El encuentro con Jesucristo en los pobres es una dimensión constitutiva de nuestra fe en Je-sucristo. De la contemplación de su rostro sufriente en ellos y del encuentro con Él en los afligidos y marginados, cuya inmensa dignidad Él mismo nos revela, surge nuestra opción por ellos. La misma adhesión a Jesucristo es la que nos hace amigos de los pobres y solidarios con su destino.29

Apesar de não fazer referência explícita aos migrantes, a afirmação de que o encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo, pode ser estendida também ao mundo da migração. Na realidade, a frase pertence ao discurso de abertura de Bento XVI30 e foi retomada em numerosos artigos e comen-tários a respeito de Aparecida, entre eles os do pai da teologia da libertação, Gustavo Gutiérrez.31

3.3 Migração e eclesiologia

O encontro entre as diferentes manifestações do fenô-meno migratório e a Igreja do continente e do Caribe gera mudanças em níveis diferentes. Não podendo sinalizar a evo-lução ligada a cada Conferência, limito-me a indicar algu-mas consequências eclesiológica gerais, relacionadas à per-cepção, práxis, denúncia, visão e auto-compreensão.

Em medida diferente, e inserida na visão de cada época, a Igreja latino-americana e do Caribe se demonstra sensível à realidade migratória, percebendo suas manifestações e desa-fios. Enxerga a chegada dos imigrantes europeus, os grandes fluxos de migrações internas e, por fim, os seus filhos que emi-gram em direção ao mundo afora. Progressivamente, percebe a pluralidade e a complexidade do fenômeno migratório, que se revela com traços típicos, dependendo da questão de gêne-ro, da faixa etária e outras variáveis. Neste processo histórico nem sempre, porém, consegue perceber as múltiplas facetas da mobilidade humana. Por exemplo, já sinalizei a ausência nos documentos do fenômeno da migração de trânsito e da imigração asiática.

29 Cf. Aparecida 257.

30 Cf. BENEDICTUS XVI, Allocutio in inauguratione operum V Coetus Generalis Episcoporum Americae Latinae et regionis Caribicae. 99, ACtA APOStOliCA SEDiS (2007), p. 450. Esta frase de Bento XVI foi retomada em Aparecida 392, 393 e 394.31 Cf. G. GUTIÉRREZ, Benedicto XVI y la opción por el pobre. Páginas, 205 (2007), p. 6-13; G; GUTIÉRREZ, La opción preferencial por el pobre en Aparecida. Páginas 206 (2007), p. 6-25; G. GUTIÉRREZ, Medellín: una experiencia espiritual. PÁginAS 210 (2008), p. 6-12.

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Emerge uma Igreja que se preocupa em acolher, assis-tir, e defender os migrantes.32 Transparece o típico traço de denúncia que caracteriza os cristãos desse continente. De-núncia que não se apresenta como flatus vocis, mas que se enraíza numa práxis eclesial em favor dos mais necessitados, entre eles os migrantes.

É uma Igreja que aprende a se organizar a partir desses novos desafios Uma Igreja que realmente aprende.33

Mas tudo isso atinge a mesma auto-compreensão de Igreja, redescobrindo-se como Igreja peregrina, nômade por sua própria natureza. É uma auto-compreensão já presente na nossa tradição e que os migrantes ajudam a recuperar. A auto-compreensão da Igreja peregrina leva a uma postura mais histórica, menos essencialista, mais humilde, reconhe-cendo os erros e não só os acertos ao longo do peregrinar. Percebe-se ao lado de outros homens e mulheres que cami-nham neste mundo.

3.4 Migração, justiça e cultura

De uma maneira geral, de Medellín até Aparecida, assis-te-se a uma evolução, tensão e inclusão entre duas perspecti-vas que priorizam, respectivamente, a dimensão da justiça e da cultura. Na II Conferência evidencia-se a primeira. A par-tir da III, e de maneira especial na IV Conferência, afirma-se com força a da cultura. A história das Conferências testemu-nha o esforço para manter presente as duas dimensões. Ape-sar de certas polarizações, os documentos não eliminam a presença destas duas importantes sensibilidades, que acabam se integrando, sem se anular. Assim, o eixo da justiça não é substituído por aquele da cultura, a exemplo de uma moda de determinada conjuntura histórica. Ao mesmo tempo, o eixo da cultura enriquece o da justiça, que corria o perigo de não perceber a complexidade e a riqueza do real ou não possibi-litava dar o justo peso a esta dimensão fundamental.

A realidade migratória não ficou de fora desta dinâmi-ca. Participou desta evolução. Reivindicou a necessidade de mudar as estruturas injustas que geram a migração, bem como os mecanismos perversos que excluem ou ex-ploram o migrante no lugar de destino. Também percebeu o migrante como protagonista, com traços típicos e tão di-ferenciados, dependendo de sua história, cultura, tradição religiosa, etc.

32 Cf. Rio de Janeiro, 90, 91, 92; Medellín, 26; Puebla, 1191; 1292; Santo Domingo, 107, 110, 246.

33 Cf. Puebla, 366, 644, 1291; Santo Domingo, 260; Aparecida, 99, 100e, 377, 411-416.

Paolo Parise – A migração nos documentos da Igreja na América Latina e no Caribe:

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3.5 Migração e sementes do Verbo

A partir da segunda até a última Conferência, a expres-são sementes do Verbo está sempre presente. Medellín des-cobre a temática das sementes do Verbo graças ao influxo do Concílio Vaticano II34 e a aplica à religiosidade popular. Na realidade, o Concílio, recém-concluído, é aqui devedor à tradição patrística. Lembro, por exemplo, Justino mártir,35 o qual foi o primeiro a desenvolver a teologia das sementes do Verbo. Puebla prossegue a reflexão e revela maior aber-tura. Afirma que a Igreja não somente respeita e incorpora a presença dessas sementes, mas também as consolida e for-tifica. Apesar da reflexão permanecer circunscrita à cultura popular latino-americana, resultado da primeira evangeliza-ção, pela primeira vez, afirma a existência de «sementes do Verbo» junto a riquíssimos valores nos grupos autóctones e afrodescentens36, ou seja, nos remanescentes da migração forçada do continente africano para o latino-americano e caribenho. Santo Domingo explicita a presença das semen-tes do Verbo nas culturas e tradições religiosas indígenas e afrodescendentes. Nessa IV Conferência se incorpora o tema do diálogo inter-religioso37. Aparecida prossegue a reflexão de Santo Domingo e aponta para algumas dessas sementes do Verbo presentes nas populações indígenas lati-no-americanas38. Observo mais uma vez a ausência da per-cepção da presença das «sementes do Verbo» nas tradições dos imigrantes que vieram da Ásia.

Nos textos em questão percebe-se um duplo movimento. De um lado, o desafio é discernir, reconhecer, valorizar e fortalecer os valores e as sementes do Verbo presentes nas tradições afro-americanas e indígenas. De outro lado, estas sementes esperam a Palavra viva, ou seja, estão prontas a acolher Jesus Cristo através da ação do Espírito Santo.39

Considerações finais

Não tive a pretensão de esgotar a abordagem teológi-co-pastoral das referências migratórias nos documentos das cinco Conferências do episcopado da América Latina e Caribe. Acredito que existam ainda muitos enfoques possíveis, como também a possibilidade de aprofundar os dados relativos à mobilidade humana apresentados anteriormente nas duas tabelas. Encerrando este ensaio, limito-me a indicar que, nos documentos em questão, algo de semelhante ao que aconteceu com os afro-ame-

34 Cf. Ad gentes, 11 e 15; lumen gentium, 16-17; nostra Aetate, 2. In COMPênDiO DO VAtiCAnO ii. Constituições, decretos e declarações. Petrópolis: Vozes, [1968] 2000.35 Cf. JUSTINO, Apologia ii. PG 6, 457-460 e 465-468.

36 Cf. Puebla 451)

37 Cf. Santo Domingo 138)

38 Cf. Aparecida 529)

39 Cf. Puebla, 451; Santo Domingo, 17; Aparecida, 95

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ricanos, índios e mulheres, também ocorreu em relação aos migrantes. Inicialmente inseridos dentro do univer-so da categoria «pobres», com o passar do tempo foram assumindo rosto e protagonismo próprio. Surgiu assim uma teologia afro-americana, índio-americana e feminis-ta. Atualmente, percebem-se os primeiros passos de uma teologia das migrações. Tomara que na América Latina e no Caribe possa se desenvolver como as outras teologias que acabei de mencionar. Não só, mas que possa tam-bém se desenvolver em diálogo com outras teologias das migrações que estão sendo construídas em outros con-tinentes. Com certeza, o encontro e o intercâmbio serão motivo de enriquecimento recíproco.

Paolo Parise – A migração nos documentos da Igreja na América Latina e no Caribe:

Tabela I: Freqüência dos termos ligados à mobilidade humana

Rio Medellín Puebla S.Domingo Aparecida

Asilados - Asilo 02

Calle 02 06

Camino 02 15 11 22

Deportación 01

Desarraigo 03 03

Descendientes 01 19

Desplazamiento - Desplazados

01 01 05

Desterrados 01

Desubicados - Desubicación

3

Emigración / emigrantes 2 6 1 4

Errantes 01

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Estudiantes 01

Esclavitud - esclavos 02 01 01

Éxodo 1

Fuga 1 1

Indocumentados 01 01

Inmigración 05 02 03

Itinerancia -itinerantes 2

Marineros - Los que viven del mar

5 01

Migración / migrantes 01 06 10 16

Migración interna 01 01 01

Movilidad humana 02 07

Peregrinación Peregrino 04 19 08 12

Refugiados 02 4

Tabela II: As referências de termos ligados à mobilidade humana

Rio Medellín Puebla S.Domingo AparecidaAsilados- Asilo 1266,

1292Calle 178, 221 402, Titulo

VIII. 6.1, 407, 409, 410, 439

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Camino Past. popular 4, 15

188, 192, 194, 210, 214, 219, 232, 251, 254, 265, 266, 277, 292, 303, 1183

6, 13, 15, 111, 119, 121, 178, 179, 224, 230, 288

1, 6, 19, 22, 29, 101, 136, 137, 143, 220, 242, 246, 259, 264, 270, 276, 336, 350, 353, 396, 470, 554

Deportación 187

Desarraigo 71, 456, 1015

130, 187, 255

Descendientes 244 56, 65, 75, 88, 89, 90, 91, 94, 96, 97, 99b, 128, 402, 454, 532, 533, 554,Títulos II.1.5 e X.8

Desplazamiento Desplazados

419 186 65, 128, 402, 411, 414

Desterrados 1266Desubicados Desubicación

1191, 1266, 1291

EmigraciónEmigrantes

29, 91 366, 576, 581,1191, 1266, 1292

130 73, 99a, 377, 411

Errantes 1266

Estudiantes Past. das Élites 18c

Esclavitud Esclavos 8, 187 246 88

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Éxodo Justicia 1

Fuga Paz 9b 69

Indocumentados 1266 187

Inmigración 32, 90, 91, 92 e Título X

411 e 904

56, 88, 416

ItineranciaItinerantes

73, 100e

Marineros Los que vivendel mar

Título X, 93, 94, 95, 96

187

MigraciónMigrantes

Past. de Conjunto 26

29, 71,307, 419, 644, 1291

107, 110, 141, 147, 178, 186, 187, 188, 189, 260

58, 59, 65, 73, 90, 100e, 207, 402, 411, 412, 413, 414, 415, 445, 519 e Título VIII.6.2

Migración Interna

Past. Popular 1

71 517k

Movilidad Humana

188 e Título II.2.6

73, 231, 411, 412, 413, 414, 445

PeregrinaciónPeregrino

Past. popular 2, 6, 12;Liturgia 2

3, 15, 188, 209, 220, 232, 236, Título, 265, 266, 288, 290, 298, 303, 454, 589, 912, 918, 939

6, 11, 12, 15, 33, 53, 186, 187

3, 21, 109, 127, 128, 160, 259, 260, 347, 398, 446h, 553

Refugiados 1266, 1292

73, 207, 402, 411

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uMa CrítiCa tEOlÓgiCa da CidadE

alguns aspectos práticos e teóricosJoão Décio Passos*

Resumo:A cidade não é um fenômeno humano recente, mas a mentalidade urbana que ultrapassa o espaço da cidade devido a diversas dimensões, é uma novidade. E o que a Teologia tem a ver com isto? João Décio Passos afirma que a Teologia da e na cidade deve ser profética: é um discernimento sobre a realidade e a partir do que ela é e do que ela deve ser. Algumas linhas gerais da histó-ria da cidade e de suas características contemporâneas são apresentadas e ao mesmo tempo, os grandes desafios pastorais que decorrem desta nova situação. Em resumo, a Teologia na cidade, mais que em outros campos, é uma teologia em diálogo com um mundo multifacetado.

Palavras-chaves: Teologia da cidade; Cidade: desafios pastorais; Cidade moderna

Abstract:City is a quite old human phenomenon, but the modern urban with its different dimensions spirit that goes be-yond the city border is new. Theology has something to say about? João Décio Passos says that city’s Theology – or Theology in the city – should be prophetic; it should be a discernment of the reality from what the city is and to what the city should be. Some general overview of the history of the city and some of its nowadays character-istics are shown alongside with the deep pastoral chal-lenges from this new realm. In few words Theology in the city more that in other realms is a Theology in dialogue with a manifold world. Key words: City’s theology; City: pastoral challenges; Modern city

IntroduçãoUma teologia da cidade deverá não somente descrever

a cidade, mas também prescrever a sua finalidade última. A

* Livre docente em teologia; PUC-SP e ISPES.

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leitura de fé de uma determinada realidade busca compreen-dê-la no aspecto racional, assim como no aspecto valorativo. Nesse sentido, o ser e o dever ser da cidade compõem o cír-culo hermenêutico teológico, cuja tarefa é desvendar os me-canismos da vida citadina/urbana que tem na metrópole seu epicentro, bem como a tarefa de apontar para cidade justa, razão de ser das ações históricas do ser humano.

A teologia é reflexão sobre a fé e a partir da fé. É racionaliza-ção da fé feita em nome de um Deus ético e de uma sociedade ética, concepções que buscam um sentido comum para as di-versidades religiosas e para as expressões de sagrado selvagem, como conceitua Roger Bastide. Entendemos, portanto, a teolo-gia como discernimento sobre as múltiplas experiências huma-nas que se apresentam como portadoras de significados para a vida humana, de modo especial os significados transcendentes e, muitas vezes, absolutos, mesmo que não sejam explicitamente religiosos. A teologia deverá fazer o discernimento das práti-cas sociais, políticas e religiosas, a começar por aquelas práticas denominadas cristãs que fazem parte do cotidiano da cultura metropolitana/urbana.

A cidade atual é o fruto maduro da civilização moderna, manifesta em sua estrutura e dinâmica de funcionamento os be-nefícios e as contradições dos resultados econômicos, sociais, políticos e culturais da modernidade. A teologia deverá ser um olhar crítico sobre essa realidade cada vez mais hegemônica, onipotente e onipresente. Ao mesmo tempo deverá auscultar os sinais dos tempos que ali se mostram e acolher os apelos de Deus vindos de dentro de suas próprias contradições.

A maior parte da humanidade vive hoje na cidade. Tam-bém, o modo de vida urbano se torna cada vez mais hegemô-nico. As cidades se conectam uma às outras em uma rede que se expande do local, ao regional cegando ao mundial. Essa conexão se faz do ponto de vista econômico e, desde então, do ponto de vista social e cultural. A pergunta pelo papel da cidade como organização com vistas ao bem comum se tor-na urgente e, para muitos, anacrônica e, até mesmo, inútil. A teologia da cidade perseguirá a cidadania real como valor inalienável e a justiça como meta para as cidades cada vez mais habitadas pelos indivíduos anônimos e consumistas. A vivência da fé não escapa desses processos atuais e pode reproduzi-lo como legitimo e bom, em nome do homem e em nome de Deus. A teologia se mostra capaz de discernir tanto a cida-de religiosa como a cidade atéia, mas, sobretudo, aquilo que impede a vida humana de fluir em sua plenitude dentro desse contexto. Portanto, a dimensão teológica revela-se necessária

João Décio Passos – Uma Crítica Teológica da Cidade

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para interpretar e resolver os problemas atuais da convivência humana1 que hoje têm sua origem e, certamente, sua solução na cidade. Com efeito, a teologia continuará repetindo que a cidade de Deus será a cidade dos homens: o lugar da constru-ção da justiça comum, da liberdade e da igualdade.

1. O discernimento da cidade

Fazer a crítica teológica da cidade é focar-se na realidade atual do processo de socialização da humanidade. Não há outra realidade a não ser essa comandada pelas cidades em que estamos inseridos local e mundialmente. A teologia da cidade não pode partir de um modelo de cidade historica-mente superado, nos moldes das comunidades tradicionais ou de uma cidade ideal, mas de um ideal de cidade possível para a convivência humana dentro das condições atuais.

Como já dissemos, a teologia faz o discernimento da re-alidade a partir da fé e da fé a partir da realidade. Coloca em ação um círculo hermenêutico sempre atual, em vez da repe-tição cronológica opera com o tempo da salvação kairológica. O cristianismo não somente executa esse método, na medida em que vai lendo o passado e o presente a partir da experiên-cia atual do Cristo vivo e, como resultado, construindo uma nova identidade, mas afirma a graça atual oferecida por meio de Jesus Cristo como um fato fundante da igreja: o mesmo Espírito que ressuscitou Jesus, anima a igreja com seus ca-rismas e a lança na direção do mundo como anunciadora da Boa Notícia (1 Cor 12-15) A crítica e a criatividade são, por-tanto, inerentes à leitura teológica. A palavra julga a realidade e aponta para o seu dever ser, para a sua finalidade que, na economia de salvação, já se vê realizada em Jesus Cristo. A cidade cristã é a cidade dos homens, tensionada sempre pelo dever ser realizado em Jesus Cristo na historia. O futuro de comunhão entre as pessoas e a criação se torna a finalidade ética a ser concretizada na história, ponto de convergência que supera todas as formas de isolamento e indiferença e projeto para a cidade justa.

1.1 As cidades atuais

É necessário delimitar os termos a que se busca aplicar o ciclo hermenêutico da fé-realidade, embora sabendo que a questão da cidade é cada vez mais sistêmica, de forma que ao falarmos de uma realidade estamos, de algum modo, falando de todas elas. A cidade é o termo geral que designa a orga-

1 João Paulo II, Centesimus annus, 55.

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nização sócio-espacial que sucede à vida rural, das pequenas cidades às megalópolis. A metrópole é o grande aglomerado que se configura em uma determinada região. A megalópole é o aglomerado metropolitano que agrega várias circunscri-ções e que exerce a função de centro nacional ou mesmo mundial. O urbano é o modo de vida que é produzido pela cidade, em nossos dias, produzido pelas megalópoles e me-trópoles e se expande a partir desses centros como cultura cada vez mais comum.

Em termos geopolíticos, podemos detectar tendências diferenciadas nesse processo de urbanização: processos de aceleramento de crescimento dos grandes e médios cen-tros, de maior ou menor veiculação dos costumes urbanos dos grandes para os pequenos centros, de desaceleração do crescimento das megalópolis em função das metrópo-les regionais. No entanto algumas tendências se tornam hegemônicas: a maioria da população mundial vivendo nas cidades, o crescimento dos grandes centros urbanos nacionais ou regionais, a consolidação das megalópoles mundiais (global city), a conexão das cidades a partir des-sas cidades mundiais e, por fim, a consolidação de um modo de vida urbano.

A sociedade planetarizada é, portanto, uma sociedade ur-banizada. Estamos conectados em uma rede social que nos liga indelevelmente e de forma cada vez mais eficiente, graças a uma revolução tecnológica em curso continuo de aperfei-çoamento, mas cujos efeitos demonstram mudanças radicais no nosso modo de vida.2 Talvez já pudéssemos falar em uma cidade mundial, em uma tecnópolis que nos permite ser, ao mesmo tempo, reais e virtuais, territoriais e desterritorializa-dos, próximos e distantes, anônimos e públicos. A partir das cidades globais, as demais cidades se articulam do ponto de vista econômico, social e cultural. Já não há possibilidade de sobrevivência real de comunidades locais. A partir das cida-des mundiais o capital financeiro decide o destino do planeta, movendo a maquina do lucro, a produção industrial e, por conseguinte as demais dimensões da vida humana.

Por conseguinte, somos cada vez mais iguais no nosso modo de produzir e significar a vida, ou, em termos inversos, no nosso modo de consumir o que é produzido e de acolher o que é significado como valor comum. Não se trata, portan-to, apenas de uma conexão macroeconômica, mas de uma conexão que liga cada individuo ao sistema maior. Passamos diretamente do modus operandi econômico para um modus vivendi cultural, na medida em que o mercado financeiro se

2 CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

João Décio Passos – Uma Crítica Teológica da Cidade

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conecta diretamente à cultura de consumo. Permanece entre as duas mediações o vácuo político, aquele reservado á cida-de desde os tempos antigos e que chama os indivíduos para o exercício livre da cidadania e a construção a organização justa. Os espaços de participação cidadã se tornam cada vez mais formais e virtuais. A grande mídia parece ocupar cada vez mais o espaço do cidadão como sujeito participante do destino da cidade. A pergunta pela cidadania, ainda que re-petida em nossos dias, parece soar como palavras ao vento. Quem efetivamente vai garantir o exercício da cidadania? Qual será seu espaço de educação e participação? O que res-ta a cidade espacial? A modernidade nascente que pretendia fazer emergir o sujeito, foi sucedida por uma outra centrada no individuo, observa Alain Touraine.3 A teologia da cidade depara-se com esse estrangulamento político radical de nos-so tempo.

1.2 A cidade na história A cidade faz parte da história humana e constitui o seu

último produto, na forma das megalópoles, profundamente eficientes e contraditórias. Se a metrópole não for o final da história humana, será necessariamente o momento da infle-xão para a convivência mundial pacífica e justa. O sociólogo Lewis Munford há meio século já traçava um percurso pou-co otimista para a urbanização que, salva de sua linearidade histórica, expressa o desenvolvimento real das cidades: eó-polis (aldeia), Polis (primeiras cidades), Metrópolis (grandes concentrações), Megalópolis (metrópoles modernas), Tira-nópolis (hegemonia do espaço urbano sobre os demais) e Necrópolis (caos final).4

De fato, o tempo da modernização das cidades sob as regras do capital industrial foi gerando gradativamente, uma civilização do bem-estar e do mal-estar. A cidade mo-derna foi o lugar das contradições humanas e se tornou palco de lutas e de utopias sociais e políticas, particular-mente na segunda metade do século XIX. A crítica socialista expunha a lógica da exploração do trabalho pelo capital e denunciava as atrocidades desse modo de produção e pro-metia uma outra sociedade, estruturada sobre o equilíbrio entre individualidade e coletividade. A burguesia, por sua vez, continuava prometendo igualdade e fraternidade, por um equilíbrio econômico ainda por vir, centrado na idéia de interesse individual (liberalismo econômico) e auxiliado por uma ciência do social (positivismo). A utopia da cidade

3 Cf. A. TOURAINE, Poderemos viver juntos, iguais e diferentes? Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 68-111.

4 Cf. L. MUNFORD, A cultura das cidades. Belo Horizonte: Itatiaia, 1969, pp. 301-409.

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justa, lugar da liberdade e da igualdade, gestada na aurora da modernidade, permanecia no horizonte do poder institu-ído e dos movimentos sociais. O ocidente e, gradativamente o oriente, entraram no século XX com essa utopia acessa, enquanto a cidade econômica crescia geometricamente em todos os cantos do planeta. As metrópoles significaram o resultado implacável do poder econômico que aglomerou no mesmo espaço os donos das riquezas, os pobres e os miseráveis; elas configuraram situações de extrema contra-dição resultada não somente de uma coabitação de classes sociais que ocupam diferenciadamente os mesmo espaço, com seus diferentes poderes aquisitivos, mas também de um espaço que se torna mercadoria e passa a ser esquadri-nhado pelo valor imobiliário.

A hipermodernidade que hoje vivenciamos em nível mundial, fruto maduro do matrimônio indissolúvel entre o capital e a tecnologia, opera como sistema virtual e oni-presente e sustenta-se sobre a microeconomia do consumo individualizado. Sua base de operação são as megalópoles que conectadas entre si comandam o planeta a partir do mercado financeiro. São as chamadas cidades mundiais que abrigam os centros decisórios do capitalismo mundia-lizado, as redes de comunicação e a geração e expansão da cultura de consumo. Elas constituem centros da onipotên-cia do capital, da onisciência da informação e da onipresen-ça do consumo que de expandem de suas posições epicen-trais para as grandes cidades, para os centros médios, para as pequenas cidades e para as áreas rurais. Nessa dinâmica, o urbano se torna um modo de vida cada vez mais comum, com suas promessas de bem-estar.

No entanto, as metrópoles expõem a força do dinhei-ro, apesar das utopias sociais, a mercantilização para além dos direitos sociais, o isolamento sem cidadania, as mas-sas que absorvem os sujeitos. Se essa realidade tem um significado diferenciado realíssimo para as classes ricas e pobres, apresenta, contudo em nossos dias uma dinâmica cultural cada vez mais hegemônica que nivela nos mesmos desejos e nas mesmas utopias hiperindividualizadas os di-ferentes consumidores. A cultura de consumo é o último resultado do capitalismo mundializado e individualizado, de uma produção internacionalizada, desterritorializada e onipresente que se encaixa de modo dinâmico com os desejos e as necessidades individuais. Cada indivíduo con-some (come, usa, pensa e ama) matérias e formas mun-dializadas ao adquirir um determinado produto. Também,

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cada indivíduo deseja para si aquilo que se mostra como objeto de desejo de todos e busca realizar-se como cida-dão na medida em que pode adquirir o que lhe promete status e felicidade.

1.3 O discernimento teológico

O discernimento teológico da cidade pode correr um duplo risco. O primeiro o do acolhimento eufórico de suas fabulosas conquistas tecnológicas e da reprodução de sua cultura de bem estar, individualista e hedonista. O segundo risco, o da rejeição da cidade, seja por sua condição históri-ca a ser superada pela cidade celeste, seja por suas contra-dições a serem superadas por um outro modelo econômi-co, social e político. A afirmação da cidade justa significará superação das contradições da cidade real, sem negar seu valor intrínseco como organização necessária à convivên-cia humana; significará também ler em suas estruturas e dinâmicas concretas aquilo que for justo e bom. O ideal da cidade justa não constitui uma cidade ideal contraposta à cidade real, mas uma meta utópica que atrai como reserva permanente de sentido todos os projetos históricos. Nesse sentido, a esperança cristã realizada em Jesus Cristo posi-ciona-se como horizonte para o qual a comunidade humana se encaminha na busca da comunhão perfeita, ainda que saiba da impossibilidade de sua realização perfeita. Em ou-tros termos, o Reino de Deus embora não coincida com as ordens históricas, é a meta e a referência permanente para todas as construções humanas. É na tensão permanente en-tre concretização e o déficit em relação aos valores do Reino de Deus que a cidade revela aos olhos da fé, seus limites e suas realizações e projeta suas metas.

Discernir a cidade a partir desse horizonte de fé significa, portanto, critica de sua condição atual, afirmação de suas realizações e projeção de seus ideais. O Concilio Vaticano II entende que se afasta da verdade quem separa a cidade futura da cidade atual, priorizando uma das duas (gaudium et spes 43). Portanto, a crítica teológica da cidade será, ao mesmo tempo, leitura crítica de sua estrutura e funciona-mento, o que faz com o auxilio das ciências que se ocupem da questão, e proposição ética dos seus valores fundantes, o que faz dialogando com as proposições de uma ética humana e civil. O trabalho teológico articula concretamente elemen-tos que acolhe da fé e que recolhe da razão, seja no momento da critica, seja no momento da proposição.

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2. A teologia como logos de Deus sobre a cidade A teologia se relacionará com a cidade de modo cons-

ciente ou não. Certamente a relação consciente a caracteriza como reflexão da fé e a partir da fé, de forma que a cidade com suas necessidades e ofertas reais deve ser seu objeto de reflexão nos dias de hoje, como foi no passado. Porém, mais do que no passado a consciência da realidade, mediada pelas ciências do homem e da sociedade, permite à reflexão da fé aproximar-se e apropriar-se da cidade de forma mais regrada, sabendo de seus mecanismos, de suas tendências e valores. A cidade instaura a ordem e o caos no mesmo tempo e espaço; ela é auto-reflexiva e autofágica, é tecnológica e precária, boa e má, bela e feia. As regras sistêmicas de seu funcionamento instauram uma mecânica de vida em que os seus cidadãos já não são capazes de discernir o nexo entre a causa e o efeito de suas ofertas boas e ruins, mas, na prática, já não precisam discernir esses e outros mecanismos e localizar seus respon-sáveis, tendo em vista a racionalidade do bem-estar imediato que basta para o bem viver, outros, ainda, sequer buscam entender o que se passa por falta condições ou instrumentos de discernimentos críticos, ficando reféns das informações que circulam a toda velocidade.

Falar de Deus nessa realidade é, antes de tudo, falar dela mesma, mostrar suas contingências e contradições. O dis-curso de Deus na cidade deve revelar o homem urbano, des-pertá-lo para a consciência de si mesmo dentro desse mundo de que é cada vez mais individuo e menos sujeito. A teologia poderá contribuir com o discernimento da cidade, buscando evidentemente a cidade mais humana. Para tanto é preciso acordar o humano adormecido no seio do mercado da feli-cidade. Uma teologia do tempo real se torna hoje o grande desafio perante a sociedade da informação instantânea e pre-cisa, mas também da informação excessiva e fragmentada. As conexões mundiais, nacionais e locais que ligam indivíduo e globalidade passam pela cidade; é da cidade produtora de produtos, de necessidades e desejos que advém e circulam produtos materiais e simbólicos, tecnologias da informação e decisões mundiais dos intestinos do mercado financeiro.

A civilização planetarizada e urbana subsiste nesse lócus e dentro dele busca sua felicidade por meio de aquisições imediatas e renováveis. A teologia fará o discernimento des-sa realidade e dialogará com esse interlocutor ou não terá o que fazer a não ser repetir padrões do passado, alheia aos clamores presentes. Há muitos aspectos da lógica da cidade

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que poderíamos discernir, tais como as idolatrias microeco-nômicas do consumo hiperindividualizado, a prepotência da tecnologia ou o relativismo dos valores.5 Focaremos em três pontos que julgamos cruciais e que desafiam diretamente a vida de fé de cada fiel na sua vida diária: a cidade satisfeita, a cidade confiante e a cidade indiferente.

2.1 Discernimento dos desejos na cidade satisfeita

A cultura de consumo que se torna cada vez mais he-gemônica tem na cidade sua fonte e epicentro; se expande das cidades mundiais às metrópoles regionais, dessas aos centros médios, atingindo as pequenas cidades e o próprio campo. Se, no passado a cidade era o lugar da indústria dos produtos, hoje ela é indústria do consumo. A produção visa satisfazer não somente às necessidades com os gêneros bási-cos de sobrevivência, mas estimular o indivíduo consumidor, fazer desejar e fazer consumir. As tecnologias se colocam a serviço da produção, criando produtos cada vez mais sofisti-cados, individualizados e eficientes. Consumir torna-se cada vez mais um modo de vida e integra o individuo ao mercado, não por decisões livres de cunho político e ideológico, mas por ofertas que oferecem bem-estar de todas as ordens na esfera do cotidiano. O mercado já não é somente uma es-trutura macro, mas um sistema que encaixa o macro com o micro, ou seja, a produção mundializada e os consumidores individuais: está dentro de cada indivíduo na forma de bens materiais e simbólicos que são oferecidos incessantemente como promessa de maior bem-estar.

Esse encaixe liga em um mesmo ciclo de movimento in-cessante a lógica econômica da produção-oferta-consumo... com a psicologia humana do desejo-satisfação-insatisfação... O resultado é a prisão virtuosa-viciosa desejo-consumo-insa-tisfação-oferta-desejo-consumo... A efemeridade dos produ-tos sempre caducáveis e renováveis responde à efemeridade dos desejos humanos e vice versa. O efêmero funciona como sedução, como consumo emocional que se mostra sempre renovado e sempre mais belo e eficiente. Sua linguagem é essencialmente estética, visa atrair o desejo para consumir os produtos. Para o desejo basta parecer. Parecer é ser.6

A metrópole produz, sustenta e expande a cultura de con-sumo que promete felicidade aos consumidores. Na cidade satisfeita, já não há nem lugar e nem necessidade de utopias que clamem por direitos individuais e coletivos, ou seja, que reivindiquem necessidades porque os desejos são satisfeitos

5 Cf. J. B. LIBANIO, As lógicas da cidade; impactos sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo: Loyola, 2001, passim.

6 Cf. G. LIPOVETSKY, A felicidade paradoxal. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manole, 2005, pp. 98-148.

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no ato de consumir. As classes ricas se sentem incluídas efe-tivamente no ciclo das facilidades instantâneas. Os pobres buscam alcançar os mesmos direitos de satisfação, consu-mindo as marcas falsas, os produtos piratas ou mesmo pela via do furto. Na cultura do consumo, todos são cidadãos e se sentem felizes. Já não há mais cidade ser buscada, a fe-licidade suprema é oferecida em cada novo produto numa embriaguês lenta e incessante.

A teologia deverá contribuir com o discernimento da satisfação-consumo como realização da liberdade e da igual-dade dos cidadãos. O difícil desvelamento desse mecanismo exige a superação da reprodução desse ciclo no âmbito das práticas religiosas centradas na satisfação-consumo. As di-versas formas de individualismo religioso que oferece pela via do emocional a experiência de maior satisfação sem com-promisso comunitário e social, negam as exigências éticas inerentes ao evangelho de Jesus Cristo.

O discernimento do próprio desejo como caminho de busca ilimitada parece estar no centro da experiência reli-giosa de um modo geral, não como posse extática (estética) do sobrenatural, mas como posse controlada que baliza as posições e relações ente finitude e infinitude, entre Criador e criatura. Mostrar as reais necessidades e relativizar os de-sejos parecem ser o caminho ético e político inevitável a ser trilhado pela fé cristã nos tempos atuais, porém sem reeditar padrões de convivência, centrados no estrito dever e na nega-ção do prazer. No fundo contraditório do indivíduo consu-mista-hedonista habita o eu satisfeito-insatisfeito de onde se pode resgatar o sentido da felicidade autêntica que concilia necessariamente limite e potência, contingência e realização, desejo e dever, condições inerentes à condição criatural que remete toda individualidade a construção de relações para além de si mesma, com o mundo, com o semelhante e com o Criador.

2.3 Discernimento da crença na cidade confiante

A cidade é um sistema de objetos e de sujeitos que fun-ciona com eficiência. Sua razão de ser é, de fato, funcionar para que possa oferecer os bens que os seus membros procu-ram. A cultura de consumo instaura uma ordem que inclui de modo desigual todos os cidadão, na medida em que a finali-dade do bem estar individual se torna a máxima da vida e a máxima do mercado. Se, do ponto de vista do poder aquisiti-

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vo real, esse sistema é falido, do ponto de vista da ofertas de satisfação é excessivo, sedutor e providente. Mas, a eficiência das cidades adquire sua máxima expressão com as modernas tecnologias que refazem suas infra-estruturas, seus serviços e suas relações. O domínio tecnológico do espaço e do tem-po recria essas categorias fundamentais em suas dimensões ontológica, epistemológica e social. Os objetos e os serviços se desterritorializam por meio das redes internacionais, o conceito de tempo real recoloca as condições de informação e de aquisição de conhecimento, as relações humanas se tor-nam anônimas. As tecnologias vão recriando o sistema das cidades tornando-as onipresentes e onipotentes na vida de seus habitantes e de habitantes externos, na forma do mais abstrato e complexo, do mais ágil e eficiente. Os cidadãos participam desse sistema em diferentes posições de interes-ses e poderes, porém situados em posição pontual no grande sistema, quando não passivo e alienado em sua dinâmica e benefícios.

O sistema das cidades realiza o que explica o sociólogo Anthony Giddens: um sistema abstrato e organizado a partir de peritos.7 As sociedades modernas se edificam sobre uma confiança, na medida em que as relações causa-efeito se tor-nam distantes dos usuários e, muitas vezes, inacessíveis, de-vido à própria abstração do sistema. Viver na cidade é ser um usuário crente de seu funcionamento regular e eficiente. Acreditamos nos resultados das tecnologias sem conhecer-mos sua mecânica, acreditamos na autenticidade dos pro-fissionais sem sabermos de suas reais competências, usamos todos os serviços como se fossem saudáveis, seguros e bons. Sem a confiança seria impossível viver na sociedade e utilizar seus serviços e, ao mesmo tempo, prestar serviços a ela.

O mágico e o pragmático regem as posturas das pessoas no sistema das cidades. As tecnologias evoluem rapidamente e se tornam cada vez mais eficientes e espetaculares. Pelo consumo usamos seus resultados de maneira sempre mais individualizada. Já não há mais necessidade de duvidar e nem de esperar pelo futuro bom ou ruim. Basta confiar e viver o hoje de forma mais plena possível.

Dentro desse sistema, a teologia pode contribuir com o cultivo da dúvida e da esperança. A dúvida sobre a eficiên-cia humana da tecnologia, sobre seus resultados em termos de felicidade e de sustentabilidade para as gerações futuras, constitui, certamente, um caminho de conscientização a ser construído. Cresce em nossos dias a consciência dos limites ecológicos do modelo civilizacional em que vivemos, embora

7 Cf. A. GIDDENS, As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, pp. 83-113.

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ainda estejamos inseridos em nossas práticas individualiza-das dentro da dinâmica que produz a própria falência. A fé profética ensina a duvidar da eficiência definitiva das con-figurações históricas, educa para a relativização do poder e anuncia um futuro de felicidade que transcende o imediato. A esperança cristã encontra-se, certamente, perante o desafio de resgatar de seu núcleo escatológico elementos que apon-tem para os limites da historia, para as promessas ilusórias da cidade eficiente. A presença solidária nas situações-limites da cidade pode ser um caminho viável, não para oferecer falsas soluções para os pobres e sofredores, seja por rituais mági-cos, seja por promessas políticas, mas como oportunidade de apontar para o sentido da existência pessoal e social, de revelar o ser humano.

A confiança no sistema hipermoderno tende a aumentar, na medida em que as tecnologias avançam em suas eficiên-cias e proporcionam bem-estar. A renovação incessante dos produtos tecnológicos renova continuamente a confiança. A ilusão da plenitude humana realizada no cotidiano captura as práticas religiosas como reforço e certificação e dispensa todas as reservas escatológicas. Já não há o que buscar fora dessa esperança varejista. A fé em seu sentido preciso aponta para a grande esperança que rompe com as clausuras histó-ricas. A teologia da esperança terá apelo se estiver vinculada à teologia da crise, horizonte de onde se pode anunciar algo de novo para além do bem estar. A necrópole anunciada por Lewis Munford deve ser o lócus de onde a fé alavanca seu discurso e aponta para os limites da crença na eficiência das máquinas e do consumo. A necrópole tem suas evidências na pobreza, nas doenças, na crise ecológica, nos narcóticos, na violência e em outros males que habitam a metrópole. Es-ses limites se mostram em espacialidades e temporalidades concretas dentro da cidade; temporalidades e espacialidades que não coincidem com aquelas cristalizadas na cultura ca-tólica, do domingo e do templo, e solicitam novas formas de presença dentro da cidade, para além das regras e da cultura eclesialmente instituídas.

Ao pensar a civilização tecnológica, o filósofo Hans Jonas propunha uma ética da responsabilidade, pautada na consci-ência da crise do futuro. O medo do futuro, segundo o pen-sador judeu, teria uma função heurística para a construção da vida ética atual.8 Não se trata, certamente, de resgatar a teologia da desgraça e do medo que predominou em outras épocas, mas de uma teologia que consiga romper com as ilusões, que fale a partir do mal estar metropolitano e não

8 Cf. H. JONAS, O principio responsabilidade. Ensaio de uma ética para uma civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC/Centroponto, 2006, pp. 70-75.

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reproduza suas ilusões de bem estar ilimitado e de realização humana plena. O tempo e o espaço em que se manifestam os limites da vida metropolitana não são nem hegemônicos e nem sempre visíveis ao cidadão comum, a não ser quando se tornam tragédias televisivas, banalizadas como mais um espetáculo da rotina da cidade.

A inserção pastoral nesses ambientes e a revelação de suas existências por parte do discurso da fé têm um sentido mo-desto: o de falar a partir de minorias e de realidades inúteis ao sistema satisfeito. Exige a consciência de que a cidade não pode não ser cristã, ainda que confesse com tal. A pretensão de evangelização do sistema da cidade como um todo, além de ser um sonho ultrapassado de cristandade, constitui uma abstração enganadora. É de dentro de suas rachaduras a fé poderá apontar para o autenticamente humano, convicta de que a cidade será mais cristã se for mais humana.

2.3 Discernimento do outro na cidade indiferente

A cidade satisfeita e segura do funcionamento de si mes-ma, como sistema tecnologicamente eficiente instaura a in-diferença como sua regra de funcionamento. Para além do individuo feliz, não se necessita de valores. O outro se torna um excluído do regime do consumo-felicidade que, por exigir ruptura do ciclo desejo-consumo-satisfação..., se mostra des-necessário ao bem-estar individual. A indiferença está, desse modo, incluída na cultura de consumo não somente como um anti-valor do sujeito consumidor que, do ponto de vista moral, pode ser denominada egoísmo, mas como um com-portamento inerente ao próprio regime de vida que busca in-dividualmente a máxima felicidade com o menor esforço. Ser indiferente em relação ao outro se torna atitude natural, uma vez que o sistema funciona regularmente oferecendo a cada individuo produtos cada vez mais individualizado. Trata-se de uma indiferença muitas vezes reforçada pela busca da paz interior, através de espiritualidades introspectivas ou mesmo de gestos solidários que ajudam a consciência mergulhar na paz. A literatura de auto-ajuda, as buscas religiosas extáticas e as terapias alternativas respondem pelo princípio do prazer individual e cria uma ética indolor distante e isenta do dever, como constata Lipovetsky.9

A dúvida em relação à eficiência do sistema moderno é o caminho negativo que pode levar a descrença em relação à satisfação imediata, à inclusão falsa e perversa no sistema

9 Cf. G. LIPOVETSKI, A sociedade pós-moralista, ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 25-125.

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de consumo e à consciência do risco do futuro. A busca de um futuro viável poderá contribuir com a busca do presente viável, para além de todos os imediatismos fáceis, eficientes e hedônicos. A construção do presente certamente deverá ir além do individualismo e encontrar o outro dentro da cidade indiferente.

A teologia da cidade será, então, uma teologia profética que aponta para os buracos e para as ausências, que explicita as ilusões e os riscos do futuro. Revelar o outro com suas reais carências, para além das ilusões do bem-estar, como excluídos da igualdade real, é uma tarefa que exigirá persis-tência profética, anunciar para quem não quer ouvir, apontar na direção oposta das práticas comuns. A injustiça rotinizada na dinâmica da grande cidade adquire disfarces que a ocul-tam sob as mesmas regras estéticas do consumo ou, então, instaura a normalidade dos que carecem das condições mí-nimas de vida. A grande mídia transforma em espetáculos as tragédias urbanas que envolvem os conflitos entre pobres e ricos e entre os pobres e os pobres e banalizam o bem e o mal, em nome da informação factual e isenta de juízos de valor. As contradições sociais transmitidas em tempo real tornam-se normais, ridículas e atemorizadoras, responsabilidades úni-cas do poder público que não dá conta de realizar sua pro-messa de bem estar.

A indiferença é o maior mal de nossos tempos, dizia a san-ta de Calcutá. O ocultamento do outro esconde o próximo e, sobretudo, os desvalidos para o funcionamento do regime do bem-estar. A indiferença sistêmica constitui a mais grave an-ti-cristianismo por ocultar os desvalidos e, por conseguinte, ocultar Jesus Cristo presente neles. A sentença escatológica, a mim o fizeste, encenada por Mateus (25,31), pauta a vida cristã na cidade indiferente como imperativo categórico para todas as práticas cristãs. O ocultamento do pobre, dentro do regime de bem-estar da metrópole, com sua dinâmica de sa-tisfação democrática e de cidadania consumista constitui a retirada real do cristianismo do espaço público, sob os olhos distraídos das ortodoxias da fé pura e das hierarquias preo-cupadas com a presença política de suas igrejas na sociedade.

Considerações finais

A cidade é o modo de vida da humanidade atual e, cer-tamente, da humanidade do futuro; por ela passará nossa sobrevivência ou nossa sucumbência. Penar e planejar a vida na cidade e a partir da cidade é tarefa de todos, independente

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de credo e de ideologias. A teologia atual será feita, portanto, necessariamente em sintonia com essa realidade. Ainda que se ocupando de objetos particulares esses estarão vincula-dos à vida urbana, ao homem urbano. A critica teológica da cidade continua afirmando o ideal humano da cidade justa, para além de todas as configurações presentes, particular-mente daquelas que negam esse ideal com promessas e com mecanismos de ocultamento do autenticamente justo. Nesse ponto, pode encontrar com os ideais da modernidade que viu na cidade o lugar de realização da liberdade e da igualdade, bem como com ideais que fazem revisões da modernidade em nome da vida planetária de hoje e de manhã:

a) A teologia da cidade é um discernimento sobre a re-alidade a partir do que ela é e do que ele deve ser; afirma valores que apontam para a realização do ser humano como liberdade e igualdade radical, como dignidade assumida por Deus. O logos de Deus sobre a cidade é um logos político, que busca a finalidade da vida humana, emblematicamente concentrada no mesmo tempo e no mesmo espaço. Nessa condição, o ser humano mostra necessariamente suas dife-renças e sua natureza comum, desnuda os conflitos e aponta para a finalidade da vida. Assim como no passado, a cidade pode esconder interesses particulares que se sobrepõem ao bem comum. A racionalidade tecnológico-consumista tende a criar a ilusão da igualdade e da finalidade realizada no aqui e no agora. A cidade necessita de logoi valorativos que apon-tem para a sua finalidade, para além de todos os interesses e práticas isoladas que neguem a máxima da vida comum. A teologia da cidade é desvendamento das ilusões e indicação do sentido último e imediato da vida humana, essencialmente comum, e historicamente feita urbana.

b) Portanto, a racionalidade teológica afirma-se como discernimento da vida metropolitana, como racionalização necessária perante os mecanismos mágicos que rotinizam fatos e ocultam as causas, amparados pela crença no fun-cionamento do sistema moderno e pelo bem-estar do dese-jo satisfeito pelo consumo. A razão teológica é crítica dessa realidade em busca do ser humano que nela deve ser o valor supremo. A teologia da cidade será sempre crítica e utópi-ca, por repetir que a cidade constitui uma ordem destina-da unicamente ao bem comum. Em diálogo com as ciências sociais, terá condições de apontar para os mecanismos que produzem e reproduzem todas as formas de negação ou

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ocultamente dessa finalidade precípua. A interlocução com o homem metropolitano/urbano é uma tarefa teórica e prática que exige auscultar seus clamores, para além ou para aquém das satisfações realizadas e das necessidades irrealizadas. Será preciso descobrir de novo quem é o homem metropo-litano, seus anseios, seus limites e suas possibilidades que já não são mais aqueles do homem neolítico. O homem estará para além do individualismo e da massa anônima que hoje o reduzem a um hiperindivíduo, centrado em suas satisfações.

c) Contudo, a teologia se torna ideológica quando repro-duz a cultura hegemônica, o pensamento hegemônico ou o sentimento hegemônico que fecha a história em ciclos sem saída. E não se trata apenas de um equivoco político, por participar dos mecanismos de ocultamento da realidade, mas de um equivoco teológico por reduzir o logos de Deus de que é portadora por oficio a esquemas imanentes que prendem o ser humano, ocultando sua verdadeira essência. A teologia tem um papel de plantar no ser humano a busca da verdade, sem tréguas e sem finalizações. A leitura teológica da his-tória conduz os ouvintes da Palavra à dúvida e à esperança no futuro melhor. A partir do futuro, a teologia questiona o presente e expõe suas contradições. Abrir a história e o ser humano para a busca da plenitude implica romper com as autossuficiências presentes que fecham o ser humano em sim mesmo, a história em si mesma, a vida em si mesma. A teo-logia da cidade e para a cidade lidará necessariamente com a contradição, sob pena de projetar uma cidade ideal sobre a cidade real, mesmo que em nome da cidade celeste que há de vir como desfecho final das contradições históricas. Uma teologia da esperança anuncia um ponto de chegada que re-vela o sentido do percurso histórico: a comunhão de todos os filhos de Deus.

d) Portanto, a teologia da cidade é critica da cidade. Desvela os mecanismos que mantém a injustiça. A cidade nasceu como lugar da liberdade e de realização da justiça. Sem a justiça a cidade perde sua finalidade que é o bem co-mum, finalidade que fundamenta todo ordenamento legal, os poderes e as políticas públicas. A cidade mais cristã é necessariamente a cidade justa e não a cidade mais religiosa ou mais satisfeita material e espiritualmente. Mais perversa que a injustiça institucionalizada que tem nome e endereço, é a injustiça rotinizada que vai sendo internalizada como normal ou como inevitável pelo cidadão atual e se esconde

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dos olhos e das consciências. E as causas da injustiça roti-nizada se ocultam sob os mecanismos do sistema abstrato do capital mundial. Mesmo sendo um mal real, se mostra sem autoria e se torna supra-legal por carecer de matéria e de autoria evidentes. A teologia da cidade é a teologia da justiça que mostra as injustiças nela presentes e desvela seus mecanismos, quando a maioria satisfeita já não enxerga e sequer localiza suas causas como num ato mágico de efeito sem causa. A teologia conhece a causa e a finalidade do ser humano e pode desde essa cosmovisão apontar para tudo aquilo que oculta o humano na cidade atual. As práticas religiosas que ocultam o ser humano, escondem Deus, são antiteológicas, atéias. A cidade só pode ser o lugar da tran-sitividade do eu para o outro, caminho por onde veicula a humanização e a espiritualização do ser humano; caminho único por onde transita Deus.

e) Contudo, a teologia da cidade será conscientemente inculturada. Fará o discernimento da cultura urbana. A fé inculturada não pode nem negar a cultura urbana como perversa em si mesma e nem de reproduzi-la em nome do anúncio eficiente e da conquista de fiéis. A inculturação é um ato de diálogo em dupla mão: promoção da audição e do anúncio com os sujeitos reais. Será necessário superar os discursos abstratos de inculturação que ignoram os su-jeitos concretos e os processos reais da vida metropolita-na. Os sujeitos se encontram dentro de um sistema maior que deverá ser não somente compreendido, mas também perfurado pela fé com suas dúvidas e promessas. Do con-trário a evangelização será, como já dizia o Papa Paulo VI um verniz superficial10 agora aplicado sobre o sistema au-torreferenciado e autossuficiente que usa o religioso com um de seus assessórios ou como uma muleta ideológica. Para anunciarmos as ilusões do sistema metropolitano é preciso renunciar às ilusões da evangelização indolor que enfileira as dinâmicas predominantes do consumo e do bem estar que reafirma a busca individualista do eu satis-feito. A cultura cristã é a cultura do outro e fora dela não há salvação.

f) Com efeito, a teologia da cidade deverá encontrar na cidade afinidades eletivas com os valores cristãos. A cidade atual resulta de uma história de lutas por liberdade e igualdade desde as suas origens no século XIII. Nela há lugar para afirmar a centralidade do ser humano contra

10 Cf. Evangelii nuntiandi, nº 20.

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todas as formas de ocultamento e de negação de seus di-reitos. A busca da cidadania plena permanece o ponto de convergência entre as lutas políticas modernas e as causas fundamentais do cristianismo. A autonomia é um valor e um caminho a ser trilhado por todos na grande cidade, um antídoto da anomia e do anonimato que tem prevalecido como exercício do individualismo hedonista. A pluralida-de é, por sua vez, um meio de realização da liberdade e do amor que inclui em seu exercício efetivo todos os se-melhantes, para além dos comunitarismos sectários que exclui o outro. O humano como valor fundamental pode elevar-se aos olhos da fé como a priori e a posteriori de toda pluralidade, como outro que por si mesmo se mostra como apelo ao relacionamento, sem os vínculos tradicio-nais do parentesco, da vizinhança e da própria nacionali-dade. O diálogo com as diferenças será o meio único para se chegar à cidade justa e fraterna, casa comum de todos os filhos de Deus, antes de se colocar qualquer diferen-ça biológica, cultural, política ou religiosa. O caminho do diálogo se torna, portanto, inevitável para a teologia da cidade, por onde tecerá trocas críticas e criativas com as tecnociências, com as religiões e com as utopias que avan-çam para além do imediato.

g) Por fim, a crítica, a sintonia e a interlocução com

a cidade será feita a partir da esperança no futuro da hu-manidade tomada em seu aspecto universal, não somente como grandeza filosófica (natureza comum de todos) e teológica (igualdade dos filhos de Deus), mas também ge-opolítica (as condições de vida globalizada) e ecológica (o destino radicalmente comum de todos os seres vivos). O futuro que pode ser anunciado é o futuro comum, fora dele não haverá sobrevivência. As cidades já entraram em um mecanismo de funcionamento mundializado, nos aspectos econômicos, social e cultural. Pensar a cidade do futuro como grande esperança e como urgência política constitui a grande tarefa da teologia, tanto nos aspectos teóricos (fazer em nome de Deus a recolocação de parâmetros para a convivência global, ao mesmo tempo comum e plural) quanto práticos (contribuir com o estabelecimento de cri-térios e meios para a convivência da cidade futura). A te-ologia da cidade será, portanto, uma teologia ecológica, capaz de incluir em sua crítica e em sua proposição todas as diversidades unidas no único valor fundamental que é a vida.

João Décio Passos – Uma Crítica Teológica da Cidade

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siNCrEtisMO dOs MigraNtEs Nas CidadEs E a tarEFa da tEOlOgia pastOral

Afonso Maria Ligorio Soares*

Resumo: Afonso Soares neste ensaio apresenta em linhas gerais, o quão desafiadora é a situação da pastoral da mobilidade humana. Para tanto, ele parte das normas eclesiais sobre o assunto (reconhecimento da complexidade do fenôme-no e de seus efeitos sobre a fé e a prática religiosa), apre-senta alguns exemplos do sincretismo religioso (Fátima indiana, mudanças na religiosidade etc.) e por fim, algu-mas linhas gerais de uma teologia pastoral cujo centro de referência seja a religiosidade dos migrantes.

Palavras-chave: Migrantes; Pastoral dos Migrantes; Teo-logia pastoral; Sincretismo religioso.

Abstract:In a broad way Afonso Soares presents here the huge chal-lenge that the pastoral of the human mobility is to Church pastoral activities. Ecclesiatical norms and Church’s laws on the issue (acknowledge of the complexity of the phe-nomenon and its effects on faith and religious practices), some examples of syncretism (Hindu Fátima, religious changing and so on) and the main trend of pastoral the-ology are the pathways used in order to see the religious syncretism and also the migrant religiosity.

Key words: Migrants; Migrants Pastoral; Pastoral Theol-ogy; Religious Syncretism.

Meu propósito neste ensaio é, a partir de alguns dados colhidos da realidade, suscitar alguns questionamentos que, talvez, ajudem a iluminar os desafios que a pastoral e a teo-logia das migrações têm pela frente. Procederei em três tem-pos: de início, recordarei a preocupação atual do magistério católico com o sincretismo entre os migrantes; depois, ofe-recerei alguns exemplos nossos e internacionais de sincre-tismos entre os (i)migrantes; finalmente, focarei a tarefa da Teologia Pastoral a partir da sugestão de que esta tem de se

* Professor da PUC-SP; o presente ensaio é a elaboração de conferência dada pelo autor no ITESP, por ocasião da Semana Teológica de 2010.

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deixar iluminar por uma Teologia da Revelação que dialogue sempre mais com a Teologia das Religiões.

1. O magistério católico e o sincretismo entre os migrantes

Os dados deste primeiro item podem ser conferidos no portal oficial do Vaticano.1Refiro-me à Instrução Erga mi-grantes caritas Christi, do Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e os Itinerantes, vinda a público a 3 de maio de 2004. Já na Apresentação o documento reconhece a crescente complexidade do fenômeno do ponto de vista so-cial, cultural, político, religioso, econômico e pastoral, e vê a

necessidade de uma visão ecumênica deste fenômeno, por causa da presença de muitos migrantes cristãos não em plena comunhão com a igreja Católica, e do diálogo inter-religioso, por motivo do número cada vez mais con-sistente de migrantes de outras religiões, em particular daquela muçulmana, em terras tradicionalmente católi-cas, e vice versa.

O § 10 destaca que

a maior parte dos migrantes no mundo inteiro, se movi-menta hoje no interior da própria nação, o que tem favo-recido o crescimento rápido e desordenado de centros ur-banos não preparados com precárias... condições de vida, e grandes perigos de desenraizamento social com graves consequências sobre as tradições religiosas e culturais das populações.

Segundo o § 11,

o Espírito apresenta, com clareza e urgência, o apelo a um renovado e forte empenho de evangelização e de carida-de, através de articuladas formas de acolhida e de ação pastoral, constantes e capilares, o mais adequado possível à realidade e correspondente às necessidades concretas e específicas dos próprios migrantes.

Nesse espírito, a Parte II da Instrução defende, no nº 34, que

a igreja ... proclama a necessidade de buscar a verdade, numa perspectiva de justo confronto, de diálogo e de acolhi-

1 Cf. http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical councils/migrants/documents/rc _pc_migrants_ doc_ 20040514_erg a-migrantes-caritas-christi_po.html#_ftnref53

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da recíproca, entendendo que as diversas identidades cultu-rais devem abrir-se a uma lógica universal, não desprezando as suas próprias características positivas, mas colocando-as a serviço de toda a humanidade, desafio este que o próprio texto vê como sem precedentes para uma encarnação da única fé nas várias culturas, verdadeiro kairòs que interpela o Povo de Deus.

O nº 38 traduz concretamente esse zelo em termos de cuidado de um determinado grupo étnico ou ritual, que tende a promover um verdadeiro espírito católico; e o nº 39 vislum-bra nas migrações um evento que atinge também a dimensão religiosa do homem, porque estas oferecem aos migrantes ca-tólicos a oportunidade privilegiada, embora freqüentemente dolorosa, de alcançar um maior sentido de pertença à igreja universal, para além de cada particularidade. É por isso que encontramos no § 41 a recomendação de que as Igrejas par-ticulares repensem e reprogramem a pastoral para ajudar os fiéis a viver uma fé autêntica no novo contexto multicultural e plurirreligioso hodierno, com uma atenção particular, frisa o § 46, na religiosidade popular que caracteriza muitas comu-nidades de migrantes.

Mas o magistério católico também vê riscos nesse proces-so. O § 48 salienta um

particular perigo para a fé que deriva do atual pluralis-mo religioso, entendido como relativismo e sincretismo em questão de religião. Para a Instrução, esse é um dos mais graves problemas pastorais hodiernos, juntamente com aquele do grande desenvolvimento das seitas.

É claro que essa preocupação não implica em descaso pelos migrantes de outras religiões, em geral, pois, como su-blinha o § 59, estes devem ser sustentados, em cada caso, no que é possível, a fim de que conservem a dimensão transcen-dental da vida. Esta consideração é importante, pois, ainda que se tenha a convicção de que a igreja é a via ordinária de salvação e que somente essa possui a plenitude dos meios de salvação, fica aqui desautorizado qualquer tipo de proseli-tismo que se aproveite da situação de fragilização em que se encontram esses milhares de comunidades humanas.

É por isso que o § 69 insiste em que se garanta aos fiéis e principalmente aos agentes de pastoral envolvidos nessa pastoral

uma sólida formação e informação sobre as outras religiões, para vencer preconceitos. O parágrafo faz aqui uma precisão

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importante: o diálogo entre as religiões não visa apenas nem primeiramente a busca de pontos comuns, para construir jun-tos a paz, mas sobretudo é ocasião para recuperar [nossas] dimensões comuns, a saber, oração, jejum, nossa vocação fundamental, abertura ao transcendente, adoração de Deus, solidariedade entre as nações.

O quadro, portanto, é este: a Igreja católica reconhece a complexidade do fenômeno migratório, investe numa estra-tégia de manutenção da fé católica entre os migrantes, evi-ta falar de proselitismo, e sinaliza com a inculturação como meio de frear relativismos e sincretismos. Não há trabalho fá-cil pela frente, mas é difícil pensar num planejamento oficial que não inclua esses elementos.

2. Sincretismos entre os (i)migrantes: exemplos

Os filósofos ateus e cientistas sociais parecem já confor-mados com o fato de que a religião não some tão cedo de nossas pautas. O modelo moderno que vislumbrava a imi-nência do fim da religião não consegue mais negar que aden-tramos o Século XXI repletos de religião. Se para algo se prestou a nova ordem global, foi para trazer sérios conflitos religiosos, submetendo levas e levas de migrantes a desenrai-zamentos até religiosos que, por vezes, voltam à tona em sur-tos fundamentalistas que buscam, no desespero, recuperar certa sonhada identidade.

A religião driblou o próprio avanço tecnológico que se esperava fosse seu principal algoz e deu o troco assumin-do e utilizando a modernidade tecnológica, mesmo se nem sempre se mostre dócil à modernidade política e cultural. É nessa nova configuração do assim chamado mercado da fé que gostaria de destacar a seguir alguns fenômenos desse encontro entre religião e migração.

1) nossa Senhora de Fátima: uma deusa hindu2

Conforme a pesquisadora Helena Sant’ana, a população hindu feminina residente na Área Metropolitana de Lisboa (e Porto) é proveniente de Moçambique, que migraram para Portugal a partir de finais da década de 1970. A partir de 1990, por processo de reunificação familiar, vão surgir mi-grações provenientes diretamente da Índia. A população in-diana residente em Portugal chega a 80.000 pessoas, sendo 50% de proveniência goesa e damanense, 30.000 de religião

2 Cf. H. M. SANT’ANA, Migrantes Hindus em Portugal: trajectos, Margens e Poderes. Tese de Doutorado em Sociologia defendida no Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Julho/2008. http://repositorio.iscte.pt/bitstream/10071/1443/1/(1)%20Relat%C3%B3rio%20final.pdf Último acesso: 29/01/11.

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islâmica (muçulmanos, ismaelitas e sikhs), e cerca de 10.000 pessoas de religião hindu.

Os templos domésticos das mulheres hindus, mesmo as que entram em possessão, contêm uma iconografia mista de cristianismo e hinduísmo. Helena Sant’ana observa que

já Max Weber havia referido que os hindus não se sentem perturbados pelo fato de aceitarem determinados ritos ou iconografia cristãos. A liberdade de opinião e o sincretis-mo em matéria religiosa são excepcionais entre os india-nos hindus, para os quais o conceito de dogma não parece ter lugar.

Isto é, eles (...) podem aceitar toda a cristologia, a qual influenciou profundamente o desenvolvimento da mitologia vishnuíta e dos movimentos de Khrisna (...), dirá Weber.3

Sant’ana está segura de que no hinduísmo popular pra-ticado em Portugal entre as castas mais baixas a crença em Nossa Senhora de Fátima já está sedimentada. Não é raro que a imagem da Virgem católica seja encontrada em pé de igualdade nos altares, ao lado daquelas de deusas hindus. Até mesmo se observam peregrinações anuais ao santuário de Fátima, principalmente de mulheres de castas diveshas. Se-gundo Isabel C. Henriques, as médiuns que recebem mataji (descida da deusa Mata sobre a médium) passaram a incor-porar Nossa Senhora de Fátima, embora com particularida-des interessantes: Ela não fala português, fala naquela língua do Papa [latim]. Há pouco tempo passou a descer e nós pedi-mos a sua benção, e passamos a fazer puja também para ela. Sempre que fazemos vrat também oramos a ela.4

Apoiada em Hobsbawm e Ranger,5 Sant’ana recorda-nos que existem condições sociais específicas sob as quais ocor-rem fenômenos de invenção da tradição, sendo a principal delas o fato de se submeter determinada sociedade a rápidas transformações que enfraquecem os padrões sociais e acabam por eliminar ou forçar uma readaptação das tradições insti-tuídas de pouca maleabilidade. Para a autora, em Portugal existe a convicção (...) da quebra de valores e costumes hindus entre a população de segunda ou terceira geração.6

Mas os depoentes também sabem que a transposição do hinduísmo em outras regiões do mundo gera modificações que o vão distanciando do que se pratica atualmente na Ín-dia. Como diz um dos depoimentos recolhidos pela autora: nosso hinduísmo é diferente do da Índia. nós vemos a dife-rença quando vamos lá e comparamos com o que fazemos

3 Idem, p. 252.4 Cf. I. CASTRO HENRIQUES, A sociedade colonial em África: Ideologias, hierarquias, quotidianos. In BETHENCOURT, F. - K. CHAUDHURI (Eds.), História da Expansão Portuguesa, Lisboa: Círculo de Leitores, 1999, Vol. 5, pp. 216-301.5 Cf. E. HOBSBAWN - RANGER, T., A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.6 Cf. H. M. SANT’ANA, Migrantes Hindus em Portugal, op. cit., p. 257. Vejam um dos depoimentos que a autora recolhe: Existem jovens indianos que tentam se inserir na nossa comunidade mas não conseguem porque não sabem o significado da nossa religião. também pelo fato de não estarmos na Índia há coisas que não são possíveis fazer e vão-se perdendo.

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aqui. Mas há pessoas que não percebem que na Índia já está tudo mudado, não é como há 50 anos.7

Com base na tríplice tipologia de tradições inventadas e legitimadas, formulada por Hobsbwam e Ranger – a saber: as que estabelecem e simbolizam a coesão social e a perten-ça dos membros do grupo; as que estabelecem instituições, estatutos ou relações de autoridade; as que têm como prin-cipal propósito a socialização dos membros da sociedade – Sant’ana vê no hinduísmo popular praticado em Portugal en-tre as castas mais baixas a tentativa de enraizar a identidade hindu no complicado processo pós-colonial. A reinvenção do passado serviu os interesses de casta e de gênero.

O interessante trabalho de Sant’ana segue tirando conclu-sões sobre o significado de ser hindu na diáspora. Mas creio que já temos aqui uma primeira provocação importante para nosso escopo. Olhando o fato do ponto de vista cristão, ou de uma teologia pastoral católica que assuma a solidariedade em meio aos migrantes, o fenômeno sugere algo que o teólogo Andrés Torres Queiruga prefere chamar de inreligionação, ou seja, as pessoas, a partir de seu referencial simbólico-cultural, alimentam-se de significantes aparentemente estranhos a seu próprio fulcro em vista de uma identidade mais íntima e deci-siva que não pode ser perdida nas inevitáveis andanças. Para esse escopo, gostem ou não os católicos lusitanos, a figura de Nossa Senhora de Fátima vem a calhar para expressar uma nova faceta ou habilidade esperada de deusas hindus em situa-ções de diáspora. Será que este fato é apenas um desvio devido ao imponderável da vida ou está a nos dizer algo acerca da lógica mesma com que Deus se nos revela na história?

2) Movimento migratório e pentecostalismo no Rio de Ja-neiro e em Minas gerais8

Este segundo caso vem de uma pesquisa realizada pelos professores Denise dos Santos Rodrigues e Paulo Gracino Jú-nior, acerca da relação entre movimento migratório e pente-costalismo em dois estados do sudeste brasileiro, Rio de Janei-ro e Minas Gerais. Os autores partem da seguinte tabela com-parativa sobre o quesito religião nos últimos censos naciona

Censos 1950 1960 1970 1980 1991 2000Católicos 93,5 93,1 91.8 89,0 83,8 73,6Evangélicos 3,4 4,0 5,2 6,6 9,1 15,4Sem-religião * 0,5 0,8 1,6 4,8 7,4

Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1950-2000

7 Ibidem, p. 257.

8 Cf. D. SANTOS RODRIGUES – P. GRACINO JÚNIOR, A estreita relação entre movimento migratório e pentecostalismo em dois estados do sudeste brasileiro Rio de Janeiro e Minas Gerais. tEORiA & PESQuiSA, 17, (2008), pp. 113-133.. http://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/viewFile/151/115. Último acesso: 01/02/11.

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Desdobrando a tabela, os autores nos mostram que, em 1980, dos 6,6% protestantes no Brasil, 3,4% eram protes-tantes históricos e 3,2%, pentecostais. Em 2000, dos 15,42% que se diziam evangélicos, 10,37% eram pentecostais e so-mente 4,09% eram evangélicos de missão. De outra parte, a Fundação Getúlio Vargas apurava que, em 2007, a taxa de católicos era maior no meio rural (84,26%) e em cen-tros urbanos pequenos (81,04%), caindo para significativos 67,96% em cidades grandes e capitais.

O percentual dos que se declaram sem religião também é importante. Nas regiões metropolitanas, eles atingem 10,14% nas periferias, 9,91% nas capitais, e 4,71% no meio rural. Em contrapartida, os evangélicos pentecostais são 15,08% nas periferias das regiões metropolitanas e 11,73% nos gran-des centros urbanos, contra 7,17% na área rural.

Pois bem, Rodrigues e Gracino Jr. observam que a mi-gração no Brasil contribuiu para aumentar o número de ha-bitantes das periferias, onde estão os maiores números de pentecostais e de sem-religiões. Mas 74,58% dos nativos, em vez, ainda são adeptos do catolicismo.

Quando restringem o foco nos dois Estados menciona-dos acima, os pesquisadores constatam que, segundo o Cen-so 2000, o Estado do Rio de Janeiro possui o maior percen-tual do país de pessoas sem religião (15,76%) e, ao mesmo tempo, é um dos líderes em crescimento de evangélicos, ou seja, 21,99%, com 13,39% de pentecostais.

A cidade do Rio conta 60,71% de católicos, 17,65% de evangélicos (10,99% de pentecostais) e 13,33% de pessoas sem religião. E só aumenta a nossa surpresa quando notamos que, neste último item, a capital carioca só perde para – pas-mem! – a sincrética Salvador da Bahia, que atinge a marca de 18,14% de sem-religiões.

O Rio de Janeiro conta com diversos grupos religiosos minoritários e possui uma expressiva diversidade de crenças. Por isso evidencia-se um sugestivo contraste com o Estado de Minas Gerais e sua capital, Belo Horizonte. Os mineiros apresentam o maior percentual de católicos do país (78,70%), contra 13,61% de evangélicos (sendo 9,02% pentecostais) e 4,60% que se declaram sem nenhuma pertença religiosa. Só na capital mineira estão 68,84% de católicos, 18,11% evan-gélicos (9,98% pentecostais) e 8,04% de sem-religiões.

Rodrigues e Gracino Jr. retomam o levantamento feito pelo antropólogo Rubem César Fernandes em diários oficiais do Estado do Rio de Janeiro, de 1989 a 1991, e que constata uma rápida e inédita proliferação de templos evangélicos na-

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quele período de 2 anos. Foram mais de cinco igrejas evangé-licas fundadas e registradas por semana (mais de uma igreja por dia útil). No total, temos 710 igrejas erguidas no Estado: 91% pentecostais, sendo 80% delas em áreas mais carentes.

Os pesquisadores concluem que, devido a sua peculiar concepção de bem-estar, essas denominações evangélicas vêm se tornando cada vez mais importantes, principalmen-te nas camadas carentes, num crescente número de fiéis. E afirmam que

nessa perspectiva, os grupos nelas instalados passam a ocupar as lacunas deixadas pelo Estado e pela igreja católica através da oferta de ações existenciais; estando portanto, situados em pontos de interseção entre a ação política e de instituições privadas, como as instituições religiosas.9

Os dois pesquisadores identificam um dado curioso: ape-sar de a adesão ao pentecostalismo ser

mais evidente em camadas menos favorecidas, que bus-cam na religião a solução que não encontram no gover-no para seus problemas, os que se declaram sem reli-gião não estão situados exclusivamente entre as cama-das mais favorecidas, sendo também encontrados entre aqueles desassistidos.

Isso os leva a excluir a variável classe econômica como possi-bilidade de explicação para a adesão ou resistência entre grupos.

Vejamos o que eles constatam na análise de algumas variáveis do Censo 2000. No município do Rio de Janeiro, 22,45% dos sem-religião estão nos níveis mais baixos de escolaridade, seguidos de um grupo definido como baixo/médio (17,95%). Algo semelhante se verifica nos evangéli-cos pentecostais: 19,09% apresentam baixo grau de escolari-dade, seguidos daqueles no patamar baixo/médio (17,03%). No nível médio, 12,51% se dizem sem religião e 12,18%, evangélicos. Entre aqueles com nível alto, 11,53% se decla-ram sem religião e 7,09%, evangélicos. No nível muito alto, temos 10,30% e 2,80%, respectivamente.

Do ponto de vista dos rendimentos percebidos, numa população de 1.739.764 indivíduos sem-religião, moradores em áreas urbanas do Estado do Rio, a proporção é a seguinte:

12% até 1 salário mínimo mensal34,7%, mais de 1 a 5 salários12,5%, mais de 5 salários mínimos40,79% não têm rendimento.10

9 Ibidem, p. 123.

10 Cf. C. R. JACOB, et al. Religião e Sociedade em Capitais Brasileiras. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola; Brasília: CNBB, 2006. p.153.

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Se nos ativermos na capital carioca, os sem religião se dividem em 25,13% (que recebem até 2 salários mínimos), 19,4% médios baixos (até 3 salários mínimos) e 10,8% com rendimentos muito altos (mais de 14 salários mínimos). Enfim, há cidadãos “sem religião” e pentecostais que vivem em condições precárias, sendo que os sem-religião estão mais concentrados na periferia.

Vejamos agora o caso de Belo Horizonte, que detém 12,5% da população estadual e é a capital do Sudeste com o maior percentual de católicos, a saber, 70% da sua po-pulação. Temos 6,5% de “evangélicos de missão” no mu-nicípio e 5,5% no restante da região metropolitana; 10,5% de pentecostais no município e 15,7% na periferia; 8% de sem-religião na capital e 7,9% na periferia. Conforme Ro-drigues e Gracino Jr., os sem-religião de Belo Horizonte, diferentemente das outras capitais, não estão relacionados com níveis de renda e escolaridade.11

A conclusão dos pesquisadores é que se pode estabe-lecer uma relação entre os deslocamentos e migrações de indivíduos com sua maior ou menor fidelidade a dada agre-miação religiosa. A situação mineira, mais estável em rela-ção à rotatividade fluminense, ganha visibilidade na relação entre a identidade mineira, sua constituição histórica e a religião – no caso, o catolicismo.

O fortalecimento de determinados valores tradicio-nais, dizem nossos autores, levanta uma barreira ao plu-ralismo religioso e, conseqüentemente, à multiplicação de evangélicos e pentecostais naquela área.12

E mais: os espaços com maior fluxo migratório podem funcionar como palco para um intenso intercâmbio cultural, ampliando a liberdade do indivíduo na escolha dos bens cul-turais que mais lhe interessam, como no caso, por exemplo, do sincretismo e trânsito religioso entre católicos carismáti-cos e evangélicos pentecostais.

A nós, preocupados com a relação entre migrações e sincretismo religioso, resta acrescentar em nossas pautas pastorais um dado inegável: teremos de estar muito mais atentos

A esses grupos cada vez mais flexíveis, e cada vez menos receptíveis às estratégias católicas que reafirmam o perten-cimento a todo custo. Teremos de reaprender uma pastoral do caminho, que se disponha e se contente com a acolhida do próximo em trânsito.

11 Idem, pp. 127-128.

12 Idem, p. 130.

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3) Dois casos brasileiros de mistura diacrônica: a façanha de D. Maria e o Alex

4) Em trabalhos anteriores, já relatei o exemplo de D. Maria,

que recolhi de um texto de Pedro Ribeiro de Oliveira.13 Dona Maria é uma ex-católica que, ao enviuvar, torna-se pentecos-tal e, depois, acaba por voltar-se para o espiritismo a fim de tratar de sua enxaqueca. Eis um trecho de seu depoimento:

todas as religiões são boas, porém, uma para cada oca-sião. Para alguém sem problema na vida, a religião melhor é a católica; basta venerar os santos, ir à missa quando se quer, e ninguém vai perturbar você. Quem em vez tiver pro-blema de dinheiro, o melhor a fazer é procurar os crentes, porque eles nos ajudam como irmãos; só que, infelizmente, eles não deixam a gente beber, fumar, dançar, não se pode fazer nada. Agora, para quem sofre de dor de cabeça, a reli-gião melhor é a dos espíritas; ela é exigente com as pessoas, não se pode faltar nas reuniões, mas cura prá valer. Se Deus quiser, quando estiver curada, eu volto para o catolicismo.

Exemplo muito afim, mas que, de certa forma, está na confluência das misturas diacrônica e sincrônica (e não visa, aparentemente, à busca de proteção sobrenatural), é o trânsito religioso protagonizado por Alex: [O rapaz] diz gostar muito de religião. Já foi católico de fita de congregação, freqüentou tudo quanto é centro espírita, de umbanda e candomblé (os quais adora, mas dão muito trabalho) e foi obreiro de igreja pentecos-tal. Acha que no budismo encontrou a verdadeira fé, fé mesmo, como ele diz, pois nunca procurou religião por causa de pro-bleminhas. gosta de meditar e pensa um dia tornar-se monge, mas mora muito longe do templo e, como não tem carro, acha inviável ir lá semanalmente. Vai só de vez em quando. Seria o mais feliz dos homens se abrissem um templo budista por perto, já que não pode se mudar, por causa da família e do emprego. Enquanto isso, está freqüentando um grupo católico carismáti-co, no qual está convivendo com gente muito legal e verdadeira.

Outra história que também me impressionou muito, e à qual dediquei alguns capítulos em um de meus últimos li-vros,14 é o caso do zelador-de-santo que virou seminarista, que virou diácono, que virou padre, que virou zelador-de-santo que vira padre Gregório, que desencarnou há 20 anos. Refiro-me à história de padre José Carlos de Lima, que aten-de num templo no centro de São Paulo – a Igreja Católica Apostólica Espiritualista Senhor do Bonfim – onde também é conhecido como Pai Simbá. Padre Lima pôs em prática o

13 Cf. A. SOARES, interfaces da revelação. Paulinas: 2003; A. SOARES, no espírito do Abbá, Paulinas: 2008; Caderno especial, Folha de São Paulo, 26/dez./1999, p. 4.

14 Idem, no espírito do Abbá: fé, revelação e vivências plurais, Paulinas: 2008.

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que o antropólogo Pierre Sanchis apelidou de sincretismo de volta, isto é, pessoas nascidas nas tradições de origem afro, ou nelas iniciadas há muitos anos, voltam a beber do cato-licismo, agora por livre decisão, a fim de buscar novas sín-teses. Creio que isto está muito próximo daquilo que Torres Queiruga, em outro contexto, já chamou de inreligionação.

Seja como for, de novo podemos constatar o que já se chamou de horizonte multiopcional (E. Gross) e época líqui-da (Bauman). Mas fica a pergunta: até que ponto uma pas-toral migratória, inserida no plano mais amplo da evangeli-zação cristã, tem algo diferente a propor além de meramente sofrer essa nova onda de religiões cada vez mais reduzidas a objeto de opção dos sujeitos privados? Ou está consumado que as antigas modalidades de adesão simplesmente se per-deram no novo clima múltiplas possibilidades de escolha no balcão das agências religiosas?

3. A tarefa da Teologia Pastoral

Diga-se desde o início que é preciso termos presente a plu-ralidade terminológica do objeto e as consequentes controvér-sias a respeito. Mas uma correta teologia pluralista, se bem en-tendida, não é de todo incompatível com o pensamento cristão. Além disso, para os diferentes tipos e graus de encontro entre povos, culturas e religiões há vários termos: desde ecumenismo (a fé cristã celebrada entre as várias igrejas em um culto co-mum) até diálogo inter-religioso (a convivência harmoniosa en-tre todas as religiões), aí incluído o diálogo afro-inter-religioso. Já se falou de Macro-ecumenismo, inculturação, inreligiona-ção15 e Sincretismo. Obviamente, a realidade é rica em nuan-ças entre dupla vivência, sincretismo e trânsito religioso. Este último acaba sendo inevitável, pois os modelos jamais esgotam a experiência religiosa e hoje a possibilidade de testar outras modalidades místico-rituais ficou bastante facilitada pelo plu-ralismo cosmopolita. Aliás, faz parte da idéia mesma de modelo tal delimitação que tende sempre a deixar algo de fora.

Em suma, já expliquei em outro lugar que é um trabalho de Sísifo tentar conter a fome religiosa das pessoas dentro de certos ingredientes e temperos, ainda mais se consideramos estes tempos hipermodernos, de extremada secularização de um lado, e abundante oferta de significantes religiosos, de outro. Embora pessoalmente me agrade a opção pelo termo sincretismo,16 reconheço que nem ele cobre todo o fenômeno em discussão. Por exemplo, ele deixa na penumbra a lógica e os critérios que presidem a seleção de alguns itens e a rejei-

15 Cf. T. QUEIRUGA, Do terror de isaac ao Abbá de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2001, pp. 315-355; T. QUEIRUGA, Autocompreensão cristã: diálogo das religiões. São Paulo: Paulinas, 2007. pp. 167-188. Sua estranheza tem a vantagem de não possuir precedentes como incultura e incultivo em português, que desabonam a palavra inculturação.16 Cf. C. STEWART – R. SHAW, Syncretism/Antisyncretism: The Politics of religious synthesis. New York: Routledge, 1994. p. 2..

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ção de outros; não dá conta dos graus de fusão intercultural e dá a impressão de excluir o agente individual do processo. Por isso, enquanto os estudiosos da cultura não chegarem a um consenso a respeito, temos de continuar nos servindo de um leque de termos-metáfora a fim de não trairmos exagera-damente as construções culturais em andamento.

No entanto, minha proposição central nesta oportunida-de é sugerir que a Teologia da Revelação ilumina a Teologia Pastoral. Defendo a existência de mútuas interações entre a revelação soprada por Deus, o sincretismo de nossas respostas provisórias e a libertação por todos ansiada enquanto etapa da plenitude vindoura. Se a Revelação for mesmo o encontro imprevisível do humano com o divino, na revelação bíblica está uma chave incrivelmente atual da pedagogia divina. E disso que pretendo tratar neste item final do presente artigo.

Aqui se trata, pois, de traçar uma ponte de diálogo entre a teologia da revelação e a teologia das religiões, com base em um postulado que deveria ser comum a ambas: a apre-ensão radicalmente humana da revelação divina. Em outras palavras, pretendo sinalizar alguns pressupostos bíblico-her-menêuticos do que a missiologia mais recente vem sonhando como autêntica evangelização inculturada. E creio que daí se possa extrair ponderações para a teologia pastoral dos mi-grantes.

Para essa viagem, sigo o roteiro traçado por J. L. Segun-do em seu livro O dogma que liberta.17 Aí o autor questiona um princípio fundamental da fé cristã: o dogma da revelação. Para tanto, revisita a noção mesma de dogma, que outra coi-sa não é senão a tentativa de expressar conceitualmente a ex-periência da revelação. Ao longo do livro, vai-se saboreando a tortuosa e apaixonante tensão entre a experiência humana e a palavra revelada. Afinal, a palavra só significa enquanto ilumina hoje a experiência real.

Eis porque a prática atual do magistério eclesiástico ca-tólico não tem levado suficientemente em conta três compo-nentes do dogma revelado: a linguagem simbólica ou icônica, mais adequada à sua expressão e comunicação; sua inevitável apreensão processual; e, sobretudo, o papel magisterial do próprio povo cristão. Tal papel dificilmente será redimensio-nado enquanto perdurar no catolicismo uma visão equivoca-da da distinção entre clero e laicato, que mantém este último praticamente infantilizado e dependente do primeiro.

O decisivo para um diálogo frutuoso entre as tradições cristã e tradicional africana é levar em conta a dimensão prá-tica, existencial, cotidiana que nutriu e nutre a ambas até hoje.

17 Cf. J. L. SEGUNDO, O Dogma que liberta. São Paulo: Paulinas, 2000, Parte II.

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Falar de revelação significa necessariamente falar de co-municação. Comunicar significa enviar ao interlocutor uma diferença que faz uma diferença. A revelação não é algo que constitua automaticamente uma verdade, sem antes trans-formar a vida histórica do ser humano. Essa verdade comu-nicada é possuída à medida que se consiga convertê-la em diferença humanizadora dentro da história. Onde impera a indiferença não há comunicação propriamente dita.

Disso resulta que, para receber tal verdade, se requeira que já esteja em curso uma atitude de busca. Isso me faz lem-brar a frase bombástica de meu velho professor de Literatura Sinótica: Jesus só ressuscitou porque já havia em sua época e contexto social uma fé (prévia) na ressurreição!. Ou ainda: falar de ressurreição da carne a alguém que se sinta satisfeito com a inexorável perspectiva do aniquilamento total não é uma boa notícia. Tal atitude prévia é o que chamaríamos de fé – fé abrâmica ou antropológica: uma aposta existencial que nada tem a ver com um salto cego no escuro; pois, o testemunho ressonante da memória coletiva de nosso grupo social permite-nos tal opção.

Vejam: todos nós somos antropologicamente obrigados a estabelecer em nossa vida um valor absoluto. O ser hu-mano maduro vive coerentemente na sua prática quotidiana as conseqüências dessa escolha (fé). É tarefa diária tentar ser coerente com aquele valor absoluto (incondicionado) que escolhi. Minha escolha absoluta subjetiva e a tradição cristã coincidem. Porque eu escolho um valor e não determinada tradição entre outras.

Essa teoria poderia, com certeza, explicar as inúmeras variáveis históricas ocasionadas por encontros e confrontos inter-religiosos. O sincretismo afro-católico no Brasil deri-va, em grande medida, de uma energia centrípeta que suga de outros sistemas o que coincide com sua matriz simbólica (fé). O mesmo faz o povo migrante quando luta para não perder sua identidade mais profunda. Não é um amontoado de práticas conservadas de modo eclético; tal procedimento significou e ainda significa a estratégia de sobrevivência de um povo que não quis nem quer abrir mão de seus valores fundamentais.

Outra consideração. Há sempre uma relação entre a re-velação e a experiência histórica dos seres humanos. O ato salvífico da parte de Deus se revela nos acontecimentos da história que já são de modo análogo Palavra de Deus. Toda-via, a verdadeira revelação dá-se somente quando o ser hu-mano lê determinados acontecimentos como algo que lhe diz

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respeito diretamente, portanto, algo significativo: Que fazer agora para que minha vida tenha ainda alguma razão de ser?

Pois bem, coloquemos, agora, entre parênteses dois da-dos de fato da teologia cristã moderna: a lista oficial, canôni-ca, dos livros da Bíblia e o desenvolvimento atual do dogma cristão. Isso feito, voltemos atrás no tempo para imaginar nossos ancestrais hebreus no momento de suas escolhas re-ligiosas. Sem Bíblia e sem dogmas, como eles puderam fazer as escolhas mais certas naquele contexto?

Desde o início, as teologias da Bíblia hebraica sofrem um processo muito semelhante ao que hoje é chamado de de-senvolvimento dogmático. Um processo que podemos apre-sentar destacando três de suas peculiaridades. A primeira diz respeito ao importante papel do povo de Israel. Um papel que nada perde em estatura ao dos autores inspirados. Entre estes (autores) e aquela (comunidade leitora) corre o mesmo impulso que convida ao discernimento.

Portanto, como fez o povo para decidir quais obras cano-nizar e quais considerar apócrifas? As urgências do momen-to impediam que se protelasse a decisão à espera de uma luz mais segura – como a do Evangelho, por exemplo. Além do mais, a luz evangélica teria, sem dúvida, impedido a presença de várias passagens, hoje incômodas, na redação final dos textos veterotestamentários.

Tome-se, por exemplo, o caso da liceidade da poliga-mia, abençoada por Iahweh e praticada normalmente pelos patriarcas. Ou ainda, o repúdio da mulher, assim como o apresenta a lei de Moisés (Dt 24,1s). Como puderam – quer se trate dos escritores, quer do povo de Deus reunido em sinagoga – escrever ou selecionar tal gênero de coisas como palavra divina? O que dizem hoje de semelhantes despropó-sitos, aqueles que os podem contemplar à luz do Evangelho?

A constituição Dei Verbum do último Concílio Ecumêni-co do Vaticano, admite que embora contenham também coi-sas imperfeitas e transitórias, [tais trechos bíblicos] manifes-tam contudo a verdadeira pedagogia divina (Dei Verbum 15). Aquelas deduções e apostas de então, nitidamente efêmeras, pertencem à mais autêntica revelação (pedagogia) divina. Esta não é entendida como mero depósito de informações corretas, mas como um caminho em direção à verdade final.

A segunda peculiaridade do desenvolvimento dogmático da Bíblia hebraica emerge da seguinte constatação: na pró-pria revelação não aparece uma precisa linha divisória entre religioso e profano. O Deus verdadeiro encontrado pelo povo da Bíblia é o Deus escondido que se dirige à fé e não a um

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sentimento religioso. Faz parte da revelação não simplesmen-te a resposta de Deus às perguntas do ser humano, mas as perguntas que o ser humano dirige a Deus.

O critério com que Israel reconhece a inspiração divina de certos livros não leva em conta as particularidades simples-mente religiosas. Que há de religioso no erotismo do Cântico dos Cânticos, que nem mesmo cita o vocábulo Deus? Que dizer da profanidade e do antropocentrismo dos Provérbios e do Eclesiastes (Qohelet)?

A última peculiaridade é surpreendente. Não se trata so-mente de que o religioso não tenha sentido para Deus se iso-lado daquilo que humaniza: o próprio processo de revelação de Deus ensina o ser humano a colocar a equilibrada dis-tância entre ele e o religioso. O processo de composição da Bíblia é uma educação que compreende toda a existência do ser humano, e não somente o tema religioso. Se a educação for bem-sucedida, não existirá uma linha divisória entre o que é humano e o que é inspirado.

Estabelecer onde começa e onde termina a autêntica reli-giosidade é o equilíbrio difícil buscado no cânon israelita. Pro-va dessa situação são as coleções de escritos leigos (humanos, demasiadamente humanos) a ser coletivamente privilegiadas em função da sinagoga. O que possuíam de relevante? Sim-plesmente sua humanidade, algo vital e substancial para Israel. Procedendo dessa maneira, Israel encontrou sua identidade como povo. Não fez outra coisa senão pontuar a sucessão dos acontecimentos de modo a perceber neles um sentido. E pau-latinamente edificou sua experiência étnico-religiosa, que aca-bou se revelando uma autêntica experiência de Deus.

Juan Luis Segundo imagina uma situação futurista que obrigasse os vários povos a escapar rapidamente da Terra, levando consigo somente o estritamente necessário. A obra Dom Quixote certamente não faltaria na bagagem dos his-pânicos. Naquela viagem sem retorno, a obra seria pouco a pouco compreendida como constitutiva da sua identidade, e a julgariam providencial, apesar de ter por autor um pobre e mortal ser humano. E um belo dia, esse livro seria considera-do inspirado por Deus (desde sempre) para aqueles navegan-tes errantes do espaço...

Acredito que será também assim que os povos afro-des-cendentes redescobrem sua literatura inspirada por Deus. Ajuntando peças de antigas composições míticas africanas, costurando tradições já distintas quando circulavam pela África, acrescentando versões ameríndias de valores simi-lares, refundindo-as com motivos judeu-cristãos desde há

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muito impregnados em sua carne, selecionando isto, des-cartando aquilo, esquecendo disto e inventado aquilo, como outrora já fizera a tradição hebraica, e como também fizeram os artistas cristãos em seus primórdios.

Alerta a ouvidos mais sensíveis: não estou querendo con-fundir obra inspirada com obra clássica. Porém, é sabido que os grandes clássicos da literatura dos povos têm um valor perene precisamente porque conseguem modular em lin-guagem algo do inefável mistério humano e, portanto (por que não?), algo soprado pelo hálito divino. Seja como for, o exemplo é válido na medida que explica como as comunida-des de fé aperceberam-se, aos poucos, da discreta autocomu-nicação do Senhor.

O que foi visto até aqui não significa que um livro ou ação humana será divino (inspirado) se encontrar o consenso da maioria. Como distinguir, portanto, entre as palavras huma-nas, as que, de fato, são Palavra de Deus? Como fez a Igreja para separar o que fora revelado por Deus de tudo o que não o havia sido? A descoberta do critério de discernimento co-locado em prática na formação do cânon judaico-cristão tem um peso fundamental – embora, talvez, não tão evidente – no atual desafio do diálogo inter-religioso. Trata-se de levantar a questão sobre qual seria hoje, nessa precisa realidade, a palavra que Deus diria.

Um caminho interessante para essa reflexão pode ser o tema dos sinais dos tempos, assim como é desenvolvido pe-los evangelistas. A julgar pelos evangelhos sinóticos, Jesus sempre se recusou a oferecer um sinal do céu ou garantia sobrenatural da veracidade de suas propostas.18 Como fazer, então, para ter certeza de que a sua era uma presença divina e não diabólica? Jesus defende um critério já suficiente: os sinais dos tempos (Mt 16,3), ou ainda, o discernimento deste tempo presente (Lc 12,56).

Em que consiste concretamente esse critério? Uma de suas características é clara: esses sinais dos tempos podem ser percebidos e entendidos por qualquer um, sem nenhu-ma ajuda sobrenatural. Por isso Jesus considera hipócritas os que sabem prognosticar as condições meteorológicas só de olhar as nuvens, mas recusam-se a interpretar/julgar por si mesmos o que é justo e igualmente evidente (Mt 16,3 e Lc 12,54-57).

Até mesmo os pagãos, que não podiam obviamente con-sultar as escrituras judaicas de então, fizeram um correto discernimento. É o caso dos ninivitas que escutaram a prega-ção de Jonas, e da rainha do Sul, que se curvou à sabedoria

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18 Ver, por exemplo: Mc 8,11-13; Mt 12,38-39; 16,1-4; Lc 11,16.29; 12,54-57.

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de Salomão (Mt 12, 41-42). O discernimento deles acabou sendo melhor do que o de quem tinha acesso às escrituras. Pelo simples fato de que leram com o coração.

Depois de tudo o que foi exposto até aqui, que lição tirar para uma teologia do sincretismo afro-católico, por exemplo? Respondo: estamos acompanhando o fundamental como da revelação de Deus ou de sua pedagogia divina. Os semitas que precederam a comunidade cristã não traziam no bolso um manual divino que substituísse, em períodos de crises, suas escolhas cotidianas. Eles aprenderam a aprender à me-dida que os sinais dos tempos os obrigavam a fazer opções de vida mais profundas e radicais.

Quando uma situação muito real e crítica não encontrava as respostas adequadas nos seus escritos, não hesitavam em relê-los acrescentando, confrontando, omitindo ou interpo-lando. Esses eram procedimentos simplesmente ideológicos (relativos) que procuravam, a todo custo, preservar o sen-tido mais profundo (fé absoluta) que tinham escolhido dar às suas vidas. Donde a insistência de Carlos Mesters na ne-cessidade de recuperar a relevância da Tradição bíblica não como um texto caído do céu mas antes como algo nascido de dentro da fé do Povo de Deus, enquanto este tomava posição em meio aos conflitos do caminho (...) Este processo de leitu-ra e releitura está na origem da Bíblia e continua ao longo da história da Igreja.19

Hoje, esse processo vem sendo apropriado por todas as demais culturas da face da terra. Já estava, é claro, em anda-mento, há muito tempo. Mas, finalmente, podemos reconhe-cê-lo de forma desarmada, sem ressentimentos de povos elei-tos de outrora. A humanidade é que foi eleita, a vida, sim, foi eleita por Deus. Será que a teologia pastoral, especialmente quando voltada para o cuidado das grandes levas populacio-nais em situação de migração, saberá tirar daí algumas pistas para os desafios que tem diante de si?

19 Cf. C. MESTERS, O Projeto Palavra-Vida: a leitura fiel da Bíblia de acordo com a Tradição e o Magistério da Igreja. COnVERgênCiA, 226, (1990), p. 461.

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Comentários

BatisMO, aNÚNCiO E dEFEsa da Vida EM plENitudE

Antonio Carlos Oliveira Souza*

Resumo: Os sacramentos na vida do cristão fazem parte da vida no seu todo e não só da sua dimensão espiritual e ritu-alística. Souza considera as práticas religiosas populares relacionadas aos sacramentos, e em especial ao Batismo, e chama a atenção para a necessidade da integração da dimensão sacramental na vida pessoal, comunitária e so-cial. O autor realça ainda alguns aspectos teológicos rela-cionados ao Batismo e a proposta de vida nova em Cristo que ele encerra.

Palavras-chaves: Teologia dos Sacramentos; Batismo; Rituais; Vida Eclesial Abstract: Sacraments in Christian life are part of his life as a whole and not only of his spiritual and ritualistic dimensions. Souza suggests that Brazilian popular religious practices linked to Sacraments and in a special way to Baptism, need a deeper integration in the personal, communitarian and social sacramental life via true rituals. He also draws the attention to some theological aspects of Baptism and the new life in Christ deeply involved in it.

Key words: Sacramental Theology; Baptism; Rituals; Ec-clesiastical life.

Muitas vezes os cristãos buscam o sacramento do batismo, levados apenas por uma tradição. Vivemos num país onde a maioria se diz católica e segue tradi-ções que fazem parte do seu inconsciente coletivo re-

* Professor no ISPES/ITESP.

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ligioso. Batizar uma criança faz parte de nossa cultura sócio-religiosa.

Será que muitos católicos têm consciência da realidade desse sacramento? Será que muitas crianças são batizadas apenas por causa dos nossos costumes? Outros ainda têm medo de deixar as crianças sem serem batizadas. Criança não batizada ou mal batizada é encapetada, Crianças que não são batizadas são orientadas pelo demônio e não terão sucesso na vida. Crianças que morrem sem o batismo são uma desgraça para os pais. Experimentando essa realidade em nossas comuni-dades, seguem-se algumas reflexões teológico-pastorais que poderão ajudar no discernimento e na ação evangelizadora e sacramental.

1. O Batismo no nosso contexto sócio-religioso

Os sacramentos cristãos, como o batismo, não são fatos espirituais, atos isolados de nossa existência real. Não podemos fazer dos atos religiosos ritos vazios, ha-vendo uma dicotomia entre a realidade que se vive e a vida litúrgico-sacramental que celebramos. Todos os sa-cramentos são parte de um processo existencial religioso que seguem o desenvolver da vida. Não podemos cele-brar o batismo como se fosse um fato isolado de nossas vidas. Não são atos isolados, mas estão inseridos no nos-so cotidiano real.

O contexto sócio-cultural religioso do Brasil, como todo o Continente Latino-Americano e o Caribe tem uma marca profunda: a existência de uma dialética na vida. Essa dialética revela uma profunda cisão na existência. Vivemos marcados por dois mundos. De um lado existe o mundo da opressão e do outro lado sinais de liberdade e esperança.

Essa dialética marca nossas vidas em todas as dimen-sões da existência. Nosso mundo político não é a repre-sentação da luta pelo bem comum da polis. Nossos repre-sentantes são defensores de grupos e tendências onde o bem comum não é o fim, mas o bem do grupo é a meta de todos. Basta examinarmos nossos partidos políticos, onde o ideal a utopia são tragados pelos interesses. A bandeira do social da nação brasileira é o estandarte de todos.

A realidade revela que não é bem assim que agem quando os interesses dos partidos e dos setores da sociedade estão em jogo. A maioria dos políticos não tem uma utopia ideo-lógica, mas age com pragmatismo do momento. Todos nós

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temos consciência das mazelas, das leis, dos interesses que sempre vencem o bem comum.

Por outro lado encontramos políticos que se interessam pelo bem comum. São idealistas e sonhadores que muitas vezes são ridicularizados e até expulsos dos próprios partidos e setores que representam.

Nossa vida econômica também passa por essa dialética. Não basta sonhar e desejar. A globalização econômica vem oprimir os ideais de vida alternativa. A ciranda dos juros, o capital especulativo, as grandes multinacionais, os aglomera-dos dos sistemas bancários internacionais impõem as regras do jogo. A exclusão, a marginalização, a submissão fazem parte das regras do produzir e consumir. Não basta ter ideais ingênuos, é preciso submeter-se à opressão econômica na-cional e internacional para se sobreviver e participar.

Ao lado dessa opressão econômica, existem pessoas que procuram sonhar com outras alternativas de vida econômi-ca. Além do produzir e consumir, o dividir é o ideal de vida possível. São pessoas e comunidades que acreditam na par-ticipação e divisão dos bens. São comunidades de espírito religioso, cooperativas, sociedades que acreditam no bem co-mum a ser produzido, dividido e só depois consumido.

A própria sociedade brasileira vive numa luta de classes. As classes mais ricas, as elites, vivem num duelo com os menos fa-vorecidos. Essa luta de classes se manifesta no possuir da cultura, no uso das universidades, nos lucros dos que são donos de bens.

A seleção se faz do nascer ao caminhar da vida. Essa dia-lética de vida atinge até a própria vida religiosa. Temos um padrão religioso oficial que muitas vezes não reconhece a ex-periência religiosa do povo. As liturgias solenes, os rituais do culto pela sua ostentação de vestes, símbolos são cultos a serem assistidos e vistos. A linguagem na comunicação, os gestos solenes se afastam da realidade de vida.

Nesse contexto, está implícito no nosso inconscien-te religioso e o povo busca os sacramentos. Nosso povo é profundamente religioso, majoritariamente católico e ainda extremamente pobre. Olhando a realidade do nosso povo, percebemos que é profundamente místico. Tem uma resis-tência heróica na luta pelo sobreviver. Possui ainda um senso comunitário profundo que se manifesta pelas celebrações e pelas festas. Nesse contexto, os meios de Comunicação So-cial aproveitam dessas características do nosso povo para fixar a sociedade num estruturalismo estático. Através de slogans ufanistas, de modismos culturais, a sociedade se fixa na religião como salvação, válvula de catarses coletiva.

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2. Dialética da Doutrina e os Rituais

A dialética da vida vem sendo reforçada pela falsa compre-ensão da dialética de doutrina. A celebração do batismo, quan-do feita de maneira formal, é apenas ritualmente celebrada. A teologia paulina expressa nos Rituais pode ser mal entendida pelo povo que vive num mundo profundamente dividido entre dois pólos. O batismo soa como passagem do pecado para a graça como isso acontecesse só no plano espiritual.1 A escravidão só é representada na alma que busca a liber-dade do espírito. A morte é vencida pela vida apenas no plano abstrato e espiritual. O batismo parece ser apenas uma passagem abstrata das trevas para a luz, da mentira para a verdade (1 Jo 1-7).2

A salvação não é apenas no mundo do espírito, mas, acontece num processo de superação da dialética da vida. As pessoas, ao procurarem o batismo, possuem imagens e con-ceitos de sua vida profundamente dialética. Encontram-se nas palavras do ritual a confirmação do que vivem. A celebra-ção do rito do batismo pode acontecer nessa sincronia entre a vida e as palavras celebradas. Podem ser apenas entendidas no plano espiritual.

3. Dialética da nossa sociedade

Analisando nosso cotidiano de hoje, sentimos que nosso povo é profundamente religioso, tem uma dimensão mística única. No Brasil a maioria é cristã e ainda católica. Buscam os sacramentos com as características de suas necessidades religiosas. A maioria, no entanto, é pobre, excluída das leis de consumo e vivem na luta pela sobrevivência.

Essa violência é estrutural como alertou a Conferência Latino Americana em Medellín e Puebla.3 A sociedade latino-americana é profundamente injusta. As camadas dirigentes, as elites, são sustentáculos dessa estrutura injusta, pois são donos dos Meios de Comunicação e dos sistemas que a man-tém inabalável

As camadas médias e pobres participam dessa realidade pela cumplicidade, pela inércia e pela não-consciência dessa estrutura injusta.

A macro-sociedade está fundamentada no pecado social, pois aceita e sustenta as doutrinas econômicas neoliberais que geram a exclusão e a marginalização. A violência se ma-nifesta no desemprego, no subemprego, no favorecimento às multinacionais e transnacionais. O mercado, a ciranda fi-

1 Os textos paulinos que aparecem no Ritual do Batismo de Criança podem ser mal entendidos se forem lidos e compreendidos dentro da antropologia grega; nesta existe um conflito entre o corpo (soma) e o espírito (psique). Cf. os textos mais usados: Rm 5,1-2. 5-8; Rm 6, 3-5; Rm 8,28-32; 1 Cor 12,12-13; Gl 3,26-28; Ef 1, 3-10. 13-14; Ef 4, 1-6; Ef 5,8-14 Tt 3,4-7. Cf. J. M. O´CONNOR, Paulo. Biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000; C. J. DEN HEYER, Paulo, um homem de dois mundos. São Paulo: Paulus 2008; J. D. G. DUNN, A teologia do Apostolo Paulo. São Paulo: Paulus 2003, p. 80-112.2 A teologia joanina sobre o Batismo também pode ser mal compreendida para quem não tem uma compreensão justa do IV Evangelho. Cf. J. KONINGS, Evangelho segundo João, Amor e Fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005; C. H. DODD, A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo, Paulinas, 1968.3 O Documento Puebla da Conferência Geral do Episcopado Latino Americano (nn. 30-50) faz uma fotografia real de nossa realidade.

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nanceira, os juros, as ações matam a sociedade sem piedade. Tornou-se normal e justo ver a loucura dos juros elevados, os lucros super miraculosos dos grandes bancos nacionais e internacionais e o lucro de algumas pessoas. Essa situação provoca um segregacionismo nas classes sociais onde as questões de gênero, as questões indígenas, os menores, os doentes, são consideradas como situações nor-mais. A questão da terra, a reforma agrária e da cidade são teses que abalam a estrutura da sociedade. A corrupção dos poderes legislativo, executivo e judiciário faz parte do coti-diano. Ninguém mais se escandaliza com esse sistema. Foi assim, e assim sempre, será, dizem os governantes e políticos nos dias de hoje.

4. O mimetismo na micro-sociedade

Diante dessa visão panorâmica do contexto sócio-religio-so e político-cultural, poderemos ficar escandalizados. Po-deriam até surgir gestos de indignação. Olhando, porém, a micro-sociedade representada nas famílias, nas comunidades eclesiais e religiosas, no cotidiano dos indivíduos, percebe-se um mimetismo desse quadro real e dialético. A corrupção que se manifesta na incoerência e na pas-sividade se revela no cotidiano. Os mais diversos tipos de egoísmo se manifestam nas famílias e nas comunidades re-ligiosas. A lei da vantagem no relacionamento, no uso dos bens o celebre jeitinho brasileiro toma conta das pessoas. Ser esperto, saber viver bem, defender-se perante o mal estruturado parece ser uma virtude nas convivências das pessoas. As chamadas massas sobrantes aprendem rapidamente a maneira de viver das elites: religiosas e civis. O egoísmo se manifesta na marginalização mesmo dentro das famílias. O doente, o aposentado, o ancião, são comumente sujeitos à marginalização como se fosse normal do conviver social. Do-entes, anciãos, excluídos são repelidos no convívio do coti-diano. Faz parte do viver hoje criar-se na cultura da exclusão e da marginalização. É nesse contexto que os batizados acontecem. Para se superar essa dialética, o sacramento do batismo deve ser considerado dentro da gratuidade superando a competição, a violência estrutural e as ambigüidades. A grandiosidade do Dom da Vida deve ser celebrada den-tro do universo simbólico que respeita o sentido profundo religioso e abre horizontes para a celebração e defesa da Vida

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5. A cultura religiosa diante do batismo

A história dos povos da América Latina está alicerçada na busca da vida em plenitude. Os povos que aqui vieram, vinham buscar sustentáculos para uma vida econômico-real. A descoberta ou a conquista da América e do Brasil pe-los espanhóis e portugueses foi o recurso encontrado para a situação sócio-econômica do século XVI. Essas nações pro-curam alternativas para sua sobrevivência e expansão econô-mica. A busca de especiarias, de mercadorias atraia corajosos conquistadores para novo mundo.4

Além da busca da sobrevivência material, os conquista-dores procuram uma nova maneira de viver. A esperança de uma nova terra atraía os interesses, dos que viviam sufocados no velho mundo. O sentido da vida ganha esperança para uma nova maneira de ser e de viver.5

Nesse processo da busca da vida, vai se formando uma nova cultura que transparece em sinais simbólicos de resistência comum. Os migrantes que aqui vieram encontram-se com os indígenas que vivem nesse continente e que tinham um senso comunitário desenvolvido. Senso comunitário necessário para vencer as dificuldades e para sobreviver às novas situações.6 Nesse contexto de luta para se sobreviver, a festa ganha um lugar especial na luta pela vida. Festa é o intercâmbio de sentimentos que se realiza num clima de celebração. A festa tem sempre um motivo tirado da vida e de fatos. Esses novos povos privilegiam a festa da vida. Na sociedade do capitalismo primitivo em que se viviam a festa e toda ação lúdica foram confundidas como preguiça e inércia. Nossos índios e depois os negros africanos eram con-siderados preguiçosos pelo seu espírito lúdico e festivo. Por sua vez, a nossa gente simples valoriza a festa, a celebração como momento forte de distanciamento da faina diária que é difícil e laboriosa. Contudo, a história não pode ser vivida de maneira só prazerosa ou fatigante, deve revelar a liberdade do ser humano buscando sentido no religioso e no definitivo de Deus.7 Os povos que aqui vivem no continente latino-americano têm um fascínio pelo sagrado, pelo mistério, pelo maravilho-so e o mágico. Os povos latino-americanos são profunda-mente místicos. O sagrado e o profano se misturam. A luta pela vida tem suas raízes na busca de Deus, único capaz de ajudar nos momentos difíceis e desesperadores.8

Sentido comunitário, momentos festivos para celebrar, a confiança no transcendente, formam uma maneira cultural de sobreviver que faz parte das raízes profundas de nossa gente. 9

4 Cf. A. M. BIDEGÁIN, A História dos Cristãos na America latina.. Petrópolis: Vozes, 1993, vol. I, p. 17-30.5 Cf. E. HOORNAERT, História do Cristianismo na America latina e no Caribe. São Paulo: Paulus, 1994, p. 27-42.6 O sentido comunitário é uma forma de resistência diante das dificuldades encontradas para se viver. Cf. Idem. p. 269-278.

7 Cf. F. TABORDA, Sacramentos, Práxis e Festa. Para uma teologia Latino-Americana. Petrópolis: Vozes, p. 50-56.8 Cf. Santo Domingo, Conclusões, n. 36. Ali se analisam os aspectos positivos da religiosidade; popular procura mostrar que muitas expressões religiosas são uma verdadeira inculturação da fé.9 Idem, n. 18.

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6. A Experiência nuclear do Batismo

Dentro desse contexto latino-americano, o sacramento do batismo é visto, sentido e experimentado como busca da vida em todas as dimensões. É anúncio da vida e defesa da vida em plenitude! Na nossa vida cotidiana, a realidade batismal se dá no nexo profundo entre a vida e a morte. Existe ainda em nosso Continente a dramaticidade da vida pelo alto número de mor-talidade infantil e pelos desafios de sobreviver nas péssimas condições de vida. A situação familiar, o costume religioso e a própria catequese sacramental enfrentam esses desafios.10

Examinando nossas celebrações litúrgicas do batismo, percebemos que os sacramentos cristãos sofrem influências do ambiente de origem quando aqui chegaram. A estrutura do ritual do batismo sofre ainda influências do clima de cristandade do ambiente do Concílio de Trento, ao se promulgar os decretos e cânones sobre os 7 sacramen-tos em 3 de março 1547.11

Na época do Concílio de Trento, havia o perigo dos infi-éis (muçulmanos) que avançavam sobre o continente cristão europeu. Além disso, os hereges (protestantes) ameaçavam a unidade eclesial.12

Quando os conquistadores aqui chegaram, os sacramen-tos cristãos, de modo especial o batismo, eram o modo de se impor nova cultura religiosa. Sacramentalizar era o processo de aculturação de nossos indígenas e depois dos negros afri-canos. Ser batizado era participar de uma cultura superior, era deixar-se europeizar-se, fazer parte de uma nova cultura. Es-ses substratos permanecem ainda nos rituais que se revelam pelas roupas e símbolos usados nas celebrações. Ao partici-par das celebrações batismais, nosso povo latino-americano tem vários substratos no seu inconsciente coletivo religioso que recebe as mensagens dentro de sua identidade cultural. Diante das fraquezas dos recém-nascidos devido à po-breza estrutural e à fragilidade, nossa gente invoca proteção contra os maus espíritos. Nossos índios e nossos negro-afros que aqui vieram têm rituais de proteção contra os maus espí-ritos. Fazem parte do seu universo cultural religioso a busca da proteção dos deuses (Olorum) ou do seu deus supremo (Tupã) contra os demiurgos do mal ou dos espíritos ruins.13

A religião nativa dos que aqui viviam tinha um caráter de proteção terapêutica. Visto a partir desses códigos de comu-nicação, o batismo, como sacramento, passou a ser entendi-

10 Cf. V. CODINA – IRARRAZAVAL, D. Sacramentos de iniciação, Água e Espírito de liberdade. Petrópolis, Vozes, 1988, p. 23-24.

11 Cf. ENCHIRIDION SYMBOLORUM DEFINITIONUM ET DECLARATIONUM de REBUS FIDEI ET MORUM. Denziger, 1946, Decreta et Cânones 843-870.12 Cf. H. TÜCHLE – BOUMAN, C. A Reforma e contra reforma. Petrópolis: Vozes, 1983.

13 A CNBB, Leste I publicou um estudo sobre macumba, cultos afro-brasileiros, candomblé, umbanda onde apresenta uma síntese das influências da cultura indígena e africana na Religiosidade Popular. Cf. CNBB, Observações pastorais. São Paulo: Paulinas 1976.

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do como proteção contra o Mal e sinal de identidade cultural de proteção. Muitas expressões culturais populares ajudam a entender o sentido dessa comunicação. Ser pagão é assim ser possuí-do pelo demônio, é viver sob as garras do espírito das trevas. Criança que não é batizada está condenada a viver nas difi-culdades da existência ou a não ter sucesso no seu caminhar.

Rituais de exorcismo como expulsão dos demônios têm um apelo emocional muito forte na nossa gente. A água ben-ta, o sal que se usa nas celebrações, as unções com o óleo, as vestes trazem uma mensagem de proteção contra os espíritos maus e demônios.14

O batismo cristão é celebrado numa visão cristã e é rece-bido a partir dos códigos emocionais de quem recebe. Diante dessa dialética cultural, doutrinal e das ambigüidades dos ri-tuais que recebem como entender e rever o batismo no mun-do de hoje?

7. O Batismo: Anúncio de Defesa da Vida em Plenitude

O Batismo é antes de tudo um anúncio de Vida. É a in-serção numa ecclesia entendida como nova maneira de viver a partir da vida, doutrina, práxis de Jesus de Nazaré. Ser batizado é entrar e viver numa comunidade, Igreja família, que faz Memória e Memorial de Jesus Cristo morto e ressus-citado. É acreditar no Deus de Jesus de Nazaré e viver o Deus da vida e não da morte. Por isso é fundamental que em nossas catequeses ajudemos nosso povo a se libertar dos ídolos. Desmitologizar é o núcleo libertador das consciências que confundem o Deus da Vida como sendo o Juiz, o medo que assola as pessoas. O Deus de Jesus de Nazaré é Pai que quer salvar a todos os homens e mulheres de boa vontade. Ele é o Abba que ama a todos os seres e os criou para felici-dade e bem-aventurança suprema. O Deus de Jesus se revela na busca da verdade entendida não como verdade filosófica grega de adequação da mente à realidade. Verdade é busca da fidelidade (êmet) ao Deus da Vida.15

Ser batizado é entrar numa comunidade Igreja e família, que procura ser fiel ao Deus que deseja a Vida em todos os sentidos a seus filhos. Ser batizado é lutar pela Justiça que supera as leis da comutação, da distribuição e da legalidade jurídica. É viver o

14Cf. V. CODINA – IRARRAZAVAL, D. Sacramentos de iniciação..., op. cit., p. 19-21.

15 Cf. H. W. WOLFF, Antropologia do Antigo testamento São Paulo: Loyola, 1975, p. 51-58.

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ideal da Justiça (sadec) que vai ao encontro dos seres huma-nos, ultrapassando os códigos humanos de partilha e de juízo de valores. Ser batizado é valorizar o humano, independente-mente de sua cor, sexo e posição social.16

O Batismo cristão é um apelo à vivência do Amor (hês-sed) que supera os qualificativos e se lança na oblatividade. Vai-se ao encontro dos mais carentes da vida, os marginali-zados, os empobrecidos.17

O Batismo a ser celebrado é a experiência de ser comu-nidade que busca a vida em plenitude. A Vida é um Dom gratuito que nos é dado. Valorizar a Vida é ter consciência da gratuidade, somos um dom divino. A defesa da vida se faz em todas as dimensões. Somos chamados a defendê-la no cosmos, na nossa responsabilida-de micro cósmica. Somos resumo do universo, somos con-vocados a defendê-la em nossa existência e no ambiente em que vivemos. Hoje se fala muito em sustentabilidade da vida, em defesa do universo cósmico em que vivemos. Ser batizado é acredi-tar que somos responsáveis pelo mundo que vivemos e que o futuro depende do nosso agir. O batismo cristão exige ainda de todos a responsabilidade pela valorização dos direitos humanos, a co-responsabilidade social com os excluídos e os marginalizados. A violência gera violência. A responsabilidade dos batizados é ter consciência das causas de tanta violência em nosso mundo e buscar a paz que está na não-violência, na aceitação do limite e no reco-nhecimento da pluralidade de nosso mundo atual.18

8. A pedagogia do batizado cristão

Vivemos no mundo da competição, da rivalidade e da disputa. O segredo da convocação para os batizados é o de-sejo de sair do egoísmo e viver na comunidade. Comunidade essa que tem como ideal fazer Memória da Vida, doutrina e práxis de Jesus de Nazaré. Comunidade que atualiza no con-texto de hoje os apelos de um memorial a ser vivido que exige decisões. Aponto aqui algumas reflexões como possíveis saídas para superar a dialética da existência que vivemos no nosso contexto latino-americano. O Batismo é acima de tudo uma Festa da Vida – A fa-mília, os padrinhos, os amigos fazem da celebração batismal um acontecimento único com a chegada de um menino ou menina. A Festa familiar e popular tem assim uma dimensão

16 Idem, p. 211.

17 Idem, p. 249.

18 Cf. D. BOROBIO, Pastoral do Batismo. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 122-128.

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de alegria por um novo membro diante da fragilidade da exis-tência. Por isso as roupas, os cânticos, a reunião festiva, o “der-ramar água” na cabeça das crianças têm uma dimensão reli-giosa profunda. A vida é um dom de Deus que deve ser cele-brada e defendida dos inúmeros perigos. A dura experiência para sobreviver no dia a dia, a luta pela vida ajuda a criar esse momento de fuga do cotidiano e se lançar nas mãos de Deus na celebração do sacramento da vida. Compete ao celebrante criar esse clima de festa religiosa e não fazer uma dicotomia entre a celebração sacramental na Igreja e a festa que normalmente se segue após o batizado. Por isso deve-se criar um clima de hospitalidade e de acolhida. O grande pecado das celebrações litúrgicas está na falta de acolhida e de criar um clima que se está em casa, em família na casa de Deus, a Igreja.19

A valorização dos nomes das crianças, dos pais e mães, dos padrinhos e madrinhas ajuda os participantes a se senti-rem em casa, a celebrar a festa da vida. Os horários das celebrações também devem ser escolhi-dos sujeitando-se às crianças evitando momentos que não lhes sejam favoráveis. Toda festa tem uma preparação e tem-po devidos. Saber respeitar esses momentos é ter certeza de que as pessoas se sintam bem motivadas para assumir os compromissos batismais. Outra realidade que precisamos enfrentar hoje em dia é a situação das famílias. As famílias que muitas vezes trazem as crianças para serem batizadas não são mais as famílias tradicionais. Nas grandes cidades é comum encontrar famílias de se-gunda união, ou pessoas que vivem familiarmente sem serem casadas. O momento de celebração batismal deve ser oportuno para recordar os valores cristãos de ser Igreja. Devemos ser livres para transcender laços puramente jurídicos e nos ater nos valores cristãos da fidelidade, da sinceridade e do com-promisso de ser cristão.20

O compadrio é algo primordial no nosso povo. O círculo de parentesco é sinal de sobrevivência e, muitas vezes, têm funções no conflito e na reconciliação. Existem normas e responsabilidade entre padrinhos e afi-lhados, entre pais e compadres selando a identidade cristã. Os padrinhos que levam com ternura as crianças para serem batizadas assumem uma função sagrada. Tem um valor afeti-vo enorme que perdura toda a vida como presença na educa-

19 Na cultura latino-americana o compadrio possui um estrato social muito forte. Compreender, respeitar e discernir: ajudam a criar fortes laços sociais e familiares. Cf.

V. CODINA – IRARRAZAVAL, D. Sacramentos de iniciação, op. cit., p. 31-32.

20 Idem, p. 94-95.

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ção e na responsabilidade social dos afilhados, a intimidade que cria incorporação à família de seus padrinhos e destes na dos afilhados. Os laços de compadrio predominam entre padrinhos e afilhados. Em algumas regiões da América Latina e do Brasil, os padrinhos ganham destaque como fatores de honra e de superioridade e de dominação. Quanto mais afilhado alguém possui, mais ascensão social e econômica pode revelar. Compete, contudo, ao celebrante e à comunidade onde se realiza os batizados anunciar e convocar que ser padrinho ou madrinha significa compromisso de ajuda solenizada no rito. Os padrinhos devem contribuir para a consolidação familiar.21

Acima de tudo, a celebração do batismo é uma experi-ência de Deus a ser celebrada e vivida no sacramento e nas conseqüências da vida. Essa celebração passa necessariamente pela dimensão simbólica. Os sacramentos e, de modo especial, o batismo, são celebrações simbólicas da Igreja através das quais nos colocamos no mistério pascal de Cristo e nos dispomos a seguir esse Jesus na vida concreta de nosso cotidiano. Os sinais-simbólicos de imersão emersão na água, o sinal da cruz, a imposição da veste batismal, a iluminação da luz pascoal acesa no Círio, as unções com o óleo dos catecúme-nos e do crisma atualizam nos batizados o mistério da morte e ressurreição do Cristo e a libertação de todo o mal. A água derramada não é simplesmente lavar a mácula do mal, mas passar da morte para a vida, do caos do egoísmo para a unidade da Igreja, comunidade. Ser salvo das águas é expresso simbolicamente na purificação da humanidade no Dilúvio, na conscientização da escravidão no Êxodo e na op-ção por Deus no Jordão. Essa libertação da morte se expressa no sentido comuni-tário por Deus salva as pessoas em comunidade como povo. A Igreja prolonga essa comunidade de salvação na história e vai constituindo o sacramento da salvação universal.22

O dom batismal deve corresponder por parte dos batizados a uma atitude concreta na vida: seguir o caminho de Jesus, imi-tar sua solidariedade com os pobres, libertar-se de toda escravi-dão e morte, realizando assim a chegada do Reino de Deus. O batismo é assim uma denúncia contra todas as estrutu-ras anti-evangélicas que destroem a vida em todas as dimen-sões cósmicas, sociais e espirituais. Seguir Jesus é anunciar a Vida em plenitude. Dentro dessa visão, os simples, os pobres mergulham com mais sabedoria no mistério profundo das águas do ba-

21 PUEBLA, nn. 29-50

22 Cf lúmen gentium 1, 9. 4 a 8.

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tismo do que os sábios, os poderosos desse mundo que não querem perder seus privilégios e situações familiares consti-tuídas. O Batismo é acolhido com simpatia pelos pobres e uma denúncia para a conversão dos poderosos. Por isso, a cele-bração do batismo é uma denúncia contra o fato da América Latina e o Caribe serem majoritariamente de cristãos bati-zados e ter uma minoria que vive o banquete na opulência enquanto a maioria vive em situações desumanas. Concluímos dizendo que o batismo é uma convocação para a Vida em plenitude e denúncia contra os atentados contra a vida cósmica material, os desequilíbrios sócio-eco-nômicos e o radicalismos fundamentalistas arraigados nas leis e interpretações equívocadas do Deus da Vida. O Batismo é a grande celebração da Vida a ser feita pelas famílias, tendo consciência e assumindo o que Jesus disse ao afirmar que veio trazer a vida a todos e que a tivessem em plenitude (Jo. 10,13). Somos convocados ao banquete da vida que não se resume na vida espiritual, mas na defesa da vida cósmica e social.

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tEstEMuNhOiMigraNtEs haitiaNOs EM MaNaus

Gelmino Costa*

A mobilidade humana, independentemente dos motivos, é talvez o fenômeno social de maior vulto no mundo de hoje. Os imigrantes estão em toda a parte. Enquanto os países ricos levantam muros, trancam as suas fronteiras, os imigrantes, movidos pela lei da vida, continuam o seu duro caminho, por terra e pelo mar, sinais de luta e de resis-tência, sinais vermelho que apontam para aquilo que não é correto no mundo: as desigualdades, o egoísmo das nações, a má distribuição das riquezas.

Eles estão chegando

Os imigrantes haitianos existem há muitos anos. O terremoto de janeiro de 2010 veio agravar sua situação. Quantos foram os mortos? Fala-se de 200 mil. Quantos os feridos? Quantos estão debaixo de lonas? As imagens de destruição, sofrimento e morte estão gravadas na nossa mente. Em todo o Brasil foram feitas coletas e campanhas em favor dos haitianos. Todos quisemos demonstrar a nossa solidariedade.

O Estado brasileiro, naquele momento, disse que estaria disposto a acolher e ajudar os haitianos que buscassem o Brasil. Não foi preciso esperar eles chegaram à fronteira. Seguiram a rota: Porto Príncipe (ou Santo Domingos), Pa-namá, Quito (Equador), Lima (Peru), Iquitos (Peru) e de lá em barco alcançando a fronteira brasileira de Tabatinga. Outro grupo de Lima segue para Puerto Maldonado (Peru) e Brasiléia (Acre) – isto no que se refere à Amazônia.

Em Tabatinga eles apresentam à polícia federal o pedido de refúgio. A polícia dá o Protocolo de Refúgio e uma carta que autoriza retirar o CPF e a Carteira de Trabalho. De pos-se do Protocolo, eles tomam o barco e vêm para Manaus. Cá chegando eles buscam a pastoral do migrante, as igrejas de São Geraldo e São Raimundo. Aí inicia o nosso trabalho em Manaus.

Os primeiros haitianos chegaram a Manaus em fevereiro do ano passado e dos que chegaram até junho, praticamen-te ninguém se estabeleceu aqui. Muitos tinham o sonho dos

*missionário scalabriniano

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Estados Unidos, da Europa (quem sabe, via a Guiana Fran-cesa). Saíram em silêncio e não se sabe que rumo tomaram.

A partir de julho de 2010 eles chegaram mais nume-rosos querendo ficar em Manaus. No mês de agosto inau-guramos uma pequena casa de acolhida na Paróquia São Geraldo. Logo lotou. Lotada estava também a casa animada pelas irmãs scalabrinianas. Foi alugado um casarão. Mas no final do ano o grupo foi crescendo. Foi pedida a aju-da a outras paróquias e a São Raimundo passou a acolher 40 imigrantes (hoje são 90). Fizemos novo apelo às paró-quias e a Sagrada Família acolheu 40, os Capuchinhos nes-ses dias acolheram uns 80, sessenta estão conosco; outras paróquias estão ajudando com doações. Neste momento, dia 6 de março, a pastoral do migrante está acolhendo 260 e acompanhando mais uns 60 em suas primeiras habita-ções. Sabemos que muitos estão em Tabatinga aguardando o Protocolo e zarpar para Manaus.

O que tentamos fazer? Em primeiro lugar acolhê-los, oferecendo um espaço para comer, dormir, aprender o por-tuguês, acertar a documentação e buscar emprego. A parte religiosa não é esquecida, mas ela se revela muito mais na caridade do que no culto, também porque a grande maioria é evangélica. A Igreja católica é a única que os apóia – isto eles percebem muito bem. Está sendo um momento muito bonito para a Igreja de Manaus. O apoio dos bispos é total. Muita gente e muitas comunidades estão multiplicando os gestos de acolhida e de solidariedade.

E o futuro?

Olhando prá frente não temos certeza do que vai acontecer. Parece que os imigrantes continuarão chegan-do. O Estado na parte legal/jurídica está perdido: dá a eles um Protocolo de Refúgio, mas nunca serão reconhe-cidos como tais. Fechar as fronteiras, deportá-los, deixá-los na clandestinidade? Acho que isso não vai acontecer, seria um fiasco brasileiro, uma mesquinhez, pois os hai-tianos no Brasil ainda são menos de mil. A nossa luta é para que eles tenham um visto de residência humanitário ecológico.

Continuo dizendo que o nosso carisma, talvez seja o mais difícil, mas certamente é o mais atual e expressa um pouco do grande amor que Deus tem para com os mais sofridos, entre eles os migrantes.

Gelmino Costa – Testemunho Imigrantes haitianos em Manaus

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Trajetória

Os haitianos que chegam no Amazonas, saíram do Hai-ti, alguns de Porto Príncipe, outros passaram antes pela Re-pública Dominicana, seguiram para o Panamá, depois para Lima, de lá para Iquitos (Peru), donde de barco alcançaram a fronteira do Brasil em Tabatinga. Muitos pararam algum tempo (dias ou meses) no Equador Esta viagem custa em torno de U$ 4.500,00. Este dinheiro muitas vezes é tomado emprestado.

Em Tabatinga

Chegam em Tabatinga já muito cansados. Aonde ir? A Igre-ja católica e, sobretudo o padre Gonzalo tenta encontrar alguns lugares, espaços, para reclinar a cabeça e encontrar um pedaço de pão, mas a cidade não tem nenhuma estrutura de acolhida. Começa em seguida a procissão para encontrar a polícia fede-ral que tem poucos efetivos para atender. Como eles formu-lam o pedido de Refúgio, têm que responder a um questioná-rio detalhado e demorado – considerando também o problema da comunicação e da linguagem. Por isso, poucas pessoas são atendidas por dia. De vez em quando outros efetivos da polícia se deslocam de Manaus para Tabatinga e realizam um muti-rão. Isso repercute diretamente sobre o número de chegadas em Manaus. Recebido o Protocolo e a Carta da polícia e arranjados os R$ 170,00, tomam o barco para Manaus.

Chegada em Manaus

Já em Tabatinga eles ficam sabendo da pastoral do mi-grante – a rede de celular funciona muito bem entre eles – buscam em Manaus o escritório do SPM, animado pelas irmãs scalabrinianas, mas ultimamente eles chegam direta-mente na igreja São Geraldo ou São Raimundo Poucas vezes nós sabemos o dia, a hora da chegada e quantos chegarão. Ficamos de sobreaviso nas terças, sextas e sábados, dias em que os barcos chegam de Tabatinga. Acho que o número maior de chegadas foi na sexta e sábado, dias 4 e 5 de março de 2011 quando chegaram 67 imigrantes.

Serviço de acolhida pela Igreja de Manaus

Inicialmente, quando o número era pequeno, os imi-grantes eram encaminhados para a casa do migrante do

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Estado e para uma pequena casa de acolhida da Diocese animada pelas irmãs scalabrinianas. No mês de agosto nós abrimos outra pequena casa em São Geraldo para doze pessoas. Logo lotou. Alugamos um casarão aonde chega-ram a ficar trinta e nove pessoas. Recorremos à Igreja de Manaus. Em janeiro a paróquia São Raimundo abriu suas portas, disposta a acolher até quarenta pessoas (hoje tem ainda perto de oitenta). No dia 18 de março na reunião do clero foi feito mais um apelo. Na hora outra área mis-sionária se dispôs a acolher vinte – o que aconteceu ime-diatamente (hoje são quarenta e oito). Outras paróquias se prontificaram para pagar o aluguel de uma casa. O número foi crescendo, um padre acolheu, provisoriamente, oito em sua casa. No dia quatro de março chegou a mão bendita dos capuchinos que transformaram a casa de retiro em casa de acolhida (deslocando os que estavam fazendo retiro); ao mesmo tempo disponibilizaram outros dois locais menores e estão preparando mais uma casa para ser usada em caso de necessidade. No dia 11 de março alugamos uma casa (aluguel pago por uma paróquia) onde foram colocadas 16 pessoas. No momento de pico, no início de março. Estavam sendo acolhidas em casas da igreja trezentas pessoas, sendo oitenta em São Geraldo.

Em resumo, a Igreja local se abriu à questão migratória, gratuitamente, sabendo que o 98% dos haitianos chegados aqui são evangélicos. Alguns leigos vestiram fortemente a camisa e estão ajudando muito. As igrejas evangélicas, mes-mo convidadas, não assumiram nada – ultimamente famí-lias evangélicas assumiram alguns imigrantes.

Serviços prestados

Logo que chegam a Manaus, a primeira tarefa é acolhê-los encontrar um local para ficar e alimentar-se. A alimen-tação foi e está sendo doada pelas comunidades católicas de Manaus. No dia depois da chegada é feito o pedido do CPF. No terceiro dia recebem o CPF e no quarto dia dá-se entrada ao pedido da Carteira de Trabalho.

Os serviços prestados abrangem o global da vida dos imigrantes: acolhida, alimentação, ensino da língua, enca-minhamentos médicos - há gente doente e até precisando de pequenas cirurgias, mulheres grávidas (na primeira semana de março nasceram duas crianças), ajuda para encontrar moradia, transportes e mudanças.

Gelmino Costa – Testemunho Imigrantes haitianos em Manaus

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Um destaque todo especial merece a questão da inserção no mundo do trabalho. Os meios de comunicação, jornais, rádios, televisão estiveram muito presentes todos os dias. Foi feitos ape-los aos empregadores pequenas e grandes. A resposta foi muito grande. Acho que só num dia apareceram uns 20 empregado-res, desde empresas maiores como familiares. A construção civil é a que mais está empregando. Cuidamos para não entregar os imigrantes nas mãos de exploradores. Há muitos pedidos de domésticas, caseiros, zeladores de sítios e de chácaras, criação de animais, pisciculturas, hortas... Evitamos por enquanto de empregar pessoas distantes da cidade e em lugares isolados.

Quem são eles?

Quanto à proveniência, parte é de Porto Príncipe, mas parte é de outras regiões do Haiti. Uns já estiveram na Repú-blica Dominicana (encontramos gente que esteve nos Esta-dos Unidos e que foi expulsa no tempo do George W. Bush). Para a maioria se trata da primeira saída. Parte teve a família atingida pelo terremoto, outros não. Noventa por cento são homens/jovens com a idade entre 22 e 35 anos. Com peque-nas exceções todos estão permanecendo em Manaus.

Questões

A urgência do atendimento impediu-nos ainda de refletir so-bre os fatos. Às vezes surgem as perguntas típicas do campo mi-gratório – haveria alguém facilitando a sua saída? Haveria a pre-sença de gatos ou coiotes? Até nos perguntamos por que o 98% são evangélicos e os católicos talvez não passem de uma dezena?

Outras questões são de ordem política – o que pensa mesmo o governo brasileiro? Por que ele se comprometeu de acolher os haitianos e agora está levantando barreiras para a entrada? Por que está aceitando o pedido de refúgio (pelo menos por enquanto) quando eles não serão aceitos como refugiados? Agora foi decidido que só serão acolhi-dos os haitianos que vierem com o Visto feito no Haiti – que Visto será este? E para os que já estão no Brasil que Docu-mento o Brasil vai fornecer? Sempre renovando o Protoco-lo? E os que já saíram do Haiti e estão a caminho do Brasil?

Também teremos que acompanhar a sua inserção no mundo do trabalho, questões trabalhistas, além dos primei-ros socorros quando eles vão tentar alugar a primeira mora-dia. Deus e Scalabrini nos acompanharam até aqui, não nos abandonarão nos próximos passos.

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NotaBibliográfica

O ValONgO E sEu CEMitÉriO

Ênio José da Costa Brito*

A revolta dos Malês, em 1835 foi um episódio que teve como motivação central a defesa das concepções religiosas sobre a morte, os mortos e os ritos fúnebres.1

Uma das facetas mais cruéis do escravismo brasileiro, pouco lembrada pela historiografia, finalmente, ganhou um estudo mais amplo com a pesquisa de Júlio César Medeiros da Silva Pereira.

O livro À flor da terra: o Cemitério dos Pretos novos no Rio de Janeiro, mostra a violência contra os mortos. Escravos que morriam quando as naus entravam na Bahia. Ou então, espe-rando para serem vendidos, tinham seus corpos descartados, lançados à flor da terra no Cemitério dos Pretos Novos.2

Este Cemitério, que funcionou de 1772 a 1830, no Valon-go, só recentemente foi localizado. Atualmente, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro trabalha na recuperação do que restou do lugar. Este cemitério de escravos ficava na área antes conhecida como o entreposto do Valongo, que hoje compreende os bairros da Saúde, gamboa e Santo Cristo. Construído em 1722, no largo Santa Rita, transferido para o Valongo em 1769 e possivelmente extinto em 1830. O Cemitério dos Pretos no-vos era destinado exclusivamente a pretos novos, denominação dada aos escravos recém chegados da África.3

Pereira realiza um estudo minucioso do espaço funerário tendo como fonte principal o Livro de óbitos da Freguesia de Santa Rita. O Cemitério é analisado em estreita relação com o tráfico e com a cidade do Rio de Janeiro. Análise que dá ao autor a possibilidade de explicitar as especificidades do cemi-tério e a importância da morte para a cosmovisão africana.

À flor da terra está estruturado em quatro capítulos, a saber: Religiosidade e morte: Lugares fúnebres no Rio de Ja-neiro dos séculos XVII a XIX; O Cemitério dos Pretos Novos e o seu entorno; História e arqueologia: revelações e desco-bertas e Viver e morrer em África.

* Professor da PUC-SP.

1 Cf. J. J. REIS, A Morte é uma festa: Ritos fúnebres e revol-ta popular no Brasil do Século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 49.

2 SILVA PEREIRA, J. C. M., À flor da terra: O Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond/IPHAN, 2007.

3 Idem, p. 53

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A cidade e o cemitério

Com uma configuração espacial difícil, o Rio de Janei-ro cresceu desordenadamente e sem condições higiênicas, o que favorecia epidemias tornando a morte ainda mais corri-queira. Com a chegada da família real, em 1808, houve uma melhora nas condições de vida da cidade.

O costume do sepultamento ad Sanctus, ou seja, nas Igrejas, herança da colonização cristã portuguesa, permane-ceu até o Império. Por força do tratado de Amizade, que en-trou em vigor em 1810, a cidade passou a contar com quatro cemitérios católicos e um protestante, o cemitério dos ingle-ses. Eram eles, o cemitério da Santa Casa da Misericórdia, o de Santo Antônio, o dos pretos novos no antigo largo de Santa Rita e o dos mulatos no Campo do Rocio. Em 1839, foi aberto um cemitério na Praia de São Cristóvão, cemitério do Caju, hoje Cemitério São Francisco Xavier.

A hierarquia social reproduzia-se na hora da morte. Gen-te de posse era inumada nas Igrejas, escravos pertencentes às irmandades, nos cemitérios. As Constituições Primeiras da Bahia, além de recomendar o sepultamento dos fiéis, dá orientações para um enterro digno dos cristãos.

O sepultamento dos pretos novos, muitos deles eram ba-tizados, era realizado em valas comuns ou covas rasas no Cemitério edificado no Largo Santa Rita. Fato que escanda-lizava os viajantes europeus em visita à cidade.

A devoção a Santa Rita chegou à Colônia pelas mãos do fidalgo português Manuel Nascentes Pinto, sellador mor da alfândega, que trouxe na bagagem um quadro da santa. Mais tarde edificou com recursos próprios uma Igreja dedicada à santa e doou-a a irmandade de Santa Rita, aos treze de março de 1721. Na frente da Igreja, localizada fora do perí-metro urbano e próxima do mercado de escravos do Valongo, instalou-se um cemitério também em 1721, o Cemitério dos Pretos Novos.

O mercado de escravos que antes funcionava na Rua Di-reita, na administração do Marques de Lavradio foi transfe-rido para a região do Valongo, após muitas reclamações da população. A ordem dada por lavradio foi severa: os escravos que não fossem vendidos não sairiam do Valongo ‘nem depois de morto’, porque o novo cemitério era bem próximo do mer-cado.4

A Igreja de Santa Rita trouxe notoriedade para a fregue-sia, enquanto o cemitério só problemas. Pereira localizou documentação que traz queixas da população local contra o

4 Idem, p. 74.

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cemitério em 1820, queixas que só terminaram com o fecha-mento em 4 de abril de 1830. Uma das queixas mais freqüen-tes relacionava-se com o tamanho do cemitério, considerado pequeno. Segundo o Livro de óbitos de Santa Rita, entre 1824 e 1830, 6.119 escravos foram ali sepultados.

Alguns fatores foram determinantes para que o fecha-mento ocorresse: a determinação da população, que con-siderava o cemitério insalubre, a mentalidade higienista e a incipiente modernização da cidade.

Inúmeras são as causas das mortes dos escravos: pés-simas condições higiênicas dos navios negreiros, varíola, suicídio, doenças infecto-contagiosas, bexigas, entre outras. Data de 1816 um documento no qual se propunha aos três maiores traficantes, João Gomes Valle, José Luís Alves e João Alves de Souza que construíssem uma enfermaria, onde es-cravos que desembarcavam adoentados fossem tratados. O Cemitério dos Pretos Novos recebeu alguns corpos em 1825, 1827 e 1828, que vieram do Lazareto.

O livro de óbitos

Para uma radiografia demográfica dos escravos sepulta-dos, o Livro de óbitos da Freguesia ofereceu a Pereira os dados que buscava. Ao levantar, cruzar, e analisar os dados, o autor desvelou parte da lógica do cemitério, intimamente ligada ao trafico negreiro e as suas oscilações.

Entre 1824 e 1830, entraram no porto do Rio 166.230 es-cravos. Tal número tem sua explicação em vários fatores: vinda da família real, expansão da lavoura canavieira e sensação difusa de que o tráfico ia cessar. Entre 1825 e 1828, a taxa de mor-talidade entre os escravos novos manteve-se elevada: 1044 em 1825 para uma entrada de 26.180 escravos novos em 1828, foram realizados 1049 sepultamentos para uma entrada de 45.670 escravos. Após 1830, diminuem os sepultamentos.

Os historiadores apontam diversas razões como melhora tecnológica das embarcações, o não registro, os corpos que eram sepultados em outro lugar. Para Pereira, os comercian-tes deixaram de sepultar neste campo santo, para passarem a utilizar de forma discreta e gradual, o cemitério da Santa Casa, conhecido como ladeira da Misericórdia.5

Pequenos bilhetes ou pedaços de papel foram encontra-dos dando conta de sepultamentos no Cemitério da Santa Casa. Estes bilhetes demonstram que pretos novos continu-avam chegando no país. O tráfico ilegal piorou e muito as já péssimas condições de sepultamento.

5 Idem, p. 139.

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Mesmo tendo sido ampliado, em 1828, o Cemitério da San-ta Casa apresentava-se superlotado em 1833. Entretanto, se o lugar de sepultamento mudou após 1830, a forma de se fazer os sepultamentos permaneceu inalterada. Se no Cemitério dos Pre-tos novos os escravos recém-chegados eram lançados em valas comuns, na ladeira da Misericórdia a situação não era melhor e a superlotação foi um problema constante e recorrente.6

O Cemitério dos Pretos Novos, que tinha sido esquecido, foi descoberto em janeiro de 1996 por acaso por operários que iniciavam a reforma de uma casa na Rua Pedro Ernesto, n. 36. Entre os objetos achados encontram-se artefatos de ferro, conta de vidro, artefatos de barro, ossos num total de 5.563, ossos queimados e dentes limados. A maioria dos se-pultados era banto, jovem, adolescente e crianças.

A pesquisa arqueológica tem ainda muito a fazer. Uma breve comparação com os trabalhos realizados no the Afri-can Burial ground confirma o quanto é possível ampliar os estudos arqueológicos no Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro.7

Apagar a memória do Cemitério dos Pretos Novos era uma necessidade que se impunha para uma nação que se modernizava. Modernização contraditória, pois, mantinha a escravidão.

Os assentamentos de óbitos lavrados pela Freguesia de Santa Rita trazem informações preciosas. Pereira apresenta uma delas, a título de exemplo: Aos dezoito de julho de mil oi-tocentos e vinte sete, Joaquim Antônio Ferreira mandou sepul-tar um escravo novo, com a marca à margem do braço direito, vindo de Angola no navio Despique, do que faço este assento.8

Numa análise cuidadosa dos 6.119 óbitos registrados de 1834 a 1830, o autor constatou que 31.2l8 registros traziam os portos de origem. Dentre os 11 portos identificados, pelo de Angola passaram 891 dos pretos novos sepultados, 28,4% do total. Pelo de Benguela, 914, correspondendo a 29,2%.

A fase áurea do tráfico pela África Central se deu entre 1760-1830. A guerra entre reinos fornecia escravos para um mercado em expansão. A obtenção de escravos e, por conse-guinte, a venda aos traficantes, ou troca por armas de fogo, impulsionavam o desenvolvimento dos reinos envolvidos na obtenção de escravos vizinhos mediante a guerra.9

A cosmovisão

Os historiadores têm confirmado que a procedência da maioria dos escravos do centro-sul do Brasil era da África

6 Idem, p. 130.

7 http://www.afri-canburialground.gov/ABG_Main.htm

8 Cf. J. C. M. PEREI-RA DA SILVA, À flor da terra, op. cit., p. 141.

9 Idem, p. 149.

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Central, área ocupada por povos banto. Conhecer a cosmolo-gia desses povos é condição primeira para uma maior aproxi-mação da experiência vivida pelos escravos novos por ocasião do sepultamento realizado no Cemitério dos Pretos Novos

Para Pereira, o termo banto deve ser dado aos africanos que compartilhavam o tronco linguístico banto, e não no sen-tido que o senso comum adotou de pensar ‘banto’ como uma cultura.10

Os povos falantes de língua banto, após inúmeras migra-ções, se fixaram na África Central, em organizações de tipo familiar. O binômio família-linhagem está baseado na ances-tralidade e tem centralidade na cultura africana, uma vez que permite preservar a memória dos antepassados.

O autor abre o diálogo com a obra clássica do jesuíta Raul Ruiz de Asúa Altuna, intitulada, A cultura tradicional banto, para mergulhar na cosmovisão banto, em especial, na sua religiosidade.11

Altuna ressalta a importância da vida, sua relação com a morte, que não é vista como uma não existência, pois, todas as coisas contem um poder vital, distribuído de maneira hie-rarquizada pelo Criador.

Sendo os ancestrais, o elo de ligação entre o Criador e suas criaturas, quanto mais perto dele alguém estiver, maior força vital terá. O culto aos ancestrais constituía uma das ba-ses principais, mas não única, da religiosidade centro-africa-na e tem, dentro da cosmovisão, um papel fundamental na manutenção da vida e da ordenação das coisas terrenas, ao mesmo tempo que funciona como um elo entre o homem e um Deus que habita em um mundo distante.12

Não poder venerar os ancestrais, ou morrer longe deles, é uma má morte, assim como morrer jovem, sem filhos, por sui-cídio ou intempéries da natureza. O corpo inerte, buzimo, deve ser sepultado para não tornar-se um muzino, ser não vivo, sem força vital, mas inteligente, que se constitui num perigo para a comunidade, pois pode afligir, atormentar os vivos.

O ritual fúnebre, além de separar o morto da comunidade dos vivos, restabelece a ordem. O uso da mortalha, em ge-ral - a branca é a mais comum porque o branco representa a morte, como o mar, a Kalunga, representa o local de traves-sia para o além.

O contato com a religião cristã não levou os africanos ao abandono de sua religiosidade, graças à capacidade deles de aglutinar novos valores e reelaborar significados e símbolos.

Para os pretos novos, o tipo de sepultamento realizado no Cemitério dos Pretos Novos deveria causar pavor, uma

10 Idem, p. 156.

11 Cf. R. R. de ASÚA ALTUNA, A Cultura tradicional bantu. Lu-anda: Lev’Arte, 2006.

12 Cf. J. C. M. PEREI-RA DA SILVA, À flor da terra, op. cit., p. 162.

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vez que impossibilitava recuperar a força vital e cultuar os antepassados. O significado do Cemitério dos Pretos novos para os escravos recém-chegados, era este: o fim da trajetória material e imaterial de suas existências.13

Pontuações

O sul mais distante. O Brasil, os Estados unidos e o tráfi-co de escravos, livro do historiador americano Gerard Horne, lançado recentemente no Brasil, termina com uma alusão ao Cemitério dos Pretos Novos. Livro instigante e esclarecedor, que tem como foco principal os Estados Unidosmas que gra-dualmente oferece ao leitor dados para visualizar as relações entre os dois grandes impérios escravistas do século XIX.14

No livro, Horne ratifica uma tendência que vem se fir-mando na historiografia brasileira nos últimos anos: a com-preensão mais densa de nossa sociedade escravista não pode ser isolada de um contexto mais amplo.

Ele termina seu livro responsabilizando também os trafi-cantes americanos pelo Cemitério dos Pretos Novos. Depois de relembrar a descoberta do cemitério, afirma: naquele ano foi desenterrado um dos maiores cemitérios de escravos do mundo, uma vala comum onde traficantes despejaram mi-lhares de corpos, bem antes da abolição em 1888. Dizem os especialistas que mais de 20 mil corpos devem ter sido joga-dos, ignominiosamente, no Cemitério dos Pretos novos. no entanto, não se sabe até que ponto esses corpos foram sepul-tados como consequência da ação destruidora de cidadãos americanos, no auge do comércio ilícito de escravos, há mais ou menos 160 anos.15

Em À flor da terra, Pereira desvelou com sabedoria, se-renidade e firmeza para seus leitores a violência cultural perpetrada durante 58 anos de 1772 a 1830 no Cemitério dos Pretos Novos. As práticas de sepultamento realizadas no cemitério revelam a ganância dos comerciantes de carne hu-mana e o total desprezo e desconhecimento da cosmovisão africana e seus valores.

O autor conciliou a perspectiva analítico-comparativa com uma rica e selecionada documentação, evitando solu-ções simplistas e moralistas. Sua preocupação inicial é de si-tuar o leitor na cidade do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX, período de grande crescimento da população negra na cidade.

Thomás Bennet, um americano que esteve no Brasil na década de 1830, diante da massiva presença negra no Rio de

13 Idem, p. 177.

14 Cf. G. HORNE, O Sul mais distante. O Brasil, os Estados Unidos e o tráfico de escravos. São Paulo: Companhia das Le-tras, 2010.

15 Idem, p. 360, grifo nosso.

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Janeiro, escreveu: meus olhos estão de tal maneira familiariza-dos com rostos negros que o surgimento de um rosto branco nas ruas de certas partes da cidade me chama atenção pelo inusi-tado.16 O Rio da época era uma cidade hierarquizada, negra e muito insalubre, com um alto índice de mortalidade, onde os escravos ocupavam os últimos degraus da escala social.

Em seguida, Pereira apresenta o Cemitério dos Pretos No-vos esmiuçando as práticas de inumação ali realizadas, a insa-tisfação da vizinhança e a impotência do Estado para enfrentar os problemas. Não assumindo estas práticas como coisas, cap-ta sua complexidade e também as filigranas das mesmas.

Tendo apresentado o cenário e a história do Cemitério dos Pretos Novos, esta reveladora de uma faceta da socieda-de escravista, o autor olha de perto a demografia dos escra-vos sepultados no campo santo. A obtenção de uma resposta para o fim do cemitério, em 1830, é um dos frutos dessa minuciosa análise.

Finalmente, no quarto momento Pereira volta a olhar os personagens principais desse drama, os pretos novos. De onde provinham? Qual a sua cultura? Como a morte e a vida eram compreendidas na África? Para responder a estas ques-tões, convida o leitor a passar para o outro lado do Atlântico.

Com alguns dados na mão, estabelece comparações com a visão cristã mostrando o dinamismo que se faz presente no encontro dessas duas concepções de mundo.O leitor, ao vis-lumbrar a cosmologia desses africanos que aqui chegaram, entende um pouco mais o medo, o pavor que os atormentava.

No prefácio, José Murilo de Carvalho sintetiza com pre-cisão a dinâmica presente em À flor da terra: É este mundo marcado pelo sofrimento de uns e pelo desrespeito de outros, um mundo de práticas desumanas, que Júlio César nos revela, apoiado em documentos de arquivos, em testemunhos de via-jantes, em estudos sobre a cultura da morte nas tradições cató-lica e banto. Ao horror dos navios negreiros e das senzalas, será preciso acrescentar agora o do Cemitério dos Pretos novos.17

Ao terminar a leitura de À flor da terra, uma certeza emerge: nossa história é um poço de lacuna. Historiadores como Júlio César estão de mangas arregaçadas a fim de cor-rigir as simplificações, as deformações e contribuir para um conhecimento mais amplo de nosso passado.

16 Idem, p. 44.

17 Cf. J. M. de CAR-VALHO, Prefácio. In Cf. J. C. M. PEREIRA DA SILVA, À flor da terra, op. cit., p. 12.

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EVERETT, D. L. Don’t Sleep, there are snakes: Life and lan-guage in the Amazonian jungle. New York: Vintage Books, 2009, p. 300.

Às margens do rio Maici, que por sua vez é um afluente do Marmelos, que é afluente do Madeira, que é um afluente do Amazonas mora um grupo de semi-nômades cuja língua é a última sobrevivente da família lingüística mura. Ali meio da selva, a meio caminho entre Humaitá e Manicoré, a 200 qui-lômetros ao norte da Transamazônica, no meio do verde e do quase-nada, ali estão os Pirahã ou Pirarrã (pee-da-HAN), al-gumas centenas de aborígenes muito singulares, que merece-ram a atenção de um estudioso de línguas durante mais de 30 anos. O americano Daniel L. Everett, doutor pela Unicamp com a tese A língua pirahã e a teoria da sintaxe: descrição, perspectivas e teoria (1992), agora professor na Universi-dade Estadual de Illinois, escreveu um livro fascinante onde apresenta, além da língua singular dos Pirarrã, as suas prin-cipais características culturais que fazem dos mesmos uma fenomenologia antropológica única. A língua nos Pirarrã não se vincula a língua original amazônica alguma – jê, tronco tupi-guarani ou mesmo as línguas andinas – e por sua vez transpira aspectos culturais originais: ausência de sistema de contagem, de termos para cores, palavras para as atividades da guerra ou da propriedade privada. Everett por sua vez pu-blicou já diversos artigos sobre esta língua e cultura passando a ser um especialista no assunto. Considera-se que Daniel e Keren, sua esposa, sejam os únicos que falam a língua dos Pirarrã, além deles mesmos.1

Everett apresenta a vida e a cultura dos Pirahã a partir das observações in situ ao longo de anos – com presença mais ou menos contínua desde 1977 até 2005 – e no processo de aprendizagem da língua com seus muitos mestres locais. Algo que para um estudioso da cultura certamente chama a

recensão

1 Rita Loiola apresenta uma síntese do pensamento de Everett no que diz respeito às características da língua dos pirarrã e o questionamento que ela levanta para as principais teorias da linguagem, especialmente a de Chomsky. Cf. R. LOIOLA, 1+2=2-1+2 bastante – bastante + bastante = bastante. Superinteressante, 2007, 245.

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atenção é a quase total – se não, total – ausência de ritos e de algum elemento que remeta à memória. As construções das casas são de uma simplicidade extrema, o nascimento e a morte e outros eventuais acontecimentos da vida passam praticamente desapercebidos e o estilo de vida é rudimentar de semi-nômades.

A sua cultura está entre as mais simples, diz Everett. Eles produzem poucos instrumentos, quase nada de artes e muito poucos artefatos (73). Everett chama a atenção que o objeto mais sofisticado seria o conjunto arco e a flecha. No mais, eles não produzem nada que seja duradouro; se precisam de algo, fazem na hora. Uma vez usado, deixam de lado. Dois aspectos chamam a atenção do visitante: a quase ausência de sono e a vida relacionada ao imediato. Quais os efeitos da ausência ou de uma presença bastante limitada do sono? É algo que o autor não discute, mas que provavelmente é o que enseja a presença da segunda atitude, isto é, vive-se pratica-mente numa vigília constante e com isto não importa nem o que passou e nem o que virá.2 Se têm fome, pesca-se ou vai-se à caça; como não há rituais mais sofisticados, não se tem também nem uma divisão clara de tempos qualitativamente diversos. Em termos de divisão das atividades práticas a que mais chama a atenção é a caça mais vinculada aos homens e a coleta, cultivo e colheita de raízes mais reservada às mulhe-res. O cuidado com as crianças é compartilhado na família, isto é, tanto o pai como a mãe exercem esta função.

Os pirarrã são pacíficos e não se presencia agressões nem para com os de fora nem internamente. São solidários, e se alguém, por algum motivo se perde na floresta, todos na aldeia vão em busca do mesmo, independentemente dos vínculos parentais. As crianças são educadas para a absoluta autonomia. Enquanto a criança está amamentando ou nes-ta faixa etária, a responsável por ela é a mãe ou o pai, mas assim que acontece o desmame ela passa a ser vista e tida como autônoma e tem que se virar em tudo. Não há proces-sos de paparicagem: se uma criança se queima, se fere ou se machuca com uma queda irresponsável, a mãe ou o pai ou qualquer adulto, além de eventualmente agir com energia, não faz absolutamente nada pela criança. Ela deve aprender por si e da experiência.

Isto pode ser vista com testemunho do autor: uma mu-lher em processo de parto junto ao rio, grita a tarde toda até

2 A antropologia da noite é um vazio dos estudos da cultura e ainda menos a temática do sono, ainda que muitos fenômenos culturais ocorram à noite. Algo neste sentido foi iniciado por uma equipe de estudiosos franceses. Cf. J. GALINIER et al. Anthropology of night: cross-disciplinary investigations. CuRREnt AntHROPOlOgY, (2010), 51(6), p. 819-847.

Recensão

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morrer – ela e a criança – sem que ninguém lhe dê auxílio; quem deveria ajudar seria a mãe da parturiente que estava ausente. A mãe de uma criança após certo tempo de adoeci-mento, vem a óbito. O filho, já bem frágil, recebe o veredicto dos demais membros da aldeia: ‘ele deve morrer’. Everett e sua mulher, após muito lutar conseguem revigorar a criança, mas num momento em que se ausentam da casa, os parentes entopem a criança com bebida alcoólica e a criança morre. É claro que eles se ajudam entre si em situações de necessida-de, mas isto é feito dentro de uma ‘arquitetura’ de responsa-bilidade (101). É claro que estas experiências chocantes para os de fora, dificilmente são compreensíveis sem os referen-ciais antropológicos dos próprios pirarrã.

Um dos traços que alguém de fora logo percebe, segun-do Everett, é a relativa facilidade e mesmo felicidade com que eles se relacionam entre si e com os de fora: sorriem, fazem festa, deixam o que estão fazendo e vão ao encontro dos que chegam. Os pais e as crianças são abertamente ca-rinhosos entre si – abraçam-se, tocam-se, riem, sorriem uns para os outros, brincam juntos, conversam entre si. Em ter-mos de progresso, não se percebe entre eles interesse por mudanças, pelo menos não em termos de alterações rápidas e radicais: quando se está satisfeito com o que se é e se tem, por quê mudar? É claro que é uma visão simplista, uma vez que outros fatores podem estar implicados, como veremos adiante. Para um estrangeiro, o clima e o ambiente é mesmo de paraíso.

O autor chama a atenção para uma certa ausência de ri-tuais as such, que teriam por objetivo criar uma rede de re-lações significativas e de organização simbólica do mundo e das relações entre as pessoas. Neste sentido Everett reconhe-ce que os pirarrã não têm uma proposta ritualística formula-da e codificada em vez disto, os valores e as informações são transmitidos através das ações e das palavras via testemunho. Assim, uma ‘literatura’ oral e de rituais não tem aqui espaço algum (84). Everett discute ainda os modelos de compreen-são das culturas outras a partir de projeções da compreensão que temos da nossa. Um destes aspectos é a questão do po-der. Afinal, quem manda? Quem é o chefe? Entre os pirarrã não temos polícia, tribunais e nem chefes; não do tipo dos nossos. As principais formas de coerção são o ostracismo e os espíritos. O ostracismo pode ser pelo isolamento ou pela exclusão da partilha de alimentos. Quanto aos espíritos – ka-

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oáíbógí – são eles que dizem – tanto para o indivíduo iso-ladamente quanto para o grupo – o que deve ou não deve ser feito, desde a caça, a pesca ou outra atividades qualquer. Assim são também eles que castigam, se for o caso.

Uma das coisas que os pirarrã gostavam de pedir a Everett era o dia em que o avião chegaria; eles ficavam fascinados com a ‘magia’ da previsão e especialmente do uso de número para dizer o dia (em dois dias, por exemplo).3 Os pirrarã não têm um sistema numérico nem mesmo do tipo um, dois, muitos. A sua cosmologia parece organizar-se na forma de estratos: mundo superior, mundo inferior e mundo do meio todos eles interligados de um modo um tanto misterioso. A questão do número acabou por ser algo fascinante para o casal Daniel e Keren. Os pirrarã queriam aprender a contar, em vista de te-rem de vez em quando que lidar com dinheiro com os brasilei-ros e não queriam ser enganados. Mas ao longo de quase um ano o casal, contando até com um vivo entusiasmo da parte deles, tentou ensinar aos Pirrarã a contar e no fim das con-tas ninguém deles aprendeu a contar até dez e muito menos somar 3 + 1 ou mesmo 1 + 1. Para Everett a principal causa seria algo mais geral que é a absoluta resistência a aprender algo dos brasileiros, dos americanos ou dos de fora, em geral. Indiretamente, não se pode, do ponto de vista psicofisiológico, desconsiderar a dificuldade de aprendizagem com a ausência de um sono mais prolongado, mencionado acima.4

Um exemplo da psicologia ou do funcionamento do psi-quismo dos pirrarã é como os mesmos consideram o sonho (xaipípai). Em resumo, para eles, este é um fenômeno que acontece na cabeça quando se dorme. Mas temos um senão: o sonho pode ser classificado como uma experiência real. Você é testemunha ocular em seus sonhos. O sonho não é uma fic-ção para os pirrarã (p. 131). Ainda que eles considerem que o modo de se ver as coisas em vigília em no sono seja diferen-te, eles vêm ambos como experiência do real. Por outro lado, tanto no sonho como na narrativa do sonho, a experiência é contada cantada.

Relacionado com isto temos a experiência de xibipíio – que em termos aproximativos Everett chama de experiência imediata. Eles lidam com estas experiências liminares, se-não tendo as mesmas características, pelo menos como sen-do muito próximas, compreende-se que o mundo para eles seja meio religioso, isto é, habitado por espíritos e crenças mas com influência direta na experiência cotidiana. Com isto conclui-se que se o sonho com um espírito pode resolver os meus problemas e meu sonho não é diferente de minha obser-

3 A atividade original de Daniel Everett com a sua esposa e filhos era fundamentalmente de evangelização. Junto às margens do rio fora construída uma pista de pouso para pequenos aviões de apoio que vinham de Porto Velho e que traziam eventuais suprimentos para a família.

4 A tese do autor, entretanto, vai na direção de que esta incapacidade de aprender estaria limitada pelo fato de ser abstrata e não relacionar-se diretamente à experiência (os números são abstrações) mas a processos de classificações categoriais (p. 131).

Recensão

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vação consciente, então este espírito está no íntimo das rela-ções de minha experiência imediata, meu xibipíio.

A conclusão final dos estudos de Everett quanto à lin-guagem, à forma de pensar e de relacionar-se com o mun-do entre os pirrarã pode ser resumida em seus termos: As narrativas declarativas dos pirrarã contêm somente afirma-ções relacionadas diretamente ao momento da fala, seja ela experienciada pelo que fala ou testemunhada por outro ser humano vivo durante o tempo de vida do que fala. Em outros termos, os pirrarã somente afirmam coisas que se ancorem no momento em que eles estão falando e não num outro horizon-te de tempo qualquer. É muito raro alguém falar de experiên-cias ou de falas de alguém que já morreu; e se o fazem, isto o corre devido a um testemunho pessoal de quem fala.

Esta mentalidade explica a quase absoluta ausência de uma história, de narrativas de criação e de folclores. Não en-contramos entre eles mitos neste sentido. Entretanto, como Everett mesmo apresentea, eles contam histórias de suas ex-periências e seriam os seus mitos: a mulher que morre junto ao rio em dores de parto, o caso da caçada da onça etc. Por outro lado, apesar de não lidarem com a idéia de um Deus criador, supremo etc. eles convivem com espíritos. Eles os vêem regularmente; praticamente estão imersos num mundo de espíritos: eles são como que entidades que dão a forma das coisas do meio ambiente. Assim a onça, as árvores, tudo tem lá seus espíritos. Eles podem causar o bem-estar ou as doen-ças: pisar numa folha pode levar a adoecer por uma relação misteriosa com algum espírito. Em resumo, tudo e todos es-tão no campo do kapioxiai (mais genérico) ou kaoáíbogí (mais vinculado às coisas boas e más) e o xíobiisi (espírito do sangue e das veias).

Everett levanta a certa altura, a efetiva dificuldade de um intercâmbio cultural ou religioso entre os pirrarã e outras li-teraturas (Bíblia, Alcorão ou Vedas etc.). Para ele, esta lite-ratura não pode ser traduzida ou discutida por eles por que são histórias sem um testemunha ocular. E isto explicaria a influência praticamente nula das atividades missionárias em mais de um século, na vida deles.

A segunda parte da obra lida com aspectos precipuamen-te voltados à linguagem e suas singularidades. Na realidade, apesar da primeira abordagem dos Pirrarã ter sido em função de atividades missionárias, por motivos vários, ela passou a ser um longo e cansativo estudo de sua língua. Num primeiro momento o que chama a atenção, em termos culturais, é a ausência de alguns aspectos que julgamos interessantes: no-

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mes e números. Mas, como reconhece Everett, muitas vezes queremos ver no outro o que temos e somos. Dado que não havia dicionário e nada escrito sobre esta língua, tudo partiu da estaca zero. Em resumo, para o que nos interessa aqui nesta apresentação, a língua dos pirrarã tem três vogais e oito consoantes, e a complexidade está no tipo de entonação e mesmo musicalidade da língua.

No que tange à gramática, Everett chama a atenção que antes de tudo uma língua está imersa numa cultura. A cultura nos guia no significado que percebemos no mundo ao nosso redor, e a linguagem é parte deste mundo que nos cerca (p. 202-203). Por isso, na fala dos pirarrã, em que há constan-temente uma mistura de mundos (que nós separamos), estes mundos são mais importantes que os termos em si os proces-sos sintáticos utilizados.

O livro como um todo é um romance. Ao mesmo tempo em que Everett vai apresentando a cultura dos pirrarã – com especial ênfase na linguagem – ele apresenta a sua vida en-tre eles e a vida deles em sua simplicidade. Dramas com as doenças tropicais dos familiares que quase morrem, tentativa de assassinato, adaptação na vida da selva amazônica etc. vão permeando a sua narrativa. Para um estudioso, eviden-temente, faltam elementos de referência: não temos citação bibliográfica alguma, apesar de se perceber que o autor está familiarizado com as principais tendências teóricas da antro-pologia (etnologia). De vez em quando tem-se a sensação de se estar lidando com uma espécie de tales de Mileto: um abridor de picadas de um campo. Mas isto não desmerece a riqueza das informações e o frescor do relato.

Em 1977, Everett com sua esposa e filhos, caem meio de para-quedas no meio do mar verde da Amazônia. São missionários a seu modo; não tanto para falar do Evangelho mas para viver como cristãos. Ele mesmo reconhece que a SIL – Summer institute of linguistic – não prega, não desen-volve atividades pastorais em si, mas faz isto indiretamente pela tradução da Bíblia, e especialmente o Novo Testamento, nas diversas línguas. Mas os pirrarã de algum modo intuíam que a presença deles não seria apenas para estudar a sua lín-gua e depois de uns quinze anos abriram o jogo. Um deles, Kóhoibiíhíai, num dia mais ou menos tranqüilo, sintetizou o pensamento do grupo. Disse que sabia que Everett, Keren e seus filhos eram americanos e que estavam ali para estudar a língua, mas que os pirrarã não queriam viver como ame-ricanos; que eles gostavam de beber, que eles gostavam de

Recensão

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viver com mais de uma mulher e assim por diante. Mas, não queremos Jesus. gostamos de você. Você pode ficar entre nós. Mas não queremos ouvir nada de Jesus. Ok? (p. 264). Claro que isto não brotava do nada: muitos missionários antes de Everett passaram por ali e pirrarã mesmos, devido à tentativa de tradução do Evangelho, sabiam do pensamento religioso dos anfitriões.

Após este evento, Everett continuou o seu estudo e eles as suas vidas: pescas, consertar as canoas, caçar, cuidar da plantação de mandioca, das crianças, olhar os eventuais bar-cos que subiam e desciam o Maici. Mas ele reconhece que ficou meio atordoado: Esta informação me chocou. E isto se apresentou para mim como uma clara escolha moral. Eu ti-nha ido até eles para falar-lhes de Jesus (ainda que não dire-tamente) e, na minha opinião naquele tempo, para dar a eles a oportunidade de escolher viver com sentido ou sem, escolher a vida e não a morte, escolher a alegria da fé e não o desespero e o medo, escolher o céu e não o inferno (p. 264). Em resumo, seria possível viver sem religião ou os limites das religiões? Dentro do que Everett pôde descobrir os pirrarã vivem sem maiores problemas. Em resumo, os pirrarã construíram a sua cultura em torno do que é útil para a sua sobrevivência. Eles não têm interesse por aquilo que eles não conhecem. Muito menos por narrativas de pessoas com as quais não têm – ou não podem ter – contato seja em termos de presença, seja em termos de experiência compartilhada. Falar de Jesus ou de alguém a quem eles não vêem é simplesmente inútil.5

Por fim, este estilo de vida, levou certamente ao religioso Everett a se questionar e em resumo ele afirma: Muito do que sou hoje, inclusive o meu ponto de vista não-teísta da vida e do mundo, devo, pelo menos em parte, aos pirrarã. Em resumo, se alguém quiser ensinar algo para eles, provavel-mente deva entrar no esquema de aprendizagem um tanto discipular dos mesmos e além do mais – e aqui está o grande desafio – transformar-se na palavra que irá falar. E isto tudo dentro de uma rede de elementos culturais complexa, cuja compreensão provavelmente dependerá de um tipo de cons-ciência gerada por um estilo de vida fortemente marcada pela ausência do sono (traços alucinatórios).

José Luiz Cazarotto

5 Dentro do trabalho do SIL, uma das provas da validade dos estudos era a tradução de um livro do Novo Testamento na língua e a seguir era realizado um teste com os nativos para checar a correção. Entretanto, os que ouviam a narrativa gravada confundiam o ‘Jesus’ com o que estava lendo; com isto, o portador da voz de Jesus era tido como Jesus mesmo com posteriores acidentes na aldeia.

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Relação das Revistas Internacionais em Permuta com a Revista Espaços 2010

01. Alternativas-Revista de Análisis y Reflexión teológica (Managuá – Nicaragua)

02. Anthropos (Caracas – Venezuela)03. Anthropos (Sankt Augustin - Germany)04. Anuario Argentino de Derecho Canónico (Buenos Aires – Argentina)05. Cadernos Forum Canonicum (Lisboa – Portugal)06. APMJ – Asian and Pacific Migration Journal (Manila - Philippines)07. Forum Canonicum – Universidade Católica Portuguesa (Lisboa – Portugal)08. Conciencia Latinoamericana – Católicas por El Derecho a decidir (La Paz –

Bolivia)09. Cuadernos de Teología (Buenos Aires – Argentina)10. Chakana (Aachen – Alemanha)11. Efemérides Mexicana (México – México)12. Isidorianum (Servilha – Espanha)13. ITER – Revista de Teología (Caracas – Venezuela)14. YACHAY- Universidad Católica Boliviana (La Paz – Bolivia)15. Labor Theologicus (Caracas – Venezuela)16. L’Eco di San Gabriele. USPI - Union Stampa Periódica Italiana (Rieti –

Itália)17. Lucere – Revista Acadêmica da Univ. Católica (Luanda – Angola)18. Migrations Société (Paris – França)19. Old Testament Abstracts (Washington – U.S.A.)20. Peeters (Lovaina – Bélgica)21. Prioritaire-Periódico delle Missionaire secolari scalabriniane (Stuttgart –

Alemanha)22. Questiones Liturgiques (Lovaina – Bélgica)23. Religión y Cultura (Madrid – Espanha)24. Revista Latinoamericana de Teología, (San Salvador – El Salvador)25. La Revista Católica (Santiago de Chile – Chile)26. Revista Teología (Buenos Aires – Argentina)27. Selavip Newsletter (Santiago de Chile – Chile)28. Senderos – Rev. de Ciencias Religión e Pastoral (San José – Costa Rica)29. Studi Emigratione-Centro Studi Emigrazione-CSER (Roma – Itália)30. Spiritus – Revista de Missiologia (Quito – Equador)31. Studia Moralia – Editiones Academiae Alfonsianae (Roma – Itália)32. Stomata (San Miguel – Argentina)33. The Princeton Theological Seminary (Princeton – U.S.A.)34. Theoforum (Ottawa – Canadá)35. Theologia Xaveriana (Bogotá – Colombia)

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ESPAÇOS (2011 – 19/1) Instituto São Paulo de Estudos Superiores 139

Relação das Revistas Nacionais em Permuta com a Revista Espaços 2010

01. Ágora Filosófica. Universidade. Católica de Pernambuco (Recife - PE).02. Amazônia em Outras Palavras. Instituto de Pastoral Regional (Belém – PA).03. Atualidade Teológica (Rio de Janeiro – RJ).04. Cadernos do CEAS (Salvador – BA).05. Cadernos da ESTEF (Porto Alegre).06. Cadernos Pagu (Campinas-SP)07. Caminhos. Revista de Ciências da Religião (Goiânia – GO)08. Caminhando. Revista da Faculdade Teológica da Igreja Metodista (São

Bernardo do Campo – SP)09. CES Revista (Juiz de Fora - MG)10. Ciências da Religião. Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo –

SP)11. Coletânea. Revista de Filosofia e Teologia (Rio de Janeiro – RJ)12. Cultura e Fé. Instituto de Desenvolvimento Cultural (Porto Alegre – RS)13. Direito e Paz. Centro Universitário Salesiano (Lorena – SP)14. Educativa. Universidade Católica de Goiás (Goiânia – GO)15. Em Foco. Revista de Pós-Graduação do IESPES (Santarém – PA)16. Encontros Teológicos (Florianópolis – SC)17. Espírito. Revista de Animação Vocacional (Vitória da Conquista – BA)18. Estudos. Universidade Católica de Goiás (Goiânia – GO)19. Estudos de Religião (São Bernardo do Campo - SP)20. Estudos Filosóficos (São João Del-Rei – MG)21. Estudos Teológicos (São Leopoldo – RS)22. FATI – Faculdade Educacional de Arapoti (Arapoti – PR)23. Filosofazer (Passo Fundo – RS)24. Fragmentos de Cultura (Goiânia – GO)25. Gens Seminarii. Revista dos Seminários (Mariana – MG)26. Habitus. Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (Goiânia – GO)27. Horizonte. PUCMinas (Belo Horizonte – MG)28. Horizonte Teológico (Belo Horizonte – MG)29. Interações. Revista Interdisciplinar de Desenvolvimento Local (Campo

Grande – MS)30. Kairós. Revista Acadêmica da Prainha (Fortaleza – CE)31. Litterarius (Santa Maria – RS)32. Lúmen. Revista de Estudos e Comunicação (São Paulo – SP)33. Lumen Veritatis. Revista de Inspiração Tomista (São Paulo – SP)34. Magis. Cadernos de Fé e Cultura (Rio de Janeiro – RJ)35. Missioneira (Santo Ángelo – RS)36. Mundo e Missão. PIME (São Paulo – SP)37. Nosso Boletim (São Paulo – SP)38. Numen. Revista de Estudos e Pesquisas da Religião (Juiz de Fora – MG)39. Pensamento & Realidade (São Paulo – SP)40. Perspectiva Teológica (Belo Horizonte – MG)

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41. Phrónesis – Revista de Ética (Campinas – SP)42. Pistis & Praxis – Teologia e Pastoral – PUCPR (Curitiba – PR)43. Razão e Fé (Pelotas – SP)44. Redes. Revista Capixaba de Filosofia e Teologia (Vitória – ES)45. Reflexão (Campinas – SP)46. Reflexões – Rev. de Filosofia e Teologia da Faculdade Arquidiocesana

(Mariana – MG)47. Religião e Cultura. Dep. Teologia e Ciências da Religião da PUCSP (São

Paulo – SP)48. Religião e Sociedade (Rio de Janeiro – RJ)49. Rhema. Rev. de Filos. e Teologia (Juiz de Fora – MG)50. REMHU (Brasília – DF)51. Repensar-Revista de Filosofia e Teologia (Nova Iguaçu – RJ)52. Revista Bíblica Brasileira (Fortaleza – CE)53. Revista de Catequese, (São Paulo – SP)54. Revista de Cultura Teológica (São Paulo – SP)55. Revista Dominicana de Teologia, Revista (São Paulo – SP)56. Revista de Filosofia Aurora – PUC (Curitiba – PR)57. Revista Filosófica São Boaventura – FAE (Curitiba – PR)58. Revista de Teologia e Ciências da Religião da UNICAP (Recife – PE)59. Sacerdos (Santa Isabel – SP)60. Sapientia Crucis (Anápolis – GO)61. Scintilla-Revista de Filosofia e Mística Medieval (Curitiba – PR)62. Série Estudos Periódico do Mestrado em Educação da UCDC (Campo

Grande – MS)63. Simpósio ASTE (São Paulo – SP)64. Studium. Revista De Filosofia do Instituto Salesiano de Filosofia (Recife –

PE)65. Tabulae. Revista de Filosofia (Curitiba – PR)66. Teo-Comunicação (Porto Alegre – RS)67. Teológica. Revista da Faculdade Teológica Batista (São Paulo – SP)68. TQ. Teologia em Questão (Taubaté – SP)69. Trilhas. Revista Teológico-Pastoral (Cascavel – PR)70. Ultimo Andar. PUCSP (São Paulo – SP)71. Uniclar (São Paulo – SP)72. Verbo de Minas – LETRAS. (Juiz de Fora – MG)73. Via Teológica. Faculdade de Teologia Batista do Paraná (Curitiba – PR)74. Vox Scripturae. Faculdade Luterana de Teologia FLT (São Bento do Sul –

SC)

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ESPAÇOS (2011 – 19/1) Instituto São Paulo de Estudos Superiores 141

Relação dos Estudantes por CongregaçãoMarço de 2011

Instituições Religiosas 1º Ano

2º Ano

3º Ano

4º Ano Especial Total

Associação Educadora e Beneficente 00 00 00 00 01 01Barnabitas 02 01 01 00 00 04Capuchinhos 00 00 01 00 00 01Carlistas 06 07 01 02 16Comum. Miss. Cat. Mãe do Puro Amor

01 00 00 00 00 01

Espiritanos 00 01 00 00 00 01Estigmatinos 00 01 00 00 00 01Filhos da Caridade 01 00 00 00 00 01Franciscanas da Ação Pastoral 01 00 00 00 00 01Inst. dos Servos da Sagrada Obediência

00 00 01 00 00 01

Instituto Fas de N. Sra do Monte Calvário

00 00 01 00 01 02

Ordem Carmelita 01 00 01 02 00 04Ordem de Sto. Agostinho 01 02 00 02 00 05Ordem dos Mínimos 00 01 01 01 00 03Passionistas 03 01 02 00 00 06Paulinas 00 01 00 00 00 01Paulinos 00 00 00 01 00 01Redentoristas 05 02 01 05 01 14Religiosas Vicentinas 01 00 00 00 00 01Saletinos 01 02 01 01 00 05Salvatorianos 01 01 0 0 0 02Verbitas 01 01 03 06 02 13Diocese de Santos 00 00 00 01 00 01Leigos 02 02 01 0 01 06Total 27 23 15 23 6 94

Religiosos: 82; Religiosas: 05; Diocesanos: 01; Leigos: 03; Leigas: 03.

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