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países da América Latina, bem exemplificadas em umapublicação recente2, testemunham a procura de novosparadigmas que sirvam como base a um programa teóricomais abrangente para a epidemiologia.

A geografia vem, de modo análogo, de um contatointenso e prolongado com a teoria dos sistemas e osmétodos de análise quantitativa, derivados da sociologianorte-americana3. Surge deste contato a corrente autode-nominada new geography ou theoretical geography, que, apartir da década de 50, exerceria enorme influência nosmeios acadêmicos, especialmente sobre as investigações emgeografia física. No Brasil, esta influência pode ser avalia-da, por exemplo, pela extensa produção teórica e empíricade A. Christofoletti. Em meio à crise da teoria dos sistemas,a geografia também se viu impelida a uma reconstruçãoteórica, à procura de paradigmas que fundamentassem umadefinição mais precisa de seu objeto de estudo, o espaçohumano. Este espaço é, necessariamente, produto de umasérie de decisões que orientam sua organização segundo oscritérios hegemônicos em uma dada formação econômico-social. Por isso, este objeto de estudo presta-se a enfoquesinterdisciplinares - envolvendo a sociologia, a história, aeconomia, o urbanismo - que exigem da geografia um per-manente intercâmbio conceitual. Uma boa apreciação datrajetória recente de geografia encontra-se em uma obradidática, suscinta mas esclarecedora, de Antônio Carlos R.Moraes11; cabe aqui somente salientar alguns aspectos doprograma teórico da geografia crítica. A geografia nova, ougeografia crítica, não se restringe a elaborar, com maior oumenor grau de sofisticação metodológica, meras descriçõesda paisagem; ocupa-se, prioritariamente, em compreenderos processos sociais e econômicos subjacentes às formas deorganização espacial que se analisam, empregando associa-damente métodos e conceitos de diversas ciências sociais.Inclui entre seus objetivos, por isso, a organização decampos de investigação interdisciplinar. O papel de pesqui-sadores brasileiros neste processo de renovação da geografiaé extremamente relevante, destacando-se, especialmente, avasta obra de M. Santos13,8.

EPIDEMIOLOGIA E GEOGRAFIA: PRIMEIRASAPROXIMAÇÕES

O estudo das relações entre o homem e o meio, a quepoderíamos chamar de geografia, é empreendido por nume-

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rosos pensadores desde, pelo menos, a Antigüidade Clássi-ca. A descrição de lugares, das paisagens e das sociedadeshumanas nelas instaladas marca - por exemplo - a História,de Heródoto5. Se definirmos estas obras como geográficas,talvez pudéssemos definir Dos ares, dos mares e dos lu-gares, de Hipócrates, como a primeira obra conhecida atratar de geografia médica. Porém este rótulo é muitoimpreciso: não podemos identificar estas obras, de conteúdomuito variado e análise pouco sistemática, à geografiacientífica tal como a conhecemos hoje. A história dageografia como ciência inicia-se em fins do século XVIIIe início do século XIX, quando passa a adquirir certaunidade temática e sistematização; talvez pudéssemosintegrar esta produção anterior à "pré-história" da geogra-fia11.

Os contatos iniciais entre a geografia científica e aepidemiologia, ambas ainda sob a influência predominanteda tradição positivista do século XIX, resultou nos primei-ros trabalhos sistemáticos de geografia médica, voltados àdescrição minuciosa da distribuição regional das doenças,empregando amplamente recursos cartográficos. Resultaramdeste contato os monumentais atlas de geografia médica dasegunda metade do século XIX, que orientavam obras desaneamento ambiental e, especialmente, fundamentavammedidas preventivas a serem tomadas pelos exércitos eu-ropeus em caso de ocupação militar de territórios insalubresdo mundo tropical. Uma revisão interessante (ainda quecom espírito crítico pouco aguçado e excessivamente im-pregnada pela new geography) encontra-se em uma obracoletiva, organizada pelo geógrafo inglês McGlashan9, mastalvez nada sintetize melhor seus propósitos que o títuloatribuído pelo geógrafo francês Yves Lacoste a uma de suasobras mais polêmicas: A geografia serve, antes de maisnada, para fazer a guerra. Também na segunda metade doséculo XIX surgem os tratados de climatologia médica,elaborados com maior rigor científico que procuram cor-relacionar a ocorrência das doenças, direta ou indiretamen-te, com aspectos da geografia física, em especial com asvariações climáticas. Estes tratados serão amplamentereferidos por Max. Sorre na elaboração de sua geografiamédica.

Os primeiros esforços de aproximação entre a geografiae a epidemiologia resultaram, essencialmente, em um inter-câmbio de métodos de análise (cartografia, bioestatística),sem haver, no entanto, o desenvolvimento de conceitos que

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grafia médica que permitisse investigações de naturezainterdisciplinar. A semelhança entre ambos os esquemasconceituais é evidente, especialmente porque ambos partemde uma interpretação ecológica das relações entre o homeme o meio.

Mas, diferentemente de Sorre, as idéias divulgadas porPavlovsky são muito debatidas no Brasil. O mérito maiorpelo atual revigoramento deste debate cabe, certamente, aL. Jacintho da Silva, que elabora uma análise extremamentefecunda e original sobre a evolução da doença de Chagasno Estado de São Paulo com base em uma reformulaçãocrítica do conceito de foco natural das doenças19. Seutrabalho teórico consiste em reelaborar o esquema concei-tual de Pavlovsky à luz da geografia crítica (inspiradoespecialmente por M. Santos), radicalizando o sentidooriginal da noção de foco antropúrgico (isto é, criado pelaação humana sobre a natureza) e destacando a utilidadedeste conceito para expressar a determinação social dasformas de ocupação do espaço e de distribuição das doen-ças neste espaço transformado pela ação humana. A inspi-ração ecológica de Pavlovsky é, portanto, reformulada emtermos de uma relação homem-meio, cuja análise recai noâmbito das ciências econômicas e sociais.

Por que apresentar hoje as idéias de Sorre, que tão poucoimpacto tiveram sobre a epidemiologia no Brasil? O obje-tivo maior desta comunicação é inspirar investigaçõesulteriores, que reelaborem o conceito original de complexopatogênico de modo a torná-lo um poderoso instrumento deanálise e de integração entre as ciências do espaço (entre asquais a geografia) e a epidemiologia.

O COMPLEXO PATOGÊNICO DE MAX. SORRE

Les fondements de la géographie humaine, em cujoprimeiro tomo Sorre lança as bases teóricas de sua geogra-fia médica, é um dos empreendimentos intelectuais maisnotáveis da geografia neste século, que estabelece inúmerospontos de contato entre a geografia e as ciências sociais ebiológicas, contato que marcaria a obra geográfica deSorre10. Nos limites teóricos impostos pela abordagemecológica das relações entre o homem e o meio, que marcaa obra de Sorre, o conceito de complexo patogênico ampliao poder analítico e explicativo de uma geografia antesrestrita quase exclusivamente à descrição do meio físico.

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Sua formulação parte do estudo das doenças infecciosas eparasitárias, que alcançara enorme desenvolvimento nosprimeiros anos deste século:

Na complexidade das relações que interessam a uma sóvez ao biólogo e ao médico, procura-se uma noção sin-tética capaz, de orientar as pesquisas do geógrafo. Ainterdependência dos organismos postos em jogo naprodução de uma mesma doença infecciosa permiteinferir uma unidade biológica de ordem superior: ocomplexo patogênico. Compreende, além do homem e doagente causal da doença, seus vetores e todos os seresque condicionam ou comprometem sua existência. (...)Tendo por base esta noção é que nos propomos afundaro capítulo mais vasto da geografia médica, o das doen-ças infecciosas; sem ela, este nada seria senão umacoleção de fatos desprovidos de ligação e de alcancecientífico.22

Os complexos patogênicos recebem o nome da doença aque se referem: fala-se, portanto, em complexo malárico, dapeste, da doença do sono. Salienta-se não se tratar de"séries lineares reduzidas a um número limitado de termos",mas sim de "grupos que se enredam de maneira muitas ve-zes inextricável". Na abordagem ecológica de Sorre, oscomplexos têm sua vida própria, sua origem, seu desenvol-vimento e sua desintegração - sugerindo uma análise epi-demiológica evolutiva, de cunho histórico. O papel dohomem na gênese e desintegração dos complexos não serestringe à sua atuação como hospedeiro ou vetor dasdoenças (ou seja, ao plano biológico); Sorre ocupa-se coma ação humana de transformação do ambiente e com seupossível impacto epidemiológico, mas subordina a análiseda atividade humana de transformação do espaço à suanoção ecológica de gênero de vida21. Sua análise sobre agênese do complexo da febre amarela no Brasil é exemplodeste procedimento:

Nas primeiras décadas deste século, quando a febreamarela em sua forma urbana estava em vias de extinçãono litoral brasileiro, chamava atenção a febre florestalnos estados do Sul, Rio, Minas, São Paulo. Assinalava-sealguma epizootia em macacos Allouata em uma época emque os desmatamentos estavam em plena atividade e oshomens não apresentavam imunidade alguma aos casos

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de febre amarela que sobrevinham nas cidades. Ora, comas crises econômicas, havia menos homens; menosmacacos e menos mosquitos também, em conseqüência dodesmatamento. E a doença propagou-se rapidamente,acompanhando o progresso dos transportes. A epizootiaprecede a epidemia. Os macacos Allouata calaram-secomo que estupefatos por uma mortalidade incomum eseu silêncio impressionou as populações vizinhas. Eisportanto uma doença que apareceu depois de pouco tem-po; hoje ela ameaça os países quentes do velho mundo.22

Nos Fondements Sorre exemplifica seu método, des-crevendo os complexos patogênicos da malária, da doençado sono e da peste. No capítulo Geografia médica eecúmeno, apresenta um amplo quadro da geografia médicado Mediterrâneo reunindo um volume impressionante deinformações biológicas e geográficas, incluindo dadosdetalhados sobre o clima e empregando largamente recursoscartográficos. Seu conceito de complexo patogênicopermite-lhe abordar grande variedade de doenças infeccio-sas e parasitárias, ao passo que a teoria de Pavlovsky selimita ao estudo das doenças de animais transmissíveis aohomem, que teriam seu foco natural (em geral um reserva-tório silvestre). A malária humana, por exemplo, que Sorreestuda com certo pormenor, é uma doença sem foco naturalnão-humano (à exceção, talvez, das infecções por Plasmo-dium malariae, cuja transmissão do macaco ao homem estásob intensa investigação atualmente), à qual não se poderiaaplicar a teoria de Pavlovsky.

Na perspectiva ecológica de Sorre, as relações entre ohomem e o meio compreendem a ação da natureza (meiofísico e biológico) sobre o homem e a ação humana, mode-lando a natureza. Esta abordagem está bem desenvolvida,também, no livro em que Sorre analisa as migrações huma-nas de uma perspectiva geográfica e sociológica23. Suadiferença em relação à geografia crítica - particularmentepelo fato desta abandonar o paradigma sistêmico - reside nadefinição de seu objeto de estudo. A geografia crítica es-tuda o espaço humano, o espaço construído pelo homem. Enão há espaço físico isento de ação do homem organizadoem sociedade, indiferente às decisões espaciais humanas. Abase explicativa da geografia crítica não está na elucidaçãode uma teia infindável de influências recíprocas entre ohomem e o meio, mas especialmente nas necessidades

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históricas, sociais e econômicas que produzem um determi-nado modo de organizar o espaço.

A idéia de ação humana organizando o espaço não é es-tranha à noção de complexo patogênico: trata-se somente deaprofundá-la, de recolocá-la a serviço de uma epidemiologiaque procura compreender os processos subjacentes aos fe-nômenos que analisa. Tomá-la, em suína, como aquilo aque se destinava originalmente: o complexo patogênicocomo um conceito sintético, de interação, sujeito àsreformulações críticas que se tornarem necessárias à medidaque se aprimoram as técnicas e os conceitos empregadospela geografia.

Some essential features of the pathogenic complexconcept formulated by the French geographer Max.Sorre are presented, aiming at integratingepidemiological and geografic studies.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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22 - SORRE, M. Les fondements de la géographie humaine.Primeiro tomo: Les fondements biologiques (Essai d'uneécologie de l'homme). 3a ed., revista e ampliada. Paris,Armand Colin, 1951.

23 - SORRE, M. Les migrations des peuples. Paris, Flammarion,1955.