história concisa tb - décio a prado

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História do Teatro Brasileiro.

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  • No sculo XIX os fatos teatrais, acompanhando os polti-cos, precipitam-se. As tropas de Napoleo invadem Portugal. A corte portuguesa busca refgio no Brasil, logo est instalada no Rio de Janeiro. Em 1810 o ja nc ip regente, o j u t u r o D. Joo VI , manifesta por meio de um decreto o seu desejo de que "nesta capital [...] se__erija.um teatro decente e proporcionado populao e aojnaior grau de elevao e grandeza em que se acha pela minha residncia nela t . . . ] " 1 .

    Trs anos depois o "teatro decente" est pronto, ojprimeiro de grancs dimenses construdo no Brasil, pondo fim ao ci-clo das "casas de pera". tambm o primeiro de uma srie de cinco edifcios teatrais levantados no mesmo local, trs consumidos pelo fogo, em 1824, 1851, 1856, e o quarto vti-

    1. A. Andrade, Francisco Manuel da Silva e Seu Tempo, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967, vol. 1, p. 109.

  • 32 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    ma, em 1930, de um feroz mpeto destruidor e modernizador. As suas denominaes tambm variaram, conforme as circuns-tncias histricas: Teatro de So Joo (o prncipe regente per-mitira que o seu augusto nome fosse usado); Teatro de So Pedro de Alcntara (D. Pedro I proclamara a Independncia do Brasil); Teatro Constitucional Fluminense (dera-se a abdicao do Imperador); de novo Teatro de So Pedro de Alcntara (D. Pedro I I firmara-se na sucesso dinstica); e, por f im, denomi-nao atual, Teatro Joo Caetano. Por ele, em suas diversas encarnaes materiais, transitaram todos os gneros teatrais vigentes no sculo XIX: tragdia, pera, comdia, drama, me-lodrama, entremez, mgica (a ferie francesa), farsa, vaudeville, burleta, espetculos de circo e de revista. Se em algum lugar pulsou com certa regularidade o corao do teatro brasileiro ter sido certamente ali.

    Para inaugur-lo, na parte referente representao dra-mtica - a outra parte competia pera e ao bailado - , impor-tou-se de Portugal a c o m a n I m j d j e _ J ^ a m Torres, a "mais famosa atriz portuguesa_do primeiro quartel do sculo passa-do" 2 . O Rio, nessa altura, j devia ser um centro artstico de relativa importncia, uma vez que ela voltou ao Teatro de So Joo de 1819 a 1822, quando, com a sade abalada, regressou a Lisboa. Mas colegas seus ficaram no Brasil.

    Jacques Arago, escritor francs que passou mais ou me-nos nessa poca por terras brasileiras, traou um quadro deso-lador do mais importante teatro nacional. Depois de descrever e desenhar a inacreditvel vestimenta usada pelo ator que fa-zia o papel de Orosmane, na Zaira de Voltaire, contrastou a

    2. J. de Faria, "As Primeiras Quatro Levas de Cmicos para o Brasil", Ocidente, vol. 3, p. 324. Teatro So Pedro de Alcntara (gravura de Thomas Ender).

  • DCIO DE ALMEIDA PRADO

    interpretao dos demais personagens com a figura ilustre do

    autor da tragdia francesa: "Eis Zaira, Nerestan, Chatillon, Lu-

    signan; todos juraram ultrajar o grande homem. Mas os cama-

    rotes aplaudem... No desejo outra coisa, fao como eles: Bra-

    vo! Bravssimo! Por que singularizar-se?"3

    O que disse Arago sobre o teatro falado, quanto quali-

    dade artstica, reiterou Victor Jacquemont, francs que esteve

    no Rio em 1828, relativamente pera. Nada lhe agradou na

    encenao de Lltaliana in Algeri, de Rossini: "orquestra, can-

    tores, espetculos, tudo era lamentvel". A parte mais interes-

    sante do retrato que traou diz respeito ao lugar ocupado pelo

    teatro no contexto social brasileiro:

    O pblico parecia aborrecer-se muito: no entanto a sala estava cheia e ela bem grande. O seu aspecto o das salas da Itlia; no h lustres, mas lampees colocados em frente dos camarotes. As mulheres, ataviadas; os ho-mens em trajes de cerimnia, todos cobertos de condecoraes, assumindo a partir dos quinze ou dezesseis anos o ar desdenhoso e enfastiado dos dandys de Regent Street. Creio que todo mundo que o Rio chama de alta sociedade tem camarote reservado na pera. O Imperador frequentador assduo, por que as danarinas e figurantes so muito do seu gosto, sem prejuzo das se-nhoras respeitveis. Durante o espetculo a praa fronteira ao teatro fica re-pleta de carruagens, nas quais vieram de suas chcaras os espectadores dos camarotes. Desatrelam-se as mulas, que mascam um pouco do capim empoei-rado que brota aqui e ali no lugar. Os cocheiros dormem por perto ou jogam entre si e bebem. [...] A praa durante a representao parece um acampa-mento militar. No h menos do que trezentos ou quatrocentos carros e mil mulas e cavalos, alm de algumas centenas de servidores negros. Tudo isso necessrio ao prazer de duzentas ou trezentas famlias. Se ao menos eles se divertissem! A plateia da pera, no Rio, pareceu-me composta por essa classe

    3- J. Arago, Souvenirs d'un aveugle, nova edio, Paris, H. Lebrun, s.d., pp. 83-84.

  • 36 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    burguesa decididamente branca, formada por mdicos, advogados, e pelos que ocupam posies secundrias e subalternas na administrao pblica. Procu-rei em vo pessoas de cor: elas teriam o direito de comparecer, mas provavel-mente no seriam bem acolhidas4.

    V A dcada da Independncia fora de intensa ebulio po-

    ltica. Quando j se aproximava do fim, em 1829t_tentou-se uma soluo definitiva para a questo do teatro. D. Pedro I , atravs de intermedirios, mandou contratar em Lisboa uma companhia completa, a melhor que existia no mercado, com cerca de vin-te pessoas,~ciistribudas harmoniosamente segundo a hierarquia habitual no palco^jprimejra._dam^ damas, primeiro

    gal, gal central e_ tirano, velho srio, jp_rimeiro gracioso e pe-timetre (correspondendo ao p g f g ^ m ^ r e f r a n c s ^ s e g u n d o ^ r a ^ ^ cioso etc. Por baixo dessa estrutura dramatrgica e cnica fun-

    / cionava outra, relativa a laos de famlia, tambm frequente no / teatro portugus: mulher, irmo, irm, marido, sobrinhos. O

    ' astro em torno do qual os outros gravitavam era Ludovina Soares da Costa (1802-1868), filha e neta de atores. Com ela, que fixou residncia no Rio, como a maior parte de seus com-panheiros de elenco, nascia em nossos palcos, a um s tem-po, a arte trgica e a continuidade profissional. Decorridos trinta anos, acalmada a tormenta romntica e j em pleno realismo, o seu estilo nobre de representar ainda arrancava elogios de um crtico jovem, alm de partidrio da modernidade (ou seja, do assim chamado realismo). Eis como a caracterizou Macha-do de Assis em 1859: " a trgica eminente, na majestade do porte, da voz e do gesto, figura talhada para um quinto ato de

    4. V. Jacquemont, Voyages dans linde, Paris, 1841, pp. 57-58.

    Ludovina Soares da Costa (litografia de A. de Pinho, a partir do am-brtipo de Pacheco e Smit).

  • 38 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    Corneille, trgica pelo gnio e pela arte, com as virtudes da

    escola e poucos dos seus vcios"5. ^ ^ ^ J S 8 - -

    Os incidentes polticos que se seguiram abdicao de D. Pedro I no impediram que o teatro j iacional se organizas-se, substituindo aos poucos a tutela de Lisboa pela de Paris. Surgira,.a princpio aprendendo com os colegas portugueses, depois integrando-os em seus espetculos e sobrepujando-os na preferncia do pblico, um notvel homem de teatro, Joo jCaetano_jJQS--SafttC!S^(1808-1863) -Jajye_z_^_jrmtor ^orjg^ie_jo____^ Brasil j produziu. O seu repertrio, muito extenso, porque as

    eas no se sustentavam em cartaz, e heterogneo, porque devia atender a vrios pblicos, buscou munio onde a en-contrava: nas derradeiras tragdias clssicas francesas, nos nascentes dramas romnticos (uma/ pea de Victor Hugo, nove de Alexandre Dumas), nos autores espanhis recentes (Martinez de la Rosa, Garcia Gutierrez), nos romnticos portugueses (Al-meida Garrett e companheiros de gerao literria). O seu mais duradouro ttulo de glria consistiu na criao da personalida-de selvagem de Otelo - o Otelo de J. F. Ducis, verdade, clas-sicizado e domesticado na verso francesa do sculo XVIII , mas de algum modo ainda ligado grandeza shakespeariana. Quan-to ao po de cada dia, medido pela mdia da bilheteria, quem se encarregou de fornec-lo ao ator brasileiro foi o imbatvel melodrama, que, transbordando do palco para o romance, t in-gia de cores berrantes tanto a imaginao popular quanto a letrada. Nesta linha de forte teatralidade, que por isso mesmo ensejava vigorosas interpretaes cnicas, Joo Caetano percor^^

    reu toda a srie de melQ^n}^\]Xg^JS2I i^^ e 1 ' Ibrrt de Pixercourt a Anicet-Bourgeois.

    5. J. M. Machado de Assis, Crtica Teatral, Rio de Janeiro, Jackson, pp. 132-133.

    Joo Caetano dos Santos (litografia de Lemercier, a partir de desenho de Boulanger).

  • 40 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    Subsidiado pelo governo atravs da concesso de loterias, ocupando o Teatro de So Pedro de Alcntara, o mais famoso do Pas, o seu elenco constituiu-se, em certo momento, no que o Brasil j alcanou de mais parecido com uma companhia ofi-cial. O modelo da "Comdie-Franaise" e do "Conservatoire" parisienses nunca esteve distante do seu pensamento, como atestam a escola de teatro que em vo procurou criar e o com-pndio, LiesJDramticas, que para ela escreveu^ c a j j m d o ^ em manuais franceses, nunca citados nas exatas propores, A

    'chTfprtida desses sonhos de grandeza a concluso a que chegou em 1862, ao comparar as condies teatrais brasileiras s que acabara de observar na Frana. Ao passo que no Rio de Janeiro, escreveu, 'um^nmia J l_p_or melhor que seja, cansa e no pode ir cena mais do que trs ou quatro vezes, qualquer ator medocre nos teatros da Euroj)a_j3y2Iojluz o papel como se

    TJTcTcTde grande talento porque o estudoiadurSenLTeTTSLr quatro meses, e o reproduziu cincoenta ou sessenta vezes, sa-bendo-o por conseguinte de cor"6.

    Quanto aos autores brasileiros, o nico feito de Joo Cae-tano - talvez um lance de sorte - foi ter levado ao palco no mesmo ano, 183jLjyLjdj j jLsj^^

    primeira tragdia e a primeira comdia nacional: Antnio Jos ou O Poeta e a Inquisio, de Domingos Jos Gonalves de Magalhes (1811-1882), e OJuiz^e_PMZ.A0MQ0^s^u^s Car-l o ^ ^ ^ t i n s _ Pena Q^l_5jT848). Jos Verssimo discerniu o que significou historicamente a encenao da primeira dessas duas peas:

    6. J. C. Santos, Lies Dramticas, 3. ed., Rio de Janeiro, Servio Nacional do Teatro, 1962, pp. 66-67. Joo Caetano vestido para a cena.

  • 42 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    ,^-^tores brasileiros ou abrasileirados, num teatro brasileiro, representavam diante de uma plateia brasileira entusiasmada e comovida, o autor de uma

    \ pea cujo protagonista era tambm brasileiro e que explcita ou implicitamen-\ te lhe falava do Brasil. Isto sucedia aps a Independncia, quando ainda

    \ referviam e bulhavam na jovem alma nacional todos os entusiasmos desce ^grande momento poltico e todas as alvoroadas esperanas e generosas ilu-

    es por ele criadas7.

    9

    discutvel, no entanto, que o protagonista da pea de Gonalves de Magalhes seja brasileiro. Que Antnio Jos da Silva (1705-1739), o Judeu por antonomsia, nasceu no Rio de Janeiro, no h dvida. Por esse lado, relativo ao homem, ele pertence de fato ao Brasil. Mas toda a sua formao social, assim como toda a sua carreira de comedigrafo, autor de "peras" bem aceitas pelo pblico, desenvolveram-se em Portugal, para onde partiu ainda menino, em companhia dos pais e j sob as vistas nefastas da Inquisio, que acabaria por conden-lo morte, num dos ltimos Autos-de-f realizados em terras lusas8.

    No era esse, contudo, o ponto de vista de Gonalves de Magalhes. No prefcio da pea ele declara "que esta , se me no engano, a primeira Tragdia escrita por um Brasileiro, e nica de assunto nacional". E reitera tal opo: "Desejando encetar minha carreira dramtica por um assunto nacional [...]".

    p i A preocupao com a nacionalidade era um trao caracterstico s do romantismo, que intencionava fincar as suas razes histri-

    SS: cas no passado de cada pas, fugindo ao modelo supostamente

    universalizante que os clssicos franceses haviam rJeEdo entre

    7. J. Verssimo, Histria da Literatura Brasileira, 3. ed., Rio de Janeiro, Jos Olympio, 1954, pp. 312-313.

    8. Cf. J. O. Barata, Antnio Jos da Silva - Criao e Realidade, Universidade de Coimbra, 1985.

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 43

    os gregos e os romanos. Mas o autor de Antnio Jos recusava-se a escolher entre as duas escolas, a antiga e a moderna: "Eu no sigo nem o rigor dos clssicos, nem o desalinho dos se-gundos [os romnticos]; no vendo verdade absoluta em ne-nhum dos sistemas, fao as devidas concesses a ambos, ou antes, fao o que entendo, e o que posso"9.

    Na verdade Gonalves de Magalhes lanava uma ponte entre a tragdia clssica, que admirava em Corneille, e o dra-ma romntico, que, se o atraa, tambm o repelia, por sua indisciplina esttica e sua amoralidade sexual. Ele mesmo o disse, com palavras candentes:

    No posso de modo algum acostumar-me com os horrores da moderna escola; com essas monstruosidades de caracteres preternaturais, de paixes desenfreadas, de amores licenciosos, de linguagem requintada, fora de querer ser natural; enfim, com essa multido de personagens e aparatosos coups de thtre, como dizem os Franceses, que estragam a arte e o gosto, e convertem a cena em uma bacanal, em uma orgia de imaginao, sem bem moral algum, antes em seu dano.

    A tragdia forneceu-lhe o quadro ficcional: cinco atos, em verso (decasslabo, na tradio trgica portuguesa), tom poti-co elevado, tempo e espao reduzidos, poucas personagens, somente as indipensveis ao. O romantismo, j o roman-tismo social ps-1830, deu-lhe, em contrapartida, o amor l i -berdade, entendida como fonte de todo progresso humano, o poltico como o artstico, o social no menos que o filosfico.

    9. J. D. Gonalves de Magalhes, Tragdias, Rio de Janeiro, Livraria de B. L. Garnier, 1865, pp. 5, 6. As demais citaes viro deste volume, que inclui as tragdias Antnio Jos e Olgiato, com os respectivos prefcios.

  • 44 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    \

    ^ E m Antnio Jos, o antagonista a Inquisio, a tirania exercida emnQ.me._da religio catlica, numa m verso do cris-tianismo. Em Olgiato, de 1839, a sua segunda e ltima pea, o adversrio o condottiere italiano Galeazzo Sforza, assassinado em Milo em 1476. Organiza-se contra ele uma conspirao, como acontecia em muitas peas escritas naquele momento, que colocavam em cena o problema do tiranicdio, exemplificado, no passado clssico, pelo gesto de Bruto, sacrificando Jlio Csar para manter Roma livre.

    A posio de Gonalves de Magalbgs_ dentro da histria do teatro brasileiro das mais ambguas. Ponto pacfico que com ele se inicia a nnssa jjrarnariirgja moderna J no dira-mos o mesmo quanto sua intrincada relao com o roman-tismo teatral: ele nunca definiu bem se queria ser o ltimo clssico ou o primeiro romntico. Talvez a sua contribuio mais inovadora, neste ponto, consista naquilo que ele chamou no prefcio de Antnio Jos, referindo-se ao espetculo protago-nizado por Joo Caetano, de ^novidade da declamao e re-forma da arte dramtica", ao substituir "a montona cantilena com que os atores recitavam seus papis, pelo novo mtodo natural e expressivo, at ento desconhecido entre ns". Ou seja, ele teria trazido da Frana, onde passara alguns anos e vira muitos espetculos, o estilo romnjtijcp_j_jrjre^ rojado, de grande ao corporal (chamado "acionado"), f e i t o ^

    ""^ cle exploses fsicas e emocionais, melodramtico se compara^_ ^ I B " ac)"?acThciado delempenho clssico, que, para superir no-

    breza, mdaj;estos e palavras

    Esse efeito de choque sobre a sensibilidade do especta-dor, essa impresso de contato direto com realidades brutais que o espetculo deveria causar, chegava ao drama romntico francs por intermdio do melodrama, que o antecedera por

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 45

    alguns decnios, tendo nascido por volta de 1800. No Brasil, dois autores, entre 1835 e 1845, tentaram introduzir na drama-turgia nacional os enredos enovelados, cheios de surpresas, de golpes inesperados, os coups de thtre aos quais Gonalves de Magalhes aludira com tanto desagrado. So eles: Lus An-tnio Bur^adn_1812-1877), francs de nascimento, mas autox teatral brasileiro 1 0, e Lus Carlos Martins Pena (1815-1848),_eim sua primeira fase, a dos dramas descabelados (os cabelos l i -vres e soltos dos romnticos opunham-se i compostura das perucas clssicas'herdadas do sculo XVIII) .

    Esses dramas supostamente histricos, nos quais a histria s entrava como pretexto, passavam-se como regra na Europa; englobavam na mesma trama passado e presente, um repercu-tindo sobre o outro; traziam ao palco vinte ou trinta pessoas, incluindo protagonistas, personagens de apoio e simples figu-rantes; continham msica incidental, como no melodrama, e s vezes danas, como na pera. Tanto empenho em enriquecer a ao e rechear o palco revelava-se, contudo, ilusrio. Joo Cae-tano, em torno do qual girava o teatro no Rio de Janeiro, no chegou a representar tais peas. A verdade que no melo-dramaturgo quem quer, mas quem domina com preciso a cha-mada carpintaria teatral, a arte de preparar bem e desfechar com vigor os botes dramticos que subjugaro o pblico.

    Tnhamos de nos contentar, portanto, com obras teatrais publicadas sem antes passar pela prova do palco, vlidas pelo nvel literrio, superior ao dramatrgico. So peas no repre-sentadas na ocasio, a no ser, assim mesmo em carter de ex-ceo, por amadores.

    10. Cf. I. Huppes, Gonalves de Magalhes e o Teatro do Primeiro Romantismo, Porto Alegre, Fates, 1995, pp. 154-162.

  • Gonalves Dias, Porto Alegre e Gonalves de Magalhes: os trs es-creveram para o teatro.

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 4 7

    A primeira, em ordem cronolgica e tambm em ordem de qualidade, _ L e o n o r d e ^ s n d ^ n c a ^ n o s o mais belo dra-^

    jna_-JXimntico_Ji)rasjlejro, mas o nico que tem sido revivido com* certa frequncjajem^v^rses moderjoas^. Tem por protago-nista a Duquesa_ie_J3ragancaJ da mais alta estirpe portuguesa, que foi morta por seuesrjoso; sob suspeita de adultrio. An-tnio Gonalves Dias (1823-1864), quando o terminou, em 1846, aos vinte e trs anos de idade, assim o sintetizou:

    A ao do drama a morte de Leonor de Mendona por seu marido: dizem os escritores do tempo que D. Jaime, induzido por falsas aparncias, matou sua mulher; dizem-no, porm, de tal maneira, que facilmente podemos conjecturar que no foram to falsas as aparncias como eles no-las indicam.

    A trama dramtica explora com sensibilidade essa estreita faixa entre os indcios fsicos e as incertezas morais, delinean-do o quadro de um adultrio apenas pensado, no qual o amor entre um rapaz solteiro e uma mulher mal casada no tem o mpeto ou o tempo necessrios para se consumar. A fora que move as personagens, levando-as ao crime ou morte, no a fatalidade cega e incompreensvel de tantos "dramas do des-tino" romnticos, mas algo que antecipa de perto o determi-nismo psicolgico e social de nossos dias. "E a fatalidade c da terra - adverte o autor no prlogo - que eu quis descrever, aquela fatalidade que nada tem de Deus e tudo dos homens [...]; aquela fatalidade, enfim, que faz com que um homem pratique tal crime porque vive em tal tempo, nestas ou naque-las circunstncias"1 1. As circunstncias, no caso, no dispensan-

    11. A. Gonalves Dias, Teatro, Rio de Janeiro, H. Garnier, s.d. (1908?), pp. 13V 132.

  • 48 HISTORIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    do um fundo psicolgico neurtico (sadismo e masoquismo), so fortemente sociais. Dada a hierarquia predominante em

    Portugal no incio do sculo XVI, na hora do confronto, o mais nobre por fora estralhaar o menos nobre, como o homem

    V esmagar a mulher. Nas palavras do autor: "Quando algum dia a luta se travasse [...], o mais forte espedaaria o mais fraco; e assim fo i " . A nobreza nem sempre fazia jus ao seu nome.

    O amor e o seu irmo inimigo, o cime, desempenhavam papis fundamentais na dramaturgia de Gonalves Dias. Ao compor Leonor de Mendona ele j trazia na sua bagagem tea-tral duas peas juvenis, Beatriz Cenci e Patkull. E contava com a terceira para subsistir economicamente no Rio de Janeiro, onde chegara, vindo do Maranho. A sua decepo no pode-ria ser maior.

    O meu drama [escreveu a um amigo] foi aprovado pelo Conservatrio [Dramtico, rgo de censura moral e literria] com muita soma de louvores. Levei-o ao Joo Caetano, que me fez saber ser bom e belo o cujo sobredito drama, porm que para o levar cena carece de me falar. Ora aqui que a porca torce o rabo: o Joo Caetano um homem temvel - infatigvel - invis-vel, se o procuras na Corte - est em Niteri - se o procuras em Niteri, vol-tou para a Corte; se o procuras em casa, est no Teatro, se no Teatro, est no escritrio, se no escritrio, est (na) rua, e hs de concordar comigo que a ma um lugar bem dificultoso de se topar de propsito com um indivduo12.

    J se adivinha, por esse jogo de evasivas, o desfecho do episdio: Leonor de Mendona no subiu ao palco. O poeta ma-ranhense escreveria ainda outro drama, Boabdil, que teve me-lhor sorte: foi encenado uma vez, ao que dizem, na Alemanha.

    12. Anais da Biblioteca Nacional, vol. 84, p. 54.

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 49

    Outra autntica vocao dramatrgica perdeu-se com a morte prematura de Manoel Antnio lvares de Azevedo (183_li_ 1852). Menino prodgioJL_de_jtura espantosa para a idde,jele_ sonhava, p a r a a concretizao de sua "utopia dramtica", c o m ,

    -^ a^lg^ mTa^ CQisa .-fJrJLOteatro ingls, o teatro espanhol e o tea-tro gregolL^Duas novidades tericas vo a expressas, em con-traste com o que se via e se lia no Brasil: o abandono das fon-tes francesas recentes (com exceo de Chatterton, de Alfred de Vigny, que tambm Gonalves Dias admirava), em proveito das razes inglesas e espanholas do romantismo; e o desejo de dei-xar para trs as polmicas estticas de 1830, casando, no mes-mo texto, "a fora das paixes de Shakespeare [...], a imagina-o de Calderon de la Barca e Lope de Vega, e a simplicidade de squilo e Eurpides"1 3. Um novo classicismo, em suma, que disciplinasse toda a incandescncia emocional do romantismo.

    A pea, ou fragmejnto de pea, Macrio, que deixou en-_. tre"s seus inditos ao morrer aos vinte anos, desmente, con-

    corrido' esse sbio equilbrio. Ele mesmo o confirma: "Esse dra-ma apenas uma inspirao confusa - r p j d a - que realizei

    r^res^a^comoji^^ e trmulo". Acentuando que"nao o destinava cena, apontou entre as suas fontes inspiradoras, ao lado de escritores cujos nomes no causam surpresa - Sha-kespeare, Byron, Alfred de M J J L S S L . - , um ficcionista alemo que no se esperaria no contexto literrio nacional: Hoffmann.

    Macrio desenrola-se em dois epi.sodios._Q primeiro qua-se uma pea completa, com comeo, meio e f im. Mostra o en-contro entre Sat, em verso europeia - olhos azuis de alem, cala inglesa, luvas de pelica - e Macrio, que vai estudar

    13. lvares de Azevedo, Macrio, Unicamp, 1982, pp. 1-5. Prefcio de Ant-nio Candido. As citaes do autor viro desta fonte.

  • lvares de Azevedo (litografia de Martinet, a partir de desenho de Boulanger).

    DCIO DE ALMEIDA PADO 5 1

    em So Paulo, a exemplo do que fazia ento o autor. Como este, ele jovem, poeta, sensvel, mas esconde tanto quanto pode essas fraquezas, lanando mo da ironia e de uma fora-da frieza emotiva. O precrio enredo coloca as personagens entre o vivido e o sonhado, o acontecido e o onrico. S a ltima rplica rompe esta hesitao entre o natural e o sobre-natural, que Todorov considera a caracterstica da literatura fantstica'4. A concluso definitiva: "o diabo andou por aqui!" No segundo episdio, infelizmente, a pea perde o f io da meada, divagando por uma Itlia estranhamente semelhante ao Brasil, onde se ouve a "toada montona da viola" e a "cantilena do sertanejo". A entrada de novos personagens, notadamente de Penseroso, desdobramento e opositor de Macrio, d opor-tunidade a que se discuta em termos vagos o objetivo da poe-sia americana. Tem ela a obrigao de celebrar a opulncia da natureza tropical? Ou deve entregar-se sem remorsos patriti-cos lira do desespero, vibrada por "mos ardentes e convul-sas de febre"? Em torno desse eixo literrio, com o dilogo descambando frequentemente para a simples conversa, ainda que desvairada, vem tona a inquietude da adolescncia, cin-dida entre j^s^nsual idade^arna^ jQ_senfimenfn_ amoroso lavado de_suas escrias (a virgem), dividida entre a

    prece e a blasfmia^o.. hedonismo materialista (o charirtc^o

    cognac, a orgia) e ^ transcendncia espiritualisla.,.Macrio em-

    bebe-se e s vezes embebeda-se de literatura. Mas num nvel de dico que parece anunciar, nesse poeta que escreve to bela prosa, um dos possveis autores do grande teatro romn-tico que o Brasil jamais chegou a ter.

    14. T. Todorov, Introduction la litterature fantastique, Paris, Seuil, 1970, p. 29.

  • ' k M i

    At esta altura, meados do sculo XIX, rarssimas eram as peas de assunto nacional. O drama romntico brasileiro, que j trocara a poesia pela prosa, no se apoiou de incio sobre a oposio entre a Europa e a Amrica, como far mais tarde. J2iii_Liig.dias de fundo romntico de Gonalves de Magalhes, uma se passa em Portugal, a outra na Itlia. Dos dramas ima-turos que Martins Pena escreveu entre 1837 e 1841, dois ocor-rem na Idade Mdia portuguesa, dois na Itlia e na Espanha, pases privilegiados pelo romantismo. As peas de Gonalves Dias'TnTcomo cenrio a Itlia, a Polnia, Portugal e a Espanha ocupada pelos rabes. Transcorrem no Brasil unicamente "pT as de qualidade literria secundria, como Fernandes Vieira ou Pernambuco [.ibexado, de Burgain, ou tentativas malogra-das de adaptar ao palco o indianismo vitorioso na poesia, como Itaminda, de Martins Pena, e Cob, de Joaquim Manoel de Macedo.

  • 1 5 6 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    ( j f . - l A v Um tipo de pega_ que retratava o Brasil, contudo, subiu ao palco com frequncia, mesmo nos anos mais adversos dramaturgia nacional: a comdia em um ato. que as repre-sentaes duravam horas, oferecendo ao pblico, alm de um drama (ou melodrama) completo, uma ou duas pecinhas c-

    j m i o i ^ s e ^ Q S S ^ com nmeros de canto e dana. A prtica do entremez^ somo complemento de espetcu-

    lo, chegara ao Rio de Janeiro trazida pelos artistas portugueses que aportaram aqui em 1829, na companhia encabeada por Ludovina Soares da Costa. Tratava-se de um espao de tempo

    pequeno, no mais do que vinte ou trinta minutos. Mas foi o suficiente para que Martins Pena nele empreendesse uma bem sucedida carreira de comedigrafo, a primeira que em propor-es tais conheceu o Brasil1.

    ^ n t r e m e z de Portugal 2, gnero pouco estudado por f i -car margem do circuito literrio, tinha uma presena sobre-tudo de palco, como expresso mais da graa pessoal e das

    improvisaes do ator que das invenes do texto. Tudo co-

    ia hora, nqjiayja usava e abusava

    meando e acabando em no mais do qi lugar para digr^fiesn^trrMiQraes

    ^dasj^onvenes da farsa popular: quanto a personagens, tipos carica^urais,__bjirlescos, no raro repetitivos; quanto a enredo, disfarces, quiproqus^ pancadaria em cena. ^

    Martins Pena assimilou esses processos tradicionais, na

    medida em que se foi assenhoreando da tcnica e dos truques do ofcio, mas sempre adicionando-lhes uma nota local, de

    1. Cf. R. Magalhes Jr., Martins Pena e sua poca, Rio de Janeiro, Lisa-MEC, 1971; V. S. Areas, Na Tapera de Santa Cruz, So Paulo, Martins Fontes, 1987.

    2. Cf. J. O. Barata, Entremez sobre o Entremez, separata de Biblos, Universida-de de Coimbra, 1977.

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 5 7

    referncia viva ao Brasil, de crtica de costumes, na linha de certas comdias de Molire, de quem foi logo consicerclo* discpulo. O seu teatro revela um pendor quase jornalstico

    j>els fatos do dia, assinalando em chave cmica o que ia su-cedendo de novo na atividade brasileira cotidiana, com^desta-^ que especial para a cidade do Rio de Janeiro. Eis alguns dos seus temas: a criao dos Juizados d t ! L i i i i L - L f^SL Roa); as festas populares peridicas (A Famlia e a Festa ML... ...

    Roa, Judas em Sbado de Aleluia); a chegada triunfal da pe-ra romntica italiana, representada pela Norma de Bellini (O Dgtant); ai ITPju likdC introduzida na medicina pela homeopatia [Os Trs Mg^cos)j)explorao de esmolas^jpedidas^^m nome de irmandades r e l i g i o s a ^ Os Irmos das Alrnas)^ /alsificao de produtos portugueses (cKCaixeiro da Taverna); e at mes-mo, incidente registrado nos jornais da poca/as ' desventuras) i C c i m a de t e l h t c ^ d T t ^ puan (Os Crimes de,

    V^n Pedestre ou O Terrvel Capito doMato)jSem esquecer, cia-ro est, O Novio, o seu maior sucesso "de publicao (inume- j ras edies) e de representao (constantes verses cnicas), / pea que s erra quando o autor, para chegar comdia em j trs atos, multiplica por trs os episdios do enredo, utilizan- / do, por exemplo, trs disfarces (homem casado como frade, * i rapaz como mulher, moa como frade) e trs esconderijos (de- /

    IA baixo da cama, dentro do armrio, no meio da escurido). O ritmo, em suma, no se alterou, conservando a urgncia e a precipitao do entremez. _ _ ^ * '

    De todos os meios sociais, descritos com certa mincia, resultam algumas reas bem determinadas. No centro da vida nacional est o Rio de Janeiro, isto , a Corte,J^abjtadj^QX--melmanos identificados com a cultura europeia, oficiais da

    7iurda'"]S]cional (recentemente organizada), empregados p-

  • Lus Carlos Martins Pena.

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 5 9

    blicos relutantes em trabalhar, vadios citadinos, comerciantes aladroados, falsos devotos, ingleses espertalhes, enfim, a fauna humana que se espera...dos. _grarides,.aglpmerados urbanos. Mas tambm l, na Corte, que se encontra o teatro, que transfi-gura a realidade em fico, e, suprema delcia, a pera, com o

    seu cortejo de fanticos, cap_aze_s de distinguir e apreciar um falsetebejriJ :anc^do. Perto do Rio de Janeiro - pode-se vir de l a p, em algumas horas - situa-se a roa, delineada em tra-os firmes, atravs de seus cacoetes de fala e de seus hbitos ) coletivos: o que se bebe, o que se come, o que se veste, o que se planta. Bem mais distante, entrev-se o serto^um tan- $ / c ^ ^ to bruto, um tanto violento, disposto se for preciso a manejar a espingarda, porm com virtudes morais no contaminadas pelos malefcios da civilizao. O representante dessa longn-qua regio o tropeiro paulista, com muito de sulista (o Para-n ainda no se desmembrara de So Paulo), de gacho mes-mo, que ope a viola caipira ao piano do carioca, e s rias opersticas (Qual cor tradist) a toada sertaneja (Sou um Triste Boiadeiro). Veja-se o seu traje, desenhado com a preciso de quem passara pela Academia das Belas-Artes-. "bota branca, cala e jaqueta de ganga azul e poncho de pano azul forrado de baeta vermelha" 3. Bons olhos e bons ouvidos (ouvido do crtico de msica que ele foi) , eis o que certamente no faltava a Martins Pena.

    Nesse microcosmo cnico, dotado de notvel pugnacidade, pronto a deblaterar, a passar do bate-boca s bofetadas, os nacionais defrontam-se com os estrangeiros; os honestos com os velhacos; as mulheres com os maridos; os filhos com os pais,

    3. Martins Pena, Teatro, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1956, vol. 1, p. 216.

  • 60 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    que lhes querem impingir cnjuges e profisses. E quase nun-ca os vencedores so os que se julgam mais fortes. Reina no palco, a o cair do pancj^^ajustia potica, tpica da comdia. Ganham os melhores, ou pelo menos os mais simpticos plateia, embora lanando mo s vezes, para triunfar, de tru-ques mais ou menos sujos. No importa. "Tudo est bem quan-do termina bem", sentenciou alegremente Shakespeare.

    H uma pea, Os Dois ou O Ingls Maquinista, em que to-dos estes confrontos so expostos de maneira exemplar. O ra-paz e a mocinha que se amam enfrentam e vencem, a um s tempo, a me dela e dois pretendentes sua mo, mais velhos e mais poderosos, um negreiro que vende "meias-caras" (escra-vos africanos importados ilegalmente) e um ingls trapalho, inventor de uma mquina mirfica, que transforma ossos em ouro. Era, neste ponto, a Revoluo Industrial britnica que che-gava nossa comdia, sob feies mentirosas, para nela perma-necer por longo tempo. Engenharia, no Brasil, era com os ingle-ses, como moda com os franceses e canto com os italianos.

    O Martins Pena comedigrafo, seja pelo temperamento, seja pela escrita teatral, nada tinha de romntico (a comdia romntica, quando existe, banha-se na fantasia potica de Sha-kespeare). Ao contrrio, o escritor brasileiro, em suas peas cmicas, satirizou as atitudes exaltadas e as declaraes de amor bombsticas. Mas foi romntico, ainda que a contragosto, pela %>oca em que viveu e que retratou com uma mistura incon-fundivelmente pessoal de ingenuidade e de engenhosidade artstica. E tanto mais por possuir em alto grau duas qualida-jdgs prezadas pela fico romntica: o senso da cor local e o gosto pelo pitoresco. Aplicou ambas ao Brasil, menos para distingui-lo da Europa (caberia ao drama histrico tal tarefa) e mais para dividi-lo nos diversos Brasis que coexistiam no tem-

    DECIO DE ALMEIDA PRADO/CS 61

    o da Corte, o da roa e o do serto, ps autores cmicos j a p: que se lhe seguiram, at o final do sculo, no se esqueceram y dessa lio. O homem do interior perdido na cidade do Rio de / Janeiro tornou-se uma das personagens clssicas de nossa co- / mdia de costumes.

    O teatro de Martins Pena revela ainda algo de primitivo, de arte que est nascendo, engendrando aos poucos a si mesma. As festas populares, por exemplo, no passam nas primeiras peas de fechos cnicos que se justapem ao enredo, sem pro-priamente integr-lo. o que acontece no segundo quadro de A Famlia e a Festa da Roa, todo ele dedicado Folia do Esprito Santo, com o seu Imperador e o seu leilo, onde se oferecem prendas caseiras, como um po-de-l e uma galinha enfeitada com laos de fita. J em Judas em Sbado de Aleluia, o folguedo de rua, entrando pela casa adentro, fornece a base sobre a q u a j ^ constri-se o enredo. ^ fuso entre pea e e s P ^ ^ ^ j o ^ n j i ^ L - ) falado, o cantado e o exibido, completou-se.

    Esses aspectos populares, alis encantadores, semelhan-tes ao de determinada pintura primitiva, no indicam, contu-do, um autor canhestro ou ignorante. Martins Pena era um homem culto, que conhecia bem msica e literatura, alm de dominar no mnimo duas lnguas estrangeiras, o francs e o j italiano, a primeira ligada ao teatro que se fazia no Rio de ^

    Janeiro e a segunda pera. Quando morreu, com no mais j do que trinta e trs anos, estava a ponto de iniciar uma nova etapa em sua vida, ao partir para a Inglaterra em funes d i -plomticas. At onde ele iria, depois desse impulso, jamais saberemos: vitimou-o a tuberculose, por sinal doena romnti-ca, a mais fatal de todas elas.

    Se o humor de Martins Pena ldico, divertindo-se com as cabriolas que faz as suas personagens executarem no pai-

  • 62 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    co, o seu esprito crtico ferino ,percuciente, com o seu tan-to de caustidxTJe". S que ele o pe a servio de uma viso cmica do,homem e da sociedade, cobrando, todos os erros, inclusive os polticos, que no rareiam em sua obra, muito mais pelo riso do que petas "indignaes inflamadas. -

    O Drama Histrico Nacional

  • Leonor de Mendona e Macrio so dramas que se levan-tam como picos isolados, podendo ser filiados, respectiva meni,e. alface lrica, amorosa, e face fantstira^do^romantismo. As quatro peas agrupadas a seguir, em contrapartida, formam sem dificuldade um bloco nico, se submetidas perspectiva his-trica. No mantiveram na realidade qualquer relao entre si, mas buscam todas dizer alguma coisa sobre o Brasil, como pas independente ou como nacionalidade. Nesse sentido inscrevem-se, um tanto tardiamente, no romantismo social desabrochado depois de 18301.

    Tais peas, escritas entre 1858 e 1867, tendo objetivos estticos parecidos, apresentam estruturas semelhantes. Como local de ao, os pases europeus desaparecem. O prprio Portugal passa do papel de pai nobre ao de pai tirano. O

    1. Cf. R. Picard, Le romantisme social, New York, Brentano's, 1944.

  • 6 6 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    I quadro ficcional amplo no espao, no tempo e no nmero ! de personagens, no excluindo como simptico pano de fun-

    do, que surge nos finais de ato, nem mesmo o povo. O par amoroso, constitudo por um rapaz e uma moa solteiros, conserva-se em primeiro plano, mas sem ocupar o centro das atenes, voltado agora para o ngulo poltico. Enfim, trao essencial, o enredo entrelaa, entre as personagens, figuras imaginrias e pessoas de comprovada existncia histrica. E, se os autores interrogam o passado, para esclarecer o pre-sente e projetar possivelmente o futuro.

    Calabar, drama em versos decasslabos brancos (resqucio da tragdia clssica), de Agrrio de Menezes (1834-1863), abre na Bahia, em 1858, este pequeno ciclo. Domingos Fernandes Calabar, que o inspirou, deve a sua fama, ou infmia, circuns-tncia de ter aderido aos holandeses em meio luta armada que estes travaram na primeira metade do sculo XVII para se esta-belecerem no Nordeste brasileiro. Calabar seria o vilo comple-

    jQj^O- traidor por excelncia (sentido que o seu sobrenome ad-quiriu), no fossem"^Ius atenuantes: era mulato, portanto em

    j2IQJ5io adverso aos brancos portugueses, e, ao s e r p r e s o e

    ^COTidj^rmdo^ lia. A significaosocialde tal fato histrico que ele teria sido uma das primeiras manifestaes nativistas em nosso territrio, juntando, contra os invasores, portugueses, ndios e negros, cada faco com chefe prprio. Era o Brasil, como mistura de raas, que despontava. Sobre esse panorama ergue Agrrio de Menezes a imagem romntica, entre trgica e melodramtica, de Calabar, heri e anti-heri, capaz de grandes feitos e de grandes crimes. Homem destinado marginalizao, por sua condio de mulato ("a cor do meu destino"), no se julgava devedor nem dos portugueses nem dos holandeses, "senhores ambos, ambos

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 6 7

    tiranos". A paixo por uma brasileira, descendente de ndios, leva-o a possu-la pela fora e a matar o seu rival portugus. O crime, somado ao seu ressentimentode mulato, faz com que ele troque inesperadamente de lado durante a luta. Mas, no momen-to derradeiro, esse guerreiro "sanhudo e fero como um tigre" (e a sombra de Otelo passa pelo palco), esse "gnio satnico" (e a figura do Diabo no anda longe), ao reconciliar-se com a sua terra de nascimento, conclama os brasileiros a se libertarem, re-metendo o pblico ao gesto de D. Pedro I em 1822: "Ptria! Ptria! Conquista a liberdade!"2.

    Em O Jesuta, a fantasia prevalece francamente sobre a his-tria. Quando cTescreveu, para comemorar em 1861 a data de 7 de setembro, Jos de Alencar (1829-1877) achou que a Inde-pendncia do Brasil, por estar ainda muito prxima, escapava ao alcance da "musa pica" 3. Ele no queria que a realidade, conhecida de todos, pusesse limites imaginao potica. Pre-feriu, em vez de retratar o verdadeiro, inventar um movimento de libertao nacional prematuro e malogrado, que teria ocor-rido em meados do sculo XVIII . O jesuta do ttulo o Dr. Samuel, na aparncia um idoso mdico italiano^jreMdente JTO^ Rio de Janeiro, mas na verdade o Vigrio-Geral da Companhia de Jesus n Brasil, pas onde nascera. Homem de viso quase proftica, domina os que o cercam pela inteligncia e pela von-tade. O f im grandioso que o orienta - vamos desvendando aos poucos - nada menos que a Independncia nacional. Pode-ria ento o Brasil realizar os seus "altos destinos", dando abri-go aos ndios e aos ciganos, povos esquecidos ou recusados

    2. A. Menezes, Calabar, Bahia, Tipografia Bazar, 1858, p. 208. 3. J. Alencar, Teatro Completo, Rio de Janeiro, Servio Nacional do Teatro, 1977,

    vol. 1, p. 267.

  • 68 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    pela Europa. Mas Alencar nada diz sobreos negrpsv.taly2J3or_ preconceito racial, talvez por julg-los j integrados, ainda que pela escravido, vida diria brasUeira. O ousado projeto do

    Dr. Samuel, amadurecido atravs dos anos, com milhares de pessoas a seu servio, esboroa-se quando o governo portugus, representado pelo Conde de Bobadela, executa em 1759 a expulso dos jesutas de terras brasileiras. O protagonista da pea, no entanto, antes de desaparecer como por um milagre cnico,/empraza 5o antagonista para "daqui a um sculo": "No vs que~cr"glgante se ergue e quebra as cadeias que o pren-dem? No vs que o velho tronco de reis-heris, carcomido pela corrupo e pelos sculos, h de florescer de novo nesta terra virgem e aos raios deste sol criador?"4. A "musa pica" de Jos dAlencar, tendente s ideias gerais, como em seu mestre Victor Hugo, apoiava-se sobre dois mitos correntes no sculo XIX: o da Amrica como espao moral em que renasceria a humani-dade liberta de suas mazelas europeias e o do jesuitismo como poder conspiratrio, fora oculta movendo em silncio indiv-duos e naes.

    Sangue Limpo, do pouco lembrado escritor paulista Paulo Eir (1836-1871), drama representado em So Paulo em 1861 e publicado em 1863, aborda o fato central desta dramaturgia histrica. Mas no diretamente. A pea inicia-se com a chega-da a So Paulo do prncipe D. Pedro e termina, no dia 7 de Setembro de 1822, com populares que sadam, no fundo da ctia, a passagem do j ento D. Pedro I , gritando "Indepen-dncia ou Morte". No primeiro plano algum exclama: "Descu-

    4. J. Alencar, Teatro Completo, Rio de Janeiro, Servio Nacional do Teatro, 1977, vol. 2, p. 498.

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 69

    bram-se, filhos... o Brasil que passa"5. O episdio da Inde-pendncia, porm, menos a matria do drama que o mote necessrio ao autor para desenvolver "o pensamento capital" da pea, assim apresentado no prefcio:

    Todos sabem de que elementos heterogneos se compe a populao brasileira e os riscos iminentes que pressagia essa falta de unidade. No somente a diferena do homem livre ao escravo; so as trs raas humanas que crescem no mesmo solo, simultaneamente e quase sem se confundirem. [...] Penso eu [...] que o presente deve ser o preparador do futuro; e que dever de quantos tm poder e inteligncia, qualquer que seja a sua vocao e o seu posto, do poeta como do estadista, apagar essas raias odiosas, e com-bater os preconceitos inquos que se opem emancipao completa de to-dos os indivduos nascidos nesta nobre terra.

    Era estender de um s golpe, corajosamente, o conceito de liberdade do mbito internacional ao nacional, levantanclo,

    ^co"m"crreatas Independncia de 1822, duas "questes ain-da em germinao: a abolio do regime escravocrata e a ex-tino dos preconceitos raciais. No contexto da pea, as trs ideias surgem interligadas, na boca de um sargento mulato,

    htifTmnte brasileiro^ ante um oficial portugus:

    Sou filho de um escravo, e que tem isso... Onde est a mancha inde-lvel? ... O Brasil uma terra de cativeiro. Sim, todos aqui so escravos. O negro que trabalha seminu, cantando aos raios do sol; o ndio que por um miservel trabalho empregado na feitura de estradas e capelas; o selvagem que, fugindo s bandeiras, vaga de mata em mata; o pardo a quem apenas se reconhece o direito de viver esquecido; o branco, enfim, o branco orgulhoso que sofre de m cara a insolncia das Cortes [portuguesas] e os desdns dos

    5. P. Eir, Sangue Limpo, 2. ed., So Paulo, separata do Arquivo Municipal, 1949, p. 98.

  • 7 0 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    europeus. Oh! quando carem todas essas cadeias, quando estes cativos todos se resgatarem, h de ser um belo e glorioso dia!

    Gonzaga ou A Revoluo de Minas, de Ajitmo, c[e Castro Alves (1847-1871), pea escrita aos vinte anos e estreada por amadores em 1867, na Bahia, tambm comemora o feito de 1822. Mas a seu jeito, voltando atrs trinta e poucos anos. A

    "^L. Inconfidncia Mineira, de 1789, deve a posio privilegiada que ^ ocupa no iderio cvico do Brasil a mais de um fator: foi a ^/ primeira tentativa sria de emancipao nacional; produziu a "

  • 72 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    vras de Lus que est entre o co e o cavalo". o terceiro fio que puxa o enredo de princpio a f im. Os amores de Maria Dorotia e Tomaz Antrii'^jcTrr2Sg7 cantados liricamente pelo poeta em MafTa~UeT3irceu, volume de versos dos "mais lidos" no sculo XIX, adquirem, por um curioso milagre de fico teatral, o mais temvel adversrio que se poderia esperar: o prprio Visconde de Barbacena, isto , Tpresentante oficial do poder. O drama, no obstante, assume por esse lado ares de comdia, de escaramuas cnicas, de mascaradas, de em-

    TSoscadas malignas e fugas cpcirtujia^xLc-ictgC entre"~*An| e~ Demnio" (ttulojd^^gundo^a^t^o^ no quaf^Maxia Dorotia, o hjo, acaba^mpj;e_vgncendo pela astcia e pelo riso o cerco obstinado que lhe faz Barbacena7~Castro~ Alves" tudo indica, pretendia conjugar, no mesmo texto teatral, a grandeza de Victor Hugo e a sagacidade cnica de Alexandre Dumas (instigado, porventura, nesta segunda parte, por Eugnia Cmara, atriz e poetisa portuguesa, bem mais velha do que ele, com quem mantinha ento uma rumorosa ligao amorosa e literria). Mas faltava-lhe, para alcanar o seu intento, maior maturidade, quer como homem, quer como escritor de teatro. Teve razo Jos de Alencar, quando escreveu: "H no drama Gonzaga exube-rncia de poesia. Mas deste defeito a culpa no foi do escritor; foi da idade". Como acertou Machado de Assis, ao acrescentar que era ainda necessrio ao poeta, to jovem e to talentoso, "separar completamente a lngua lrica da lngua dramtica"6.

    Estes dramas histricos, cujos autores incluam o maior romancista, Alencar , e um dos maiores poetas do perodo, Castro Alves, tiveram na prtica a mesma melanclica sina das

    6. A. Castro Alves, Obra Completa, Rio de Janeiro, Jos Aguilar, 1960, pp. 791, 795.

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 7 3

    peas de Gonalves Dias e lvares de Azevedo: nunca chega-ram ao palco da maneira como desejavam. S foram encena-das, na melhor das hipteses, em cidades distantes do centro teatral, que era o Rio de Janeiro, por conjuntos amadores ou semiprofissionais. Ou, ento, surgiram em cena fora do seu pra-zo esttico, caso de O Jesuta, escrito em 1861, mas represen-tado no Rio de Janeiro, em condies julgadas insatisfatrias pelo autor, apenas quatorze anos depois. , de resto, um tea-tro meio temporo, bebido em nascentes que na prpria terra

    ^^rlg^rnTTI^n, achavam-se um tanto esjgjtecSsrc' roman-tismo continuava como fonte potica, porm^no p^cc^j_der.,.

    lugar a outros projetos estticos.

  • 5

    O Realismo no Teatro / /

  • O romantismo alargara na Frana, mestra do Brasil, a porta estreita do classicismo para que o fluxo do sculo XIX pudes-se passar. Nada de tempo e espao ficcionais limitadgs^de.^^.., antemo, nada de regras impostas viso potica do escritor, nada de enredos centralizados em torno de uma histria s. poeta, ou seja, o criador, pois esta a raiz etimolgica da palavra, deve voar na amplido, sustentado pelas asas da ima-ginao, pelo dom da fantasia que lhe faculta, em princpio, todas as liberdades, as formais no menos que as de conte-do. A arte foi feita para libertar^ no para constranger.

    O realismo, sobrevindo uma gerao depois, aps o fra-casso das tentativas revolucionrias de 1848, significou, para o escritor de teatro, o f im desses sonhos de grandeza, o retorno ao rebanho e ao senso comum. Kle se reconhece_ como^um homem entre os outros homens, algum interessado na vida em sociedade, no nas escapadas ao infinito de alguns seres c

  • 7 8 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    ^2^3?^2SS}S..R9&SS^ v i c t o r Hugo, e m 1830, legislava para o gnio. Alexandre Dumas Filho, em 1860, pensa no bom cida-do - na prtica, o burgus, que nem assume ares superiores de aristocrata, nem possui a curteza de vista do povo. O tema da liberddej^rimeiro para as naes,jdejJOs_para os indiv-duos, cede lugar ideia burguesa de ordem, de disciplina social. Se ojTicJep_do drama romntico era frequentemente a nao, passa a ser, no realismo, a famlia, vista como clula mater da sociedade.

    Retraindo-se o quadro histrico, que transita do passado ao presente, encolhe-se e simpJific^se"'~quadro ficcional: en-

    ^redos verossmeis, personagens tiradas da vida diria, episdios fortemente encadeados, girando sobre no mais do que um eixo dramtico. A cena, tendo de sugerir salas familiares, semelhan-

    tes s que se encontram fora dos teatros, enche-se aos poucos de adereos: mesas, cadeiras, poltronas, sofs, cmodas, estan-tes, vasos de flores, estatuetas. A marcao - os passos dados pelos atores, as mudanas de posio destinadas a explicitar os

    'sentimentos ou apenas a movimentar a parte visual - volta-se para dentro, para o centro do palco. Os atores j no se diri -gem to ostensivamente ao pblico, antes fingindo ignor-lo, dando-lhe por vezes as costas. Ora, este enriquecimento pro-gressivo da rea de representao, com cenrios que j no se reduzem a teles pintados que sobem e descem em questo de segundos, leva os autores a no abusar das mudanas de local, que, se minuciosas, demoradas, feitas com o pano fechado, retardam o andamento e enfraquecem o tnus do espetculo. Reaparece ento uma certa economia no uso do espao e do tempo, no por imposio terica e sim por simples convenincia cnica. A pea de trs atos, com cenrios que s so trocados durante os intervalos, a medida dramtica para a qual tendem

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 7 9

    as peas realistas de f im do sculo, sobretudo em sua feio comercial.

    No Brasil, a ascenso do rejl jsmo coincidiu cronologica-mente com os derradeiros dramas histricos dignos desse nome, antes da decadncia definitiva cio gnero. S que estas peas constituam resqucios romnticos, produzidos err^ geral na pTvncia, ao passo que as comdias e dramas etiquetados de "realistas apresentavam:se.,?iQ JRioude Jarieiro^ na quaTiHacIe d" vanguarda teatral, em oposig j c^re^

    Caetano. Portugal participou com destaque deste movimento de renovao, seja de textos, seja de modos de representar. Jovens artistas de procedncia lisboeta, com alguma vocao literria e bastante apetite amoroso, ou iniciaram a sua carreira de palco no Brasil, a exemplo de Lus Cndido Furtado Coe-lho (1831-1900), ou tiveram aqui prosseguida a sua trajetria, caso de Eugnia Infante da Cmara (1837-1879), menos conhe-cida entre ns por seus versos do que por ter sido amante de Castro Alves. Amigos de escritores, cuja roda frequentavam, auxiliaram a diminuir a distncia at ento existente entre pal-co e literatura, ao mesmo tempo em que ajudavam os atores nacionais a trocar estilisticamente o gibo romntico pela ca-saca moderna. Por alguns anos, entre 1855 e 1865, tivemos a grata impresso de que a arte dramtica encontrara entre ns

    " seu" clmnrfo e qu autores e intrpretes, o brao diflto~"'o brao s q j ^ j l a j e a ^

    "iluso durou pouco, mas deixou uma pondervel colheita dra-"Tturgica, em termos comparativos1.

    1. Cf. J. R. Faria, O Teatro Realista no Brasil: 1855-1865, So Paulo, Perspec-tiva, 1993.

  • 80 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    Vrios nomes de escritores dramticos poderiam ser cita-dos neste contexto histrico. Por exemplo, o de. Francisco Pi-nhejra-G^imares (1832-1877), pelo xito alcanado por seu drama Histria de uma Moa Nica, resposta nacional, quanto ao ttulo, a Le roman d'un jeune homme pauvre^e, c7a~ve Feuillet; ou o de Quintino Bocaiva (1836-1912), que, antes de se tornar o lder republicano que todos conhecem, interessou-se pelo teatro, escrevendo trs^^rjej^ag^realistas: Onflia, Os Mineiros da Desgraa e A Famlia. Mas um grande autor, em particular, encarnou o realismo teatral no Brasil: Jos de Alencar. J o vimos compondo^O jfesujta^texto com todos as marcas do romantismo. Mas isto foi^a pedido de Joo Caetano, que dese-java comemorarem 1861 a Independncia_ do Brasil. Ele, no entanto, j tivera encenados a essa altura diversos originais diretamente filiados s mudanas recentemente ocorridas nos palcos franceses. Publicara at, em 1857, uma espcie de pla-taforma de lanamento do realismo, propondo como modelo de modernidade a d r a m ^ Filho, que

    crescentayii J l_^ejAS^^ incisiva de crtica rnoraL__0 teatro, encaminhando-se j para a

    ?pa de tese, devia no apenas retratar a realidade cotidiana, / mas julg-la, aprovar ou desaprovar o que estaria acontecendo

    / na camada culta e consciente da sociedade. A burguesia, re-\ vendo-se no espelho retificador - ou embelezador - do palco,

    \ teria por misso realizar-se como modelo de comportamento lindividual e coletivo.

    O desejo de Alencar, como podemos interpret-lo, seria alcanar um meio-termo entre o drama enfaticamente dramti-co, descjimband para o melodrama, e a comdia enfaticamente

    ^^cikaica^ confinandg^comjifarsa - por sinal, os dois gneros, melodrama e farsa, que imperavam no Brasil. Cada pea sua

    Jos de Alencar (litografia de Angelo & Robin, a partir de desenho de

    Augusto Off).

  • 82 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    renderia para uma ou outra vertente, terminando bem ou mal, porm sem se afastar em demasia do ponto de equilbrio, alm do qual enredo e personagens perderiam a verossimilhana necessria ao pblico moderno que se intentava criar.

    ^ Somando-se os dramas e comdias realistas de Alencar -por exemplo, O Crdito, As Asas de um Anjo, O que o Casamen-

    to-, peas escritas por volta de 1860, obter-se-ia um quadro com-pleto e TEmerite THarzado da moral burguesa. A famlia deve

    "~assntar-se sobre bases slidas, no apenas legais como tambm afetivas, marido e mulher agindo dentro dos mesmos preceitos,

    | pais respeitando filhos e sendo respeitados por eles. A mulher I teria a sua rea de atuao prpria, a casa, deixando ao homem j as outras preocupaes, sobretudo as econmicas. A paixo amo-

    rosa, elemento por natureza perturbador - e romntico, nesse ;-; sentido - , deve orientar-se para o casamento, instituio alicerada \ sobre o amor, mas igualmente sobre a moralidade social. Nesse i

    ; universo, purificado pela fico, no se admite naturalmente nem i o casamento por dinheiro, nem a prostituio, nem mesmo essa

    prostituio disfarada na qual o amante, no o marido, que \ paga o luxo da mulher. Quanto ao dinheiro, entidade desconhe-

    cida pela fico romntica, tem ele assegurado o seu posto na } nova sociedade, na condio de indispensvel padro de troca. *|Depende o seu valor da maneira como entendido: se bem,

    |define-se como crdito, fator de expanso econmica; se mal, |torna-se usura, desequilibrando pessoas e comunidades. Dois dos {temas prediletos de Alencar, e de todo teatro realista brasileiro, j haviam sido lanados na Frana por Alexandre Dumas Filho: o

    j da cortes, a prostituta elegante, em La dame aux camlias, e o | do dinheiro, em La question d'argent.

    Mas o verdadeiro problema social do Brasil naquele mo-mento era obviamente outro: o da escravido. Alencar enfren-

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 83

    tou-o duas vezes: numa comdia, O Demnio Familiar (1857), e num drama, Me (18601 A primeira explora a questo sob o ngulo jurdico, que nunca deixou de ser o do autor. O escra-vo * sempre um mal, para si e para os outros, inclusive para os seus proprietrios. Sendo objeto, no possuindo responsa- f bilidade legal, ele inimputvel, tanto moralmente como pe-rante a lei. Se ainda por cima um molecote, quase uma criana, t ~ como "o demnio familiar" da comdia, ocupando na famlia t 5^ um lugar indefinido, entre o criado e o filho mais moo, pode tecer intrigas, desunir parentes e amigos, menos por maldade, que no tem, do que por ignorncia, por no avaliar bem as consequncias de seus atos. A liberdade seria assim a condi-o sine qua non da maturidade moral. O homem s inte-gralmente ele mesmo quando livre e responsvel. Alencar, ao escrever a pea, no pensava tanto em advogar a causa dos escravos, como fizeram os genunos abolicionistas. O que ele queria, com a abolio, era ressalvar o Brasil, que para ingres-sar no mundo civilizado necessitava livrar-se - com as devidas cautelas - dessa mcula, a escravido, que poderamos chamar, por nossa conta, de pecado original da sociedade brasi le inu^j

    ^jVfe retorna ao assunto, em nvel dramtico e de outro ponto de vista. Pe em foco, talvez com mais profundidade do que pretendia, as incertezas e ambiguidades que cercavam, num pas dividido entre negros e brancos, escravos e pessoas livres, a figura indeterminada_^kxj3jujajx). Alencar imagina, para tan-to, uma situao-limite, pouco provvel, mas no impossvel de acontecer. Suponha-se um rapaz bem apessoado, de nvel econmico de mdio para alto, que parece e se julga branco, ignorando que a mulata que o serve h muitos anos, funcio-nando como amiga e conselheira rstica, na verdade sua me. Suponha-se mais, que ela se sacrifica constantemente por ele,

    J

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    no s escondendo o fato de sua maternidade mas tambm

    deixando-se vender como escrava para salv-lo, a ele e moa

    que o ama, da misria e da vergonha. Vem agora o n dram-

    tico da pea: o segredo dela rompido por um amigo da fa-

    mlia, que desempenha no enredo o papel da racionalidade e

    moralidade perfeitas (o antigo raisonneur de Molire, revivido

    pelo teatro realista como porta-voz do autor). Contudo, a rea-

    o dos circunstantes ante essa reviravoltano poderia ser mais

    edificante (para exprimir o sentido do drama). Todos, pelo

    menos todos que despertam a simpatia do pblico - o rapaz,

    a namorada, o futuro sogro, o amigo da famlia - , encaram a

    nova situao como inteiramente normal. Que mal h que um

    jovem, cheio de qualidades, seja filho natural, mulato, descen-

    dente de uma escrava? No est o valor, de acordo com a tica

    burguesa, apenas no indivduo, que paira fora e acima dos vos

    e tolos preconceitos sociais? Temos aqui uma possvel aproxi-

    mao do problema, sugerida, porm no explicitada, pelo tex-

    to. Branco, no Brasil, quem aparenta ser branco, no impor-

    tando tanto que tenha nas veias algumas ou muitas gotas de

    sangue africano. Ele julgado, no em termos de inferiorida-

    de biolgica, fatalidade racial, e sim pela aceitabilidade social,

    pelo aspecto fsico, pelos traos do rosto, considerados finos

    (brancos) ou grosseiros (negros), pelo cabelo, caracterizado

    como bom ou ruim. Posto que o rapaz colocado em cena passa

    sem dificuldade por esse teste de brancura, tudo estaria solu-

    cionado e a pea poderia terminar tranquilamente em com-

    dia. Sucede, entretanto, que a me, a protagonista, nega-se a

    participar desse desfecho feliz. Para poupar ao filho e nora

    futuros aborrecimentos e vexames, que certamente viriam em

    obedincia s leis no escritas do Brasil, ela se mata, ingerin-

    do veneno. Com esse derradeiro sacrifcio, essa mulher lcida

    DCIO DE ALMEIDA PRADO 85

    e corajosa est dizendo alguma coisa que no pertence v i -

    so cmica: o bom negro, no Brasil, aquele que desaparece

    de imediato, quando a sua presena incomoda a memria fa-

    miliar. A passagem da negritude, da me, branquido, do filho,

    pertence pois ao terreno dramtico. Se O Demnio Familiar,

    da comdia anterior, somente liberto e expulso da famlia, \

    como resposta s intrigas infantis que tramou, para a Me deste

    drama de adultos no existe outra sada a no ser o suicdio. m

    Algum teria de ser imolado aos supostamente vos e tolos

    preconceitos sociais - e antes a me velha, parece dizer a pea,

    do que o filho promissor, j integrado aos brancos. Alencar j -

    pode-se porventura concluir - gojtariajque a escravido, jun-

    tamente com a sua herana negra, sumisse de repente da vida

    brasileira, num passe de mgica que o teatro - no a realidade

    ~Tistrica - mostrava-se capaz de fazer.

    Ao realismo, se a histria tivesse lgica, seguir-se-ia o na-

    turalismo, como aconteceu na Frana, e no que diz respeito ao

    romance tambm no Brasil, com Alusio Azevedo sucedendo a

    Jos de Alencar. Mas nos palcos do R jo^Jane i ro , cidade que

    concentrava praticamente todo o teatro nacional, essa seqn-c i a foi interrompida p o r j i m i a ^ ^ m e

    ^Tige^ra^que arrasou o pouco que o romantismo e o realismo

    haviam conseguido construir sob a designao de drama. A ir-

    rupo da opereta francesa, acompanhada por_sjjas^._Sj5qulas__

    cnicas, trouxe consigo a morte da literatura teatral considerada,

    sria. No se cfeTxou por isso de pensar sobre o Brasil - e sobre

    o que mais poderamos pensar? - , porm em termos de comdia

    ou de farsa, em continuao a Martins Pena, no a Castro Alves

    ou Alencar. Tal inflexo foi condenada por todos os interessa-

    dos - autores, intrpretes, crticos - , menos pelo pblico, que

    de qualquer forma nunca dera a t e n ^ o ^ ^

  • 86 HISTRIA CONCISA DO TEATRO BRASILEIRO

    Ningum lamentou mais essa mudana de perspectiva, essa quebra de ambio literria, do que Machado de Assis. Ele comeara a se preocupar com o jsatro aos 20 anos, em 1859 -

    ^^ontinuar a ser ,Q nossoJ3ontO-d&jreracia crtica sobre .as coisj&jdp palco. Procedendo ao balano da literatura nacional, no clebre ensaio intitulado "Instinto de Nacionalidade", relem-

    brou na parte relativa autoria teatral nomes como os de Gon; __c_alves de Magalhes e Gonalves Dias, reservando algumas

    palavras carinhosas a Martins Pena, "talento sincero e original, "~quem s faltou viver mais, para aperfeioar-se e empreender obras de maior vulto". Quanto ao passado imediato, anotou:

    Mais recentemente, nesses ltimos doze ou quatorze anos, houve tal ou qual movimento. Apareceram ento os dramas e comdias do Sr. Jos de Alencar, que ocupou o primeiro lugar na nossa escola realista e cujas obras O Demnio Familiar e Me so de notvel merecimento. Logo em seguida apa-receram vrias outras composies dignas do aplauso que tiveram, tais como os dramas dos Srs. Pinheiro Guimares, Quintino Bocaiva e alguns mais; mas nada foi adiante.

    contra esse pano de fundo, contra essa alguma coisa,

    que ele lana, em 1873, o nada absoluto do presente:

    Hoje, que o gosto pblico tocou o ltimo grau de decadncia e perver-l/f so, nenhuma esperana teria quem se sentisse com vocao para compor obras

    severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina a cantiga burlesca, ou obscena, o cancan, a mgica aparatosa, tudo o que fala aos sentimentos e aos instintos inferiores?2

    2. Machado de Assis, Crtica Literria, So Paulo, W. M. Jackson, 1951, pp. 150-151.

    6 Os Trs Gneros do Teatro Musicado

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