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  • 8/3/2019 Passagem de Nvel

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    Rafael Jaime Sousa GonalvesPassagem de Nvel

    http://www.facebook.com/rafaeljaimesousa

    20-12-2011

    (Reviso terminada 25-07-2013)

    http://www.facebook.com/rafaeljaimesousahttp://www.facebook.com/rafaeljaimesousahttp://www.facebook.com/rafaeljaimesousa
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    Passagem de Nvel

    Final da tarde de domingo, comeava a escurecer, porm eu estava a 5 Km decasa, extremamente cansado, a bicicleta era a nica maneira de chegar a casa. A fome

    tornava o meu cansao mais cruel, sentia o sabor da barriga na boca, sentia-me quase

    a desmaiar. Apenas a gua que se esgotava me mantinha lcido.

    Sem outro remdio, continuei a pedalar. A 1 Km de casa os msculos das

    pernas comeavam a prender, fazendo-me pensar que a bicicleta estava mal

    lubrificada, ou ento que travava por si.

    Saltei da bicicleta para a estrada, olhei para a bicicleta, erguia-a no ar. Dei dois

    solavancos s rodas e vi as suas rodas rodar normalmente, irritei-me e pousei abicicleta e dei um murro no selim. Retorqui:

    Porque que ests a puxar tanto!?

    As rodas rodam livremente, no percebo!

    Com cara de cromo, a suspirar alto olhando para a bicicleta reparo que parei

    em frente a uma casa mdia, moderna, um andar apenas, contornada por uma curva

    fechada e que nas escadas dessa mesma casa estava uma rapariga da minha idade com

    o telemvel na mo. Parecia um fantasma que ali estava, silencioso. Esteve todo otempo a observar-me, se calhar, todo aquele tempo em que disse mil e uma asneiras e

    que mostrei ser bastante antiptico. Fiquei extremamente envergonhado, e pelo que

    me apercebi ela tambm, apressou-se a puxar pelo telemvel e a fazer qualquer coisa

    com ele, qualquer coisa que at to til como a minha presena naquela rua, quela

    hora, maldita hora!

    No sei com que rapidez subi para a bicicleta, e segui viagem, com as

    bochechas bem vermelhas. Ainda consegui reparar nos seus cabelos escuros, e no seu

    jeito, um pouco tmido ou talvez um pouco caracterstico da sua idade. No resto docaminho, pedalar era bastante mais fcil, a mente s pensava intrigada na situao

    que acabava de acontecer, de uma forma cansativa e insistente, enervante at:

    Que faria ela, quela hora, no Wall de entrada?

    Cheguei a casa, atirei com a bicicleta e dirigi-me a correr cozinha. Comi at

    me doer a barriga. Ainda fui ao facebook com o telemvel, mas acabei por no ver

    nada de notificaes nem mensagens, Entretanto escureceu. J no fim da ceia

    invulgarmente senti de novo o fraquinho pela bicicleta (talvez j no fosse s a

    bicicleta). Pedalei lentamente e com calma 1km, a partir daqui fcil de adivinharonde eu estava. Pois , estava eu de novo a chegar casa da moa. Por irnico que

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    seja, coincidncia ou no, ou talvez de propsito os traves falharam ali. Mesmo em

    frente casa mdia, na curva fechada. Apenas conseguia reparar no vulto da casa,

    nada de janelas iluminadas ou at um videoporteiro com iluminao. Sentado no

    selim, na berma da estrada, l estava eu espera de movimento, pacificamente, sem

    pressa. Talvez uma hora depois, ouvi algum desbloquear a porta da frente. Aquelacoragem inicial desapareceu toda, subi de novo para a bicicleta e segui discretamente

    estrada fora, antes que quem quer que estivesse a abrir a porta conseguisse ver-me a

    face.

    De manh, j em Barcelos, depois de uma viagem de autocarro animada pelos

    meus colegas e uma noite de sono um bocado mal passada, explicada pelos

    pensamentos masoquistas durante a noite, dirigia-me para a estao, coloquei os

    auriculares e caminhei pelo passeio. Caminhava lentamente em direco estao, via

    ao longo a sombra de um individuo que me parecia observar. Ao passar por ele,

    desviou-se de mim cedendo-me o passeio todo para eu passar. Este individuo fazia isto

    todos os dias! Sempre que me via, mostrava sinais de ficar nervoso e desviava-se.

    Nunca percebi o porqu disso. Nem me mostrava muito interessado em entender tal

    reaco. Nesse dia no consegui conter o riso, entrei na passadeira que se seguia ao

    passeio a rir-me daquela situao, auriculares no mximo, telemvel na mo com os

    fios dos auriculares a passar por baixo do polo, a sorrir da situao, sentia-me o maior.

    Nesse momento olhei novamente para ele com cara de gozo e vi-o a acenar,

    parecia que estava a gritar mas eu no entendia nada porque tinha os auriculares nos

    ouvidos. J no meio da passadeira olhei para a esquerda e para a direita, na esquerda

    estava um carro, na direita nada Espera, um carro na esquerda? No tive tempo de

    pensar, travou a fundo e atirou-me ao cho. Ca com dores.

    Nisto ouo um grito vindo de dentro do carro:

    - Me mataste-o!

    - Est s cado- diz isto uma voz mais madura, pelo menos pareceu-me.

    A porta do carro abriu muito rapidamente e a condutora chegou-se minhabeira e perguntou:

    - Ests bem rapaz? Ento entras na passadeira assim?

    - Ah, caraas devo ter algo partido!

    - No tens nada! Tenta pr-te de p!

    Nisto tento levantar-me e de facto consegui, mas apetecia-me mesmo ficar

    deitado para criar drama, mesmo s para chatear aquela senhora que desacreditava a

    minha dor, j de p ela disse:

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    - Oh, afinal era mais psicolgico que mais nada!

    - Psicolgico? Tenha cuidado com o que diz, no se esquea que eu estava na

    passadeira, ainda lhe tramo a vida!

    Soltei uma gargalhada e continuei para a estao:

    Ainda lhe tramo a vida, onde desencantei eu esta? Ria alto, entrei na estao

    ainda a rir. S mesmo eu para quase morrer e permanecer com boa disposio:

    preciso mais de que um carro para me matar! Dizia eu confiante e sentindo-

    me dono deste mundo e do outro. Sou como o vampiro da saga Twilight, at dobro

    autocarros. Neste caso um carro (um Citron Saxo), mas de metal na mesma no ?

    E o homem, que se desviava de mim, onde se meteu? Porm tambm ele

    parecia um fantasma, tambm se havia sumido!

    Ento voltei para a estao ofegante, bem-disposto mas ofegante. Sei l

    quantas voltas eu dei estao enquanto esperava no comboio, para alm dos

    comentrios que ouvia vindos de pessoas que me viram deitado frente do carro.

    O rio cvado indo, brilhante, magnfico, mas o comboio avana e o rio no

    eterno, tem apenas uns 100m de largura. O comboio torce-se quando passa pela ponte

    que parece que vai cair, e ento vejo as barracas de quem vive em poucos metros

    quadrados, de certeza que aquelas casas em tijolos nus so extremamente frias. Ento

    a a alegria de ver o rio desaparece

    O comboio segue marcha e vejo mais uma vez o velho Ferrari. H dois anos

    seguidos que via este veiculo ali parado, talvez estivesse avariado. A seguir o revisor

    pediu-me para lhe mostrar o passe. Observou-o e agradeceu.

    Campos verdes planos, uma igreja mdia, estradas a par da linha e casas e

    casas passando, tentando eu reparar nos seus pormenores, desde a cor do seu telhado

    quantidade de janelas. Cheguei ento a Nine, o comboio abrandou o ritmo. Ainda

    cheguei a reparar num co que estava sentado sobre a sua casota de beto, debaixoda ponte Sim, este co vivia debaixo da ponte, simplesmente lhe levavam a comida!

    Onde estava a famlia deste co? Quem eram os estupores? Que lhe davam de comer

    para o pobre co tomar conta de uns fardos de palha! Duas semanas depois, a rotina

    repetia-se e eu via aquele espetculo outra vez! O co com uma gamela suja, lama e

    comida. Aquilo irritava-me extremamente.

    Desta vez o comboio seguia atrasado, o que significava que iria ter que esperar

    45 minutos pelo comboio que segue para braga. Precisava de uma justificao para o

    atraso, para entregar l na escola. Desci as escadas de auriculares nos ouvidos, que

    terminavam no tnel que passava por baixo das vrias linhas de comboio, meio escuro.

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    Caminhei para o fim do tnel que tinha umas escadas que davam 1 linha onde se

    encontrava a bilheteira. Estava como surdo, apenas o som de uma msica me distraa.

    De repente, pareceu-me ouvir uma voz de rapariga, aguda como o miar de um gato a

    chamar:

    Rafael, Rafael

    Olhei ao meu redor, no vi ningum. Nesse momento, fiquei na dvida se foi

    uma rapariga que me chamou, ou ento foi um acorde da msica que me baralhou. O

    que ter sido? Vou mas tirar os auriculares, a msica anda a atrofiar-me.

    Subi as escadas e dirigi-me para a bilheteira e no estava l ningum, olhei para

    o bar, estava tambm vazio. Era a 1 vez que tal situao acontecia, sempre vi o bar

    cheio de gente. Porm tudo tinha aspecto de ter tido movimento minutos atrs. Um

    porttil sobre uma mesa, um po com chourio pousado num banco, at um cafmorno no balco eu encontrei.

    Nisto ouo outro comboio chegar, pelo som era um antigo regional. Ouvi-o

    travar de forma estranha e vi um enorme claro amarelado ofuscar as janelas.

    -Que se passa? Ser que algum foi atropelado?

    Corri em direco sada para perceber se algo tinha acontecido. Quando

    passei a porta ca para trs:

    O comboio ardia, alis era todo chamas! Os passageiros ardiam tambm, mas

    era como se no se apercebessem do que estava a acontecer, continuavam sentados,

    alguns a conversar, outros a sair do comboio ardendo.

    Estaria eu a ficar louco? Um dos passageiros saiu normalmente do comboio e

    caminhava ardendo, tal como ele a sua mala que segurava tambm ardia.

    Um dos passageiros no ardia, saiu do comboio e moveu-se lentamente at

    minha beira. Tentei levantar-me, mas senti uma forte dor no peito. O passageiro ou

    criatura estava perto de mim, vestia negro e possua vestes metlicas. O calor das suasvestes fazia o ar contorcer-se sua volta.

    Boa viagem! No tenhas medo! Disse com uma voz grave e imponente a

    criatura. Aproximou o seu dedo indicador da mo direita ao meu peito, sentia o calor

    do dedo sem ele me tocar, a camisola que trazia comeou a derreter. Ouvi um disparo,

    nesse momento a criatura agitou-se e comeou a empurrar o dedo lentamente para o

    meu peito.

    Agarrei o brao da criatura para tentar que ela parasse mas perdi as foras j

    com o pulmo direito furado.

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    Vi um beb ardendo tambm, sorrindo sarcasticamente num espao vazio e

    escuro, afastando-se de barriga para mimlentamente, sem pressa

    Desmaiei, ou se calhar at morri, nem sei.

    Estive como se anestesiado, durante um tempo que no fao ideia quanto foi.Quando comecei a sentir novamente estava deitado, estava tudo escuro, levantei-me

    e vi uma luz ao fundo da escurido, ouvi tambm um grito incessante de criana, 3

    vezes por minuto, talvez. (Provavelmente a luz que o ser humano tanto fala: a luz ao

    fundo do tnel) Algo que s poderemos ver depois da morte, penso eu.

    Porm, eu no sabia o que me esperava atrs daquela luz. Por isso no avancei.

    Antes pelo contrrio, comecei a correr no sentido contrrio fugindo da luz, eu queria

    voltar vida! Corria incansavelmente, mas a luz no se afastava nem a criana se

    calava. Era em vo correr.

    Sentei-me e pensei:

    No me despedi do meu irmo, dos meus pais, dos meus amigos! Tenho

    apenas 17 anos! Porque que eu tinha que ser diferente? Porque no pude casar e ter

    filhos? Porqu? Porque no posso viver de novo para dar o valor que os meus pais, os

    meus amigos tanto mereciam! Vo ficar a pensar que eram indiferentes para mim! Oh

    no!

    Estou a sentir frio, e cansao, ainda sou humano parece! Reparei que estavanu, mas isso no me interessava. Finalmente a criana deu trguas ao seu choro.

    Finalmente silenciou.

    Nisto ouo uma voz lenta e masculina:

    Sabes que ainda sinto o sabor das batatas que me deste na minha ltima

    noite? Levantei-me rapidamente e olhei para trs, no vi ningum.

    Av, s tu? Perguntei tremendo. (S podia ser ele, antes de morrer eu ajudei-

    o a comer, no hospital, precisamente batatas cozidas).

    Rafael, no faas essa cara. Sei que no ests a perceber o que se passar

    Disse calmamente a voz.

    Lembras-te quando me abenoaste? Quando permitiste ao primeiro animal

    entrar no purgatrio?

    1 Animal? No pode ser o meu av que est a falar! Pensei enquanto

    olhava em meu redor tremendo.

    Nisto aparece-me um gato vindo da luz. Olhei para cima e perguntei:

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    Mandas-me um gato? Quem quer que sejas aparece! Um gato? Isto gozo?

    No procures, sou eu mesmo Falou o gato.

    Tu falas?.

    Sim, Rafael, e no s. Ca por terra.

    Neste momento comecei a ver de noite, a minha cabea estava rente ao cho e

    eu corria super-rpido, corri para o porto da casa, atravessei-o pelos orifcios. Cheguei

    estrada, atravessei sem olhar. Ouvi um som extremamente forte e uma luz ainda

    mais forte, ou melhor duas luzes, dois faris em direco a mim! No soube o que

    fazer, entrei em pnico e permaneci no mesmo lugar. Perdi os sentidos e esteve tudo

    negro durante algumas horas. Naquelas horas eu consegui sentir, mas no consegui

    abrir os olhos, apenas pensamentos passados de vida de gato me passavam em flash.

    Finda a reviso dos melhores momentos de uma vida de gato, ouvi uma voz bastante

    familiar proferir as palavras:

    Deus, meu Deus! Abenoa este gato! Para que tambm ele possa viver no

    paraso!

    Ento voltei a ver o gato, voltei a ser eu. Permaneci calado.

    Sabes Rafael, ainda senti a terra que depositaste por cima de mim; ouvi-te

    chorar. Se no me tivesses abenoado, eu era apenas um animal e a minha vida teria

    acabado ali!

    Rafael, agora s tu que ests a ser enterrado provavelmente, j estou a ver os

    teus pais e amiguinhas agarrados ao teu corpo furado por uma bala de revlver, a

    lamentar a tua perda!

    Levantei a voz e perguntei:

    Uma bala de revlver? No foi a criatura negra que me matou?

    Ento o gato sorriu e falou (pela primeira vez vi um gato sorrir):

    Isso foi o que te pareceu!

    Comeou a afastar-se e disse solenemente:

    E para a prxima, no te rias de mim quando me desviar de ti no passeio! Isto

    , se houver prxima vez!

    O qu? Perguntei assustado.

    O gato desapareceu

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    Entrar na luz no era opo para mim, eu no podia morrer j!

    Ser que aqui no sinto fome?Em pouco tempo percebi que no

    Ento comecei a cantar msicas que me vinham cabea, cantei uma hora

    seguida tentando aliviar o nervosismo que a morte me causava.

    Rafael no ? Que nome amoroso, mas sei que te conhecem por Jaime

    Disse algum. Olhei minha volta e no vi ningum que pudesse ter falado, permaneci

    calado. Vi ento algum mover-se em minha direco. Poucos segundos depois

    consegui reparar em pormenores. O vulto revelava ser uma rapariga, mas tinha que se

    aproximar mais para eu perceber quem era. Entretanto percebi que era a rapariga que

    me fez chegar a casa envergonhado, corado. Que estava sentada nas escadas quando

    parei de bicicleta. No podia acreditar, corri dois metros frente dela e parei, voltei-

    me para ela e coloquei as mos frente da cintura. A rapariga tambm estava nua, talcomo eu. Mas no parecia muito incomodada com isso. Ento ela disse com uma voz

    ponderada, calma, meiga, e tpica de uma rapariga da sua idade:

    Lembro-me de ti, estavas a andar de bicicleta e paraste em frente minha

    casa.

    Ah pois foi Disse desconcentrado no que dizia, eu j no estava bem,

    sentia o corao a 200 hora.

    Ento ela comeou a aproximar-se enquanto eu recuava.

    No fujas Disse ela, sorrindo.

    Ento parei e esperei que ela chegasse minha beira. Ela disse:

    Sinto que ests alterado! Que se passa?

    Ento esticou a mo e colocou-a mesmo na minha zona genital. Gritei

    brevemente, olhei-a nos olhos, agarrei-a com todas as foras e coloquei-a no meu

    colo. Perdi a cabea.

    No fim, tentei que ela ficasse comigo mas logo me disse que a estadia dela ali

    era temporria, agarrou a minha mo, beijou-a olhando para mim e logo correu para a

    luz Observei-a correndo para a luz e tentei perceber o que era tudo isto: gatos

    falantes; sexo espontneo, selvagem at.

    O cho comeou a estremecer e abriu-se uma fissura no cho a metros de mim.

    Corri velocidade que podia deliberadamente, mas a fissura seguia-me. Senti o cho

    abrir-se por baixo dos meus ps, continuei a correr mas de nada valeu, acabei por cair

    no subsolo daquele local.

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    Estava a cair, sentia o vento a passar por mim, mas era tudo escuro e no sabia

    o que me rodeava. Senti o vento acalmar, senti-me a perder velocidade, o vento

    acalmou cada vez mais at que senti o cho. Desta vez no havia luz branca ao fundo

    do tnel. Ouvi novamente passos na minha direco mas desta vez no me pareciam

    ser de uma rapariga, mais pareciam um comboio. Vi uma luz amarela aproximar-serapidamente e a rodopiar minha volta de uma forma sufocante. A luz amarelada e

    quente parou, focou-me a face. A luz mais parecia o sol a 2 metros de mim, s

    consegui ver o contorno da criatura que estava diante de mim. Apercebi-me que era

    negra, que fumegava, pensei:

    a criatura da estao, quando estive em Nine!. Gritei:

    agora que vais acabar o servio? Vais matar-me de vez?

    A criatura aproximou-se e encostou a sua cara minha, senti logo o calor de oseu corpo:

    Cala-te humano estpido e pobre, vais arder nas chamas, onde ters dor,

    choro e ranger de dentes!

    Onde j ouvi eu isso! Mata, sem piadade, monte de ossos! disse eu

    agarrando uma placa metlica da armadura da criatura.

    Riu-se, a criatura.

    Agarrou-me por uma perna e arrastou-me at qualquer stio, pareceu-me

    passar por uma porta. A vi algo, havia um novo local:

    Todo o solo eram chamas, mas ao centro havia uma montanha aguda que cuja

    ponta era coberta por nuvens. A criatura continuava a arrastar-me, passei arrasto

    pelas pessoas que padeciam no inferno, gemendo, submetidas a trabalhos forados

    enquanto o cho ardia, os ps nem pareciam existir. A sua forma era como carne viva,

    negra, frita, e torrada de tanto assar.

    A criatura deixou-me porta de uma carruagem puxada por dois unicrnios. Ospassageiros da carruagem tinham aspectos mais saudveis e acenavam para que eu

    entrasse. Fiquei duvidoso, no queria deixar-me levar pelo primeiro impulso que me

    surgia. J os que padeciam, quando me viram aproximar da carruagem suspenderam o

    trabalho e fixaram em mim o olhar. Corri para a carruagem, porm eles tambm.

    Vinham em minha direco gritando:

    No te salvars, seu filho da p**a! Seu pecador! s como ns!

    Ento a criatura retirou de baixo da armadura um chicote e ergueu-o no ar,

    formou lano agitando em forma de S e de seguida, chicoteou-os a todos, com umnico golpe. Entrei na carruagem e ela partiu.

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    A carruagem comeou a mover-se, lentamente. Ali o tempo no era

    importante, ningum tinha pressa para nada. E todos sorriam de uma forma quase

    doentia. Cada vez que a carruagem parava os unicrnios rugiam o nome de quem

    deveria sair. Esperei pela minha vez, acabei por ficar com um senhor de barbas na

    carruagem. Ele olhou fixamente para mim e disse:

    s o prximo a sair, jovem rapaz, espero voltar a ver-te em breve.

    Respondi: no sei quem voc , mas tambm espero voltar a v-lo.

    Vais ver, no te preocupes, Sou Simo Pedro, a quem jesus, filho de Deus,

    entregou as chaves do cu.

    Nisto disse: No acredito, agora que vou ser julgado?

    Ainda cedo, jovem rapaz

    A carruagem parou, ento Pedro disse-me que seria ali a carruagem que eu

    deveria sair. Sa, em frente uma porta continha escrito:

    A mensagem estava l, naquela rede social que tanto veneram. s um sortudo,

    servo a quem deus perdoou, entra!

    Entrei e fui puxado por uma enorme rajada de vento.

    Ouvi cnticos solenes e tudo ficou claro, senti-me a acordar de uma noite de

    sono. Comecei a ouvir rezas, gente gritar, choros. Lentamente abri os olhos e vi duas

    tampas fecharem-se por cima de mim, e a luz do dia a ser interrompida por portas de

    madeira, almofadadas. Meti a mo antes de se fecharem e senti a mo ser apertada,

    quase esmagada. Gritei com todas as foras. Ento as tampas abriram-se e percebi que

    estava rodeado de gente. Estava no meu prprio funeral! Uns cinco desmaiaram, uma

    multido correu rua abaixo. Todos gritavam. Levantei-me do caixo e corri atrs deles.

    O padre j fugia ao fundo da rua segurando a bblia.

    A minha escola inteira estava l. Abracei os meus pais que nem reagiram, corri

    para junto do meu melhor amigo, que viajou de longe para permanecer no meu

    funeral.

    Disse-lhe: Ento Victor!? Os homens no choram! Eu estou aqui! Pensavas que

    te livravas de mim to cedo? Ainda temos muitas midas para engatar meu caro!

    Ele, porm no conseguia falar. O meu irmo chegou-se lentamente e

    perguntou:

    Rafael s tu?

    Quem que querias que fosse? Retorqui eu.

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    Ricardo, leva-me para casa, j no aguento estar aqui, temos que falar, no

    tarda nada est a a comunicao social.

    Antes de entrar para o carro do meu irmo, disse em voz alta:

    Obrigado, obrigado mesmo por terem vindo ao meu funeral, mas a minhahora ainda no chegou!.

    O meu irmo quase no conseguiu arrancar o carro, todos me queriam ver de

    perto, alguns at filmavam. Deixou o carro ir duas vezes a baixo e quando arrancou

    pregou primeira a fundo.

    Estava a dar na rdio que um jovem de 17 anos tinha morrido na estao de

    nine:

    A aldeia de nine volta a sofrer um horror, depois da morte de uma famliainteira, em que o pai assassinou a sua filha de oito anos e sua mulher, um rapaz de 17

    anos assassinado com um tiro no peito. Ao que a TSF conseguiu apurar, ocorreu um

    assalto estao e a vtima nem se apercebeu da presena dos assaltantes. Acabou

    morto juntamente com um senhor de idade que se encontrava na casa de banho da

    estao. Os assaltantes foram detidos ainda na freguesia de Viatodos.

    Quando ouvi isto, tirei a camisola rapidamente, e reparei que j no existia

    chaga nenhuma no meu peito. Foi como se nada tivesse acontecido.

    Rafael consegues explicar-me como ests aqui comigo? Como sobreviveste?

    Tu foste autopsiado!

    Sim, estive do lado de l, mas isso depois conto-te!

    Tens o porttil aqui no carro? Perguntei aflito.

    Sim tenho, mas para qu?

    Tenho que ir ver as mensagens.

    O vcio ainda continua depois de quase morto?

    Enquanto contava tudo ao meu irmo liguei o computador e fui ver as

    mesnagens, encontrei l uma que pedia socorro, parecia spam:

    Ajuda-me! No sou capaz! (enviada 2 dias).

    O perfil dela tinha sido removido, ento acedi ao do irmo. Descobri de onde era

    natural a sua famlia.

    Ricardo, vamos para Vila Frescanha!

    Tu que mandas morto vivo! Disse ele sorridente.

  • 8/3/2019 Passagem de Nvel

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    Perguntamos aqui e ali onde vivia um tal Rui Miranda e acabamos por

    encontrar a casa. Toquei campainha, esperei, esperei e voltei a esperar.

    Mas no desisti de tocar. De repente a porta abriu-se e um sujeito saiu de

    rompante, contorcendo-se:

    Que deseja, senhora? Perguntou ele.

    O teu pai? Perguntei, srio.

    Ahahahaha, o meu pai, onde ele anda! Disse rindo-se. De repente ficou

    srio e disse:

    Para quereis saber dele? Quem sois vs, imbecis?

    Devo dinheiro ao teu pai, e quero pagar-lhe, ele pagou-me bastantes bebidas.

    Ai sim? Com essa idade j bebes? Perguntou o indivduo.

    Sim, um vcio que eu no consigo largar Fazia um esforo por no me rir

    enquanto enganava o pobre moo.

    Queres saber onde est o meu pai? Ento 30 euros para c! A vida est difcil

    amor!

    Olhei para o meu irmo como quem:

    V l, paga!

    O meu irmo sorriu e disse:

    Eu levo-lhe os 30 euros, tenho-os aqui no bolso

    O meu irmo abriu o porto, avanou pela casa do drogado e aproximou-se

    dele. Puxou pelas notas e disse:

    J te vou dar os 30 euros!

    Olhou para mim, sorriu e disse ao drogado:

    Pega l o dinheiro!

    Nisto, sem eu contar, d um soco ao drogado e atira-o ao cho:

    Meu filho da p**a, ainda queres os 30 euros? Diz-me onde est o teu pai ou

    ento vais pintar o porto da entrada de vermelho!

    Est na priso de Viana! Disse o marginal muito rapidamente.

    Que no esteja l! Volto a tua casa e engoles a seringas!

  • 8/3/2019 Passagem de Nvel

    13/17

    Como se chama ele? Perguntei eu ao marginal.

    Joaquim Miranda!

    O aspecto do meu irmo intimida qualquer um. Quando voltamos para o carro

    olhei para ele e disse:

    s mesmo meu irmo! No te trocava mesmo por nada!

    Porm ele respondeu-me sorrindo:

    Nem por uma mida?

    Ai, isso j outra histria! Retorqui eu e sorri.

    Numa hora chegamos priso de Viana, na recepo dissemos que queramos

    ver o recluso Joaquim Miranda. S pude entrar eu, mandaram-me esperar na sala devisitas, sentado numa mesa. O Joaquim chegou e perguntou olhando desconfiado:

    Quem o senhor?

    Sente-se, trago-lhe um recado disse eu calmamente.

    E que recado esse, e de quem?

    Antes de mais quero que saiba que a sua filha est bem disse eu

    calmamente.

    A minha filha? Oqu? Mas

    Calma! Gritei. Pode no acreditar, mas eu estive, ainda hoje no purgatrio,

    amanh, ou ainda hoje vai ver a minha cara na televiso, a sua filha pediu-me para lhe

    dizer que o perdoou por ter morto a me dela, a sua esposa. Ela est feliz, agora est.

    Ouvindo isto o recluso comeou a gritar e a comportar-se de maneira

    desumana. Os guardas agarraram-no pensando que me iria fazer mal. Levantei-me e

    sa, entrei no carro e fui para casa. Na freguesia do Couto, no se falava noutra coisa, enas freguesias vizinhas provavelmente tambm. porta da minha casa estavam

    dezenas de pessoas, algumas eu nem conhecia, com flores na mo, crucifixos e teros.

    Meu filho milagreiro d-nos a tua bno! Suplicavam senhoras de idade,

    ajoelhando-se enquanto eu passava.

    Vocs pensam que sou quem? A santinha da luz? No sou milagreiro nenhum!

    Sou humano, tal como vocs! Caminhei para dentro de casa rindo-me.

    No jornal da noite, Couto S. Tiago era a freguesia mais falada de todo o pas:

  • 8/3/2019 Passagem de Nvel

    14/17

    Rapaz de 17 anos ressuscita em pleno funeral Era a notcia dos 4 canais.

    Contei tudo aos meus pais e vizinha que veio comer a minha casa como forma de

    comemorar a minha ressurreio.

    De manh, levantei-me com vontade para um novo dia. Era tempo de

    aproveitar a segunda oportunidade que tinha para desfrutar da vida, quem sabe, daqui

    para a frente no seria melhor.

    Ao sair para apanhar o autocarro de manhzinha fui surpreendido por dezenas

    de jornalistas que me adornavam a porta de casa. Seguiram-me at paragem do

    autocarro enquanto me faziam perguntas. Incansveis, repetitivos, queriam-me ouvir

    dizer algo a todo o custo, at que me apeteceu dizer algo:

    Espero que o meu testemunho sirva para que aqueles que no acreditam no

    cu saibam que ele existe mesmo! magnfico, mas para quem merece. Nistochegou o autocarro e finamente tive sossego. Sentei-me no primeiro lugar do

    autocarro e vi toda a gente olhar-me fixamente e comentar baixinho.

    -Olha o tal, o tal rapaz que ressuscitou!

    J em Barcelos, passei pelo homem que se desviava de mim e novamente se

    desviou de mim. Abrandei o passo, virei-me para trs e perguntei-lhe:

    Gato, agora no falas? Para que te desvias? Resmunguei.

    De onde saiu este paneleiro? Libelinha duma fisga a chamar-me gato! No te

    conheo de lado nenhum moo! Pe-te a andar antes que me chateie!

    Continuei para a estao, envergonhado mais valia estar calado!

    Apanhei o comboio, ele seguia lentamente, mas desta vez no pude apreciar a

    paisagem porque os vidros estavam completamente tapados pela tinta do lado de fora

    dos comboios pelos grafitis feitos na noite anterior. O bar de nine estava fechado.

    Na escola, todos me olhavam de canto. Cheguei ao ponto de dizer a uma

    rapariga na escola:

    Queres uma fotografia minha? Olha que dura mais tempo! Disse eu em tom

    de gozo.

    Para que que eu iria quererfotos de mortos vivos? Perguntou ela, irritou-

    me mesmo.

    Aproximei-me dela, encostei a boca ao ouvido dela e disse baixinho:

    Para te divertires, logo noite!

  • 8/3/2019 Passagem de Nvel

    15/17

    Porco!

    Alguns dias depois, era novamente domingo outra vez e nada melhor do que

    pegar na bicicleta e dar um passeio, tal como no 1 dia desta histria.

    Podes sentir que ningum gosta de ti, podes sentir que s uma bosta, atpodes sentir que no vale a pena continuar a viver. Desculpa, mas se pensas isto ests

    enganado. Eu c prefiro pensar que quem no gosta de mim, tem bom remdio. A

    minha vida, a tua vida, s uma. H-que aproveit-la e contribuir para que os outros

    tambm a possam aproveitar, serem felizes tambm. Afinal, ser feliz passa por fazer os

    outros felizes!

    Quando passei pela casa onde vivia a rapariga que esteve comigo no

    purgatrio, abrandei a bicicleta e passei mais devagar.

    Ela no estava l, parei a bicicleta, peguei numa chave 15mm e desapertei a

    porca da roda da frente, apertei-a, voltei a desapert-la. Fazia isto de modo a empatar

    tempo e tentar que ela passasse por ali.

    Consegui, ela por fim apareceu subitamente. No senti a porta de sua casa

    abrir-se.

    Queres ajuda com a bicicleta? J a segunda vez que ela tem problemas em

    frente minha casa! Disse ela com a mesma voz que me falou no purgatrio, uma

    voz entusiasmante e lmpida.

    Mesmo! Coincidncias! mesmo estranho! A estrada aqui deve estragar as

    bicicletas! Disse eu manhoso.

    Eu c no acredito muito nas coincidncias e sorriu.

    Eu deixei de acreditar, acredita disse eu com o pensamento ausente. No

    conseguia perceber se ela se lembrava de aquilo que se tinha passado no purgatrio, a

    reaco dela era perfeitamente normal e no mostrava sinais de nervosismo ou mal-

    estar. Estava normalssima. Por tudo isto tive que perguntar:

    No sonhaste com nada h uns dias? Perguntei srio.

    Eu? No! Nada de relevante porqu? - Perguntou.

    Estaria agora a fazer figura de parvo provavelmente agora. Fiquei calado a olhar

    para a moa e no consegui dizer mais nada. Entristeci-me e apertei a porca. Subi para

    a bicicleta e disse:

    Vou andando, at uma prxima vez! E comecei a andar, afastando-me.

    Ficou a olhar para mim e sorriu. Disse surpreendida:

  • 8/3/2019 Passagem de Nvel

    16/17

    At prxima!

    Apenas me afastei dela trs metros. Parei, e voltei para o p dela lentamente.

    (neste momento no me ocorria nada para dizer, mas no podia ficar sem saber se de

    facto ela tambm esteve no purgatrio ou se apenas foi uma iluso criada por algum

    ser, ou mesmo pela minha prpria imaginao. Seria Loucura? No. Loucura seria eu

    ficar sem saber o que realmente se passou, ficar na dvida. Se o fizesse passaria o meu

    tempo a pensar naquilo e acabaria por l voltar de qualquer das maneiras. Porm,

    amanh sempre tarde de mais.

    Permaneci calado a olhar para ela. Ela aproximou-se e colocou a mo sobre o

    meu ombro. Perguntou:

    Sim? Passa-se alguma coisa para alm da bicicleta?

    Sim, na verdade at passa

    Nisto ouvimos uma travagem a fundo mesmo atrs de ns. uma carrinha

    branca, vidros fumados. Ficamos simplesmente a olhar para a carrinha admirados. Mal

    sabamos que o melhor era fugir, ou mesmo nem estar ali. Fomos metidos dentro da

    carrinha como ces selvagens que tigres soltos na cidade que ameaam a segurana

    das pessoas. Logo dentro da carrinha dois tipos amordaaram-nos e um deles atou-nos

    as mos e os ps. Para alm do leno em frente ao nariz, vi o olhar de sofrimento da

    Ins na minha direco, antes de ficarmos inconscientes.

    O facto de eu ter voltado vida chamou inevitavelmente muitas atenes.

    Muitos queriam ver-me morto, queriam desacreditar todo o acontecimento vivido.

    Quando acordei j no estava na mesma carrinha, esta parecia ser mais antiga,

    sendo que no tinha acabamentos modernos no seu interior, mas Ins continuava

    comigo. J se encontrava acordada quando comecei a recuperar os sentidos.

    Eu estava preso grade que separa os bancos bagagem, j Ins estava presa

    ao gatilho da porta. Ouvamos barulho nossa volta, um veculo parecia rondar a

    carrinha. Um momento depois sentimos um enorme estrondo contra a carrinha. Acarrinha moveu-se um pouco e conseguimos perceber que iriam empurrar a carrinha

    para um precipcio. Tive a certeza quando vi um dos raptores destravar a carrinha e

    desengat-la. Era uma questo de tempo. A morte estava a escassos dois metros.

    Entre os gritos e gemidos de Ins, disse:

    Ins! Olha para mim! Olha! Disse eu berrando. Ela parou calada, no

    deixando de olhar frequentemente para o pra-brisas vendo o precipcio aproximar-se.

    J passei por isto, calma! Gritei.

    O melhor, est para vir!

  • 8/3/2019 Passagem de Nvel

    17/17

    FIM