passos em volta - edição 7 (janeiro 2016)

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Jornal ISPA

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Page 1: Passos em Volta - Edição 7 (Janeiro 2016)
Page 2: Passos em Volta - Edição 7 (Janeiro 2016)

Passos em Volta | 6ª Edição

Passos em Volta

Alexandre Magalhães Vaz

Rafael Martinez Cláudio

José Candeias

Margarida Bessa Monteiro

Tereza Bínová

Raquel Matos

Diogo Vilaça Santos

Alexandre Magalhães Vaz

José Candeias

Paula Cortes

Rafael Martinez Cláudio

Tiago A. G. Fonseca

Ana Carla Nunes

Rita Alves

Jornal Académico do ISPA

Fundado por alunos da faculdade em colaboraçãocom a Associação de Estudantes (AEISPA)

Direcção e Edição

Co-Direcção

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Imagem de Capa: "Ouve-me", por Helena Almeida (1979)

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C O N T A C T O S

Page 3: Passos em Volta - Edição 7 (Janeiro 2016)

ÍNDICE

AS FLORES DO MAL COLÓQUIO DEPSICOTERAPIAPor Rafael Martinez Cláudio

01 EDITORIALPor Alexandre Vaz

Por Tiago A. G. Fonseca

Por Paula Cortes

Por José Canderias

08

02

RELAXA QUE ENCAIXA11

03

AFINIDADES

ENTREVISTA AVICTOR CLÁUDIO

12 O SOLIPSISMO IMPLICA AINEXISTÊNCIA DE PASTÉIS

INTEGRAÇÃO E INVESTIGAÇÃO EM PSICOTERAPIA

DA FOTOGRAFIA À PSICOLOGIA

PSICOTERAPEUTA, PROFESSOR EINVESTIGADOR NO ISPA

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EDITORIAL

por Alexandre Vaz

(Por falar em saúde mentalou na vida bem vivida)

Ser camaleão é ser múltiploSer camaleão é sobreviverSer camaleão é aprenderSer camaleão é adaptarSer camaleão é tudo:

viver sem repetir,morrer bem.

É ter os olhos postos na incertezae saber cantá-la.

Ch-ch-ch-ch-changesTurn and face the strange

PASSOS EM VOLTA | 1

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W W W . F R A M E M A G . C O M | 2 0

AFINIDADESDA FOTOGRAFIA À PSICOLOGIA

Casaco

Deleuze, em diálogo com Parnet, lembra-nos quenunca desejamos só um vestido, mas antes o quepodemos através dele.

O homem queria vestir o casaco azul de LeonardCohen.Sempre achou que o protegeria mais da chuva.

Ao fundo, ouve-se: Famous Blue Raincoat.

Por Paula Cortes

PASSOS EM VOLTA | 2 Fotografia por Paulo Nozolino e Jorge Molder

Centro

O psicólogo pensa nos passos do paciente.O homem anda em círculos. Círculos emaproximação aos epicentros de outros círculos.

Porém, ao chegar aos destinos desejados não sesente pleno.

Poderia o lugar donde se parte ser já um destino?

Quando se anda em círculo não se toca o centro.A autenticidade é um ponto nem sempre fácil deiluminar.

Page 6: Passos em Volta - Edição 7 (Janeiro 2016)

Victor Cláudio

P S I C Ó L O G O , P S I C O T E R A P E U T A , P R O F E S S O R

E I N V E S T I G A D O R N O I S P A

"Baiuca" | s.f. 1. Taverna pouco limpa. 2. Casa pequena e imunda.

É assim que somos convidados para uma visita ao gabinete deVictor Cláudio - a sua "baiuca", como lhe chama. Ao contrário dopublicitado, é um espaço relativamente limpo, apesar do cheiro atabaco de cachimbo.Numa faculdade com tradição eminentemente psicanalítica, oprofessor Cláudio destaca-se pela sua formação em psicoterapiacognitiva e um interesse marcado pela integraçãopsicoterapêutica. É também investigador de vários temas dapsicologia e psicopatologia, como as memórias autobiográficas, adepressão e os esquemas precoces desadaptativos.

PASSOS EM VOLTA | 3

Entrevista por Alexandre Vaz

mestrado, largamente psicanalítica - com o professorCoimbra de Matos, Carlos Amaral Dias... Que erampessoas eminentes na sua área, e muito aprendi com eles.O professor Coimbra de Matos é, para mim, uma figurareferencial. E, sendo ele de um modelo que não aquele noqual me revejo, considero contudo a psicanálise como umdos paradigmas de pensar o ser humano. Não é "o"paradigma, mas é um deles.Mas nunca oscilei, de facto, no modelo: desde que conhecio modelo cognitivo, foi-me claro...

AV: Ia-lhe perguntar isso. Nunca teve nenhuma crise?

VC: Não, nunca tive uma crise identitária [risos]. Aindaque tenha sido acusado, em plena discussão dedoutoramento, de ter tido uma recaída psicanalítica!

AV: [risos] Conte-nos essa história!

VC: Eu tinha escrito um artigo, "Freud e teoriascognitivistas, proximidades e afastamentos". E estamos emplena discussão de doutoramento quando o professorÓscar Gonçalves, cognitivista e homem que muito prezo,pega por esse artigo e diz que tive uma "recaídapsicanalítica" [risos]. Não considero que tenha sido umarecaída. Claro que considero que toda a minha formaçãode base esteja muito ligada ao modelo psicanalítico, quemuito me enriqueceu. O que me leva depois, também, azonas mais da compreensão integrativa do ser humano.Neste momento, muito claramente, a mim não meinteressam os modelos. São-me indiferentes,secundários. Interessa-me o humano que está à minhafrente, interessa-me a relação, interessa-me acompreensão do outro e todo o trabalho que é feito narelação.

AV: Parece ter existido aí, em alguma fase do seu percurso,uma transição ou evolução. O professor referiu o modocomo subscrevia ao modelo cognitivo e como, com otempo, esse entendimento parece ter evoluído para umalógica mais integrativa. Há alguma fase em que entra"oficialmente" em contacto com o movimento integrativoem psicoterapia?

Alexandre Vaz: Tinha curiosidade em saber um poucomais sobre a evolução do professor, das suas ideias einteresses. Quando entrou em psicologia, o quão claro erapara si que se iria formar em psicoterapia?

Victor Cláudio: Antes de vir para o ISPA, andei pelacomunicação social. Depois percebi que não era aquiloque queria e, quando me decidi a vir para o ISPA, aminha ideia já era a de ser psicoterapeuta. Não era a deser docente, em momento algum [risos]. Obviamente quea formação que obtive no ISPA foi de raizeminentemente psicanalítica, até ao 4º ano, onde conhecia professora Luísa Figueira, que foi quem me introduziuao modelo cognitivo.

AV: Isto mais ou menos em que ano?

VC: Estamos por volta do meio dos anos 80. Foi tambémnessa altura que comecei a fazer umas formações noSanta Maria, com a professora Luísa Figueira e, maistarde, com o Mick Power.

AV: O seu mestrado no ISPA, no entanto, continuava a seressencialmente uma formação de base psicanalítica.

VC: Sim, eu estava a correr em duas pistas: a pista do

ENTREVISTA

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ENTREVISTA

VC: Não, eu não descobri o movimento integrativo assim dessamaneira tão lúcida. Eu vou trabalhando, e vou sentido uma sériede necessidades às quais o modelo cognitivo não me estavaa responder. A necessidade de integração apareceu-mesobretudo em contexto clínico.

AV: E em que fase conheceu o Mick Power, com quem fezformação psicoterapêutica?

VC: O primeiro contacto com o Mick Power foi feito através daprofessora Cristina Quelhas. Ele veio cá a convite do ISPA e,mais tarde, combinámos e fiz formação em psicoterapia comele. Fiz também alguns módulos no Santa Maria com aprofessora Isabel Caro, de Valência.

AV: E, segundo sei, o professor recentemente também começouuma formação em sistémica/familiar. Como é que issoaconteceu?

VC: Pois, foi o mesmo movimento de procura. Sentinecessidades em algumas áreas que, talvez, os modelossistémicos me pudessem responder. E assim comecei a fazeruma formação em terapia sistémica.

AV: E que tal? Validou as suas expectativas?

VC: Validou, validou. Foram dois momentos extremamenteimportantes: primeiro, o de voltar a uma zona de aprendizagem- e ter colegas que, em algumas casos, foram meus ex-alunos! Oque para mim está a ser extremamente gratificante. Outro ladofoi o poder ser confrontado e estar em debate com colegas maisnovos, com outras aprendizagens e visões do mundo. Isto tudopara lá do modelo em si, que acho interessante - embora nuncaconsiga achar que um modelo é "o" modelo. Mas tem elementosmuito interessantes e, para mim, muito úteis para a clínica.

AV: E como é que apareceu o seu interesse pelo estudo damemória, dos processos mnésicos em psicoterapia?

VC: Em todo o processo de psicoterapia, nós trabalhamossobre memórias. E a memória foi sempre algo que me atraiu,ainda que tenha trabalhado noutros temas - fiz uma monografiana área da atenção, uma dissertação de mestrado na área dalinguagem, sempre a trabalhar com esquizofrénicos. Depoisabandonei a esquizofrenia, percebi claramente que "não era ali",e fiz o caminho para a minha actual área de referência que é adepressão. Agora, sempre considerei que é na memória quenós trabalhamos, é na memória que nos vamoscomplementando e que vamos entendendo o outro. Nestemomento, quando estou a falar consigo, o que estou a fazer é aapelar a uma série de invocações mnésicas. É uma interacçãoclaramente mnésica. E eu quis entender como é que o serhumano faz estas evocações, e que ressonância emocional têmquando aparecem. É que as memórias não desaparecemimpunemente: aparecem embrulhadas em supostos emocionais.Se nós agora começarmos a falar de alguns livros, estamos afazer evocações mnésicas. E, tanto eu como o Alexandre,podemos falar de alguns desses livros de uma formaemocionalmente carregada, e de outros com grandeleveza. Porquê? Pela marca mnésica que nos deixaram - querpela força do estímulo, quer pelo momento de vida em queocorreu... Isto é, se ler um poema numa certa fase da sua vida, amarca mnésica que aquilo deixa é algo que perdura!

AV: E até a um nível de abstracção maior, lembro-me doprofessor, numa aula, falar sobre como a memória é, de certaforma, o "edifício do self". É uma ideia de que gostei muito, podiadesenvolvê-la?

VC: Sim, sim. Acho que o nosso "self" é claramente umaconstrução do nosso aparelho de memória. De outra maneira,não teríamos "self". Que é, aliás, uma das coisas mais dramáticasnos processos de alzheimer: a perda de identidade. O sujeitodeixa de poder aceder aos seus próprios processos mnésicos, oque efectivamente leva a uma perda de identidade. Nósconstruímos a nossa identidade a partir das nossas memórias. Eé aí que as actualizamos, também, no aqui-e-agora. Mas hásempre este "ir atrás". E, fazendo agora uma ponte, o modelocognitivo mais clássico, que se foca no aqui-e-agora, é algo quecomeça a falhar quando pensamos assim. Porque é que asfamílias são importantes, por exemplo? Porque são o manancialmnésico das nossas vidas.

AV: O professor depois tem uma confluência entre os seusinteresses, e decide fazer uma tese de doutoramento focada nosprocessos mnésicos em sujeitos deprimidos.

VC: Sim. O meu interesse pela depressão apareceprincipalmente devido à clínica, onde tinha maioritariamentecasos de depressão. Só me faz sentido fazer investigação aplicadaà clínica. Considero que, constantemente, venho da clínica para ainvestigação e da investigação para a clínica.

AV: No fundo, o modelo "scientist-practitioner".

VC: É, claramente. O "investigador académico" é um modelodiferente do meu. Isto prende-se com aquela ideia, muitoactual, de que "temos de publicar não-sei-quantos artigos",mesmo que seja completamente medíocre ou inócuo o que láestá. Não me revejo numa posição deste tipo, aliás critico-a eafasto-me. Porque considero que a validação do meu trabalhoestá no outro, no humano em sofrimento, e não nos artigos quepublico. Se tiver alguma coisa interessante para dizer, lá possotentar publicar. Mas a publicação pela necessidade de publicar,recuso-me. Considero esta atitude a perversão da própriainvestigação, a perversão do pensamento humano. Quandopublico apenas para ter mais pontos numa avaliação, isto é aperversão do processo comunicacional. Eu publico quandotenho alguma coisa para dizer.Voltando atrás, fiz estágio em Santa Maria e, quando passo para aclínica privada, aparece-me muito a depressão. E é aí quecomeço a pensar muito mais a fundo nesse tema. Eu considero adepressão um estado por excelência do ser humano. Odeprimido é o ser humano, na realidade. Não falo do deprimidoclínico, mas do processo de depressão - quando temos um humormais triste, é um momento de contemplação que conseguimosfazer de nós próprios. Que é o contrário desta atitude, muito namoda, que "temos de estar todos alegres" - por exemplo naspsicologias positivas, em que "o que é bom é ser positivo".

AV: Uma injunção muito agressiva.

VC: Completamente agressiva. No caso de um deprimidoclínico, por exemplo, que obviamente não consegue olhar para omundo sem umas lentes poderosas de auto-culpabilização edesvalorização, estas mensagens - supostamente validadaspor uma pseudo-ciência qualquer - vêm claramente reforçar adesvalorização do próprio. Como se, "se o outro consegue, por

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ENTREVISTA

que raios é que eu não consigo? Deve ser porque sou inferior".Por isso a gravidade destas mensagens não é só a tolice de asdizer, mas as consequências reais que estas têm nas pessoas.

AV: Estamos a falar, portanto, do carácter potencialmenteadaptativo da tristeza.

VC: Sem dúvida. O entristecermos é um dado fundamental danossa condição humana. Quando entristecemos, olhamos paranós. Questionamo-nos. Questionamos o nosso percurso e ospróprios motivos da nossa tristeza. Isto é, torna-se umprocesso de aprendizagem de nós próprios - e,consequentemente, um processo de aprendizagem do mundoà nossa volta. Aliás, nós olhamos para o romance, a poesia ou oensaio... se olharmos, por exemplo, para o Eduardo Lourençoou o José Gil, no caso do ensaio, encontramos pessoas queolham para o mundo não por uma filtragem, uns "óculos cor-de-rosa" onde vamos todos rir, mas também para a tristeza e odescontentamento inerentes ao mundo. O que encontramos,depois, é a elaboração dessa tristeza e desse descontentamento.E é isso que faz de nós seres humanos.

AV: Em psicologia, fala-se por vezes do "realismo depressivo".

VC: Exactamente, um conceito que vem com Alloy. É essapercepção de que, por vezes, o depressivo consegue ter umavisão muito mais próxima da realidade. O Miguel de Unamunotem um livrinho muito giro chamado "Portugal, Povo deSuicidas". E o nosso povo tem, de facto, uma tristeza que se vaipassando.

AV: O que parece ter algo que ver, também, com os processosmnésicos. Este impacto da cultura...

VC: Claramente. Aliás, uma das linhas de investigação no qualtrabalho são precisamente os scripts culturais. É esta passagemcultura, passagem da própria tristeza.

AV: Falávamos à pouco do professor Coimbra de Matos. Umaentrevista dele, ao jornal Público, tinha como título: "Paciente:Portugal; Diagnóstico: depressão desamparada".

VC: [risos] Subscrevo por inteiro! O professor Coimbra deMatos tem também uma expressão: "deixem dormir odeprimido". E isto é fundamental - deixem-no dormir! Haveráum momento em que será possível elaborar sobre a tristeza.Mas é necessário tempo para esta elaboração. Tempo esse que,neste momento, o próprio tecido social não nos dá. Temos deestar sempre a funcionar, sempre disponíveis para o outro. Masa tristeza é adaptativa, claramente. Quando alguém diz "eu nãome apetece falar com ninguém", então óptimo, não fale! Vamoslá respeitar isto, até contra aquela atitude de alguns psicólogos:"Você está deprimido! Você tem é de falar!" Não. O problemaé ser obrigado a falar quando não se quer. O problema éacharmos que o tempo do outro é igual ao nosso tempo - não,são tempos diferentes. É possível existirem encontrosde tempos, mas esses casos são a excepção, porque cada pessoaestá a elaborar o seu tempo, mesmo que estejam juntas. Napsicoterapia consegue-se, por vezes, esta conjugação temporal.Quando isto não é possível, é o psicoterapeuta que se deveadaptar ao tempo da pessoa. Outro dos problemas que tivecom o modelo cognitivo mais clássico era o número definidode sessões. Eu nunca consigo trabalhar com um número

definido de sessões em psicoterapia. E explico às pessoasporquê, sempre que faço um contracto terapêutico: eu gosto deme responsabilizar pelos meus erros, e gosto de ser eu a pagar opreço do meu erro. Se eu disser a uma pessoa que ela precisa de"x" sessões, quando chegar esse número...

AV: É possível que falhe. [risos]

VC: Mas é que o grande problema é que não sou eu quem vaipagar o preço desse erro - é a pessoa. Porque a pessoa vai-sedizer "eu é que não consegui! Porque o tipo até é muito bom..."

AV: Qualquer que seja a interpretação da pessoa, seráprovavelmente desaptativa. Ela poderia também culpar oterapeuta e não a si mesmo, e continuaria a ser uma farpa noprocesso terapêutico.

VC: Exacto. E esse caso, do mau seria a menos. "Oiça, vocêdisse-me uma coisa e mentiu-me". Mesmo assim seria umataque à relação. Por isso, que sentido faz estar a limitartemporalmente algo que se rege pelo tempo interno de cadaum de nós? Agora, o tecido social permite-nos isto? Narealidade, não. Se pensarmos nos psicólogos a trabalhar eminstituições, muitas vezes têm um tempo marcado, um númerode pessoas a ver... E, voltando aos processos mnésicos: a nossamemória demora tempo a fazer-se e a dizer-se. As pessoas nãocontam uma história a correr. Se lermos os contos do Borges,são lentos - no sentido de não existir aceleração.

AV: Então para terminar, e depois de tudo o que falámos, o queseria para si uma boa definição de saúde mental?

VC: Ora bem, tentando poupar nas palavras [risos]... Osprocessos adaptativos da pessoa, ao nível da saúde mental,prendem-se com uma série de factores. Prende-se com factoresde ordem económica - isto é, é muito difícil alguém ter umprocesso adaptativo se está continuamente a sentir-se precárioou em risco, se vai ter trabalho ou dinheiro suficiente...

AV: Acho curioso o professor começar por aí. É um reflexo dasua experiência clínica?

VC: Em parte é devido à experiência clínica. Quando surgemestas temáticas de desemprego ou precariedade económica,rapidamente se instalam processos desadaptativos.Evidentemente que depois existem vulnerabilidades específicasde cada um. Mas existe um desespero que temos sempre deentender como algo ligado ao próprio tecido social. O factorcultural é também fundamental: como é que aquela pessoa semove na sua própria cultura - já que a desinserção é muitasvezes, também ela, desadaptativa. Vemos hoje muitadesinserção na nossa sociedade, muita falta de rede - ainda quese fale na internet como sendo "a rede", mas a rede no sentido dogrupo de pertença muitas vezes não existe. Existe isolamento.

AV: É interessante como se foca tanto na interdependênciaentre a pessoa e o seu meio.

VC: Sim, o passar para o sujeito a única razão para o processopsicopatológico eu não consigo entender. O sujeito vive eminteracção, vive em sistema de troca constante. E é tambémnesse processo de trocas que se inviabilizam, ou não, osprocessos adaptativos das pessoas.

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9 | BOOK I S H MAGA Z I N E

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9 | BOOK I S H MAGA Z I N E

K E Y - N O T E S P E A K E R S

Autor de mais de 400 publicações e 20 livros, John Norcross éum dos mais influentes psicoterapeutas e investigadores vivos.

Figura decisiva no movimento integrativo em psicoterapia,serviu como presidente da Society for the Exploration ofPsychotherapy Integration e da divisão de psicoterapiada American Psychological Association. O seu trabalho comoinvestigador foca-se, entre outros temas, na importância darelação psicoterapêutica e no impacto da "responsividade", istoé, a importância de adaptar a terapia ao cliente.

Professor na Brigham Young University e ex-presidente da Societyfor Psychotherapy Research, Michael J. Lambert tem mais detrês décadas de experiência como psicoterapeuta e investigador.

Os seus estudos pioneiros na eficácia psicoterapêutica e no usode "sistemas de feedback" em psicoterapia tornam Lambert umdos mais eminentes investigadores de saúde mental a nívelinternacional.

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A S F L O R E SD O M A L

por

Rafael Martinez Cláudio

"O Crime Descompensa"

Rubrica de Psicocriminologia

Excertos de poemas de “As Floresdo Mal” de Charles Baudelaire

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C h a r l e s B a u d e l a i r e e

J e a n n e W e b e r p o u c o m a i s

t e r ã o e m c o m u m q u e o p a í s

o n d e a m b o s n a s c e r a m .

Ela nasceu 8 anos depois de ele morrer, numa vila piscatória do norte de França. Faltava a Jeanne o

brilho parisiense que Baudelaire ostentava e a genialidade que o atormentava. Ele estudou no

Colégio Real de Lyon, ela lutava com os irmãos para comer (nos dias em que se conseguia erguer

após os espancamentos do pai). Pouco depois dos seus 18 anos, Baudelaire embarcou por um

deleite de álcool e opiáceos na companhia da sua amante de nome… Jeanne (Duval). Várias

décadas depois, foi na Paris, que Baudelaire já abandonara, que Jeanne (Weber) encontrou o amor

nos braços de um…. alcoólico. E todas as semelhanças acabam aqui.

Charles Baudelaire deixou-nos uma das mais brilhantes obras da poesia mundial. Jeanne Weber

deixou-nos apenas o registo de um dos episódios mais negros da história francesa.

Depois de fugir da miséria que foi baluarte de toda a sua infância, Jeanne chegou a Paris com a

esperança que o infortúnio teima em esmagar. Casou-se com um homem cuja principal ambição

era conseguir passar à garrafa seguinte. Conseguia-o várias vezes e Jeanne ficava feliz por ele, já que

não podia ficar por si. Deu à luz três filhos, dois morreram e a partir daí Jeanne começou a partilhar

as ambições do marido.

Pouco tempo depois tornou-se ama de duas crianças, filhas de uma vizinha, ambas apareceram

mortas enquanto estavam ao seu cuidado.

Em março de 1905, ficou a tomar conta dos seus sobrinhos Georgette de 8 meses e Suzanne de 2

anos. Quando a mãe deles chegou a casa encontrou Jeanne a massajar o peito do bebé

alegadamente para o salvar, verificou-se que a criança já estava morta. Nove dias depois, pediram a

Jeanne para que fosse tomar conta da outra sobrinha enquanto a mãe estava fora. Quando

regressaram a casa, os pais encontraram-na já sem vida.

“A tristeza insondável que me coube em sorteNunca viu um raio de luz cor-de-rosa forte

Vivo sozinho na companhiaDe uma noite chata e vazia”

 “O vinho pode encenar na taberna mais sórdidaO milagre do luxo

Tira dos seus vapores áureos de ruge mórbidoPórticos e Bruxos

Um sol enevoando-se num céu de vórtice”

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Por esta altura, Jeanne temendo que começassem a

suspeitar dela acabou por matar o próprio filho. Só foi

presa após a irmã a ter apanhado em flagrante a tentar

sufocar outro sobrinho. Foi presa mas libertada pouco

depois. Deambulou pelas ruas de Paris até que um

médico, que teve pena dela, a contratou para

empregada. Foi despedida horas depois quando a

apanharam a tentar sufocar um dos filhos dele.

“Raça de Abel, morderás o pó.O ferro será quebrado numa lança só.Raça de Caim, mais lamentos? Não.Assalta o céu e deita Deus ao chão.”

Durante uns tempos Jeanne prostitui-se na rua e dorme por lá também. É no conforto das pedras que se

vai envolver com Emile. Juntos arrendam um quarto de hotel onde vão viver com o filho dele. Num dos

poucos dias em que conseguiram que o vinho não os fizesse desmaiar, Emile encontrou Jeanne a tentar

sufocar o seu filho de dez anos.

“Ah! Raça de Abel, vossas tripas e mioleirasFarão um estrume de primeira.

Raça de Caim, se continuas assim,Tua desgraça não terá fim”

Foi detida. O tribunal considerou insanidade na prática dos crimes.

Foi por isso internada num asilo.

Dois anos depois foi encontrada morta,

com as duas mãos à volta do pescoço.

“Talvez um cristão preocupado com sua almaEnterre teu corpo de famaPor detrás de uma lixeira

Numa noite pesada de sombras”

“No teu caixãoA víbora víboras dá

E teias tece a aranha” 

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RELAXA QUEENCAIXAI n tegração e I nves t igação em Ps ico te rap ia

R U B R I C A

Pensar integração. Este é o desafio base.Mas como?Pensar diferente sobre cada pessoa,sobre cada caso, sobre cada tema e,sobretudo, cada momento. Mas então,como se conceptualiza uma caso nummodelo mental integrativo?

Parece existir, em cada terapeuta, algoque faz sempre mais sentido e que, porconseguinte, é foco inicial para aconceptualização de caso. Funcionacomo uma base de partida para aintegração, sendo ela já integrativa.

Estava a falar com uma colega sobre estetema exatamente. Para perceber isto,estávamos a pensar “que três áreas são omeu alvo de foco inicial em cada caso?”.Percebi que variava com a históriainicial, com a postura da pessoa, com aminha postura inicial, com o jogo não-verbal de cada e, também, com a formacomo me eram apresentados os factos.No entanto, consegui isolar três factoresque são, para mim, essenciais deidentificar no início de cada caso: 1)Grau de regulação da satisfação dasnecessidades psicológicas (ex. Vasco,2005); 2) Rigidez do funcionamento

Por T iago A . G. Fonseca

esquemático não-adaptativo (Fonseca& Vasco, 2015) e; 3) percepção decontrolo do próprio e dos outros, nasdiversas áreas de vida (Fonseca &Vasco, 2011). Estes são os trêsconstructos que associo a umaavaliação inicial no processoterapêutico e que fazem a ponte paratodas as outras questões, momento amomento.

Não é líquido que se faça assim umaconceptualização de caso. Cadaorientação teórica tem a sua definição,muitas têm várias até. Mas, seria desupor que não existisse umaconceptualização de caso definidaquando se é integrativo. E, realmente,não existe tal estrutura. O que existe,sim, é uma possibilidade infinita deoportunidades de percepção doindivíduo tendo em conta a suahistória, tendo em a conta a forma e oconteúdo que o fazem ser pessoa.Desta forma, é legítimo, e altamenteadaptativo, que cada um feche os olhose pense “o que é o meu foco quandoestou numa primeira sessão de umprocesso terapêutico?” e, reparem,todas as respostas estão certas.

Fonseca, T. A. G., & Vasco, A. B. (2015). Intra-Individual and Inter-Individual Dimensions of Schematic Functioning based on theParadigmatic Complementarity Model: A Qualitative Study. Presented at 8th European Conference on Psychotherapy Research ofthe Society for Psychotherapy Research – Klagenfurt, Wien.

Fonseca, T. A. G., & Vasco, A. B. (2011). Necessidade Psicológica de Controlo/Cedência: Relação com Bem-Estar e DistressPsicológicos. Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. Dissertação de Mestrado não publicada.

Vasco, A. B. (2005). A Conceptualização de Caso no Modelo de Complementaridade Paradigmática: Variedade e Integração.Psychologica, nº 40, pp. 11-36.

PASSOS EM VOLTA | 11

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PASSOS EM VOLTA | 12

Cumprimento-vos homo sapiens. Esperoque a passagem de um ano para o outrono calendário gregoriano vos tenhatrazido boas vibes. Pessoalmente nãoquero muito saber dos números que oPapa Gregório XIII instituiu enquantomapeamento universal datemporalidade no século XVI. Por falarem mapeamento da realidade, 'borafalar de epistemologia? Vai ter queser. É recorrente deparar-me comataques à axiomática científica doparadigma dominante provenientes dasconcepções da mente humana que maisse afastam das denominadas ciênciasduras. Argumentos do género:

“Os números não reflectemverdadeiramente a essência humana";ou "As ciências naturais partem depressupostos que também não podem serverificados. Por exemplo, como é quepodemos verificar cientificamente queorganizar leis universais com recurso àmatemática é de facto a melhor forma deexplicar a realidade?"

Que, por sua vez, conduz ao seguinteargumento:"Se os pressupostos das ciências duras nãosão demonstráveis empiricamente, entãosegundo os próprios padrões doparadigma dominante as suas estruturas

internas também são tão relativas quantotudo o resto.”

Estes argumentos são muito bonitos.Mas ouvir isto vindo, por exemplo, deum psicanalista - cujos axiomasenvolvem coisas tão verificáveis quanto“a etiologia das neuroses é sexual einconsciente” (Freud) - não deixa de serirónico. A verdade é que estes ataques àaxiomática de modelos teóricos novazio acabam por redundar nosolipsismo. De facto, apesar de séculosde acumulação de conhecimento emáreas tão diversas que oscilam entre afísica quântica e a antropologia, é umfacto que a mente humana ainda não“conseguiu sair de si própria”, namedida em que é impossíveldemonstrar com recurso a qualquerciência ou filosofia que existe umUniverso fora da consciência. Mas énecessário assumir que existe. Énecessário adoptar certos pressupostospara que possamos viver no dia a dia.Por exemplo, se entrarmos num cafépara consumir um pastel de nata e ummartini, é recomendável assumirenquanto verdadeiro que o empregadodo café existe mesmo. Caso contrárioapenas teremos a opção de fazer onosso pedido ao abismo. E eu garanto-vos que o abismo não possui nemmartinis nem pastéis.

O Solipsismo implica aInexistência de Pastéis

Os modelos teóricos também precisam destegigante passo de crença; não para fazerpedidos estranhos em cafés, mas paraproduzir conhecimento. É necessário assumiraxiomas não demonstráveis para quepossamos integrar a realidade naconsciência. É necessário criar uma ponteimaginária que passe por cima do solipsismo.Um solipsista acaba por ser irritante porqueele tem a capacidade de reduzir tudo aonada e ninguém tem a capacidade de lhefazer o mesmo. Mas isso apenas acontecepor um motivo: ninguém consegue reduzir osolipsista ao nada porque ele já é o nada! Osolipsismo é a bomba atómica dadialéctica. Destrói qualquer argumento,mas também destrói o próprio propósitode argumentar.

As ciências naturais tem que assumir opressuposto que o Universo lá fora existe eque de alguma forma temos a capacidade dechegar até ele. Mas a Psicologia tem que darainda mais um passo de fé! A Psicologia temque assumir que a consciência do outrotambém existe de forma semelhante à nossae que é possível produzir conhecimentocientífico sobre as experiências subjectivas. Eé este passo extra que cria o constanteconflito entre objectividade e subjectividadeque atravessa todas as sub-áreas dapsicologia. E que irá atravessar sempre; pelomenos até surgir algum tipo de tecnologiadigna de ficção científica que nos façapercepcionar as experiências subjectivas dooutro como percepcionamos o mundo físico.

E é este passo extra que integra o problemado significado na psicologia. Um físicoquântico quando quer emparelhar duaspartículas não precisa de se preocupar com osignificado subjectivo que as partículasatribuem à relação; nem como essesignificado pode influenciar o processocomportamental das mesmas e as suasrelações com o outro (esse problema nãosurge mesmo que o físico quântico emquestão se chame Carl Jung e a partículasubatómica Sabina Spielrein). Mas esseproblema surge ao psicólogo no contextopsicoterapêutico. E é importante que adiscussão desta delicada problemáticaepistemológica não redunde na meratentativa de destruição de modelos teóricos.Digo isto até porque o solipsismo implica ainexistência de pastéis.

Por José Candeias

O P I N I Ã O

Page 16: Passos em Volta - Edição 7 (Janeiro 2016)

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