parte 4 - colaboração científica

44
PARTE 4 Colaboração Científica

Upload: vanngoc

Post on 07-Jan-2017

228 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: Parte 4 - Colaboração Científica

a s t r o n o m i a e g e o l o g i a

107

P A R T E 4

Colaboração Científica

Page 2: Parte 4 - Colaboração Científica

108

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

Page 3: Parte 4 - Colaboração Científica

109

louis Cruls e o Observatório astronômico no rio de JaneiroC h r i s t i n a H e l e n a B a r b o z a

O engenheiro e astrônomo louis Ferdinand Cruls nasceu no dia 21 de janeiro de 1848, em Diest, cidade situada no la-

do flamengo da Bélgica. Filho de Philippe augustin guillaume Cruls e de anne elizabeth Jordens, Cruls completou os estudos superiores na Universidade de gand, onde travou amizade com jovens brasileiros, que o incitaram a visitar o Brasil. Foi assim que, contando com o apoio do pai, Cruls embarcou para o rio de Janei-ro em setembro de 1874, interrompendo a carreira de engenheiro militar na Bélgica.

graças à rede de amizades estabelecida ainda na europa, alar-gada pelo convívio estabelecido com Joaquim Nabuco durante a travessia do atlântico, Cruls foi recebido pelo próprio imperador, D. Pedro II, e pelo então Diretor-geral do Ministério da agricul-tura, Comércio e Obras Públicas, Manuel Buarque de Macedo, que lhe arrumou trabalho na Comissão de Triangulação do Mu-nicípio Neutro, ainda no final de 1874.

Nessa oportunidade ele não apenas desenvolveu um estudo comparativo sobre os métodos empregados na determinação de posições geográficas por triangulação, publicado em maio de 1875 por uma tipografia de sua cidade natal (Discussion sur les mé-thodes de répétition et de réitération employées en géodésie pour la mesure des angles, 1875), como também ganhou a confiança de emmanuel liais, diretor do Imperial Observatório do rio de Janeiro, que logo convidou-o a ingressar nessa instituição, em de-zembro de 1877.

Foi também durante essa etapa inicial de sua carreira no Brasil que Cruls conheceu Maria Margarida de Oliveira, com quem se casou em 26 de maio de 1877, e teve seis filhos: edmée, Stella, Sylvie, Maria luísa, gastão e Henri (este último falecido ainda criança).

Cruls trabalhou no Observatório do rio de Janeiro durante cerca de 30 anos, desde 1877 até o ano de sua morte. Mais do que isso, ele contribuiu decisivamente para a consolidação dessa instituição no cenário científico brasileiro. De fato, entre o final da década de 1870 e o final da década de 1880, a despeito do apelo que possuía o ideário cientificista entre as elites políticas e intelectuais brasileiras, o Observatório foi alvo de críticas pesadas

quanto à sua competência e mesmo sua utilidade, e não faltou quem recomendasse o fechamento da instituição.

O principal alvo das críticas, liais acalmou momentanea-mente a situação no início de 1881, ao afastar-se da direção do Observatório e do país, voltando à França, sua terra natal. Cruls

a s t r o n o m i a e g e o l o g i a

Trabalho de campo da Comissão Cruls no alto dos Pirineus, Goiás, em 8 de agosto de 1892.

Page 4: Parte 4 - Colaboração Científica

110

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

era o astrônomo de sua preferência para substituí-lo. ele assumiu interinamente o cargo em 24 de março de 1881, não sem antes naturalizar-se brasileiro, em 12 de fevereiro do mesmo ano, entre outras razões para evitar o viés nacionalista embutido nas críticas endereçadas ao Observatório.

Durante o início de sua gestão, ainda no período imperial, Cruls buscou angariar aliados para o Observatório, como o Im-perador D. Pedro II, que não media esforços em demonstrar seu apreço pelas ciências em geral e pela astronomia em particular; rui Barbosa, que chegou a publicar um folheto em defesa da ins-tituição, e gusmão lobo, redator do Jornal do Commercio, prin-cipal jornal diário da época, e seu amigo pessoal.

Um dos principais fatores que contribuíram para consolidar o prestígio da instituição entre as elites imperiais brasileiras foi sua participação em projetos de caráter internacional e grande visibi-lidade, como a observação do trânsito de Vênus pelo disco do Sol, em 6 de dezembro de 1882.

Para possibilitar a participação do Observatório nos esforços internacionais de observação do trânsito de Vênus, Cruls convidou

a repartição Hidrográfica a colaborar com a instituição, e solicitou ao governo recursos extraordinários, de modo a tornar possível a organização de pelo menos três expedições com bandeira brasilei-ra, respectivamente enviadas à ilha de São Tomás, nas antilhas, a Olinda e a Punta arenas, na Patagônia chilena.

Nesta última estação, sob seu comando científico, foi a única em que predominou o bom tempo, permitindo que todos os con-tatos entre Vênus e o Sol fossem cronometrados. Os resultados das observações e cálculos posteriores foram publicados em 1887, nos Anais do Observatório (Annales de l’Observatoire Impérial de Rio de Janeiro, t. 3, 1887), em um volume bilíngue organizado por Cruls e especialmente dedicado aos trabalhos das diversas expe-dições brasileiras.

enquanto eram organizadas as expedições visando a obser-vação do trânsito de Vênus, Cruls protagonizou outro momento importante simultaneamente na sua carreira e na trajetória do Ob-servatório ao comunicar o aparecimento de um novo cometa no céu austral, visível a partir de 25 de setembro de 1882. a academia de Ciências de Paris reconheceu o seu mérito na descoberta e na

Integrantes da Comissão Cruls, Goiás, 1892.

Page 5: Parte 4 - Colaboração Científica

a s t r o n o m i a e g e o l o g i a

111

análise da constituição química desse cometa concedendo-lhe o Prêmio Valz, em sessão pública realizada em 2 de abril de 1883.

Tendo em vista o prestígio da academia francesa, o valor sim-bólico da premiação recebida por Cruls pode ser considerado maior do que o montante em dinheiro, na medida em que con-tribuiu para a consagração internacional de seu nome, e para o fortalecimento, entre os brasileiros, da instituição onde era diretor.

Foi também ao longo dos anos 1880 que Cruls atingiu o auge de sua produção científica, com a publicação de trabalhos de te-máticas bastante distintas, tais como um método gráfico para a pre-visão de ocultações e eclipses (“Occultações e eclipses; processo graphico para sua predicção”, Revista do Observatório, 1886-1887), o projeto de um novo tipo de barômetro destinado à determina-ção de altitudes (Descripção e Theoria do Barometro Differencial, 1888) e um estudo sobre o clima do rio de Janeiro (O Clima do Rio de Janeiro, 1892).

além disso, sob sua direção – desde 1884 em caráter definitivo – o Imperial Observatório expandiu-se de maneira significativa, ad-quirindo instrumentos e contratando pessoal, e começou a divul-gar sua produção, seja através dos Anais, dirigidos à comunidade científica, seja através da Revista do Observatório, um periódico mensal destinado à “vulgarização científica”.

em duas viagens aos estados Unidos e à europa, em 1887 e 1889, Cruls garantiu o lugar do Observatório e do Brasil, res-pectivamente, na Conferência Internacional do Meridiano, cujo objetivo era escolher o meridiano de referência na determinação das longitudes, e no ambicioso projeto Carta do Céu, iniciativa francesa cujo objetivo era construir um mapa de toda a abóbada celeste utilizando a fotografia, através da colaboração entre obser-vatórios do mundo inteiro. Finalmente, a partir de março de 1889 Cruls passou a acumular a direção do Observatório com o cargo de professor de trigonometria esférica, astronomia e geodesia da escola Militar do rio de Janeiro.

a instauração do regime republicano no Brasil, a partir de 15 de novembro de 1889, deu ensejo a outras oportunidades de pro-jetar Cruls e o Observatório por ele dirigido no cenário científico

nacional. a mais importante delas foi sua nomeação para presidir a chamada Comissão exploradora do Planalto Central, que en-tre junho de 1892 e março de 1893 percorreu essa região com o objetivo de definir a localização da área de 14.400 km2 que ainda hoje delimita o Distrito Federal do Brasil, conforme previsto na primeira Constituição republicana, de 1891.

Cruls também chefiou a Comissão de estudos da Nova Capi-tal da União, que voltou à região entre julho de 1894 e dezembro de 1895, com o duplo objetivo de escolher a melhor localização para a futura capital dentro da área previamente demarcada, e de-finir o traçado de uma estrada de ferro interligando duas cidades próximas, Cuiabá e Catalão.

logo no início do século XX, em janeiro de 1901, Cruls assu-miu a chefia de outra missão de cunho político-científico: a de-marcação das nascentes do rio Javari, início da fronteira do Brasil com a Bolívia. a realização da nova expedição revelou-se uma grande e perigosa aventura, com dias a fio de viagem em canoas, racionamento de comida e a irrupção de diversas doenças entre os membros da comissão, como o próprio Cruls, que teria contraído beribéri e malária. apesar de todas as dificuldades, a expedição foi bem sucedida, e no dia 22 de agosto de 1901 foi instalado o marco indicativo da nascente principal do rio Javari.

Cruls nunca se recuperou completamente dessa última via-gem a trabalho. a partir dessa data passou a acumular pedidos de licença do cargo para tratamento de saúde, a tal ponto que em 1905 o governo nomeou Henrique Morize como seu substituto no Observatório, por prazo indeterminado. em janeiro de 1908, uma nova licença lhe foi concedida pelo período de um ano. Cruls embarcou então de volta à europa, junto com a família, em busca de tratamento. Morreu em Paris, em 21 de junho de 1908.

Christina Helena da Motta Barboza é pesquisadora no Museu de Astronomia e Ciências Afins, no Rio de Janeiro. É graduada em His-tória pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com Mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense e Dou-torado em História Social pela Universidade de São Paulo.

No final do século XIX o Brasil, assim como a rússia, aparecia frequentemente no roteiro dos engenheiros belgas, que per-

corriam o mundo à procura de minérios para sua indústria meta-lúrgica. Neste sentido foi bem significativo o percurso de auguste Collon (Mons, 30.04.1869 – antuérpia, 07.01.1924). em 1885 matriculou-se na Universidade de liège para estudar Ciências Naturais e obteve, em 1890, com apenas 21 anos, seu doutorado com a menção de grande distinção. Nomeado assistente em mi-neralogia, pôde fazer numerosas viagens de estudo, descobrindo

as riquezas mineralógicas do Ural em 1891 e 1892 e a extração do petróleo em Baku no Cáucaso em 1894.

entre 1895 e 1897 deixou liège e foi para o Brasil, na con-dição de encarregado de missão do governo belga, para montar um centro de estudos na Fazenda do Brejão, de propriedade de eduardo Ferreira de Camargo. em menos de dois anos, realizou várias explorações mineralógicas e geológicas no estado de São Paulo, em parte junto com o influente geólogo americano Orville a. Derby. estudou particularmente os terrenos carboníferos desse

Um belga à procura de petróleo no BrasilPa t r i c k C o l l o n

Page 6: Parte 4 - Colaboração Científica

112

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

estado, as jazidas de minérios de ferro de São João d’Ypanema e as rochas betuminosas da região de Botucatu.

em Porangaba, montou a primeira estrutura de sondagem pro-funda, tornando-se o pioneiro da prospecção petrolífera no Brasil, embora sem resultados. Seu profissionalismo foi muito respeitado e orientou mais tarde novas sondagens. ele resumiu suas pesqui-sas numa memória manuscrita de 80 páginas, Le Pétrole dans les environs du Mont de Bofete et de Porto Martins dans l’État de São Paulo; suivi d’une étude chimico-industrielle des grès bitumeux de cette région, datada do Brejão, 11.02.1897, atualmente conserva-da no Instituto geológico de São Paulo (e editada em facsimile, São Paulo, 1970).

entrementes, pouco depois de sua chegada ao Brasil, veio lhe fazer companhia sua noiva, rachel goron (Kovno, 28.2.1869 – Bruxelas, 6.8.1951). Nascida na rússia, acabava de formar-se em medicina na Universidade de liège, onde estudavam na época muitos russos e brasileiros. Casaram-se em São Paulo em 19 de dezembro de 1895. a morte neonata de seu primeiro filho no Brejão em 10 de janeiro de 1897 precipitou sua volta à europa.

reinstalado na Bélgica, auguste Collon efetuou, entre 1897 e 1904, como engenheiro-conselheiro, diversas missões científicas por conta de empresas como a Société Générale de Belgique e a Société Métallurgique Russo-Belge, na rússia, alemanha, Polônia, Suécia e espanha. em 1905 foi nomeado secretário-geral da So-

ciété Anonyme John Cockerill, em Seraing, chefiando também seus Serviços de relações exteriores. Como tal lidou por volta de 1910 com um projeto para vender modernos navios pesqueiros para o Brasil. Depois de ter conduzido a Cockerill através dos escolhos da grande guerra, a deixou por motivos pessoais em 1919 e se radi-cou com sua família em antuérpia. lá colaborou com a Casa G. & C. Kreglinger, muito ativa no comércio com a américa latina, como conselheiro e em seguida como procurador. Faleceu com 54 anos em antuérpia.

Patrick Collon, nascido em Bruxelas em 1942, é filho de Alexandre Collon e de Petronella Fitzwilliams-Hyde e neto de Auguste Collon, estudou na Inglaterra (Eton College), Áustria (Linz e Sankt-Florian), Alemanha (Ludwigsburg), é organeiro em Bruxelas desde 1966.

referênciasCOllON, a. Sur un Cristal de Zircon. liège (sic) 1892.COllON, a. Sur l’Oligiste de Viel-Salm. liège (sic) 1894.COllON, a. Manuscrit: Le Pétrole dans les environs du Mont de Bofete et de Porto Martins

dans l’Etat de Sâo Paulo; suivi d’une Etude Chimico-industrielle des grès bitumineux de cette région; par auguste Collon, Docteur en Sciences naturelles, assistant hono-raire de l’Université de liége. Brejão. 1897. reproduction facsimile, commentée. Sao Paulo 1970.

DOMINgUeS, J. M. Porangaba sua História, Relatório de Collon. Porangaba 1998.DOMINgUeS, J. M. Porangaba sua História, O Manuscrito de Collon. Porangaba

2012.

Auguste Collon no laboratório do Brejão, onde realizou pesquisas mineralógicas e geológicas entre 1895 e 1897.

Page 7: Parte 4 - Colaboração Científica

113

b o t â n i c a e z o o l o g i a

O botânico belga Célestin alfred Cogniaux (1841-1916) foi um dos maiores colaboradores da Flora Brasiliensis de von

Martius, tendo sido responsável por cinco dos 40 volumes que compõem a obra elaborada pelo botânico alemão. Cogniaux foi responsável pelas monografias das famílias Melastomataceae e Or-chidaceae tendo colaborado também na elaboração da família Curcubitaceae em um fascículo do volume VI, part. IV da Flora.

Seus escritos sobre a flora brasileira preencheram cerca de 3.118 páginas, com mais de 600 ilustrações (Hoehne, 1941, p. 50-51). Formado como professor secundário pela École Normale de Nivelles, Cogniaux trabalhou como professor de matemática e ciências naturais em diferentes cidades e escolas da Bélgica. amante da botânica, adquiriu sua formação na prática e através do convívio com outros botânicos.

em 1862 o botânico belga iniciou, em parceria com Barthé-lémy Dumortier, os estudos sobre briófitas indígenas, tendo parti-cipado, nesse mesmo ano, da fundação da Société Royale de Bota-nique de Belgique. Dez anos depois, em 1872, foi indicado para o cargo de Conservador do Jardim Botânico do estado e nomeado naturalista ajudante. lá, inicia seus estudos sobre a sistemática das fanerógamas e, a convite de august W. eichler, editor da Flora Brasiliensis, dedica-se à família Curcubitaceae. Vale lembrar que o Jardim Botânico belga havia acabado de receber, no ano ante-rior, em 1871, o herbário brasileiro de Carl von Martius adquirido pelo governo da Bélgica.

em 1880, por divergências internas, Cogniaux se desliga do Jardim Botânico e volta a atuar como professor de ciências natu-rais, não deixando, porém, seus estudos botânicos, em especial sobre a flora do Brasil (alfred Cogniaux – National Botanic gar-den of Belgium. Disponível em: <http://www.br.fgov.be/PUBlIC/geNeral/HISTOrY/cogniaux.php>).

Sua ligação com os botânicos brasileiros, fortalecida quando esteve na direção do Jardim Botânico belga, se manteve viva e co-laborativa. Com José de Saldanha da gama, botânico brasileiro, professor da escola Politécnica do rio de Janeiro e cônsul-geral do Brasil na Bélgica, Cogniaux realizou estudo sobre Melastomata-ceae brasileiras para a Flora Brasiliensis, cujo extrato foi publicado

O botânico Célestin alfred Cogniaux e sua relação com o Brasil M a g a l i r o m e r o S á e a l d a H e i z e r

separadamente em 1887 (Saldanha da gama & Cogniaux, 1887). Foi também através de Saldanha da gama que Cogniaux foi

indicado ao Imperador do Brasil para atuar como vice-cônsul do então recém-criado vice-consulado brasileiro em Verviers (Mat-toso et al., 1999, p. 237), tendo sido nomeado pelo monarca em 1887 e permanecido no cargo até 1902 (Cogniaux, 2003, p. 5).

Seu trabalho sobre a família Melastomataceae foi publicado na Flora Brasiliensis em dois volumes, com cinco fascículos, entre 1883 e 1888 (Hoehne, 1941) e, segundo goldenberg et al. (2012) esse estudo ainda representa a monografia mais recente sobre a família no Brasil, constituindo a base para subsequentes estudos taxonômicos, tanto para tratamentos de revisão quanto trabalhos de cunho florístico.

em 1893 Cogniaux iniciou a publicação da primeira parte da obra sobre Orchidaceae na Flora Brasiliensis após intensa nego-ciação com o botânico brasileiro João Barbosa rodrigues. Desde 1868 rodrigues vinha se dedicando à coleta e descrição das orquí-deas brasileiras, tendo em 1870 apresentado à comunidade cientí-fica brasileira uma obra sobre Orchidaceae em três volumes com descrições em latim e francês e ricamente ilustrada.

rodrigues não obteve apoio do governo para a publicação da sua obra ilustrada. Porém, por iniciativa do Barão de Capanema, um volume de seu trabalho foi enviado para august eichler na ale-manha e apresentado a Heinrich gustav reichenbach, orquidólo-go alemão, responsável inicialmente por escrever a parte dedicada às orquídeas da Flora. reichenbach, admirado com o trabalho do botânico brasileiro, convida-o para levar o seu herbário para a europa para que suas novas espécies pudessem ser validadas, e propõe que sejam publicadas em coautoria. em carta ao botâni-co sueco a. regnell, residente no Brasil, reichenbach explicou:

“O objetivo de minha carta é falar sobre o sr. Barbosa Rodri-gues. Devo admitir que suas pesquisas são muito boas, e que nós poderíamos ser úteis um ao outro. Se ele publicar suas orquídeas, acredito que metade já tenha sido descrita, e ele poderia evitar esta duplicação trazendo para a Europa os tipos de suas novas desco-bertas, e assim ninguém poderia contestá-lo. É sabido ser impossível produzir um trabalho perfeito (de taxonomia) fora da Europa... Por

Page 8: Parte 4 - Colaboração Científica

114

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

favor, gostaria de chamar a atenção de seu amigo para esses fatos e dizer a ele que eu me ofereço a publicar suas novas descobertas em coautoria... Por favor, informe-me imediatamente de sua decisão e envie a ele meus respeitos...” (Barbosa rodrigues, 1877).

rodrigues não aceitou a oferta e acabou publicando somente a diagnose de suas espécies em 1877 (Sá, 2001).

reichenbach acabou desistindo de participar da Flora Bra-siliensis e após desencontros vários, até mesmo entre os próprios botânicos europeus, Cogniaux finalmente aceitou assumir a tare-fa. rodrigues (1882), por seu turno, continuava a receber ofertas de outros pesquisadores convidados a escrever a parte de orquídea da Flora, sem contudo aceitar nenhuma das propostas. Cogniaux, conhecedor do trabalho do botânico brasileiro, igualmente convi-dou-o a participar da obra de Martius por meio da utilização dos seus desenhos de orquídeas ainda inéditos e das descrições das es-pécies novas. em 1892, rodrigues finalmente aceitou o convite. No ano seguinte Cogniaux iniciou a publicação das orquidáceas em três partes, compostas por 10 fascículos, tendo o último saído em 1906. Do material cedido por Barbosa rodrigues ao botânico belga, foram publicadas 267 cópias das pranchas originais, além de 7 gêneros descritos pelo botânico brasileiro e 538 espécies (Mori & Ferreira, 78).

Uma nova colaboração com botânicos brasileiros se deu em 1910 quando foi convidado por Frederico Carlos Hoehne para par-ticipar da publicação sobre o material botânico coletado durante a expedição da Comissão de linhas Telegráficas estratégicas de Mato grosso ao amazonas (Comissão rondon). Cogniaux ficou encarregado do estudo das melastomáceas, curcubitáceas e orqui-dáceas, tendo o resultado de seu trabalho publicado no Brasil em 1912 na parte Botânica das publicações da Comissão.

Cogniaux faleceu em 1916, aos 75 anos, quatro anos após a sua última contribuição à botânica brasileira. apesar de nunca ter visitado o Brasil foi um profundo conhecedor de sua flora.

Magali Romero Sá, bióloga e Ph.D, é Pesquisadora Titular e Coor-denadora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fundação Oswaldo Cruz; Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq.

Alda Heizer, Doutora em Ciências, é Professora de História da Bo-tânica no Brasil na Escola Nacional de Botânica Tropical/JBRJ e Historiadora do Museu do Meio Ambiente e do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

referênciasCOgNIaUX, C. a. Botânica III – Melastomáceas, Curcubitáceas, Orquidáceas, vol. 5,

n. 10, p. 1-15, 1912. In: Hoehne, F. C., Harms, H. a. T.; Cogniaux, Célestin al-fred; Sampaio, alberto José de; Kuhlmann, João geraldo. Botânica/ Comissão de linhas Telegraphicas estrategicas de Matto grosso ao amazonas, vol. 5, 1910-1923.

COgNIaUX, Célestin alfred (1841-1916). Nowellia Bryologica, n. 24, p. 5, 2003. http://www.nowellia.be/download/revue%20nowellia/Binder%2024.pdf

gOlDeNBerg, r; BaUMgraTZ, J. F. a.; SOUZa, M. l. D. r. Taxonomia de Me-lastomataceae no Brasil: retrospectiva, perspectivas e chave de identificação para os gêneros. Rodriguésia , vol.63 no.1, p. 145-161, 2012.

HOeHNe, F. C. Notas biobiliográficas de naturalistas botânicos que pretendemos home-nagear com a denominação de caminhos e picadas no Jardim Botânico e na estação Biológica do alto da Serra. In: O Jardim botânico de São Paulo. São Paulo: Depar-tamento de Botânica do estado de S. Paulo. 1941.

MaTTOSO, K. Q., SaNTOS, I. F., rOllaND, D. Le Brésil, l’ Europe et les équilibres internationaux XVI-XX siècles. Université de Paris IV: Paris-Sorbonne. Centre d’étu-des sur le Brésil. Presses de l’Université de Paris. Sorbonne. 1999.

MOrI, S. a., FerreIra, F. C. a distinguished Brazilian botanist, João Barbosa rodrigues (1842-1909). Brittonia, vol. 39, n. 1, p. 73-85, 1987.

SÁ, M. r. O botânico e o mecenas: João Barbosa Rodrigues e a ciência no Brasil na segun-da metade do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 8, suppl., p. 899-924, 2001.

SalDaNHa Da gaMa, J. de; COgNIaUX, a. Bouquet de Mélastomacées brésiliennes dédiées a Sa Majesté Dom Pedro II empereur du Brésil. a. remacle, Verviers. 1887.

Capa da publicação Mélastomacées Brésiliennes, de Alfred Cogniaux e Saldanha da Gama, 1887.

algumas contribuições belgas à bovinotecnia brasileirar é g i s D e B e l

Vários belgas tentaram se estabelecer no Brasil para desen-volver a pecuária, tanto para lucrar com a venda de animais

reprodutores como para valorizar o prestígio nacional… nem sem-pre com sucesso. Porém, podem ser mencionados alguns de seus

legados para o melhoramento do rebanho bovino brasileiro. Vale mencionar a contribuição do engenheiro agrônomo (Fa-

culdade de agronomia de gembloux, 1884) e médico veterinário (escola de Veterinária de alfort, 1888) (Birgel, p. 72, 2011) belga

Page 9: Parte 4 - Colaboração Científica

b o t â n i c a e z o o l o g i a

115

Hector raquet, mais tarde catedrático do Instituto agrícola de gembloux. em 1906, foi contratado como diretor do Posto Zoo-técnico Central, criado em 1905 no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo, e em 1909 supervisionou os trabalhos de instalação do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros, na cidade de Pinhei-ral (rJ) e foi seu primeiro diretor – sendo substituído por Nicolau athanassof, ex-professor da escola Superior de agricultura “luiz de Queiroz” (Bhering, 2008, p. 76). esses postos foram criados segundo o novo conceito da época – zootecnia –, que separou o estudo sobre a agricultura daquele sobre a arte de criar animais pa-ra melhorar as suas potencialidades. “apoio genética” ressalta os trabalhos realizados por Hector raquet, assim como de um outro belga, o engenheiro agrônomo louis Misson, que escolheram os animais das primeiras importações para o Brasil.

Um documento que deve ser posto em destaque é o livro de eduardo Cotrim, figura de destaque na área da pecuária no início do século XX, A Fazenda Moderna – Guia do Criador de Gado Bo-vino no Brasil –, que foi publicado em português em Bruxelas em 1913. Tal publicação merece mesmo uma observação sobre sua qualidade, a despeito de seu conteúdo, que aqui é nosso assunto principal: trata-se de uma edição de grande qualidade, com capa dura e decorada em baixo-relevo de acordo com a tendência art nouveau, em voga na época, espcialmente em países como Bélgica e França (precursores dessa linha artística).

Sete capítulos compõem este livro e tratam dos seguintes temas:– estabelecimento e direção de uma fazenda de criar; – Práticas de bovinotecnia;– alimentação e forragens;– raças bovinas e escolha das raças;– exploração econômica do gado bovino;– Higiene do gado bovino, e– Noções práticas de veterinária.O autor argumenta que, naquela época, a criação bovina no

Brasil sofria com a falta total de métodos: “A indústria não existe porque o systema adoptado como mais commodo é o da perfeita sel-vageria”. eduardo Cotrim incentiva, porém, o desenvolvimento de meios de proteção para o gado, o melhoramento dos campos com a plantação de forragens e a seleção dos reprodutores para dar princípio à criação extensiva.

No quarto capítulo, além de descrever as raças nacionais, con-sagra uma parte importante às raças estrangeiras, que poderiam servir para criação de gado no Brasil ou para o melhoramento das raças nacionais através do cruzamento. além disso, o autor avisa o leitor das especificidades do clima brasileiro, que apresenta van-tagens e desvantagens, como, por exemplo, os inúmeros parasitas que perseguem o gado no campo. em alguns casos, esse tipo de

Capa do livro A Fazenda Moderna, de Eduardo Cotrim, publicado em Bruxelas em 1913.

Foto de Eduardo Cotrim publicada em seu livro A Fazenda Moderna, de 1913.

Page 10: Parte 4 - Colaboração Científica

116

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

problema inviabilizava a importação de raças estrangeiras que, em campos brasileiros, não apresentavam o rendimento esperado.

entre outras, o autor indica que a raça Flamenga belga se re-comenda por sua dupla qualidade leiteira e de açougue: trata-se de uma raça mista que vinha sendo melhorada consideravelmen-te por seleção e que era proveniente das proximidades de Bruges (Flandria ocidental). essa raça já fazia sucesso na argentina e no Uruguai e iria se difundir também no Brasil, principalmente no estado do rio grande do Sul. Belos exemplares de vacas e touros dessa raça também foram levados para os estados de São Paulo (Fazenda de Santa gertrudes) e Minas gerais (Cotrim, 1913).

Outro legado belga mais recente seria a introdução no Brasil da raça BBB (Blanc-Bleu Belge). a partir dos anos 1960, ela foi geneticamente melhorada por seleções sucessivas a fim de desen-volver de maneira extraordinária a sua musculatura (hipertrofia muscular hereditária). O BBB é conhecido como o halterofilista do mundo animal, o superboi. esta raça foi introduzida no Brasil em 1994, principalmente para cruzamento e obtenção de produ-tos de carne mais macia.

O cruzamento com o zebu de raça Nelore deu resultados inte-ressantes no estado da Bahia, apresentando melhores rendimentos em produção de carne, tanto quantitativa como qualitativamente (Boly et al., 2003, p. 21). Os resultados desses cruzamentos obti-

dos numa pesquisa realizada de 2002 a 2005, juntamente com a Université de liège (Ulg), as Facultés Agronomiques de Gembloux (FUSagx – Faculdades agronômicas de gembloux) e a Seagri (Secretaria da agricultura, Pecuária, Irrigação, reforma agrária, Pesca e aquicultura) do estado de Bahia, foram apresentados du-rante o 8º Congresso Mundial de genética em Belo Horizonte (leroy et al., 2006).

Régis De Bel é engenheiro agrônomo, graduado na Universidade Livre de Bruxelas (ULB, Bélgica) em 2004. Mora atualmente no Brasil.

referênciasBHerINg, M. J. Positivismo e Modernização: Políticas e Institutos Científicos de Agricul-

tura no Brasil (1909-1935). Dissertação de Mestrado, Casa de Oswaldo Cruz – Fio-cruz, rio de Janeiro, 2008.

BIrgel, e. H. O ensino da Medicina Veterinária no estado de São Paulo. Revista de Educação Continuada em Medicina Veterinária e Zootecnia do CRMV-SP. São Pau-lo: Conselho regional de Medicina Veterinária, v. 9, n. 2 (2011), p. 70-79, 2011.

BOlY, H., leBaIllY, Ph., lerOY, P. l., lerOY, e. Le Blanc-Bleu Belge en croisement dans les régions tropicales. Wallonie elevages, n. 6, juin 2003.

COTrIM, e. A Fazenda Moderna, Guia do Criador de Gado Bovino no País. Bruxelas, Belgique, 1913.

lerOY, P. l., lerOY e., CaSSarT, r. Growth and carcass performances of Belgian Blue x Nelore and Bradford Cattel in Bahia State, Belo Horizonte, Brazil, 2006.

“apoio genética”. Disponível em: <www.apoiogenetica.com.br>. acesso em: 30 nov. 2013.

Dom amaro Van emelen e a apicultura no Brasilr é g i s D e B e l

Fotografia da novilha Flamenga belga da Estância “La Plomer” publicada no livro a Fazenda Moderna.

Fotografia de “Trowbridge”, campeão flamengo belga na exposição internacional de Buenos Aires, em 1910, publicada no livro a Fazenda Moderna.

Dom amaro Van emelen, nascido em 1863, foi um padre be-neditino belga que se tornou professor no Colégio São Bento,

no rio de Janeiro, considerado como um dos mais tradicionais do país, e do qual foi reitor nos períodos 1905-1906 e 1909-1910. es-teve também ligado à tentativa dos beneditinos belgas de implantar

uma escola agrícola em Pernambuco. Foi, em 19 de abril de 1926, nomeado diretor-geral da escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda (Melo et al., 2010), mais tarde integrada à Universidade Federal rural de Pernambuco. era irmão do pintor e escultor Pierre Van emelen e aparentado a louis Cruls.

Page 11: Parte 4 - Colaboração Científica

b o t â n i c a e z o o l o g i a

117

em 1895, Dom amaro Van emelen introduziu a abelha italia-na (Apis mellifera ligustica) em Pernambuco e foi autor de várias obras sobre apicultura, entre as quais a famosa Cartilha do Api-cultor Brasileiro, publicada em 1934.

Segundo os escritos do editor amadeu amadei Barbiellini, Van emelen redigiu uma “verdadeira enciclopédia sobre as abe-lhas e as suas indústrias máximas de mel e cera” (5ª edição, 1952). Certamente, Van emelen foi uma pessoa-chave na divulgação e no desenvolvimento das técnicas de apicultura no Brasil no início do século XX.

essa Cartilha do Apicultor Brasileiro foi elaborada a partir de duas edições anteriores. a primeira edição era um simples folheto com o título de Criação de Abelhas, publicada na revista de Bar-biellini, Chacaras e Quintaes, apresentando 70 páginas ilustradas. a segunda edição, de 1924, já era mais desenvolvida, mas sempre no tamanho e na aparência de um opúsculo, com título de Abe-lhas, Mel e Cêra. ela também apareceu na revista mensal de Cha-caras e Quintaes. a terceira edição, de 1934, a famosa Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra apresenta três grandes partes – abelhas, Mel e Cera – com 57 capítulos ilustrados com

254 gravuras e adotou a forma de ‘perguntas e respostas’, muito didática e agradável para o leitor.

a empresa editora da Chacaras e Quintaes esgotou os 5.000 exemplares em nove anos, o que levou a uma quarta edição em 1945, que Van emelen retocou e enriqueceu ainda mais, e a uma quinta edição, em 1952, após o falecimento de seu autor (em 1946).

referênciasaMarO VaN eMeleN, 1915. A Criação das Abelhas. São Paulo, Conde a. a. Bar-

biellini, 1915. 70 p. ilus. aMarO VaN eMeleN, 1924. Abelhas, Mel e Cêra. São Paulo, Chacaras e Quintaes.

56 p. ilus. aMarO VaN eMeleN. 1934. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.

São Paulo, empreza editora da Chacaras e Quintaes, 344 p. ilus. aMarO VaN eMeleN. 1945. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.

São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus.aMarO VaN eMeleN. 1952. Cartilha do Apicultor Brasileiro – Abelhas, Mel e Cêra.

São Paulo, Chacaras e Quintaes, 356 p. ilus.MelO, lúcio esmeraldo Honório de; Magalhães, Francisco de Oliveira; almeida, argus

Vasconcelos de; Câmara, Cláudio augusto gomes da. De alveitares a veterinários: notas históricas sobre a medicina animal e a Escola Superior de Medicina Veterinária São Bento de Olinda, Pernambuco (1912-1926). Hist. ciênc. saúde-Manguinhos, vol. 17 n.1, rio de Janeiro Jan./Mar. 2010.

Capa do livro Cartilha do apicultor Brasileiro, de Amaro Van Emelen.Foto de D. Amaro Van Emelen publicada na edição de sua cartilha, impressa após o seu falecimento.

Page 12: Parte 4 - Colaboração Científica

118

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

alphonse richard Hoge foi um herpetólogo belgo-brasileiro (1912-1982) que, nos anos 50 e 60, era ativo no Instituto Bu-

tantã, fundado em 1901 em São Paulo para remediar as frequentes mordidas por serpentes nas fazendas de café.

Hoge nasceu em Cacequi, no estado do rio grande do Sul, filho de um engenheiro belga. Mais tarde a família voltou para gand, onde o jovem alphonse richard foi estudar na universidade do estado. Uma vez diplomado, tornou-se assistente do professor georges Bobeau e estudou, entre outros, o uso do veneno serpen-tígeno no combate às células cancerígenas.

em 1939 decidiu voltar para o Brasil onde encontrou um pos-to no Instituto Butantã, que tinha, e ainda tem, fama mundial pelas pesquisas e pela produção de soros antivenenosos. O Insti-tuto interveio ainda no salvamento da fauna reptiliana durante a construção das grandes barragens e no treinamento do pessoal da inspeção sanitária.

em São Paulo, o professor Hoge construiu uma reputação de cientista respeitado, que não recusava pesquisas de campo. Co-mo tal, apareceu também nos relatos de Marcel roos como um professor algo distraído, com senso de aventura.

alphonse Hoge morreu em 1982, pouco depois de sua aposen-tadoria. Publicou mais de cem trabalhos e deu seu nome a uma impressionante coleção herpetológica. esta, com mais de 70 mil peças, entre serpentes, aranhas e escorpiões, foi parcialmente des-truída por um incêndio em 15 de maio de 2010.

Chris Delarivière é jornalista independente em Gand, autor de re-portagens sobre a cultura e música popular brasileira, traduziu para

alphonse richard Hoge: o especialista em serpentesC h r i s D e l a r i v i è r e

o flamengo a História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Maga-lhães Gandavo, descendente de um flamengo de Gand.

Biotecnologia Vegetal no Brasil: sucesso na cooperação D u l c e e l e o n o r a d e O l i v e i r a

a cooperação do laboratório de genética da Universidade de gand com o Brasil vem de longa data e, de fato, caminha

junto com a história da tecnologia do DNa recombinante.Desde o início das pesquisas sobre clonagem de genes, no co-

meço dos anos 70, a Bélgica teve um papel relevante. ainda em 1974, Fiers, Schell e Van Montagu organizaram o primeiro sim-pósio internacional sobre clonagem de genes. Nele comparece-ram os grandes nomes em sequenciamento e clonagem de DNa, tais como os laureados com o Prêmio Nobel: Werner arber, rich roberts, Fred Sanger e Wally gilbert. este simpósio aconteceu um ano antes da famosa conferência de assilomar, organizada por Paul Berg, para discutir os potenciais riscos biológicos da tecno-

logia do DNa recombinante e as recomendações para utilizar a tecnologia com segurança.

Nessa época, Francisco lara – então professor titular do De-partamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universida-de de São Paulo – estudava os puffs de DNa de rhynchosciara. O professor lara teve o grande mérito de imediatamente reconhecer a Biologia Molecular como uma disciplina que revolucionaria as pesquisas na área de ciências naturais.

Com o objetivo de trazer esta nova disciplina para o Brasil, la-ra organizou um simpósio no Instituto Butantã sobre a clonagem de genes em diversos organismos, com a participação de especia-listas de renome internacional. Marc Van Montagu foi convidado

Alphonse Hoge e auxiliares na Ilha da Queimada, litoral do Estado de São Paulo, capturando jararacas ilhoas (Bothropóides insularis).

Page 13: Parte 4 - Colaboração Científica

b o t â n i c a e z o o l o g i a

119

para falar de sua pesquisa sobre o mecanismo natural de transfe-rência de genes de Agrobacterium tumefaciens.

a partir desse primeiro encontro, lara iniciou uma série de cursos internacionais sobre a tecnologia do DNa recombinante na USP/Butantã nos quais Marc Van Montagu era um convidado cativo. Foi nesse cenário que Marc Van Montagu encantou-se pelo Brasil e decidiu vir para cá com frequência.

entre 1974 e 1983, Van Montagu, Schell e colaboradores fize-ram, em gand, descobertas e inovações que marcaram o início da era da biologia molecular vegetal. eles descobriram o plasmídeo Ti de a. tumefaciens; elucidaram, junto com grupos de pesquisa liderados por Mary-Dell Chilton, nos estados Unidos, e robert Schilperoort, na Holanda, o mecanismo bacteriano de infecção e transferência de genes; desenvolveram a primeira tecnologia de transferência de genes para plantas e, publicaram, em maio de 1983, sobre a primeira planta transgênica.

a descoberta e invenção de Van Montagu, Schell e colabora-dores deixou uma pegada indelével na área de ciências da vida. a tecnologia de engenharia genética permitiu pela primeira vez uma análise sistemática e refinada do impacto de genes individu-ais em todos os aspectos da biologia vegetal, do crescimento e de-senvolvimento a resistência a patógenos e estresse abiótico, assim como na forma como as plantas se comunicam com seu ambiente.

Foi nesse período efervescente da genética molecular vegetal que Marc Van Montagu, em uma de suas muitas visitas ao Brasil, conheceu luiz antonio Barreto de Castro, então professor na Uni-versidade Federal rural do rio de Janeiro. luiz antonio seria logo contratado pela embrapa para desenvolver a primeira iniciativa de

engenharia genética vegetal no Brasil, no Cenargen, em Brasília. graças à cooperação de Barreto de Castro com Van Montagu, vários cientistas do Cenargen foram treinados na empresa Plant genetic System (PgS), spin-off do laboratório de genética da Universidade de gand.

Nessa época, tanto Cenargen como PgS estudavam as pro-teínas de reserva de sementes ricas em metionina para melhorar o valor nutricional de alimentos básicos. a determinação da se-quência de aminoácidos das proteínas de reserva ricas em enxo-fre da castanha do Brasil é um dos resultados dessa cooperação (ampe, Van Damme, Castro, l.a.B., Sampaio, Montagu aND Vanderkerchove, 1986, p. 597-604). entretanto, estes projetos não foram continuados porque tais proteínas seriam potencialmente alergênicas. Desde as primeiras tentativas de aplicações da tec-nologia do DNa recombinante em plantas os cientistas tinham a consciência de que a metodologia de transgenia em si não era perigosa, mas que os genes a serem introduzidos deveriam ser ana-lisados criteriosamente para evitar algum dano potencial.

em 1983, antonio Paes de Carvalho, então diretor do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do rio de Janeiro (UFrJ), deu início com alguns colegas – especialmente affonso do Prado Seabra, Maria apparecida esquibel e antonio rodrigues Cordeiro – ao Programa de Biotecnologia Vegetal da UFrJ. Nesse mesmo ano, Paes de Carvalho e Seabra montaram a Biomatrix, primeira empresa brasileira de biotecnologia vegetal.

Foi como fundador e presidente da Biomatrix que o professor Paes de Carvalho conheceu o professor Van Montagu, em um simpósio na França, na vinícola Moet Chandon. entusiasmado

O professor Marc Van Montagu e seus ex-colaboradores no IV Simpósio Brasileiro de Genética Molecular de Plantas, Bento Gonçalves, abril de 2013.

Page 14: Parte 4 - Colaboração Científica

120

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

com o potencial da tecnologia do DNa recombinante para o me-lhoramento de plantas, Paes de Carvalho convidou Van Montagu para uma visita à UFrJ.

Foi nessa visita, em 1985, que conheci o trabalho de Marc Van Montagu. a conferência que ele proferiu sobre os primeiros resul-tados com plantas transgênicas tolerantes a herbicida maravilha-ram-me e levaram-me a trocar a genética molecular de leveduras pelas plantas. Imediatamente postulei para pós-doutoramento no seu laboratório. ao mesmo tempo o professor antonio Cordeiro, que iniciava pesquisa em transformação de plantas em seu labo-ratório de Cultura de Tecidos Vegetais no Instituto de Biologia da UFrJ, articulou com Paes de Carvalho e Van Montagu a cria-ção do laboratório de genética Molecular Vegetal (lgMV) no Instituto de Biologia. eu era a candidata natural para liderar esse laboratório, pois já pertencia ao quadro de docentes da UFrJ. Foi estrategicamente decidido que o professor Marc Van Montagu me receberia como pós-doutor na Universidade de gand e, ao mesmo tempo, enviaria para a UFrJ o jovem doutor Benedikt Timmerman para iniciar o laboratório e implantar as primeiras linhas de pesquisa.

Naquela época, a Bélgica permitia e incentivava os jovens bel-gas que haviam adiado o serviço militar por estar cursando univer-sidade a, quando completassem toda a sua formação acadêmica, substituíssem o serviço militar tradicional na Bélgica por um tra-balho científico/humanitário em um país em desenvolvimento.

a Cooperação ao Desenvolvimento da Flandria – algemeen Bestuur van Ontwikkelingssamenwerking (aBOS) – financiava o projeto de pesquisa do postulante. assim, em 1986 eu segui para o pós-doutorado na Universidade de gand e Benedikt Timmerman foi para a UFrJ. Paralelamente, entre 1987 e 1996, o professor Van Montagu acolheu para doutoramento em seu laboratório vários estudantes brasileiros, a maioria ligada ao lgMV.

Benedikt Timmerman realizou um excelente trabalho no lg-MV. em três anos montou uma equipe dinâmica em torno de

um projeto de desenvolvimento de batatas transgênicas resistente a vírus e obteve um importante financiamento do PaDCT, que permitiu equipar o laboratório com o que havia de mais moder-no na época para conduzir pesquisa em biologia molecular. em 1990 assumi, como previsto, a direção do lgMV enquanto Ben retornou à europa, enriquecido com a experiência como diretor de laboratório no Brasil, fazendo pesquisa aplicada em biotecno-logia vegetal. Isto o levou a interessar-se por inovações em biotec-nologia e a cursar um MBa no INSeaD, França. atualmente Ben Timmerman é o fundador e CeO da empresa enticel, dedicada a vacinas terapêuticas contra o HPV.

até a aposentadoria do professor Marc Van Montagu, em no-vembro de 1999, o lgMV contou com seu apoio incondicional. Continuamos tendo o suporte da Cooperação ao Desenvolvimen-to – aBOS. entre 1990 e 1994, três jovens doutores do lab de genética-gand fizeram pós-doutorado no lgMV, todos dentro da política belga de substituir o serviço militar por atividades em países em desenvolvimento. Sobrevivemos ao duro período de vacas magras para a pesquisa científica no Brasil nos governos Collor, Franco e Cardoso graças aos projetos que pudemos de-senvolver em cooperação com a Universidade de gand. Foram oito projetos em colaboração, sob a minha gestão (1990-1995) e a gestão da professora Marcia Pinheiro Margis (1996-2000), financiados por agências internacionais, tais como aBOS, IC-gBe, Fundação rockefeller e diversos programas de cooperação da União europeia.

ao mesmo tempo, graças a estes projetos, a grande maioria dos pesquisadores e alunos de pós-graduação do lgMV tiveram a oportunidade de estagiar no laboratório de genética da Uni-versidade de gand. Contamos também com o apoio do consula-do belga no rio de Janeiro, que concordou em enviar pela mala diplomática materiais de consumo perecíveis, como enzimas de restrição e kits usados em biologia molecular que dificilmente resistiriam à temperatura ambiente durante o longo processo de desembaraço na aduana brasileira.

Os frutos deste esforço são expressivos. entre 1990 e 2000, o lgMV formou mais de 50 pesquisadores, entre mestres e douto-res. Sob a liderança estimulante de Darcy ribeiro, então Secretá-rio de educação do estado do rio de Janeiro, o lgMV participou da criação da Universidade do Norte Fluminense (Uenf) e do seu laboratório de Biotecnologia Vegetal.

Marc Van Montagu tem 54 publicações científicas em coau-toria com cientistas brasileiros. Os pesquisadores que o professor Van Montagu acolheu em seu laboratório, e aqueles formados no lgMV, estão ativos em diversas instituições de pesquisa no Brasil e são uma parte expressiva da liderança brasileira em biotecnologia vegetal, uma área de pesquisa florescente e respeitada tanto nacio-nal como internacionalmente. Muito disto devemos ao professor Marc Van Montagu.

Marc recebeu, em 1997, o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do rio de Janeiro por sua inestimável con-tribuição para a área de Biotecnologia Vegetal. Seu esforço para o desenvolvimento das ciências de plantas no Brasil foi reconhe-

Placa comemorativa ofertada ao professor Marc Van Montagu no 4º Simpósio Brasileiro de Genética Molecular de Plantas em agradecimento ao seu inestimável apoio à Biologia Molecular Vegetal no Brasil, abril de 2013.

Page 15: Parte 4 - Colaboração Científica

b o t â n i c a e z o o l o g i a

121

Na Universidade Católica de lovaina (KUl), um dos laborató-rios que tem atraído a atenção de muitos estudantes cientistas

brasileiros é o de biologia celular e molecular no departamen-to de Biologia da Faculdade de Ciência da KUl, chefiado pelo professor Johan Thevelein. este laboratório tem como principal tema de investigação fundamental o estudo dos mecanismos de transdução de sinal ativados por nutrientes, mais especificamente os mecanismos envolvidos no controle de proteína quinase a em leveduras (Saccharomyces cerevisiae).

Na área da pesquisa aplicada, o laboratório tem conquistado fama internacional pelo uso de uma eficiente metodologia de mo-dificação genética de leveduras, com a finalidade de desenvolver estirpes de leveduras industriais superiores para a produção de bioetanol de primeira e segunda gerações, produção de vinho, cerveja e fermento.

a cooperação entre os pesquisadores rogelio lopes Brandão e Ieso de Miranda Castro (laboratório de Biologia Celular e Mo-lecular-lBCM do Núcleo de Pesquisas em Ciências Biológicas- -Nupeb da Universidade Federal de Ouro Preto) e o dr. Johan The-velein surgiu em 1987 com intensa troca de “cartas” para tratar da resolução de aspectos do metabolismo de um fungo, Fusarium oxysporum, na época objeto de estudo do Dr. rogelio Brandão.

Disto resultou um curto estágio de três meses (dezembro de 1988 a fevereiro de 1989), que possibilitou a elaboração de um projeto de cinco anos (1991-1995). este viabilizou com recursos da aBOS (agência de Cooperação ao Desenvolvimento do gover-no flamengo) a estruturação física do lBCM/Nupeb/Ufop com a construção financiada pela Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto) e a compra de equipamentos e facilidades.

em contrapartida, o governo brasileiro, através das agências de fomento Capes (Coordenação de aperfeiçoamento de Pesso-al de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico), financiou a ida de vários

brasileiros a lovaina para trabalhar ou estagiar no laboratório do dr. Thevelein.

Mais recentemente, e no âmbito do Programa Ciência sem Fronteiras, foi aprovado um projeto de Pesquisador Visitante es-pecial para o dr. Johan Thevelein por um período de três anos, no qual o Dr. Thevelein visitará algumas vezes o Brasil. este projeto tem forte apoio de empresas brasileiras, tais como a Petrobras e a Fermentec, devido ao interesse bilateral no desenvolvimento da pesquisa aplicada ao bioetanol.

essa colaboração com o professor Brandão também deu iní-cio à organização de cursos em biologia molecular de micro-or-ganismos, três dos quais em conjunto com a Ufop, em janeiro de 1994, novembro de 1997 e novembro de 1999, e mais uma vez na Universidade de Viçosa (Mg) em fevereiro de 2005. Nessas ocasiões, alguns participantes foram convidados a estagiar no la-boratório em lovaina; no total, desde 1988, perto de 25 cientistas vindos da Universidade de São Paulo (USP) de ribeirão Preto, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Universidade Federal de Pernambuco (UFPe), Universidade Federal de Minas gerais (UFMg) e outras.

Da participação de Beatriz Bonini no primeiro curso orga-nizado em Ouro Preto surgiu a oportunidade de vir como es-tudante bolsista da Capes, do programa PDSe-Programa de Doutorado Sanduíche no exterior, para trabalhar em pesquisa fundamental, desenvolvendo projeto na área de metabolismo de trealose e controle da glicólise por trealose-6-fosfato. esta vinda como estudante de doutorado proporcionou a possibilidade de voltar como pós-doutoranda e colaborar com o professor The-velein por mais de dez anos, com várias publicações e um pro-jeto comum na área de metabolismo de trealose, estabelecido com o grupo do professor Héctor Francisco Terenzi da USP de ribeirão Preto.

Outros participantes dos cursos de biologia molecular vieram

a cooperação entre a KUleuven e as universidades brasileirasB e a t r i z M o n g e B o n i n i e r o g e l i o l o p e s B r a n d ã o

cido também no 4º Simpósio Brasileiro de genética Molecular de Plantas, em Bento gonçalves, rS (2013), como cientista ho-menageado.

entre as contribuições do professor Van Montagu para o setor privado, destaca-se sua participação como membro do Conselho Científico da empresa allelix entre 2003 e 2009 e o recente con-vite para o Conselho Consultor do Instituto Tecnológico Vale.

atualmente no Institute of Plant Biotechnology Outreach, VIB/Ugent, o professor Van Montagu continua sendo um incansá-vel, articulado e influente advogado da transferência da biotecno-logia vegetal para o benefício nutricional, econômico e ambiental dos países em desenvolvimento. Sua aliança com o Brasil continua

inabalável, contribuindo sempre que solicitado. recentemente o professor Van Montagu ajudou a montar a equipe de Ciências de Plantas no Instituto Tecnológico Vale, em Belém do Pará.

Dulce Eleonora de Oliveira trabalha no Institute of Plant Biotech-nology Outreach, VIB – Ghent University.

referênciasaMPe, C., VaN DaMMe, J., CaSTrO, l. a. B., SaMPaIO, M. J. a., MONTagU, M.

V. J. and VaNDerKerCHOVe, M. V. J. 1986. The aminoacid sequence of the 2S sulphur-rich proteins from seeds of Brazil nut (Bertholletiaexcelsa H.B.K.).eur. J. Biochem. vol. 159 , p. 597-604.

Page 16: Parte 4 - Colaboração Científica

122

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

Os professores Rogélio Lopes Brandão e Johan Thevelein e demais participantes do curso de Biologia Molecular de Microorganismos, Ouro Preto, Minas Gerais, janeiro de 1994.

também fazer seu doutorado em lovaina, como recentemente Thiago Martins Pais, sobre a modificação genética de leveduras para a produção de bioetanol, já reincorporado em seu laboratório de origem no Brasil.

atualmente três estudantes brasileiros estão trabalhando em seus projetos de doutorado. Um deles, Thiago Pereira de Souza, Universidade Federal de lavras (Ufla), Minas gerais, bolsista Ca-pes do programa PDSe-Programa de Doutorado Sanduíche no exterior, desenvolve projeto relacionado com a genética de leve-duras com vistas à produção de biocombustível, sob a orientação do professor eustáquio Souza Dias, na Ufla, e Johan Thevelein, na KUleuven. Seu interesse pela Bélgica teve início a partir de conversas com seu orientador, que conhecia o professor Patrick Van Dijck, do VIB (Vlaams Instituut voor Biotechnologie), onde

também se pesquisam genética e fisiologia de leveduras com foco na indústria, principalmente de bebidas e combustível.

além de colaborações com universidades, o laboratório do professor Thevelein também mantém colaboração em projetos de aplicação industrial com a empresa Fermentec de Piracicaba (SP), fundada pelo dr. Henrique Vianna de amorim.

Beatriz Monge Bonini, Doutora em Bioquímica pela USP, traba-lhou como pesquisadora no laboratório do professor Thevelein na Uni-versidade Católica de Lovaina (KUL).

Rogelio Lopes Brandão, Doutor em Bioquímica e Imunologia e com pós-doutoramento na Universidade Católica de Lovaina (KUL), é professor da Universidade Federal de Ouro Preto.

Page 17: Parte 4 - Colaboração Científica

123

m e d i c i n a

Marie rennotte (1852-1942) foi recentemente redescoberta como uma figura relevante na história da emancipação fe-

minina e da medicina no Brasil. Nascida em Wandre, perto de liège, ganhou, em 1874-1875, em Paris, um diploma de profes-sora e foi lecionar francês durante três anos na alemanha, em Mannheim.

em 1878 desembarcou no rio de Janeiro, onde trabalhou como governanta e deu aulas em colégios particulares, como o Colégio Werneck. em 1882 foi convidada para o recém-fundado Colégio Piracicabano dos metodistas americanos em Piracicaba. em suas aulas de Ciências, rennotte professava ideias avançadas evolucionistas e positivistas, que destoavam da educação tradicio-nalista dispensada em escolas como o Patrocínio de Itu, das freiras francesas. referindo-se a rousseau, Pestalozzi, Froebel e Spencer, ousava polemizar a esse respeito na imprensa local, a Gazeta de Piracicaba. assim seu colégio ganhou mais alunas entre as famílias influentes da cidade, como os irmãos de Barros Moraes.

entrementes, propugnava a emancipação feminina em artigos no jornal A Família. e viajava bastante. Com passaporte belga do consulado do rio, viajou em 1885 para Buenos aires e em 1886-1887 aos estados Unidos e à França.

Provavelmente com o auxílio de Prudente de Moraes, deci-diu em 1889 estudar Medicina no Women’s Medical College of Pennsylvania, na Philadelphia, onde formou-se em três anos. em seguida, aperfeiçoou-se em ginecologia, obstetrícia e neonatologia como estagiária em Paris no Hôtel-Dieu e Saint-louis em 1893-95.

De volta ao Brasil, revalidou seu diploma em 1895 na Facul-dade de Medicina do rio de Janeiro com a tese Influência da educação da mulher sobre a medicina social, que insistia muito na necessidade de uma medicina preventiva. Começou sua primeira prática na Maternidade São Paulo, que acolhia mulheres pobres e, em 1906, entrou na Clínica Cirúrgica de Mulheres da Santa Casa de Misericórdia, onde colaborou com o célebre médico ar-naldo Vieira de Carvalho.

ao mesmo tempo era bastante ativa na Sociedade de Medi-cina e Cirurgia de São Paulo com propostas inovadoras. Numa viagem de estudos pela França e pela alemanha preparou-se para

Marie rennotte: medicina e emancipação da mulhere d d y S t o l s

organizar, em São Paulo, a diretoria regional da Cruz Vermelha e em 1912 tornou-se sua presidente. No mesmo ano propugnou também a fundação de uma casa do convalescente, que não deu certo, e de um hospital para crianças, para diminuir a mortalidade infantil. este último, construído no bairro de Indianópolis, segun-do projeto de Francisco de Paula ramos de azevedo, foi inaugu-rado finalmente em 1919.

rennotte foi ainda pioneira na formação de enfermeiras com um curso criado na Santa Casa em 1912, se bem que foi de curta duração. Pelos seus contatos com as tradicionais famílias da socie-dade paulista, foi aceita em 1901 como primeiro membro femi-nino do Instituto Histórico e geográfico. em 1922 participou da campanha a favor do voto feminino. Marie conheceu uma velhice difícil e morreu na pobreza.

referências Maria lúcia Mott. ‘De educadora a médica: trajetória de uma pioneira metodista’. Revista

do Cogeime, 1999, n. 15, p. 115-126. Idem, ‘gênero, medicina e filantropia: Maria rennotte e as mulheres da nação’. Cadernos Pagu, n. 24, 2005, p. 41-67; Débora Cos-ta ramires. A contribuição de Mlle. Maria Rennotte na construção e implantação do projeto educacional metodista no Colégio Piracicabano, Piracicaba, Doutorado, 2009.

Marie Rennotte, nascida em Wandre e que emigrou ao Brasil em 1878.

Page 18: Parte 4 - Colaboração Científica

124

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

lucien lison e andré Jacquemin na Faculdade de Medicina de ribeirão Preto

l u c i a n a P e l a e s M a s c a r o

a convite do primeiro diretor da Faculdade de Medicina de ribeirão Preto (FFClrP), Zeferino Vaz (1952-64), lucien

alphonse Joseph lison (1908-1984) veio para o Brasil em 1953 para fazer parte do quadro dos professores e pesquisadores dessa instituição, movido, talvez, pelas consequências do pós-guerra na europa.

Nascido em Trazegnies, Bélgica, graduou-se em Medicina pe-la Universidade livre de Bruxelas em 1931. Desde 1936 produ-ziu estudos e artigos de grande relevância para a medicina e, em 1952, publicou um livro sobre histoquímica animal que se tornou um clássico, o que lhe valeu a reputação de pioneiro no assunto.

Foi o primeiro diretor da Faculdade de Filosofia Ciências e letras de ribeirão Preto (SP) que, embora tivesse sido criada em 1959, somente foi autorizada a funcionar em março de 1964. Fi-cou no cargo até 1968. em 1966 convidou seu conterrâneo, o psicólogo andré Jacquemin (1942, Baranzy, Bélgica) – formado pela Universidade de lovaina la-Neuve em 1965 – para compor o corpo docente do Departamento de Psicologia da FFClrP, chegando a ser seu diretor de 1988 a 1992.

Na área de Psicologia, ressalte-se os fortes laços existentes entre as universidades de louvain-la-Neuve e de lovaina com outras do Brasil, da qual a FFClrP é um exemplo. atualmente, Jacquemin é referência nacional e internacional para a Psicologia, especial-mente em técnicas de avaliação Psicológica.

referênciasHomenageado: andré Jacquemin. Revista Psicologia Ciência e Profissão. Vol. 24

n. 1, Brasília, mar. 2004. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932004000100014>. acesso em: 30 nov. 2013.

lISON, lucien. la Faculte de Philosophie, Sciences et lettres de ribeirãoPreto. Pai-déia (ribeirão Preto) vol. 15 n. 31, ribeirão Preto, May/aug. 2005, Seção especial. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2005000200002>. acesso em: 30 nov. 2013.

alVeS, Zélia Maria Mendes Biasoli. Carta a um mestre. Paidéia (ribeirão Preto) vol. 16 n. 33, ribeirão Preto, Jan./apr. 2006, Seção especial. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0103-863X2006000100002>. acesso em: 30 nov. 2013.

MOraeS, Maria augusta de Sant’ana. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Uni-versidade de São Paulo. Disponível em: <http://www.sbhm.org.br/index.asp?p=insti-tuicoes_view&codigo=7>. acesso em: 30 nov. 2013.

O professor doutor Decio l. eizirik é atualmente diretor do laboratório de Medicina experimental da Faculdade de

Medicina da Université Libre de Bruxelles (UlB). ele começou sua carreira estudando medicina na Universidade Federal do rio grande do Sul (UFrS) e fez doutorado na Universidade de São Paulo (USP).

Depois de trabalhar dez anos na Universidade de Uppsala, Suécia, primeiro como pesquisador visitante e depois como Pro-fessor associado, foi viver na Bélgica em 1996, inicialmente para dirigir uma unidade de pesquisa na Vrije Universiteit Brussels, mas em 2002 foi nomeado diretor do laboratório de Medicina experimental na UlB.

Seu grupo conta no momento com quase 30 pesquisadores de diferentes países, incluindo cinco brasileiros que trabalham em

Bruxelas devido à intensa colaboração mantida pelo professor eizi-rik com as universidades brasileiras Federal do rio grande do Sul (UFrS), estadual de Campinas (Unicamp) e de São Paulo (USP).

O grupo do professor eizirik fez importantes descobertas na área de pesquisa em diabetes, incluindo a clarificação de meca-nismos que levam à morte das células beta no diabetes e o papel de genes candidatos para a doença nas células beta. Seu trabalho foi recompensado com vários prêmios belgas e internacionais, in-cluindo o Prêmio Pharmacia & Upjohn do FWO (Belga), o JDr-FI Diabetes Care research award e, em outubro de 2012, um dos três mais importantes prêmios da eaSD (european association for the Study of Diabetes), o Prêmio albert renold. a foto na próxi-ma página mostra os membros do laboratório do professor eizirik, incluindo diversos brasileiros.

O diretor brasileiro de um dos mais ativos laboratórios de pesquisa em diabetes na Bélgica

Page 19: Parte 4 - Colaboração Científica

m e d i c i n a

125

Integrantes do laboratório do professor Eizirik (3° da esquerda para a direita, na 2a. fila em pé), incluindo diversos pesquisadores brasileiros.

Page 20: Parte 4 - Colaboração Científica

126

a n t r o p o l o g i a

este artigo é o resultado de uma pequena pesquisa em docu-mentos disponíveis e de uma consulta por e-mail aos colegas,

antropólogos belgas residentes no Brasil ou que tiveram uma re-lação profissional com o país, que foi decisiva para suas carreiras. a consulta produziu um material rico e heterogêneo. Optei por reproduzir suas palavras tal qual, porque cada pequeno relato evo-cava, melhor do que eu mesma poderia reproduzir, a atmosfera particular que permeia a relação de cada um com a questão da migração da Bélgica para o Brasil.

é curioso notar que num primeiro momento obtive mais in-formações sobre os motivos e os acasos que levaram esses belgas e ex-belgas a deixar seu pequeno país no coração da europa, fa-zendo-os optar pela vida neste país fascinante, do que informa-ções sobre suas carreiras acadêmicas. esta modéstia mostra que os migrantes ainda não deixaram totalmente de ser belgas, pois faz parte do estilo belga não ostentar aquilo que não for explici-tamente solicitado.

Não pretendo explicar logo no começo a escolha do título des-te artigo. Só queria assinalar que ‘a melancolia dos belgas’ nada tem que ver com pessoas melancólicas, e muito menos com uma nostalgia que sentiriam pelo país de origem. O que se quer sugerir é que pensar sobre a relação desses belgas com os dois países é que produz um efeito que poderia ser chamado de melancólico. Dife-rentemente de outros países europeus, como a França e até mes-mo a Holanda, a Bélgica não tem uma política cultural agressiva. Minha leitura aqui é a de um nativo da vida entre dois mundos. Bélgica é um país pequeno, tem duas comunidades linguísticas majoritárias, a flamenga e a valona, além de uma pequena mi-noria de fala alemã. as políticas culturais belgas acabaram sendo regionalizadas de acordo com a fronteira linguística, tornando o país ainda menor do que já era.

Outro fator importante do caráter belga, resultado de sua pe-culiar história e composição, é que cultivar o sentimento nacio-nalista não é bem visto. Cultivar regionalismos, menos ainda, mas parece ser mais difícil de conter. Cultiva-se antes certo humor ne-gro perante outros nacionalismos e a própria história complexa de fronteiras fluidas, a ambivalência de sua identidade, a pequenez

do país, a cor cinza dos longos dias de chuva, os desentendimentos de seus políticos, que fazem com que os vizinhos se perguntem o que faz este país perdurar. Não obstante tudo isso, os belgas sabem que são o coração da europa, tanto espacial quanto historicamen-te, mas não o dizem...

Um resultado que aparecerá da comparação das trajetórias dos diferentes antropólogos belgas que vieram para o Brasil é que (qua-se) todos parecem ter vindo para cá como lonely riders em busca de algo, sem saber muito bem o quê. Se várias narrativas apontam mediadores ou histórias de família, não parece existir nenhuma política acadêmica sistemática de intercâmbio; as pessoas têm a sensação de ter vindo por conta própria e de, ao chegarem aqui, ter descoberto um mundo acadêmico poderosíssimo, insuspeito pela academia belga. O contraste com a situação na França, espe-cialmente para o campo da antropologia, salta logo aos olhos. Na França se conhece a antropologia brasileira e vice-versa. Veremos que alguns dos nossos entrevistados traçaram sua relação com o Brasil por intermédio de antropólogos franceses.

grande é, portanto, o contraste da mentalidade belga, ciosa da solidez de sua formação, mas modesta por natureza, com a men-talidade brasileira, orgulhosa pelas dimensões e potencialidades do país, crente na sua diversidade e na sua capacidade de absorção das diferenças; país que se considera um país de migrantes, ten-do se tornado um dos maiores blocos monolíngues do planeta. a hospitalidade para com o estrangeiro que chega ao país continua fazendo parte da autoimagem dos brasileiros e da experiência do estrangeiro europeu quando aqui aporta.

Passo agora à apresentação dos relatos dos entrevistados so-bre suas próprias trajetórias para depois tirar algumas modestas conclusões.

Belgas no Brasil: étienne Samain

em filme de Clarice Peixoto, étienne Samain respondeu às questões sobre sua atividade no Brasil: Formado doutor em Teo-logia na Université Catholique de louvain (1965), foi servir por algum tempo como sacerdote numa paróquia na zona operária,

a melancolia dos belgas: devir antropológico no Brasile l s l a g r o u

Page 21: Parte 4 - Colaboração Científica

a n t r o p o l o g i a

127

perto de Charleroi. ele sentia, no entanto, um desejo grande por conhecer novos horizontes e foi assim que atendeu ao convite de amigos brasileiros que conhecera na universidade para um traba-lho de cooperação numa diocese brasileira. em 1971 ele fez sua primeira viagem, de férias, por Brasil, argentina e Chile. “Sessen-ta e oito é a primavera francesa, quer dizer, uma inquietação na Europa e o desejo de respirar. Eu gostaria de dizer que na época eu sufocava. Esta viagem para o Brasil efetivamente me deu outros parâmetros para medir a vida humana, algo tinha acontecido. Eu descobria uma outra arte de ser gente, uma espontaneidade, um tipo de beleza, não apenas física, uma beleza moral na época, ou talvez eu estivesse romantizando até certo ponto, mas foi decisiva para mim essa primeira viagem.”

Depois, de volta à Bélgica, recebeu o convite de Dom eugê-nio de araújo Sales, arcebispo do rio de Janeiro, para lecionar, a partir de 1973, um curso de exegese na PUC. Pouco tempo depois de sua chegada, as dúvidas com relação à opção religiosa começa-ram a se agravar: “Com relação à vocação na minha vida eu sofria de uma coisa que nunca ia discernir totalmente... questões de fé, jogava sobre Deus o que era engajamento humano, questões de sexualidade que desconhecia...”.

Sob a manifesta decepção do seu mentor brasileiro, Dom eu-gênio, deixou o sacerdócio e, casando com uma belga em 1975, começou a estudar antropologia no Museu Nacional do rio de Janeiro. Fez pesquisa de campo, primeiramente entre os índios Kamayurá (alto Xingu, Mato grosso), onde estudou principal-mente a mitologia e as histórias orais, e depois entre os Urubu-Kaapor (Maranhão) as músicas xamanísticas e de flauta. Sobre os Kamayurá publicou em 1991 Moroneta Kamayurá: Mitos e Aspectos da Realidade Social dos Índios Kamayurá (Alto Xingu), livro ilustrado com muitas fotos.

étienne Samain, apaixonado pela fotografia desde a infância, concentrou-se no aprofundamento das linguagens audiovisuais. em 1984 se mudou para a Universidade estadual de Campinas, onde foi convidado a ajudar na implementação de um programa inovador de Pós-graduação em Multimeios. Desde então seu es-forço teórico consiste em “fazer da antropologia visual realmente um suporte científico da antropologia, sem descartar a dimensão do verbal, mas trabalhar a relação de ambos”. Trabalhou assim sobre os usos da fotografia em antropologia visual, pesquisa cola-borativa que resultou na coletânea O fotográfico (1998).

Interessado pela teoria de comunicação de gregory Bateson, publicou em 2005 Os Argonautas do Mangue, em colaboração com andré alves, seu orientando, fotógrafo e biólogo de formação. a primeira parte do livro, escrita por Samain, trata da obra clássica de antropologia visual, de gregory Bateson e Margereth Mead, Coming of age in Bali. a segunda parte apresenta os resultados da pesquisa de alves, com sequências de fotos dos caranguejeiros do mangue de Vitória (espírito Santo), alternadas com textos, muitas vezes com interpretações dos próprios caranguejeiros. a intenção do livro é fazer dialogar estas duas pesquisas, usando a primeira como fonte de inspiração para a segunda.

Dominique Tilkin gallois

Dominique gallois, etnóloga de referência na USP, se desta-cou durante toda sua carreira por seu engajamento a longo prazo na pesquisa e na política indigenistas, assim como pela formação de jovens etnólogos. Desenvolveu pesquisa pioneira sobre o xama-nismo entre os waiãpis e tem coordenado um grupo de pesquisa sobre as guianas.

em suas próprias palavras: “Moro no Brasil desde 1975. é o país que escolhi para viver, trabalhar, envelhecer. Mas sou belga, que não nasceu na Bélgica, e lá viveu apenas por 4 anos, no início da década de 70, quando morei em Bruxelas, para estudar. antes, morei na Venezuela – onde passei minha infância –, na Itália – on-de vivi na adolescência. De meu nascimento na China, claro!, não recordo nada, pois de lá saí com 18 meses. acompanhando minha família, com pai diplomata, também estive por um curto tempo em São Paulo, em 1967 e 1968. Já querendo ficar. Mas meus pais me enviaram para Bruxelas, para que eu me conectasse com meu país. estudei Ciências Sociais, Políticas e econômicas na Universi-dade livre de Bruxelas. Tínhamos aula de antropologia física com um professor que nos mostrava imagens de pessoas negras, asiáticas ditas ‘primitivas’, em função do tamanho de sua caixa craniana.

“Coisas assim me deixavam muito desanimada, pois já tinha lido na adolescência – graças ao estímulo de meu pai – Tristes Tró-picos e outros livros de antropologia. a partir do 3º ano, finalmente minha formação se consolidou, com as aulas de luc de Heush, que dava aula de etnologia africanista, mas também nos intro-duzia à obra de lévi-Strauss. ao lado disso, e de excelentes cursos de Filosofia, professores interessados nas contradições do desen-volvimento em países ditos ‘não desenvolvidos’, acolheram meu interesse pelos povos indígenas. acabei realizando uma pesquisa sobre a situação dos índios no México no período da revolução de 1910. Não podia ir a campo, contentei-me com documentos e com a leitura de romances indianistas. O trabalho defendido em 1974 intitulava-se les théories indigenistes au Mexique, de 1920 à nos jours.

“em 1975, casei e vim morar no Brasil. Com uma bolsa de especialização, válida por um ano, concedida através da UlB no âmbito de um acordo bilateral entre Bélgica e Brasil, pude me aproximar dos professores de antropologia da USP e iniciar al-gumas disciplinas. logo, Thekla Hartman e lux Vidal insistiram para que me inscrevesse no mestrado. Defendi a dissertação em 1980, conseguindo finalmente realizar pesquisas de campo com povos indígenas. Inicialmente, desejava continuar na linha de pes-quisa iniciada na Bélgica, estudando os efeitos das políticas indige-nistas. a intenção era pesquisar em alguma região que permitisse comparar políticas nacionais, em ambos os lados de uma fronteira. Queria trabalhar com os Yanomami, mas um encontro com o an-tropólogo escocês alan Campbell dirigiu meu destino para junto dos Wajãpi, no amapá.

“Contrariamente ao planejado, não iria trabalhar no lado da guiana Francesa, diante da acolhida dos Wajãpi no lado brasileiro e dos desdobramentos que pouco a pouco se impuseram na minha

Page 22: Parte 4 - Colaboração Científica

128

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

relação com esse grupo indígena. No entanto, antes de consolidar meus estudos sobre eles no doutorado, experimentei outras áreas de pesquisa etnográfica entre os Tiriyó, os Karipuna e galibi do Oiapoque. Voltei aos Wajãpi no doutorado, após ter tentado, mas logo abandonado, uma pesquisa de cunho histórico sobre o tra-balho indígena no período colonial, em Marajó. Nesse período, meu interesse pelas problemáticas do indigenismo consolidou-se enquanto participava das campanhas e atividades da Comissão Pró-Índio de São Paulo e também graças à oportunidade de tra-balhar durante oito anos na equipe do programa Povos Indígenas no Brasil, do Centro ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), depois incorporado pelo Instituto Socioambiental (ISa). em 1992, comecei a trabalhar no Centro de Trabalho Indigenista (CTI). anos depois, fundei com colegas da USP outra ONg, o Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé).

“Ingressei na USP em 1985, antes de concluir meu doutorado, defendido em 1988. Desde então, dedico-me a formar etnólogos que possam desenvolver alternativas mais éticas de diálogo com os povos indígenas. Coordenei o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII/USP), engajando vários alunos em pes-quisas na região do amapá e norte do Pará. Um dos resultados dessa pesquisa está na coletânea que coordenei Redes de relações

nas Guianas (2005). Na sequência, coordenei um conjunto de pesquisas voltadas à discussão das formas de criação, circulação e transformação de conhecimentos, engajando um novo conjunto de estudantes.

“Os artigos que publiquei nesse período sobre problemáticas dos saberes ameríndios foram suscitados pelo meu engajamento na formação de pesquisadores indígenas no amapá, entre eles uma turma de 20 pesquisadores Wajãpi, engajados em atividades do Plano de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Waiãpi, que in-cluiu, entre 2000 e 2003, o registro das expressões gráficas e orais deste grupo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e artístico Na-cional (Iphan) e pela UNeSCO.

“Paralelamente, apostando na difusão de uma nova imagem dos índios, dediquei-me à realização de documentários, especial-mente aqueles produzidos com o projeto de vídeo do Centro de Trabalho Indigenista, durante a década de 90 (A arca dos Zo´é, Segredos da mata, entre outros). livros de difusão científica, como Patrimônio cultural imaterial: exemplos do Amapá e norte do Pará (2006), também foram realizados com esse objetivo, de contribuir com a valorização dos conhecimentos indígenas e, sobretudo, com a difusão das experiências políticas e culturais indígenas em curso naquela região.

Jovem kaxinawa.

Page 23: Parte 4 - Colaboração Científica

a n t r o p o l o g i a

129

“Ultimamente, tenho retomado minha pesquisa etnográfica sobre os índios Zo´e, no norte do Pará. Nessa trajetória, nunca mais voltei à UlB, nem mantenho contatos com antropólogos belgas. a não ser com os belgas que, como eu, se dedicaram ao Brasil. recentemente, tive a alegria de ser escolhida como orien-tadora de um jovem belga, com dupla nacionalidade, que tam-bém estudou na UlB. Nicodeme Costia de renesse concluiu seu mestrado em 2012 na USP e hoje desenvolve uma pesquisa de doutorado sobre os Surui-Paiter. Trajetórias que se repetem, sem nunca se repetir”.

Oiara Bonilla

“Sou belga, mas não pude nascer belga. Nasci em Paris, em 1975, de um pai uruguaio exilado e de uma mãe belga desenhis-ta. Mas, por lei, não podia ser nem francesa, nem belga. Só pude me tornar belga bem mais tarde, lá pelos 10-12 anos de idade, depois de uma modificação de lei que permitiu que os filhos de mães belgas nascidos no exterior tivessem direito a um passaporte. Quando nasci, era legalmente apátrida, até meu pai convencer o cônsul uruguaio a emitir um passaporte para mim. Toda minha fa-mília materna é belga e vive em Bruxelas, apesar de ser de origem húngara e holandesa. assim, sou mais uma belga por acidente, uruguaia nascida na França e, portanto, também francesa (nacio-nalidade também adquirida bem depois). acho que não preciso explicar por que quis ser antropóloga.

“Para complicar, vim parar no Brasil (recife primeiro e rio de Janeiro mais tarde) aos seis anos de idade e por aqui fiquei até a faculdade. Quando terminei o colégio resolvi estudar antropo-logia e escolhi ir para Bruxelas cursar ciências sociais na UlB. a adaptação foi difícil, por várias razões, mas principalmente porque fiquei decepcionada, pois já sabia que queria trabalhar na ama-zônia e por lá só se falava em África. Foi assim que, ainda no 2º ano de faculdade, decidi acompanhar um curso de 4º ano. era o único oferecido sobre índios na amazônia. ali conheci anne- -Marie losonczy, que lecionava essa matéria e rapidamente me encaminhou para Nanterre para terminar minha graduação com a equipe de americanistas de lá.

“Minha experiência belga durou pouco, fiquei apenas dois anos por lá, terminando a faculdade em Nanterre e logo voltando para o rio para fazer mestrado no Museu Nacional. Não tenho re-lações nem contato com antropólogos da UlB, nem com univer-sitários de lá, apenas com amigos e família. aliás, poucas pessoas de minha turma se tornaram de fato antropólogos, acho que com exceção de David Berliner, que é africanista e professor na pró-pria UlB. em 2000, voltei para a França, para fazer o doutorado, e lá tive filhos e me naturalizei francesa. Tenho um sentimento um pouco melancólico quando penso nesse não vínculo com a universidade e tenho uma sensação nítida e um pouco triste de que a Bélgica não apoia, não reconhece seus conterrâneos, nem valoriza muito aqueles que moram fora. essa sensação contrasta fortemente com a atitude (oposta) dos franceses. Para ilustrar isso, fui informada na semana passada (logo após o e-mail da els) que

estava sendo privada da nacionalidade belga por ter me naturali-zado francesa em 2006, quando o meu filho nasceu.

“O que mais posso dizer? Decidi estudar antropologia no úl-timo ano de colégio, quando descobri lévi-Strauss em 1992, du-rante as aulas de Filosofia de Terminale, no liceu francês, no rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, trabalhei como voluntária na organização da Conferência Mundial dos Povos Indígenas, con-ferência paralela à reunião das Nações Unidas conhecida como rio 92. essa experiência reforçou minha decisão de virar antro-póloga. estudei Ciências Sociais na Université libre de Bruxel-les, finalizando a graduação em etnologia já na Universidade de Paris X-Nanterre em 1996. Na época realizei uma monografia de conclusão de curso sobre os javaés da Ilha do Bananal, portanto já havia feito trabalho de campo no Brasil.

“em 1998, entrei no Mestrado no PPgaS (Programa de Pós- -graduação em antropologia Social), Museu Nacional, e conti-nuei minha pesquisa com os javaés e os carajás da Ilha do Bananal, sob a orientação de aparecida Vilaça. Defendi minha dissertação de mestrado em janeiro de 2000. ainda em 2000, fiz minha pri-meira viagem aos paumaris, no sudoeste do estado do amazonas. Poucos meses depois, já casada, me mudei para a França onde acabei me inscrevendo no doutorado após tentativas frustradas de fazer uma co-tutela entre o Museu e alguma universidade na Fran-ça (na época, as co-tutelas ainda não estavam bem regulamenta-das). entre 2001 e 2002 realizei meu trabalho de campo com os Paumari, voltando para a França em outubro de 2002. entre 2003 e 2005, trabalhei como leitora de língua portuguesa e civiliza-ção brasileira no Departamento de línguas da Universidade de Nanterre. Finalmente, defendi minha tese em setembro de 2007, voltando ao Brasil em 2009, para realizar um pós-doutorado de cinco anos, financiado pela Faperj, e desenvolvendo um projeto de pesquisa sobre cosmopolíticas indígenas e políticas públicas.”

Sob orientação de Philippe Descola, Oiara Bonilla defendeu sua tese sobre os paumaris, grupo de língua aruá, na école des Hautes études en Sciences Sociales de Paris, uma contribuição original e importante à etnologia ameríndia. Na teoria etnológica é bem conhecido o fato do discurso guerreiro estar bem presente nas sociologias ameríndias, assim como tem sido detectado uma ontologia que prioriza as relações de predação enquanto contexto no qual se desenvolvem as relações sociais, particularmente com outros seres humanos e não humanos. Neste contexto, os Paumari surgem com um discurso sócio e cosmopolítico particular, enfa-tizando sua posição de vítima e presa numa rede relacional onde precisam dos outros para serem protegidos, tanto no nível das re-lações interétnicas quanto na sua concepção de suas relações com outros seres do cosmos. é neste sentido que surge, no contexto das relações com os brancos, a figura do ‘bom patrão’.

Natacha Nicaise

O texto de Natacha Nicaise é um resumo, editado por mim, de um memorial que ela escreveu em 2012 para um concurso público e que me cedeu gentilmente. apresenta aqui a própria

Page 24: Parte 4 - Colaboração Científica

130

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

trajetória intelectual que levou a jovem estudante para o Brasil e a reflexão teórica sobre as diferenças entre os mundos acadêmicos belga e brasileiro, tal como foi experimentado por uma jovem es-tudante nos anos 1990 e 2000.

em suas palavras: “Deixei a Bélgica para me instalar no Brasil em 2002, após ter ganho uma bolsa do CNPq (Conselho Nacio-nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para realizar o doutorado no PPgaS/Museu Nacional/UFrJ. a decisão de continuar minha formação neste país aparece retrospectivamen-te como uma boa lente para colocar em relevo vários elementos de minha trajetória pessoal e profissional. em minha trajetória, acumulei diversas experiências de pesquisa em vários contextos nacionais (Brasil, Peru, Bélgica, União europeia, Haiti, estados Unidos), tratando de questões como tradições intelectuais, eco-nomia popular urbana, política e processos de comunicação, his-tória e memória institucional, identidades nacionais, políticas de desenvolvimento e pós-colonialismo. Na Bélgica, como em vários outros países nos quais as relações coloniais foram estruturantes, o passado colonial continua presente na cultura material, na ali-mentação, na arte, na presença de imigrantes oriundos da África e também nas próprias tradições intelectuais e acadêmicas. No mundo acadêmico brasileiro, procurava um distanciamento crí-tico em relação ao universo cultural que informava minha visão sobre as relações pós-coloniais.

“No doutorado, queria estudar as representações sociais das re-lações de cooperação para o desenvolvimento da europa e na eu-ropa, a partir de um âmbito cultural diferente e de outra tradição intelectual e, desse modo, tentar me afastar de pressupostos que percebia como embutidos na minha ‘condição de belga’, notada-mente um paternalismo difuso na abordagem das relações Norte- -Sul. Foram essas indagações — também carregadas, confesso, de rebeldia e irreverência juvenis — que motivaram minha decisão de realizar um doutorado fora da Bélgica e, em particular, no Brasil.

“Foi na ocasião da monografia de final de graduação, em 1997, que tive o primeiro contato com o país. graças a um encontro com uma professora alemã, na época diretora do laboratório de antro-pologia da Comunicação (laC) da Ulg, a Dra. Tomke lask, que havia feito seu mestrado no PPgaS e mantinha um estreito conta-to com a academia brasileira, fui recebida como estagiária naquela instituição por um período de três meses, visando desenvolver o projeto de análise comparativa da abordagem do xamanismo em um grupo de índios guaranis na obra dos antropólogos eduardo Viveiros de Castro e Pierre Clastres. esta primeira passagem pelo Brasil foi fundamental em minha trajetória; despertou um grande interesse pelo mundo acadêmico brasileiro e marcou o início de uma longa e interessantíssima jornada que me levou a me esta-belecer no país. Um encontro com a antropologia brasileira era improvável no contexto acadêmico belga.

“em 2002, iniciei meus estudos de doutorado no PPgaS. Co-mo orientanda do professor a. C. de Souza lima, integrei o laced (laboratório de Pesquisas em etnicidade, Cultura e Desenvolvi-mento). estudei a transformação das ‘relações coloniais’ em rela-ções de ‘cooperação para o desenvolvimento’ entre a Comunidade

econômica (depois União) europeia e a África. O fio condutor da minha investigação foi a política de comunicação oficial em dois momentos: na época da criação da Cee, no final dos anos 1950, e entre 2000-2005. em 2007, fui convidada para integrar uma equipe de pesquisadores brasileiros que participou da criação do Instituto Interuniversitário de Pesquisas e Desenvolvimento (Inu-red), no Haiti. a partir de então, comecei a pesquisar um universo social complexo, marcado pela presença da ONU (e do Brasil, no exercício do comando militar dos capacetes azuis), de agências in-ternacionais, de ONgs (algumas brasileiras, como o Viva rio) e de instituições acadêmicas brasileiras, norte-americanas, francesas, canadenses, haitianas e de outros países do Caribe.

“O Haiti e a região do Caribe transformaram-se em um dos meus centros de interesse. Desenvolvi várias atividades ligadas (1) à construção institucional – fui responsável pelas relações exterio-res do Inured entre 2007-2009; (2) à pesquisa – participando do laboratório State, Justice & Public Policy do Inured e da equipe coordenada pelo Prof. Federico Neiburg no âmbito do Núcleo de Pesquisas em Cultura e economia e, a partir de 2009, desenvol-vendo o projeto de pós-doutorado ‘Nações e Cooperação Interna-cional; a Foreign assistance norte-americana e o Haiti, 1942-2010’, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, sob a supervisão do Prof. Omar ribeiro Thomaz (bolsa Fapesp); e (3) à docência – ministrando cursos à distância para alunos da Univer-sidade do estado do Haiti.

a minha participação no Inured e a colaboração com a ONg brasileira Viva rio, que atua em Porto Príncipe, tem me permitido observar de perto as transformações e as tensões que acompanham a ‘cooperação internacional’ — por exemplo, situando como ato-res o governo e a “sociedade civil” brasileira e, com isto, abrin-do todo um leque de questões a respeito das novas modalidades da presença do Brasil no cenário internacional. até o momento, publiquei dois livros (em formato impresso e digital, em inglês, francês, português e creole haitiano) que permitem compreender a relação entre as necessidades e perspectivas da população e as formas de intervenção da cooperação internacional na área: Lixo, Estigmatização, Comércio, Política (2010) e A vida social da água (2009), ambos em colaboração com Federico Neiburg e editados em parceria entre o NuCeC e o Viva rio”.

Peter Beysen

Peter Beysen foi meu aluno no doutorado e escreveu uma bela tese sobre a estética corporal ashaninka, grupo arawak que habita a fronteira entre o Brasil (no acre) e o Peru. antes de vir para o Brasil cursou História da arte com especialização em arte étnica na Universidade de gand. O relato de Peter é o de um viajante à procura de outro mundo: “a ideia era, originalmente, ir para a Indonésia, o que não aconteceu porque a situação política não era muito tranquila, especialmente para falantes do holandês... Dois meses de mochila por Java, Bali, lombok e Sumbawa me fizeram escolher pelas ‘artes étnicas’ no curso de História da arte na Universidade de gand.

Page 25: Parte 4 - Colaboração Científica

a n t r o p o l o g i a

131

“O Brasil nos parecia uma segunda opção promissora: para minha esposa, especialista em estética médica, o lugar era ideal e para mim, tinha a floresta amazônica... Fomos parar em Joinville, por influência da ex-cunhada de um dos clientes de Sonja (esposa de Peter). em Joinville, passava meu tempo no ‘museu arqueológi-co de sambaqui’. O museu possui uma boa biblioteca e num certo dia peguei da estante, por acaso, o livro A temática indígena na escola, folheei o livro e parei numa foto dos Kaxinawa. em cima da foto estava impresso o nome elsje lagrou. Sorri por causa do nome inconfundivelmente holandês ou flamengo. alguém na sala reparou meu sorriso e me perguntou o que tinha me chamado a atenção. Para minha surpresa conheciam elsje lagrou, na época professora em Florianópolis, e especializada em antropologia da arte. els se revelou mais tarde a orientadora ideal para mim... els estava naquela época num processo de transferência da UFSC pa-ra o IFCS da UFrJ no rio de Janeiro, sem dúvida a cidade mais interessante do mundo...”

Peter Beysen terminou seu doutorado no Programa de Pós- -graduação em Sociologia e antropologia com tese intitulada Ki-tarentse. Pessoa, Arte e Estilo de Vida Ashaninka do Oeste Amazô-nico (2008). aborda a estética minimalista dos ashaninka a partir dos objetos fabricados e sua relação com desenhos, corpos e temas míticos que se organizam ao redor dos dois grandes eixos em torno dos quais gira a cosmovisão ashaninka: a procura pela imortali-dade e a fragilidade do amor. O autor argumenta que o belo para os ashaninka consiste no equilíbrio entre o pensar (seu estilo de vida é marcado pela observação e pela reflexão) e o fazer, no qual a história guerreira sempre funcionou como pano de fundo para o modo como se constituiu a pessoa ashaninka. é a força latente que se acarinha, constituindo esta o ideal da estética da arte corporal.

atualmente prepara um catálogo, com fotos de sua esposa fo-tógrafa, Sonja Ferson, uma exposição e uma coleção etnográfica sobre os ashaninka para o Museu do Índio no rio de Janeiro, onde possui bolsa temporária de pesquisa pela Unesco.

Preparação de pigmentos minerais.

Page 26: Parte 4 - Colaboração Científica

132

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

lucia Hussak Van Velthem

lucia Van Velthem pode ser contada hoje entre os seniores da disciplina antropológica no Brasil que fizeram a diferença, par-ticularmente no campo da antropologia da arte. a obra O belo é a fera, a estética da produção e da predação entre os Wayana, de 2003, se tornou um clássico no campo por antecipar, através de uma etnografia precisa e detalhada das técnicas de produção dos artefatos e das pessoas wayana, um paradigma que hoje domina a antropologia: a ideia que pessoas são como artefatos e artefatos são como pessoas.

a bem dizer, lucia Van Velthem não é belga, mas descen-dente de belga, de primeira geração. entretanto, seu nome e sua aparência, seu modo de ser, parecem mais belgas do que os de muitos belgas. Talvez por ser belga de coração! é na atitude aven-tureira do pai, que veio para o Brasil para nunca mais voltar, que Van Velthem localiza a origem de sua vocação pela antropologia e é com ternura que ela se volta inicialmente neste texto para a memória do pai:

“Meu pai, Pierre François Van Velthem nasceu em novembro de 1906, filho de Maria Beleyn e de François Van Velthem. este, segundo a tradição familiar, era um renomado decorador de vitri-nes de grandes magazines na Bélgica, França e alemanha e ela, a mimada filha de um próspero negociante de Bruxelas. a família se muda para antuérpia e as relações familiares o introduzem no aprendizado do entalhe de diamantes em um dos muitos negó-cios de joias e pedras preciosas mantidos por judeus nessa cidade. em 1925 viaja para o Congo Belga, mas logo decide tomar outros rumos e não permanece na África, seguindo para o Brasil, mais precisamente para Salvador.

“Da capital baiana ruma para o Vale do Jequitinhonha, em Minas gerais. Na época era um lugar remotíssimo, com lavras de diamante que remontavam, entretanto, ao século XVIII. Percor-re vilas e mais vilas e seus arredores: Datas, Serro, Milho Verde, São João da Chapada, Barão de Cocais, guinda, Diamantina e também lugares mais afastados como ‘Cavalo Morto’ onde, nos contou, havia inúmeros refúgios de quilombolas. Nessa região construiu a rede de amigos que o acompanharia para o resto da vida, mesmo morando no rio de Janeiro, onde se casou com uma filha de austríacos, e se estabeleceu.

“Quando eu tinha uns 10 anos, meu pai levou-me ao sertão de Minas em uma longa viagem e, enquanto registrava pessoas, pai-sagens e igrejas em aquarela, ensinou-me a abordar e a conversar com todas as pessoas: da mendiga da porta da Igreja do amparo ao filho do cartorário, fanático por brigas de galo. Tenho certeza de que foi esse aprendizado, repetido em muitas outras viagens, a última em 1970, dois anos antes de sua morte, que me conduzi-ram à antropologia e aos índios.

“Meu pai falava pouco da Bélgica e nunca de forma espon-tânea. Jamais esboçou qualquer iniciativa para viajarmos até seu país natal. Não sabemos nada sobre possíveis parentes belgas, os laços foram completamente rompidos. recordo que a música era uma das suas grandes paixões, a clássica interpretava ao violino e a

popular, na gaita. Também ouvia ópera seguidamente, sobretudo as preferidas: la Bohême e lucia di lammermoor, o que explica meu prenome. Juntamente com o sobrenome, constituem estes os frágeis e tênues laços que me ligam à Bélgica.

“Os laços são frágeis porque antes de me fazer conhecer e amar a Bélgica, meu pai me fez conhecer e amar o Brasil, o lu-gar que escolheu para viver e morrer. a minha grande ‘escolha’, por outro lado, foi ir contra todas as expectativas familiares e me graduar em Museologia em 1972. estavam esperançosos de que seria uma engenheira, após ter-me formado no curso técnico de calculista de concreto armado.

“a formação recebida no curso de Museologia não era em absoluto teórica, mas essencialmente prática. aprendia-se a iden-tificar estilos, modismos, fases, técnicas de peças de mobiliário e muitos outros objetos e artefatos, passíveis de serem encontrados em museus, não necessariamente brasileiros, pois nos debruçamos sobre as escritas medievais europeias. Na época, eu não atinava como me seria útil, no futuro, a intimidade visual e tátil adquiri-das, nesse período, com artefatos tão variados na forma e nos ma-teriais. a Museologia levou-me ao Museu Nacional, no rio de Janeiro. Desejava tornar-me restauradora de artefatos indígenas e assim busquei a Seção de etnografia. Heloisa Fénelon Costa desencorajou-me desse intento, mas encaminhou-me para a do-cumentação de coleções. Meus colegas, estagiários e bolsistas, vi-nham das Ciências Sociais e se dedicavam aos estudos dos povos indígenas altoxinguanos, assim como a própria professora. Como não havia a menor possibilidade de introduzir-me nesse território, busquei uma região distanciada, mas representativa no acervo. assim cheguei ao rio Negro e às coleções de artefatos plumários dos índios Tukano.

“era um trabalho descritivo e algo enfadonho. O divertido fica-va com a prosa do museólogo geraldo Pitaguary e o extraordinário com a descoberta de uma peça aqui, outra ali, no meio de dezenas de outras, nas caixas de metal do antigo ‘Depósito’. esse período foi marcado por encontros e orientações que vieram de muitos lados, mas sempre no cenário do Museu Nacional. Uma forte lembrança está ligada à figura de Berta ribeiro, que me cumu-lou de ensinamentos preciosos, e com a qual mantive duradouro compartilhamento de livros, cartas e o interesse pelos estudos de artefatos ameríndios.

“em meados de 1973 rumei para Belém do Pará, como alter-nativa à impossibilidade de me exilar na europa, para onde fo-ram muitos dos companheiros de militância política. em Belém, eduar do galvão, Protásio Frikel e expedito arnaud receberam-me muito calorosamente no Museu Paraense emílio goeldi, en-tão pertencente ao CNPq. Os estudos de plumária dos Tukano prosseguiram nas coleções deste museu, sob a batuta de galvão, de quem fui a última orientanda. Paralelamente dedicava-me, a pedido de galvão, a trabalhos propriamente museológicos na conservação da exposição permanente e foi esta especialidade que favoreceu minha contratação para o Museu goeldi em 1975. en-trementes, eu havia descoberto a etnologia e, sobretudo, a pers-pectiva de realizar trabalho de campo. assim, rumei com o antro-

Page 27: Parte 4 - Colaboração Científica

a n t r o p o l o g i a

133

pólogo alemão Protásio Frikel para o rio Cururu e para as aldeias dos índios Munduruku. Nessa viagem, Frikel desejava repassar o rigor e a dedicação de um trabalho de campo à maneira dos velhos mestres germânicos. assim, não parávamos: levantamentos nas ro-ças, escavações arqueológicas, coleta de mitos, inventários da cul-tura material, dos grafismos e das aldeias que visitávamos e ainda uma longa viagem – em canoa a remo – até os locais míticos dos Munduruku, no alto rio Cururu. Tudo isso provocava sucessivos choques intelectuais e sensoriais que me exauriam.

“em 1976 eu já estava na Universidade de São Paulo, no cur-so de pós-graduação da FFlCH (Faculdade de Filosofia, letras e Ciências Humanas), e tinha como orientadora a professora lux B. Vidal, que generosamente me transmitiu seus conhecimentos e sabedoria, e assim se tornou uma pessoa marcante em minha vida. a USP era, na época, um importante foco de pesquisas sobre índios e lux Vidal reunia um grupo de estudantes interessados nas possí-veis correlações existentes entre estética e cosmologia, mas tendo como ponto de partida os artefatos materiais. Descobri assim a úni-ca via propícia para uma museóloga, e por ela sigo até o presente!

“O ingresso na USP abriu-me as portas da reflexão teórica, da história da antropologia e dos estudos sobre os índios do Brasil Central, através das aulas de professoras de origem alemã: lux Vidal, Tekla Hartmann e renate Viertler. Os cursos proporcio-naram também o encontro de pessoas que me acompanham até hoje, umas mais próximas, outras mais distanciadas: Dominique gallois, alba Figueiroa, regina Muller, els lagrou, Silvia Caiuby,

Nadia Farage, Marta amoroso e as saudosas Vera P. Coelho e ara-cy l. da Silva.

“as leituras teóricas – sobretudo lévi-Strauss – requeriam a abertura para novas experiências acadêmicas. Paralelamente era necessário ser pragmática, e assim encontrar um povo indígena que fosse pouco estudado, mas que pudesse ser acessado com fa-cilidade. Cheguei então ao Parque Tumucumaque, frequentado semanalmente pelos aviões da Força aérea Brasileira. a primeira viagem, em 1975, foi precedida da leitura de parte da bibliografia etnológica existente sobre os Carib norte-amazônicos – sobretudo Daniel Schoepf que me apresentou aos Wayana – para detectar onde pousar nesse vasto território indígena, contemporâneo do Parque do Xingu. a porção leste pareceu-me a mais adequada, pois não estava marcada, nem por debates teóricos palpitantes, nem por etnografias exaustivas. Os contatos iniciais com os Wa-yana e aparai foram decisivos. Meus olhos os viram e os veem como pessoas de aguçado senso estético e de grande sabedoria. O que foi percebido, na ocasião, permitiu-me esboçar o projeto geral da dissertação de mestrado: o estudo de uma categoria artesanal proe minente, a cestaria.

“Outras viagens ocorreram: umas mais demoradas outras mais curtas, quando a malária se manifestava. Fixei-me em uma aldeia essencialmente wayana - Xuixuimëne, no médio rio Paru de les-te – onde encontrei pessoas acolhedoras e especialistas dispostas a compartilhar seus saberes. Nesse período não tinha meios de avaliar que os estudos da arte e das categorias materiais dos Waya-

Apresentação de dança indígena no evento Europalia.Brasil, 2011.

Page 28: Parte 4 - Colaboração Científica

134

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

na seriam tão fascinantes, tão absorventes e tão demorados, con-sumindo assim 20 anos, até 1995, ano em que defendi a tese de doutorado, ainda na USP e ainda sob a entusiasmada orientação de lux Vidal. Os anos foram longos entre os Wayana porque as pesquisas e as publicações se entremearam com os trabalhos de delimitação da Terra Indígena rio Paru d’este, ao norte do Pará.

“Os estudos posteriores ao mestrado continuaram girando em torno das técnicas e tecnologias da produção material dos Waya-na: cerâmica, entalhe, plumária, arquitetura, culinária, mas não apenas isso, pois a formação adquirida me permitia enveredar por outros campos de expressão, essencialmente relacionais, e assim contemplavam a pessoa humana – os uaianas – e o resto do uni-verso, o que se tornou a pedra fundamental sobre a qual repousa minha tese de doutorado, intitulada O belo é a fera. A estética da produção e da predação entre os Wayana.

“após o doutorado engajei-me na busca de outros horizontes teóricos, metodológicos e de ação, inclusive entre os Wayana e os aparai, entre os quais permaneço em atividade desde 2005, coordenando projetos de valorização cultural em parceria com o Iepé e com o Museu do Índio (ProDeCult). em 1999 tive a oportunidade de voltar a um antigo cenário: o rio Negro, mas agora engajada em uma pesquisa multidisciplinar sobre o siste-ma agrícola, no contexto de um projeto de cooperação bilateral (Pacta). Neste projeto busco decifrar o sistema de objetos relacio-nados com o processamento da mandioca. regressei também ao campo museológico. este retorno à Museologia teve como pon-to alto a curadoria do módulo ‘artes Indígenas’ na monumental Mostra do redescobrimento em 2000, mas também se exerceu em outras exposições no Brasil e no exterior, inclusive ‘Índios no Brasil’, montada no contexto da Europalia, em Bruxelas, e em parceria com gustaaf Verswijver!

“entretanto, não me ative exclusivamente aos projetos expo-sitivos, pois assumi a gestão curatorial da Coleção etnográfica do Museu goeldi e de um ambicioso projeto de reformulação da reserva Técnica, concluído com algum êxito. a Museologia me possibilitou ainda trabalhar com lux Vidal no amapá, em cursos de capacitação museológica para os técnicos do Museu Kuahi dos Povos Indígenas do Oiapoque, e de presentemente ser a coorde-nadora brasileira do projeto ‘Museus da amazônia em rede’ que une em parceria o citado museu paraense e museus do Suriname e guiana Francesa.

“atualmente trabalho em Brasília, no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Da esplanada dos Ministérios, continuo tecendo uma ampla rede de laços afetivos e profissionais com an-tropólogos, museólogos, biólogos, ativistas de muitos lugares e paí-ses e, sobretudo, com os Wayana e aparai e também com os Baré, Tukano e Baniwa, junto aos quais desejo envelhecer”.

Belgas antropólogos que voltaram: gustaaf Verswijver

“Originalmente eu queria, evidentemente, como todo belga com aspirações de se tornar antropólogo, fazer pesquisa de campo

na África. Com esta intenção fui duas vezes, entre 1972 e 73, ao Museu real da África Central (Koninklijk Museum voor Midden-Afrika/Musée Royal de l’Afrique Centrale) de Tervuren (Bruxelas) para apresentar meus planos. Primeiramente queria ir para o Con-go, depois para a etiópia. em ambos os casos me desaconselharam a ir adiante por causa de problemas ou instabilidade políticos.

“Durante uma viagem pela europa encontrei os professores Simone Dreyfus-gamelon (école des Hautes études en Scien-ces Sociales, Paris) e rené Fuerst (genève), que influenciaram fortemente a escolha do meu campo, pois foi em parte motivado por seu entusiasmo que parti em 1974 para os Kayapó do Brasil Central. apesar do fato de o grupo escolhido, os Mekrãgnoti, vi-ver naquela época ainda muito afastado, nunca me arrependi de ter feito esta escolha. entre 1974 e 1981 fiz pesquisa de campo entre os Mekrãgnoti de forma intensiva, aprendi sua língua e me aprofundei nas suas expressões culturais materiais, assim como nas suas práticas de guerra.

“Me engajei ativamente para que os Mekrãgnoti pudessem obter uma terra significativamente maior do que o previsto ori-ginalmente. Depois da obtenção do doutorado cheguei a pensar em ficar no Brasil para neste país viver e trabalhar, mas a sorte o decidiu de outro modo e em 1990 fui parar finalmente no... Mu-seu real da África Central. atualmente trabalho nesse museu no setor de etnografia, onde me especializei em povos pastores da África Oriental, mais particularmente na região fronteiriça entre o Sudão, a etiópia, o Quênia e Uganda. Os temas principais das minhas pesquisas são a decoração corporal e os conflitos intergru-pais onde o gado ocupa um lugar central”.

No Brasil gustaaf Verswijver manteve intensas relações de troca e colaboração acadêmicas com as professoras antropólogas da USP Thekla Hartman, renate Viertler e lux Vidal e conhe-ceu as colegas de geração Dominique gallois e lucia Van Vel-them. as pesquisas de Verswijver entre os caiapós resultaram em várias publicações, a tese em 1992, The Club-Fighters of the Ama-zon: Warfare among the Kayapó Indians of Central Brazil (Uni-versidade de gand, Bélgica), a mais detalhada análise do sistema guerreiro caiapó até hoje e ainda o catálogo Kaiapó – The Art of Body Decoration –, com fotos da coleção etnográfica dos Kayapó Mekrãgnoti-Mebengokre, montada por Verswijver para o Mu-seu real da África Central. em 1996 publicou ainda Mekranoti – Living Among the Painted People of the Amazon, pela Prestel-Verlag (Munique).

entre 1997 e 2002, Verswijver passou longos tempos no Brasil, coordenando um projeto com os Kayapó, e organizou dois rituais de iniciação para seus filhos (ver os filmes descritos neste livro). entre 2010 e 2011 Verswijver organizou, em colaboração com lucia Van Velthem e com a assessoria acadêmica de Dominique gallois, a exposição sobre os Povos Indígenas no Brasil para a eu-ropalia na Bélgica em 2011. Juntos editaram o catálogo Índios no Brasil, além de novo livro com fotos suas entre os Kayapó. ainda em 2010, editou com Maria Isabel B. ribeiro um album de fo-tos intitulado Diários de viagem: fotografias de Leopold III: 1962- -1967 com fotos das viagens do rei leopold III ao Brasil.

Page 29: Parte 4 - Colaboração Científica

a n t r o p o l o g i a

135

arnaud Halloy

arnaud Halloy, atualmente professor na Universidade de Nice, no sul da França, é um jovem antropólogo belga que fez pesquisa de campo num terreiro de Xangô no recife, fazendo doutorado na UlB. acompanhou também os últimos anos de vida de um terreiro de candomblé caboclo na Bélgica, na pequena cidade de Carnières (ver seu verbete no capítulo religião).

em 2006 publica um artigo surpreendente, “Un anthropolo-gue en transe. Du corps comme outil d’investigation ethnographi-que” (in Joël Noret e Pierre Petit, eds.). Halloy empreende uma descrição detalhada e reflexiva do processo de aprendizado, pre-paração e vivência do transe, a possessão por um orixá no candom-blé. Não se trata de um relato meramente descritivo ou subjetivo, mas, antes, de mostrar como a etnografia e a vivência produzem um conhecimento especificamente antropológico.

em suas palavras: “a respeito da minha relação com o Brasil, ela continua muito viva. eu sou casado há quase 20 anos com uma brasileira. então o laço amoroso continua forte! eu cultivo também uma relação artística com o Brasil. Montei com a minha esposa – arlene rocha, ela é bailarina e coreógrafa de danças po-pulares brasileiras – um maracatu (http://maracatumix.blogspot.com) no sul da França e outro em Bruxelas. além disso, parti-cipo atualmente da montagem de um projeto de troca artística entre o Brasil e o Benin. Finalmente, continuo trabalhando sobre o candomblé, apesar de não conseguir ir ao Brasil todo ano. O

vínculo com a minha família-de-santo em recife continua forte. Vou publicar o meu primeiro livro cujo título é Une anthropo-logie des émotions. L’apprentissage de la possession dans un culte afro-brésilien.

De volta ao Brasil: els lagrou

“guardei minha autoapresentação para o final deste artigo, misturando a narrativa da minha trajetória pessoal com a profis-sional. Diferentemente de alguns, que vieram para o Brasil quase que por acaso, o Brasil estava no horizonte de meus sonhos de infância desde tenra idade. Conta minha mãe que eu dizia aos sete anos que me casaria com um índio, e se naquela época ainda não era claro se este índio moraria nos estados Unidos ou na flo-resta amazônica, pouco a pouco fui adquirindo uma predileção pela américa latina. Para tal ajudou a experiência de morar em lovaina, cidade universitária, onde viviam muitos estudantes la-tino-americanos, especialmente durante o período das ditaduras no Chile, na argentina e no Brasil. Minha mãe participava do comitê de recepção dos estudantes estrangeiros da universidade e dessa maneira tivemos, eu e meus irmãos, desde cedo contato com estudantes e suas culinárias de todas as partes do mundo. Meu pai também contribuía com a internacionalização do clima em casa, trazendo para o jantar vários dos seus orientandos latinos, do México, Peru e Brasil. assim fomos sendo seduzidos por este jeito caloroso que os latinos têm de se relacionar com os amigos,

Paramentos utilizados em dança indígena apresentados no evento Europalia.Brasil, 2011.

Page 30: Parte 4 - Colaboração Científica

136

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

em contraste com a clássica, porém não por isso menos afetiva, reserva flamenga.

“No final do secundário, já sabia que queria estudar antro-pologia. Na Universidade de lovaina, no entanto, não existia a possibilidade de fazer antropologia na graduação. Deste modo, fui estudar História Contemporânea. lá tive aula de História do Brasil com o professor eddy Stols, que era, já naquela época, um apaixonado pelo Brasil. eu namorava então um belga que estava se preparando para passar um ano como professor visitante no Brasil. Depois de defendida a dissertação, parti para o Brasil, mais particularmente para Florianópolis. Depois de curto período de adaptação e aprendizado da língua, fiz a seleção para o mestra-do em antropologia na UFSC, em 1987. O ambiente acadêmi-co que lá encontrei me empolgou muito, especialmente por ter sido esta minha primeira experiência com o modelo de ensino por seminários.

“Sob orientação de Jean langdon, queria estudar a arte, a pin-tura corporal e o xamanismo de algum grupo amazônico. resolvi perguntar a opinião de Berta ribeiro, conhecedora das artes in-dígenas, que me convidou para um encontro em seu apartamen-to no rio de Janeiro. Berta estava acompanhada de Nietta lin-denberg Monte, na época coordenadora da comissão pró-índio do acre. Foi assim que elas decidiram que eu estudaria os Kaxinawa. Saí de lá com uma lista de nomes a procurar até chegar a rio Bran-co. Minha chegada em campo, em 1989, se deu em momento histórico: o Primeiro encontro dos Povos da Floresta, que visava formalizar e pensar a aliança entre seringueiros e povos indígenas da região em defesa da floresta. este encontro aconteceu um ano depois da morte de Chico Mendes, o precursor dessa aliança, e reunia pesquisadores e militantes do país e do exterior. Foi nessa ocasião que Terri aquino, histórico aliado dos Kaxinawa, me apre-sentou a Pancho, chefe da aldeia recreio e articulador político da região do alto Purus. Quando ele e seus familiares regressaram à aldeia, fui junto. Fomos acompanhados também por Siã Osair Sales, jovem liderança kaxinawa do rio Jordão que pretendia via-jar até o Peru para encontrar e filmar seus parentes. essa viagem daria origem a um dos primeiros filmes de vídeo nas aldeias, que Siã editaria mais tarde em São Paulo ao lado de Vincent Carelli.

“Minha primeira viagem de campo foi iniciática. Permane-ci cinco meses ininterruptos e sem comunicação ou notícias do mundo de fora nas aldeias recreio e Nova aliança no alto Purus. essa pesquisa resultou na dissertação de mestrado Entre o cobra e o Inka: uma etnografia da cultura kaxinawa (1991), na qual as questões centrais das minhas futuras pesquisas já estavam pre-figuradas: a relação entre percepção e cognição; o modo como determinadas técnicas perceptivas e expressivas dialogam com uma ontologia específica onde a transformabilidade dos seres ocupa lugar central (o que veio a ser batizado mais tarde como perspectivismo, Viveiros de Castro, 1996). Na dissertação explo-rei a relação entre a existência de dois conceitos distintos para imagem (dami [figura] e kene [grafismo]) e suas relações com a complementaridade de gênero e o xamanismo. resumidamen-te, notei através da análise dos rituais femininos de iniciação na

arte do desenho e de toma coletiva da bebida indutora de expe-riência visionária, a ayahuasca, pelos homens que existe entre os Kaxinawa uma especialização de gênero que gira em torno da complementaridade entre imagens, figuras e grafismos. Os mitos ensinam que o dono do poder transformador de todas as formas percebidas (ou seja, da fenomenologia kaxinawa) é a anaconda mítica, Yube. este ser está na origem tanto da arte do grafismo aprendido pelas mulheres quanto da experiência visionária com ayahuasca, também chamada de dami (figuras em transformação, imagens). Mais tarde adicionaria um terceiro termo ao arcabouço nativo da percepção: o conceito yuxin, que também significa ima-gem, mas imagem enquanto fonte agentiva de outras imagens: a agência que está por trás da transformação de uma imagem em outra. Os yuxin são seres sem corpo que podem mudar de forma e os yuxibu, superlativo de yuxin, seres que podem transformar as formas dos seres ao seu redor.

“Nas pesquisas de campo posteriores, em 1991, e entre 1994 e 1995, aprofundei os insights do mestrado através da análise e exe-gese do ritual, dos cantos rituais e dos mitos a eles associados do rito de passagem para meninas e meninos, o nixpupima, ritual de enegrecer os dentes das crianças. este ritual condensa o discurso e práxis kaxinawa em torno da fabricação dos corpos das crianças e sua preparação para a vida adulta. Foi por intermédio da análise do ritual que pude pensar a agência das imagens e dos grafismos, assim como dos artefatos e sua relação com os corpos a partir de uma perspectiva nativa. este material resultou na minha tese de doutorado em 1998.

“Ingressei no doutorado da USP em 1992, sob orientação de lux Vidal. Morei em São Paulo durante um ano. lux já tinha se aposentado das aulas. Mas tive aula com Joanna Overing, Manue-la Carneiro da Cunha e roberto Cardoso de Oliveira. em 1993 fiz um concurso para Professor em antropologia na UFSC. Passei, assumi e deste modo interrompi o doutorado por dois anos, porque estava ministrando aula. em 1994 fui liberada para fazer pesquisa de campo até meados de 1995.

“Depois recebi o convite de Joanna Overing para passar um ano como Research Assistant na London School of Economics, onde ela lecionava. Quando embarquei para a Inglaterra, no en-tanto, ela já estava de mudança para St. andrews, onde acabara de ganhar um Professorship. Joanna Overing levou toda sua legião de alunos de londres consigo para animar a pacata St. andrews na escócia. Fiz parte dessa primeira geração de etnólogos em torno de Overing e lá fiquei por dois anos. Por causa desta longa temporada inglesa/escocesa resolvi fazer um duplo doutorado, re-conhecido na Inglaterra e em São Paulo. Mas, já que não existia convênio entre os dois países, tive que defender a tese duas vezes, traduzindo-a do inglês para o português para defendê-la novamen-te, na minha volta ao Brasil, na USP. O período inglês foi para mim o ponto da virada. Se já sabia que uma volta para a Bélgica seria difícil, ficar por um tempo na Inglaterra me parecia tenta-dor. Mas eu já era funcionária pública no Brasil, portanto nada disso seria fácil. a questão, no entanto, felizmente nem chegou a se colocar, pois foi em St. andrews que conheci meu atual ma-

Page 31: Parte 4 - Colaboração Científica

a n t r o p o l o g i a

137

rido com quem voltei novamente para o Brasil, desta vez com a certeza absoluta que era para ficar. O problema a enfrentar agora era o de obter a permissão de transferência de Florianópolis para a Universidade Federal do rio de Janeiro. Os colegas cariocas do Departamento de antropologia foram extremamente receptivos. Foi com o intuito de tornar nossa filha bilíngue, ela tinha dois anos e começava a falar, que passamos seis meses na Bélgica, entre 2004 e 2005. Nos apresentamos à Universidade de lovaina para sermos professores visitantes sem remuneração adicional, pois estávamos de licença sabática na nossa universidade. Demos algumas pales-tras para os cursos de pós-graduação. Um ano mais tarde, cheguei a Paris para uma pesquisa com uma bolsa leg lelong de quatro meses (pelo CNrS).

“Para concluir um resumo sobre minhas atividades acadêmi-cas mais recentes: Sou professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e antropologia do IFCS, UFrJ, desde 2000. Sobre minha pesquisa entre os caxinauás publiquei em 2007 o livro A fluidez da forma: arte, agência e relação numa sociedade ama-zônica (kaxinawa) (Topbooks). este retoma os recentes debates teóricos no campo da etnologia e da antropologia da arte, os prin-cipais resultados da minha pesquisa no campo da antropologia da percepção. em 2009 publiquei o livro Arte indígena no Brasil, editado pela Com/arte, um ensaio teórico sobre a questão da arte em contextos onde este conceito não existe, estabelecendo um diálogo com as discussões no campo da arte conceitual. acabo de terminar um livro, em coedição com Carlo Severi (professor da école des Hautes études en Sciences Sociales, Paris), Quimeras em diálogo: xamanismo, grafismo e figuração, que reúne artigos de especialistas brasileiros e estrangeiros sobre a temática da rela-ção entre mostrar e ocultar nas artes e nos rituais relacionados ao xamanismo, tanto na amazônia como na Sibéria e na américa do Norte. O livro é um dos resultados de um convênio de pesquisa da Capes/Cobecub entre a UFrJ (PPgaS/MN e PPgSa/IFCS), o Collège de France, eHeSS, e o Centro de Pesquisa do Musée do Quai Branly entre os anos 2006 e 2010. atualmente continuo ligado ao grupo de Pesquisa Internacional do Quai Branly e sou correspondente de sua revista gradhiva.

“Tenho formado meus orientandos de pós-graduação nos cam-pos da antropologia da arte e na etnologia e coordeno desde 2008 um projeto de pesquisa em convênio com o Museu do Índio e a Unesco, “Construindo culturas, documentando tradições” (Pro-docult), assim como um projeto de documentação sobre os usos e significados da miçanga entre as populações indígenas no Brasil, igualmente em colaboração com o Museu do Índio. além dis-so, coordeno o Núcleo de artes, Imagem e Pesquisa etnológica

(Naipe) e os Seminários ameríndios bimensais do PPgSa, IFCS desde 2002. Minhas áreas de interesse atuais englobam a etnolo-gia ameríndia, seus regimes ontológicos, sociais e estéticos, assim como a antropologia da arte, da imagem e dos artefatos em geral. Neste último campo iniciei há alguns anos uma pesquisa sobre a figuração de santos e bichos em Juazeiro do Norte (Ce), pesquisa esta em colaboração com Marco antonio gonçalves e cujos re-sultados resultarão em filmes e publicações”.

Conclusão

Não posso deixar de querer encontrar alguns fios na meada destes relatos de belgas antropólogos tão diferentes entre si. Um primeiro elemento que ressalta aos olhos é que muitos se torna-ram etnólogos, estimulados às vezes pela leitura de lévi-Strauss, este gigante das Ciências Humanas do século 20, que fez muito para colocar os índios brasileiros no mapa do mundo, às vezes pe-la simples vontade de viajar para longe. a vocação pela etnologia ameríndia, que implica em viver numa aldeia na floresta amazô-nica, pode representar este sonho por um mundo diferente, comu-mente batizado de atração pelo exótico que caracterizaria o olhar ocidental sobre o mundo. Para se tornar antropologia, no entanto, esta vivência, que pode iniciar por um desejo pelo distante, por uma experiência de alteridade, precisa ser traduzida em termos inteligíveis que eliminam exatamente este aspecto fantasioso do outro idealizado e de incompreensão. Conhecer o outro é, nas pa-lavras de Michael Taussig, tornar-se parcialmente outro. e é disso que se trata na antropologia. esta experiência vale para qualquer campo, que seja num terreiro de Xangô, numa aldeia indígena ou no mundo relacional de espelhos invertidos entre agentes de políticas desenvolvimentistas europeias e representantes de países em desenvolvimento.

Um elemento que me parece transpassar todos os textos aqui reunidos é a dificuldade do movimento de ida e volta. Para todos, o Brasil significou a descoberta de mundos de experiência e de pen-samento antes insuspeitados. a melancolia deriva do movimento de retorno: quando se percebe o quão difícil é invocar o mundo de pensamento, reflexão e criação que se conheceu lá fora, mas que os que ficaram em casa desconhecem. é desta maneira que surge uma diferença crucial entre os mundos imaginários belga e francês: o Brasil existe no mapa do imaginário francês, mas existe muito pouco no dos belgas. Mas talvez seja muita presunção que-rer comparar a Bélgica, país tão pequeno e temeroso de ser uma periferia de vários centros, com o gigante intelectual que continua sendo a França no mundo.

Page 32: Parte 4 - Colaboração Científica

138

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

Quando a selva chamaDa n i e l D e Vo s

Desde minha infância meu irmão mais velho me contava so-bre os exploradores da África: livingstone, Stanley, Burton…

ele também queria ser explorador. Um dia – eu tinha na época 14 anos – descobri a existência da floresta amazônica, a maior do mundo. Já que meu irmão iria à África, minha escolha estava fei-ta. a África seria dele, a floresta amazônica seria minha! Informei meus pais, mas estes riram muito de meus planos.

Comprei um livrinho O Português sem custo e em janeiro de 1981, com 21 anos, parti por alguns meses ao Brasil. eu sabia pouca coisa sobre a amazônia. Tinha lido alguns livros do autor holandês anthony Van Kampen. Seu trabalho com os leprosos na floresta amazônica brasileira me emocionou bastante. Seus livros me fizeram, a caminho do interior da amazônia, passar por Ma-naus. lá encontrei um padre da Congregação holandesa do espíri-to Santo que me propôs acompanhá-lo até Carauari, no rio Juruá, para conhecer a população e a selva. assim dito, assim feito. lá, entrei em contato através de outro padre e de uma enfermeira com os leprosos. Cada dia participava da ronda da enfermeira pelos bairros de leprosos para tratar suas feridas. após algum tempo eu os visitava sozinho. Sua condição dolorosa me deixou comovido por muito tempo. em Carauari toquei um dia no assunto índios, mas veio pouca ou nenhuma resposta. Dizia-se mesmo: ‘Dentro de dez anos não haverá mais índios no Brasil!’

No final desta primeira viagem topei em Manaus com o fina-do Simon le Fevere de ten Hove. ele voltava de uma aldeia Ya-nomami e queria ir de novo na direção do rio araçá, um afluente do rio Negro. Decidimos nos preparar para uma nova viagem às terras dos Yanomamis, com o propósito de realizar um docu-mentário em 16 mm sobre a vida na amazônia. Passamos algu-mas semanas numa aldeia Yanomami, seguimos a extração da borracha pelos seringueiros e visitamos duas minas de ouro na região de Itaituba (rio Tapajós), onde se coletava o pó de ouro na floresta e no rio.

Depois de seis meses, em maio de 1982, nosso filme estava pronto. recebeu o título de Grito Amazônico. entretanto, voltei a Carauari e fiz um filme e uma reportagem de diapositivos. Na Bélgica, consegui recolher algum dinheiro para a construção de um lar para os leprosos que viviam às margens do rio Juruá e que poderiam residir lá, quando precisavam de longos cuidados médicos.

em 1983 Simon e eu partimos de novo por um ano para o Brasil. Mas nossos caminhos se separaram logo. eu fui a Carauari para o lar, cuja administração passou inteiramente para as mãos do município. Simon queria fixar-se definitivamente no Brasil e ocupava-se com infinita paciência da maçada administrativa, en-quanto trabalhava para uma ONg com meninos de rua em Ma-naus. Somente dois anos mais tarde eu voltaria por um tempo mais longo à aldeia dos Yanomami para estudar seu idioma e cul-

tura. No entanto, em setembro de 1995 a fatalidade bateu à porta e Simon foi assassinado perto de sua casa em Manaus por dois meninos de rua. Quinze minutos antes da rixa à facada, Simon e eu tinhamos nos despedido depois de uma comidinha. Meu me-lhor amigo, o animado e sempre alegre Simon, não estava mais presente. Seu passamento significou uma perda pessoal extrema-mente penosa. Com ele vivi muitas aventuras e minha primeira vivência com os índios amazônicos. a partir daí, algo mudou na minha relação com o Brasil. Nunca mais seria a mesma. Simon nos deixou vários diários de seu trabalho de campo, assim como um dicionário Yanomami.

Depois de Carauari, ainda no ano de 1983, eu queria decidi-damente subir o rio Japurá. Tinha a impressão que era um dos tantos rios desconhecidos do estado do amazonas. Pude acom-panhar um regatão no rio Japurá e fiz uma reportagem sobre os ribeirinhos e sua relação com o regatão. Terminei minha jornada numa aldeia dos índios Maku-guariba. Mais tarde visitei, numa segunda viagem de barco pelo rio Japurá, uma aldeia Kanamari.

No início dos anos 80, percorri principalmente o estado do amazonas, às vezes o do Pará. Tinha visto tantos recantos da selva e observado diversas populações, mas em nenhuma parte podia montar minha tenda.

Isto mudou quando encontrei Pedro Inácio Pinheiro Ngematü-cü. em janeiro de 1984 fui para o alto Solimões. Fiquei sabendo que na cidadezinha de Benjamin Constant existia um pequeno centro de encontro, onde os índios do alto Solimões (principal-mente os ticuna) se reuniam regularmente. lá topei com Pedro Inácio Pinheiro, na época presidente do CgTT (Conselho-geral da Tribo Ticuna), ou seja, capitão-geral do povo Ticuna. Contei- -lhe minhas andanças pela amazônia. ele me convidou para sua aldeia Vendaval a fim de conhecer o povo Ticuna e enteirar-me de sua problemática.

No momento de minha chegada à região Ticuna, a luta para a demarcação oficial das terras estava em pleno andamento. Patrões brancos foram expulsos e os índios acabavam de ganhar alguma liberdade, uma recuperação de suas raízes despontava, como tam-bém a conscientização de seus direitos à terra previstos pela cons-tituição. Os Ticuna empenhavam-se para fazer valer estes direitos. Junto com Pedro e mais alguns da aldeia de Vendaval partimos de canoa às numerosas aldeias Ticuna para convidar os capitães Ti-cuna (como se chamavam os chefes de aldeia) para uma reunião geral para discutir a estratégia a seguir. Vários chefes e membros do Conselho Ticuna me pediram para divulgar fora do Brasil sua problemática, sobretudo dos direitos à terra. Desde o começo era evidente que não queriam ser objetos, mas sujeitos.

Com estas lutas subiram as tensões entre os diversos grupos de população e interesses na região do alto Solimões. atingiram um ponto dramático com o massacre de Capacete, em 28 de março de

Page 33: Parte 4 - Colaboração Científica

a n t r o p o l o g i a

139

1988, quando, num conflito com um madeireiro, 14 índios Ticuna desarmados morreram e 23 outros ficaram feridos.

Para levar seus problemas a público fora do Brasil não consegui muito mais que algumas entrevistas na imprensa e na rádio. após o massacre aderi ao recém-fundado grupo flamengo de apoio aos povos indígenas, o KWIa. escrevi alguns artigos para sua revista e, em parte porque houve pouco avanço no processo e julgamento dos culpados e na demarcação oficial de sua área, decidi, em co-laboração com o KWIa, convidar Pedro para ir à Bélgica. assim, ele poderia contar pessoalmente sua história à imprensa e buscar apoio nas diversas organizações internacionais. Foi a primeira vez que Pedro veio à europa. Nessa ocasião escrevi o livrinho Calha Norte e os índios do Norte do Brasil – A problemática dos índios Yanomami, Tikuna e waimiri-atroari. (Série Inheemse Volkeren Vandaag t. 1, 1990, edição KWIa).

em 1991 demarcaram-se oficialmente as duas principais áreas dos Ticuna. em 1993 fui convidado pelo Tropenmuseum (Museu dos Trópicos) de amsterdã para prepararmos juntos a exposição amazônia, que abriria em 1996. esse projeto sobre a cultura Ti-cuna focalizaria a festa da fertilidade. O Conselho Ticuna concor-dou e apreciou a colaboração com o Tropenmuseum. Procurou-se, então, uma coleção representativa da cultura material, junto com a necessária documentação. Para os Ticuna, a mostra de objetos seria uma excelente oportunidade para contar sua vida e luta. No final de 1996 chega uma delegação Ticuna a amsterdã e Pedro abre oficialmente a exposição.

De repente, feita a demarcação, não havia mais interesses co-muns ou ameaças. a união, antes tão importante na luta pela terra, parece perdida. Surgem sérios conflitos e divisões na comunida-de Ticuna. até os próprios pesquisadores se separaram contra sua vontade em dois campos. reinava a suspeita e tornou-se difícil trabalhar nas comunidades Ticuna.

Porém, não desisti de minha pesquisa de campo. Continuei seguindo os desenvolvimentos e as mudanças políticas dentro da comunidade Ticuna e escrevendo artigos para a revista Inheemse Volkeren do KWIa. Voltei a estudar e obtive, em 2002, bacharela-

do em Ciências da Família. Meu trabalho final tratou da educa-ção entre os povos índigenas Ticuna, Yanomami e Sioux.

em 2007-2008 colaborei em duas exposições no Etnografisch Museum de antuérpia exclusivamente sobre o ritual da “moça no-va” entre o povo Ticuna e no Musée International du Carnaval et du Masque (Binche) com uma parte sobre a festa da fertilidade entre os Ticuna. O catálogo da exposição de Binche, Basiques Instincts, leva um artigo meu, Worecü et la démarcation du territoire – La fête de la Nouvelle Fille ou la fête de la fertilité chez les Indiens Ticuna, que trata da festa e também do papel da festa na luta pela terra.

No quadro da europalia.Brasil e da exposição Índios do Brasil (2011) fiz, no Musée Royal d’Art et d’Histoire, duas conferências sobre os Ticuna: desde os primeiros contatos com o colonizador, os barões da borracha, a luta, a festa… até os acontecimentos e desafios atuais para o povo Ticuna. O fio da meada nesta história continua sendo o papel-chave de Pedro na luta pela terra e no que lhe aconteceu depois da demarcação.

ao longo dos 29 anos que trabalho com Pedro, tive desde o início até hoje um vínculo muito íntimo e uma profunda amiza-de. ele foi quem me iniciou e introduziu à vida, ao espírito e à problemática dos Ticuna. Na medida do possível partilhei com ele todas as minhas iniciativas ou lhe comuniquei estas posterior-mente. atualmente preparamos juntos um projeto sobre esculturas de madeira e frutas.

Seja como for, minha estada no Brasil foi determinante para o resto da minha vida. levanto-me e deito literalmente no Brasil! Houve momentos em que duvidava, sentia um amor infinito ou uma dor profunda… “o que pelo amor de Deus venho eu ainda fazer aqui?” Mas recebia então um novo encargo ou o chamado da selva, que se apoderava tanto de mim que simplesmente ia comprar uma passagem na direção da amazônia. Não há como escapar à selva! é muito mais do que uma coleção de árvores, um potencial econômico, turístico ou ecológico. Sobre esta vivência pode-se comunicar com grande facilidade com os índios.

O meu encontro com Pedro não foi uma surpresa para ele, na sua juventude já sonhava que iria à europa. Na minha última

A festa da moça nova entre os Ticuna Pedro Inácio Pinheiro Ngematücü, presidente do Conselho Geral da Tribo Ticuna.

Page 34: Parte 4 - Colaboração Científica

140

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

viagem (março de 2013), dizia no primeiro contato: já estou espe-rando um ano por você… Sobretudo é uma honra enorme poder

colaborar durante tantos anos e até agora em absoluta confiança com um dos mais importantes líderes indígenas brasileiros.

as pesquisas sobre o patrimônio linguístico africanoJ a c k y M a n i a c k y e J e a n - P i e r r e a n g e n o t

O forte impacto cultural do escravismo transatlântico se faz sentir em grande parte do continente americano e, particu-

larmente, na américa latina, no patrimônio linguístico. O Brasil é de longe a região que oferece o maior número de testemunhos através de numerosos africanismos que participam na sua varieda-de da língua portuguesa.

a Bélgica é implicada em primeiro plano, através de dois lin-guistas, nas pesquisas sobre estes africanismos e, principalmente, nos bantuísmos (palavras de origem bantu, um conjunto agru-pando mais de 500 idiomas falados na África Central, Oriental e austral): Jacky Maniacky, franco-congolês, responsável pelo servi-ço de linguística do Museu real da África Central (Musée royal de l’afrique Centrale) em Tervuren, e Jean-Pierre angenot, belga naturalizado brasileiro, professor emérito de linguística na Uni-versidade Federal de rondônia.

Jacky Maniacky tem, além de suas raízes e infância no Congo- -Brazzaville, desenvolvido, desde 1997, em suas pesquisas de Dea e de doutoramento, uma expertise das línguas faladas nas regiões de angola e do Congo, situadas em face do Brasil e fortemente implicadas no tráfico transatlântico. aprofundando seus conheci-mentos da região nas pesquisas pós-doutorais, surgiu o desejo de investigar o patrimônio legado do lado brasileiro.

Decênios antes (1974), Jean-Pierre angenot, na época pesqui-sador no Congo (antigo Zaire), levantou já um primeiro repertório dos bantuísmos no Brasil. Sua chegada neste país, há mais de 30 anos, permitiu a criação de um curso de linguística na Universi-dade Federal da Bahia. Depois de passar por Florianópolis, abriu uma fileira de estudos africanos no campus de guajará-Mirim, Universidade Federal de rondônia, na fronteira com a Bolívia. Seu programa de mestrado é até hoje o único na américa latina dedicado à linguística africana.

em 2008, uma visita do professor angenot a Tervuren ofere-ceu a oportunidade aos dois pesquisadores de se encontrarem e de unir seus recursos para aprofundar, por um lado, a pesquisa sobre o patrimônio linguístico bantu no Brasil e, por outro, de iniciar pesquisas sobre os numerosos idiomas bantu ainda não documen-tados, notadamente de angola.

assim existe, desde 2009, através destes dois pesquisadores, uma colaboração intensiva entre a Universidade Federal de ron-

dônia e do Museu real da África Central, que conseguiu em re-ferência aos bantuísmos estabelecer um banco de dados com hoje quase 5.000 entradas! Uma das próximas etapas desta colaboração será de afinar as etimologias propostas até agora para o vocábulo brasileiro de origem africana.

Paralelamente a estas pesquisas, Jacky Maniacky dá cursos de linguística africana no programa de mestrado do campus de gua-jará-Mirim como professor visitante. além destes pesquisadores mencionados e ligados à Bélgica, outros linguistas, brasileiros des-ta vez, se reuniram a este projeto de estudos africanos, tanto dou-tores como doutorandos, que lhes oferece pesquisas de terreno em angola e na Namíbia e visitas de estudos regulares no serviço de linguística de Tervuren. O objetivo a médio prazo é dispor, gra-ças à esta colaboração belgo-brasileira, de vários especialistas nos idiomas africanos baseados na Universidade Federal de rondônia e beneficiados da expertise reconhecida de Tervuren em matéria de linguística histórico-comparativa africana.

Quando se fala de patrimônio linguístico africano no Brasil, trata-se principalmente de palavras de origem africana que se en-contram na variedade do português falado no Brasil, seja na lín-gua corrente, na gíria ou ainda em contextos particulares como quilombos e cerimônias religiosas. Por exemplo, caçula, bunda, moleque, fubá... Trata-se igualmente de influências gramaticais, ainda que essas sejam mais difíceis de estudar.

Saber mais sobre os idiomas africanos permite aperfeiçoar os conhecimentos etimológicos do português do Brasil. Várias en-tradas dos dicionários de referência como o aurélio ou o Houaiss ainda estão erradas. Mas estas pesquisas linguísticas contribuem também para melhorar o conhecimento da história do Brasil, no-tadamente em matéria cultural.

referências Jean-Pierre angenot, Jean-Pierre Jacquemin e Jacques l. Vincke. Répertoire de vocables

brésiliens d’origine africaine. lubumbashi, Collection Travaux et Documents du CelTa, 1974.

Jean-Pierre angenot e geralda de lima V. angenot. Dicionário de bantuísmos brasileiros. Manuscrito. Porto Velho, Universidade de rondônia.

Jacky Maniacky. Thèmes régionaux Bantu et africanismes brésiliens. Margarida Petter e ronald Beline Mendes (eds.), Proceedings of the Special World Congress of African Linguistics: Exploring the African Language Connection in the Americas, São Paulo, Humanitas, 2009, p. 153-165.

Page 35: Parte 4 - Colaboração Científica

141

em 1889 luiz Vicente de Souza Queiroz arrematou a Fazenda São João da Montanha, com 319 hectares e distante três qui-

lômetros da cidade de Piracicaba (SP). alguns anos depois doou a fazenda ao governo do estado de São Paulo, como estratégia para alcançar seu sonho de ali instalar uma escola agrícola, o que começou a ser realizado a partir de 1893.

a futura escola seria formada com a participação maciça de profissionais estrangeiros e vale ressaltar as relações estabelecidas com o Institut Agricole de Gembloux, na Bélgica. escola superior

de nível universitário, lá estudaram, entre 1863 e 1914, pelo me-nos 38 brasileiros, dos quais sete se formaram engenheiros agrôno-mos. Um deles, José Fortunato de Camargo – formado em agro-nomia em gembloux – e proprietário da Fazenda aterradinho, município de angatuba (SP), “contratou em 1899 os agrônomos Lé-on Renaud e Hernan Vande Venne para instalar uma leiteria indus-trial e uma fábrica de margarina [manteiga]” (Stols, 1987, p. 373).

ainda em 1893, chegava ao Brasil o engenheiro agrônomo belga leon alphonse Morimont, formado pelo conhecido Ins-

e n s i n o e p e s q u i s a

Os belgas nas origens da escola Superior de agricultura “luiz de Queiroz”

l u c i a n a P e l a e s M a s c a r o

Fachada da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” que se encontra no livro Piracicaba e sua Escola Agrícola, de Mario de Sampaio Ferraz, publicado em Bruxelas, 1911.

Page 36: Parte 4 - Colaboração Científica

142

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

titut Agricole de Gembloux. Figura de renome na sua profissão, tinha larga experiência profissional obtida em várias estadias pela França, espanha, Itália, por Portugal e África. Foi encarregado de elaborar o projeto para a escola idealizada por luiz de Queiroz. em dezembro desse mesmo ano, Morimont foi nomeado diretor da nascente escola por Jorge Tibiriçá Piratininga, então Secretário da agricultura, Negócios, Comércio e Obras Públicas do estado de São Paulo. Permaneceu em seu cargo na Fazenda São João da Montanha por pouco tempo, apenas até 1896 (Perecin, 2004, p. 135), devido a divergências políticas com o presidente recém-elei-to Campos Sales. Consta que havia se dedicado profundamente ao projeto da escola de Piracicaba e deixou o Brasil muito ressentido e doente, tendo morrido no mar, durante seu retorno à Bélgica (Perecin, entrevista, 2004).

Morimont desempenhou papel especialmente importante na elaboração dos moldes da escola que ali surgia. Implantou um mo-delo prático-teórico equilibrado, baseado no sistema do Instituto de gembloux, mas que, afinal, “não deixou de ser um produto do academicismo europeu, para atender às necessidades de moderniza-ção do setor primário da economia, a ser testado no Estado de São Paulo” (Perecin, 2004, p. 155-157).

Quando Carlos Botelho assumiu a Secretaria da agricultura, no início do século XX, continuou a contratação de profissionais estrangeiros – não sem algumas reações xenófobas (Perecin, 2004, p. 301) – para a escola agrícola de Piracicaba, dentre os quais vá-rios de nacionalidade belga ou formados na Bélgica, como o co-nhecido arsène Puttemans, arquiteto paisagista, que foi professor de paisagismo e horticultura (ver nota em ‘Arquitetura’), e outros abaixo relacionados.

louis Misson, engenheiro agrônomo formado em gembloux, assumiu a 4ª Cadeira, mas foi logo requisitado pela Secretaria da agricultura por seu prestígio como cientista (Perecin, 2004, p. 293) e publicou, em Bruxelas, em 1907 e outras edições, o livro

Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil) (a indús-tria pastoril no estado de São Paulo).

Jean Baptiste Michel, engenheiro agrícola igualmente vindo de gembloux, foi professor de agricultura (antiga 4ª Cadeira) e sucedido por Hubert Puttemans, engenheiro agrônomo belga, que tinha sido um dos primeiros professores da escola Politécnica de São Paulo (Perecin, 2004, p. 301 e 349). Publicou em 1915, na cidade de Nivelles (Bélgica), o livro Agricultura Geral Especial-mente Apropriada ao Brasil.

além desses, também foi contratado Nicolau athanassof, agrônomo búlgaro que havia estudado no Instituto de gembloux, e que assumiu a 5ª Cadeira, mais tarde dividida em zootecnia – a cargo de athanassof – e zoologia e higiene. Publicou diversos livros sobre criação de gado e suínos, dentre os quais se destaca o manual do criador Os Bovinos, publicado em São Paulo, em 1922, que traz figuras de exemplares Flamengos Vermelhos pre-miados em 1911 e 1912 nas exposições de gado em Ipre (Bélgi-ca). Depois de sua passagem por Piracicaba, foi contratado como diretor do Posto Zootécnico Federal de Pinheiros (rJ), substituin-do outro belga, Hector raquet, na função de diretor. (Ver texto “bovinotecnia”)

em 1911, Mario de Sampaio Ferraz editou em Bruxelas um livro muito bem cuidado e intitulado Piracicaba e sua Escola Agrí-cola. Nele consta a relação de professores e de seus assistentes, o período de matrícula, o conteúdo do curso, além de fotos de inte-resse: dos professores, assistentes e alunos – em seus laboratórios e em trabalho de campo – e do famoso prédio central, projeto de José Van Humbeeck, situado em frente ao jardim projetado por arsène Puttemans.

a presença desses técnicos e profissionais demonstram, por um lado, que o período era de renovação para a produção rural

Grupo de professores e assistentes da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz” em fotografia no livro Piracicaba e sua escola agrícola, 1911.

Imagem do salão da Congregação da Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, com o diretor Dr. Clinton Smith e os professores Vincent, Puttemans, Charropin, Arié, Mendes, Gagezou, Dias, Sanders e Ribeiro, que se encontra no livro Piracicaba e sua escola agrícola, 1911.

Page 37: Parte 4 - Colaboração Científica

e n s i n o e p e s q u i s a

143

brasileira, especialmente na região paulista que começava a vis-lumbrar o possível declínio da produção cafeeira (confirmado a partir de 1929). Por outro, se evidencia o apelo dos governantes ao conhecimento estrangeiro do setor, no quadro do qual a Bélgica tinha excelente reputação. assim, esse país viria a contribuir de forma relevante, ao lado da França e dos estados Unidos, para a formação e o desenvolvimento da escola Superior de agricultura “luiz de Queiroz”.

em tempo, para complementar a atuação de profissionais bel-gas no quadro do ensino relativo à agropecuária, é preciso citar rené Straunard, formado pela escola de Medicina Veterinária de Cureghem, Bruxelas, que chegou ao Brasil pela primeira vez em 1913, tendo ido para Catalão, em goiás. Voltou ao Brasil em 1920, quando foi contratado como Inspetor Veterinário da Dire-toria de Indústria animal e trabalhou no Jóquei Clube de São Paulo. a partir de 1931 começou a atuar como professor no Ins-tituto de Veterinária (criado em 1919 e atual Faculdade de Me-dicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo), quando assumiu interinamente o cargo de professor catedrático da Cadeira de Clínica e Obstetrícia do Instituto (D.O. do estado

de São Paulo, p. 3.368, 1931). Ocupou as cátedras de Patologia e Clínicas Cirúrgica e Obstetrícia, de Patologia e Clínica Médicas, Indústria e Inspeção de Produtos de Origem animal. Consta que produziu importante trabalho sobre patologia do aparelho loco-motor em equinos e foi um dos maiores cirurgiões veterinários do Brasil (Matera, 1963-64).

referênciasD.O. do estado de São Paulo, Imprensa Official, n. 99, p. 3.368, sexta-feira, 1 de maio

de 1931. MaTera, ernesto antônio. Professor rené Straunard. Revista da Faculdade de Medicina

Veterinária de São Paulo, Vol. 7, fasc. 1, 1963-64.MISSON, louis. Les progrès de l’élevage dans l’Etat de Sao Paulo (Brésil). Bruxelles: So-

ciété anonyme, M. Weissenbruch, 1912.PereCIN, Marly Therezinha germano. Entrevista à Rádio Educadora de Piracicaba AM

1060 Khertz em 20/11/2004. Disponível em: <http://www.teleresponde.com/Pere-CIN.HTM>. acesso em: 30 nov. 2013.

PereCIN, Marly Therezinha germano. Os Passos do Saber: a Escola Agrícola Prática “Luiz de Queiroz”. São Paulo: edusp, 2004.

STOlS, eddy. Penetração econômica, assistência técnica e “brain drain”: aspectos da emigra-ção belga para a América Latina por volta de 1900. Jahrbuch für geschichte lateina-merikas = anuario de História de américa latina (Jbla), n. 13, 1976 (ejemplar dedi-cado a: emigración europea a américa latina durante los siglos XIX y XX), p. 361-385.

Trabalho de mensuração de um cavalo pela lente do dr. Vincent na Escola Agrícola “Luiz de Queiroz”, fotografia publicada em Piracicaba e sua escola agrícola, 1911.

Page 38: Parte 4 - Colaboração Científica

144

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

Para Paul Otlet (1868-1944) e Henri la Fontaine (1854-1943, Prêmio Nobel da Paz em 1913), os dois fundadores do Office

International de Bibliographie (OIB) e do Institut International de Bibliographie (IIB), a cooperação internacional é primordial. Con-sideram-na como uma dimensão essencial da missão que assumiram de providenciar ao mundo os instrumentos de acesso ao conheci-mento. além de oferecer possibilidades para estender seu campo de trabalho, ela permite, no seu espírito, favorecer a compreensão inter-nacional. a paz aparece em filigrana do conjunto de seus projetos e as instituições criadas na sequência do OIB – tais como a Union des Associations Internationales (UaI) e o Musée International em 1910 –, acentuarão a dimensão internacionalista do conjunto que formarão a partir de 1920 o Palácio Mundial ou Mundaneum.

a primeira missão do OIB consiste em levantar o Répertoire Bibliographique Universel (rBU, destinado a reunir as referências de todas as obras publicadas no mundo e baseado no sistema da Classification Décimale Universelle (CDU). Desde sua criação em Bruxelas, em 1895, uma cooperação internacional se instala, nota-damente, sob a forma de intercâmbio de publicações e de fichas bibliográficas, em torno das associações científicas, oficinas biblio-gráficas e bibliotecas que participam no desenvolvimento do rBU e da CDU. Na américa latina, o OIB dispõe de um embaixador na pessoa de Federico Birabén (1866-1929), promotor da CDU e dos métodos recomendados pela OIB em seu país, a argentina. ele atuou igualmente no Brasil, no Peru e no Chile, onde contri-buiu com a criação de escritórios bibliográficos.

a cooperação entre o Institut International de Bibliographie e a Biblioteca Nacional

J a c q u e s g i l l e n

A sala-oficina do catálogo do Mundaneum.

Page 39: Parte 4 - Colaboração Científica

e n s i n o e p e s q u i s a

145

Os primeiros contatos entre o OIB e a Biblioteca Nacional do rio parecem iniciar-se por volta de 1902. a partir dessa época, a Biblioteca Nacional do rio envia publicações brasileiras ao OIB. Por volta de 1910-1911, seu diretor, Manuel Cícero Peregrino da Silva (1866-1956), aproveita sua estada em Bruxelas para vi-sitar o OIB e decide aplicar o sistema da CDU na Biblioteca do rio e de introduzir o rBU, do qual ele encomenda uma cópia completa. Trata-se da primeira encomenda tão extensa ao OIB. O primeiro volume de 23 mil fichas é despachado em dezembro de 1911 pelo intermediário de Manuel de Oliveira lima (1867-1928), embaixador do Brasil na Bélgica. a colaboração se pro-longa até 1914 e leva à criação de uma seção bibliográfica dentro da Biblioteca Nacional do rio. ela comporta várias remessas de fichas e a visita, em 1913, de Britto galvão, funcionário dessa mesma biblioteca, que vem a Bruxelas estudar a organização e o funcionamento do rBU.

esta cooperação internacional foi decisiva para que primeiro o OIB e em seguida o Mundaneum pudessem desenvolver o rBU e a CDU de maneira tão considerável: o rBU atingirá um número

aproximado de 16 milhões de fichas e a CDU se tornará o padrão em inúmeras bibliotecas do mundo inteiro.

atualmente, o Mundaneum, instalado em Mons (Bélgica) desde 1993, é um centro de arquivos e um espaço de exposições temporárias. Conserva as coleções reunidas por seus fundadores e sucessores (publicações, jornais, periódicos, cartazes, fichas, fo-tografias, cartões postais…), como também os papeis pessoais de Paul Otlet e de Henri la Fontaine e os fundos de arquivos tra-tando de três temáticas principais: o pacifismo, o anarquismo e o feminismo.

Jacques Gillen, historiador do pacifismo e do movimento anarquista na Bélgica, é diretor do Mundaneum em Mons.

referências Le Mundaneum. Les archives de la connaissance. Mons, Impressions Nouvelles, 2008; Paul

Otlet, fondateur du Mundaneum (1868-1944). Architecte du savoir, artisan de paix. Bruxelas, Impressions Nouvelles, 2010; Henri La Fontaine, Prix Nobel de la paix en 1913. Un Belge épris de justice, Bruxelas, Mundaneum-racine, 2012. Mundaneum, Papéis pessoais de Paul Otlet, dossier numéroté 504 (PP PO 942).

O Instituto real do Patrimônio artístico de Bruxelas e Barroco Mineiro

e r i k a B e n a t i r a b e l o e M y r i a m S e r c k - D e lwa i d e

O Instituto real do Patrimônio artístico de Bruxelas (IrPa), antigo aCl (archives Centrales Iconographiques d’art et le

laboratoire Central), surgiu oficialmente em 1948, ano em que tornou-se independente em nível administrativo do Museu real de arte e História de Bruxelas. entretanto, remontando no tempo, as atividades do IrPa se iniciaram em 1934, com a chegada de Paul Coremans (1908-1965) para os departamentos de documen-tação e do laboratório de pesquisas físico-químicas do Museu real.

Doutor em química, Paul Coremans implementou projetos de restauração envolvendo os principais museus belgas. Desejando que seus departamentos crescessem cientificamente, direcionou a conservação de obras de arte segundo uma metodologia cientí-fica, baseada no estudo exaustivo de seus materiais constitutivos. Preocupado com a comunicação, criou uma rede de relações com universidades da europa, dos estados Unidos e demais centros de conservação. O surgimento do IrPa é contemporâneo de insti-tuições internacionais pioneiras, tais como o Courtauld Institute, em londres (1932), e o Istituto Centrale per il restauro (ICr), de roma, criado por Cesare Brandi em 1939.

Como diretor do IrPa, Coremans conciliou duas áreas distin-tas, mas complementares: a documentação e a análise científica. Deu início a uma vasta campanha de inventário fotográfico do patrimônio da Bélgica, que, apesar de ser um país pequeno, con-centra uma riqueza excepcional. essas campanhas de inventário

aceleraram-se durante o período da Segunda guerra Mundial. estima-se que entre 1941 e 1945 mais de 160 mil fotografias foram realizadas, e isto levando em conta o racionamento de gasolina, do material fotográfico em geral e dos constantes bombardeios.

esse acervo fotográfico foi de grande utilidade uma vez termi-nada a guerra, pois serviu para uma avaliação precisa do estado de conservação do patrimônio móvel e imóvel e para o desenvol-vimento de uma estratégia de recuperação. algumas dessas foto-grafias são, em casos extremos, o único testemunho de objetos completamente destruídos pela guerra (Masschelein-Kleiner, p. 18). Todo esse material fotográfico é, ainda hoje, uma excelente base de informação para restauradores e pesquisadores em geral.

Se por um lado a guerra engendrou a deterioração do patri-mônio, por outro, e paradoxalmente, ela promulgou, nos anos se-guintes, o desenvolvimento de teorias relativas à sua recuperação. Os anos do pós-guerra foram vividos, em nível mundial, como um período de reflexão, de avaliação e de procura de critérios na área do patrimônio. Sem dúvida, a experiência desse inventário, reali-zado em tempos difíceis, com uma equipe composta de artistas, de historiadores de arte e fotógrafos, influenciou o desenvolvimento de uma prática baseada na interdisciplinaridade, pedra angular do trabalho do IrPa.

No nível nacional, o IrPa apoiou a criação do Centro Na-cional de Pesquisas ‘Primitifs flamands’ (1949), cujos objetivos

Page 40: Parte 4 - Colaboração Científica

146

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

eram constituir um inventário, um arquivo fotográfico e o estudo da produção de pintura do século XV nos antigos países baixos meridionais (atual território belga). No cenário internacional, o IrPa participou de momentos históricos, como da criação do International Council of Museums (ICOM) em 1946, do Inter-national Institute for Conservation of Historic and artistic Works (IIC) em 1950, do International Centre for the Study of the Pre-servation and restoration of Cultural Property (ICCrOM) em 1959 e ainda e do International Council on Monuments and Sites (ICOMOS) em 1964.

em 1957, o projeto de interdisciplinaridade idealizado por Co-remans é oficializado e surge a atual denominação: Institut royal du Patrimoine artistique/Koninklijk Instituut voor het Kunst-patrimonium. Historiadores de arte, restauradores, químicos, físi-cos trabalham juntos para o estudo, o inventário e a conservação do patrimônio artístico. O projeto do edifício independente com 8.700 m2, separando fisicamente cada área de trabalho, foi lança-do e a pedra fundamental foi posta em 9 de maio de 1959 (Mass-chelein-Kleiner, p. 25). em 1963, a química liliane Masschelein-Kleiner integra a equipe do laboratório, dedicando-se às análises dos materiais orgânicos, até então difíceis de serem identificados pela microscopia e pela microquímica. Os laboratórios adquiri-ram, a partir da década de 60, um equipamento extremamente moderno para a realização de exames científicos.

Formação e estágio no IrPa

a partir de 1949, o IrPa começou seu programa de estágio em seus ateliers de restauração. Coremans, extremamente visionário, via sua instituição como um verdadeiro centro de formação. en-quanto conselheiro da United Nations educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco), visitou vários países e observou que havia urgência em capacitar os recentes centros de conser-vação surgidos pelo mundo inteiro com funcionários formados segundo uma metodologia científica adequada.

Quando o IrPa mudou-se para o novo prédio em outubro de 1962, o estágio tornou-se um curso de pós-graduação em parceria com universidades belgas (Ceulemans, p. 208), programa que du-rou somente três anos, mas que ganhou reputação internacional. entre 1960 e 1970, 89 estagiários, entre estrangeiros e belgas, pas-saram pelo IrPa. após o falecimento de Paul Coremans (1965) a pós-graduação voltou a ser um estágio de aperfeiçoamento, mais modesto, mas mantendo os objetivos iniciais centrado no estudo científico das obras de arte.

estagiários brasileiros

em 64 anos de existência, o IrPa recebeu 14 estagiários do Brasil, procedentes dos estados de São Paulo, Minas gerais, rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia: Jair afonso Inácio (Mg), Fernan-do Barreto (Pe), regina Costa Pinto Dias Moreira (Ba), Frances-ca Karolyi (SP), liana gomes Silveira (Ba), Claudina Maria Du-tra Moresi (Mg), Silvio luiz rocha Vianna Oliveira (Mg), luiz

antônio Cruz Souza (Mg), Marcos Cézar de Sena Hill (rJ), Ka-thia Berbert Sant’ana (Ba), Beatriz gonçalves gaede (Mg), eri-ka Benatti rabelo (Mg), erika Santos (rJ), Karen Barbosa (SP).

O primeiro estagiário brasileiro (1961-1962) viveu uma época importante da história do IrPa, que culminou com a transferên-cia dos ateliers, dos laboratórios e dos arquivos para o novo pré-dio, inaugurado em dezembro de 1962. Jair Inácio não chegou a trabalhar nos novos locais, pois seu estágio terminou três meses antes. O percurso profissional de Jair é típico de sua época: sem formação acadêmica, ele foi admitido no Sphan (orgão que te-ve variações de nome e siglas desde sua criação: Dphan, Sphan, IBPC e atualmente Iphan) devido a seu talento como pintor na cidade de Ouro Preto (Mg) e graças ao mecenato da Fundação rockefeller, de Nova York, pôde vir estudar na europa. Nos ar-quivos do IrPa encontram-se cartas de recomendação elogiosas a Jair da parte de rodrigo Mello Franco andrade, primeiro diretor do Sphan e pioneiro incontestável da recuperação patrimonial no Brasil, e de edson Motta, restaurador, funcionário do Sphan e professor universitário no rio de Janeiro.

Nessa época, os restauradores eram ainda polivalentes, traba-lhavam objetos diversos. Jair Inácio participou da restauração da ‘Descida da Cruz’, pintura de rubens conservada na Catedral de antuérpia, sob a direção de georges Messens. Foi contemporâ-neo de agnes grafin Ballestrem, formada no landesmuseum, de Bonn, alemanha. agnes tornaria-se responsável pelo atelier de restauração de escultura do IrPa, em seguida responsável pelo

Paul Coremans, Jair Afonso Inácio e Fernando Barreto em Ouro Preto em 1964.

Page 41: Parte 4 - Colaboração Científica

e n s i n o e p e s q u i s a

147

landesmuseum e diretora do Centraal laboratorium voor Onder-zoek van Voorwerpen van Kunst en Wetenschap, em amsterdã.

Durante seu estágio, Coremans organizou visitas profissionais a fim de que Jair Inácio pudesse usufruir ao máximo de sua expe-riência europeia. entre os meses de abril e maio de 1962, o esta-giário visitou o Museé National Suisse de Zurich, os ateliers do Musée du louvre sob a direção de Madeleine Hours e o Instituto para o exame e restauro das Obras de arte de lisboa. antes de retornar ao Brasil visitou a rockefeller Foundation em Nova York.

Paul Coremans viajou ao Brasil em 1964 como conselheiro da Unesco. Visitou o rio de Janeiro e as cidades históricas de Minas gerais e Pernambuco. Nessa ocasião conheceu Fernando Barreto, professor da Universidade de Pernambuco e restaurador de pintura do, então, Dphan. Fernando viria ao atelier de pintura do IrPa em 1964/1965 com uma bolsa concedida pelo governo belga.

Na década de 70 o quadro muda um pouco e os estagiários bra-sileiros que chegam ao IrPa vêm com uma formação universitária

em Belas artes e aprendizado em ateliers europeus. Ou seja, já há uma especialização entre as diferentes áreas. regina Costa Pinto Dias Moreira, estagiária em 1970/1971 no atelier de pintura, tinha formação de três anos no Instituto de Conservación y restauración de Bienes Culturales de Madri, criado em 1961 sob o incentivo da Unesco e particularmente de Paul Coremans. regina tornar-se-ia referência na França onde durante mais de duas décadas esteve a cargo de restaurações de obras-primas conservadas no Museu do louvre. recentemente colaborou com restaurações no Masp, de São Paulo. Francesca Karolyi estagiou no atelier de escultura policromada em 1971/1973. em seguida, trabalhou no IrPa e na alemanha (Munique). liana gomes Silveira era restauradora do Museu de arte Sacra de Salvador quando veio estagiar no Ir-Pa em 1976/1977. em seu currículo constava um curso na real academia de Bellas artes de San Fernando, em Madri. Durante seu estágio no atelier de esculturas policromadas, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide, dedicou-se ao estudo da substituição da

Estagiários do Institut Royal du Patrimoine Artistique, 1961-1962.

Page 42: Parte 4 - Colaboração Científica

148

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

reintegração à base de pintura a óleo por resinas sintéticas testa-das em envelhecimento artificial, bem como a prática de remoção mecânica de repinturas.

No Brasil dos anos 80 surgem cursos de especialização en con-servação e restauração de bens móveis. em 1980, o Centro de Conservação e restauração de Bens Culturais Móveis da Univer-sidade Federal de Minas gerais (Cecor) e, no mesmo ano, outro curso de especialização, na Universidade Federal da Bahia. a es-tagiária Claudina Maria Dutra Moresi, química do Cecor-UFMg frequentou o IrPa em 1986/1987, juntamente com seu marido, Silvio luiz rocha Vianna Oliveira (atelier de pintura). Claudi-na desenvolveu um trabalho no Cecor-UFMg baseado em sua experiência na Bélgica. Voltou ao IrPa em 1991 para uma pes-quisa específica. Silvio luiz rocha Vianna Oliveira foi professor da Fundação de arte de Ouro Preto. luiz antônio Cruz Souza, químico do Cecor-UFMg, esteve no IrPa em 1987/1988 e em seguida estagiou no getty Conservation Institute, em los ange-les, eUa. luiz antônio é atualmente professor do Cecor-UFMg e representante do Brasil no conselho do Iccrom. Marcos Cézar de Sena Hill, diplomado do Cecor-UFMg, estagiou no atelier de escultura policromada em 1987/1988, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide. Diplomou-se pela Universidade de louvain-la-Neuve e é professor de História da arte na escola de Belas artes (eBa-UFMg). Kathia Berbert Sant’ana foi estagiária do atelier de pintura do IrPa em 1988/1989, sob direção de Nicole goetghe-beur. Trabalhou no Museu de arte Sacra de Salvador, na Bahia, e no Instituto do Patrimônio artístico e Cultural (Ipac). Beatriz gonçalves gaede estagiou no atelier de escultura policromada em 1990/1991, sob a direção de Myriam Serck-Dewaide. erika Benati rabelo, diplomada pelo Cecor-UFMg, estagiou no atelier de es-cultura policromada em 1992/1993. Domiciliou-se na Bélgica e colabora com o IrPa desde 1997, onde foi responsável por vários projetos de restauração. realizou pesquisas e publicações sobre a escultura barroca na Bélgica. erika Santos estagiou no atelier de escultura policramada em 2007/2008. Domiciliou-se na Bélgica e estudou na artesis Hogeschool de antuérpia. e Karen Barbosa, diplomada pelo Cecor-UFMg, estagiou no atelier de pintura em 2010/2011. Karen atualmente é coordenadora da área de conser-vação e restauração do Museu de arte de São Paulo (Masp).

Considerações finais

O relatório de Paul Coremans de sua missão ao Brasil e à américa latina como conselheiro da Unesco em 1964 é um do-cumento interessante. além de descrever o que viu no Brasil e sugerir medidas protetoras para os sítios históricos visitados, ele analisa em profundidade o funcionamento do antigo Dphan. Ha-via, nos anos 60, uma dependência do Brasil, nos níveis teórico e financeiro (bolsas de estudo), em relação aos países onde a estru-tura patrimonial estava mais organizada. a relação belgo-brasileira desse período inscreve-se nesse âmbito. Observa-se a dependência internacional para os assuntos patrimoniais do Brasil. O IrPa e a Unesco forneceram recursos materiais e humanos para a capaci-

tação dos órgãos nacionais de preservação do patrimônio cultural no Brasil e na américa latina.

Nas décadas seguintes essa relação continua, mas de outra for-ma. ela caracteriza-se por uma troca de conhecimentos. Vemos a participação de belgas em cursos e congressos no Cecor-UFMg e no Centro de estudos da Imaginária Brasileira (Ceib), criado pelas professoras Beatriz ramos de Vasconcelos Coelho, funda-dora do Cecor-UFMg, e Myriam ribeiro de Oliveira, doutora-da pela Universidade de louvain-la-Neuve, professora da UFrJ e pesquisadora do Iphan. em 1985, acontece o seminário sobre adesivos naturais, vernizes e utilização de solventes em restau-ração, ministrado por liliane Masschelein-Kleiner, do IrPa, e coordenado por Beatriz ramos de Vasconcelos Coelho, no Ce-cor-UFMg. em 1989, realiza-se o seminário Taller de actuali-zación para américa latina: escultura policromada, organizado pelo getty, Programme des nations unies pour le développement (PNUD), Unesco e UFMg, também no Cecor. Participaram des-te seminário o belga Jean-albert glatgny, restaurador autônomo formado no IrPa, Myriam Serck-Dewaide, Monique Péquignot e agnes grafin Ballestrem.

O I Congresso Internacional do Ceib em Mariana (1998), contou com a participação do professor Ignace Vandevivere (1938- -2004) da Universidade de louvain-la-Neuve e diretor do Museu de louvain-la-Neuve.

O III congresso do Ceib em São João Del rei (2003) teve a participação de Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier de escultura policromada e em seguida diretora do IrPa. ela tam-bém publicou no Boletim do Ceib Breve história da evolução dos tratamentos das esculturas.

O IV congresso do Ceib em São João Del rei (2005) contou com a participação de Michel lefftz, atual professor da Fundep (Facultés Universitaires Notre-Dame de la Paix), de Namur. Sua conferência foi publicada na revista do Ceib, Imagem Brasileira, com o título “análises morfológicas dos drapeados na escultura portuguesa e brasileira. Método e vocabulário”.

Myriam Serck-Dewaide, responsável pelo atelier de esculturas poli-cromadas do IRPA (1973-1999); Responsável pelo Departamento de Conservação do IRPA (1999-2002); Diretora do IRPA (2003-2011); co-autora de Les techniques utilisées dans l’art baroque religieux des XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal en Espagne et en Belgique, dans Policromia. A esculptura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lis-boa, IPCR, 2004, p. 119-157, e autora de ‘Les techniques utilisées dans l’art baroque religieux des XVIIème et XVIIIème siècles au Portugal en Espagne et en Belgique’, Policromia. A esculptura policromada religiosa dos séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 119-157, e ‘Breve história da evolução dos tratamentos das esculturas’, Boletim do Ceib, Belo Horizonte, vol. 9, n. 31, juillet 2005.

Erika Benati Rabelo, Master em Conservação Preventiva (Paris I- -Sorbonne), Restauradora do IRPA em Bruxelas; autora de ‘Les imita-

Page 43: Parte 4 - Colaboração Científica

e n s i n o e p e s q u i s a

149

as relações entre o reino da Bélgica e a república Federativa do Brasil sempre foram marcadas pelo respeito, pela amizade

e pela cooperação. após a grande guerra, em que o Brasil, neutro, defendeu a

nossa integridade territorial, e a visita de estado dos nossos So-beranos em 1920, sendo a primeira de um rei e uma rainha ao Brasil republicano, deu-se um impulso que se traduziu por um crescimento considerável dos nossos investimentos e das nossas trocas comerciais. Se, hoje, estas trocas não correspondem ainda inteiramente ao potencial dos nossos dois países, convém observar que, de acordo com o Banco Central, a Bélgica situa-se entre os mais importantes investidores no Brasil.

a cooperação acadêmica e científica

Nestes últimos anos, foram nos domínios acadêmico e cientí-fico que progressos essenciais foram registrados. a Bélgica atribui, com efeito, uma grande importância à cooperação com o Brasil nestes domínios e diferentes iniciativas foram tomadas para inten-sificar e reforçar as nossas relações.

Nesse contexto, foram organizadas as primeiras visitas de tra-balho dos presidentes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq e da Coordenação de aperfeiço-amento de Pessoal de Nível Superior-Capes. Os encontros com as autoridades belgas permitiram aos parceiros brasileiros desen-volver as principais linhas de ação para o futuro e conduziram à assinatura, em 2009, dos acordos de cooperação entre o CNPq, por um lado, e os seus homólogos belgas (FWO e FNrS-FrS), por outro lado. estes acordos preveem, entre outras formas de colabo-ração, a implementação de projetos comuns de I+D, o intercâm-bio de pesquisadores e de cientistas, a organização de seminários e outros encontros, assim como publicações científicas conjuntas.

Foram seguidos, no mesmo ano, da assinatura de um acor-do entre a Capes e a Wallonie-Bruxelles International, que visa igualmente o financiamento e a implementação de um progra-ma conjunto de intercâmbio de professores, de pesquisadores e de estudantes entre as instituições de ensino superior e de pes-quisa. Para efetivar a cooperação, estão previstos instrumentos como bolsas, projetos conjuntos de pesquisa e organização de

encontros. esse acordo prevê, além disso, o desenvolvimento da colaboração nos domínios das biociências, da agroindústria, da engenharia mecânica, do transporte e da logística e, por último, da aeronáutica e da espacial.

ainda em 2009, as visitas à Bélgica de representantes da em-presa Brasileira de Pesquisa agropecuária-embrapa e de uma importante delegação do Foro das assessorias das Universidades Brasileiras para assuntos Internacionais-Faubai ampliaram o co-nhecimento mútuo e aceleraram a aproximação entre instituições dos nossos países.

O interesse manifestado pelas duas partes para uma colabo-ração mais intensa induziu as principais universidades belgas a participar – fato inédito – de uma missão econômica presidida por S. a. r., o Príncipe Philippe (2010). essa “estreia” foi valorizada pelos encontros e seminários organizados em São Paulo, rio de Janeiro, Belo Horizonte e Brasília; além disso, demonstrou a von-tade das nossas universidades de reforçar as relações transatlânti-cas. Sobretudo, sublinhou a relação necessária que deveria existir entre a atividade acadêmica, a pesquisa e a economia.

Procedendo de uma mesma lógica, esforços foram envidados para estimular cooperações em setores de alta tecnologia. as pri-meiras visitas à Bélgica do presidente da agência espacial Brasi-leira-aeB e em seguida do presidente da Comissão Nacional de energia Nuclear-CNeN permitiram constatar o interesse para colaborações entre cientistas belgas e brasileiros nos domínios da pesquisa espacial e da pesquisa nuclear.

Negociações entre a aeB e o Centre Spatial de liège e, poste-riormente, entre a CNeN e o Centre d’etudes Nucléaires (SCK- -CeN) conduziram, primeiro, a um acordo sobre um programa de cooperação no domínio espacial (2009). este cobre áreas como educação e formação nas ciências e técnicas espaciais, técnicas de observação da Terra, concepção de instrumentos espaciais, testes de instrumentos, cargas úteis e satélites, “nanossatélites estudan-tes”, técnicas ópticas (metrologia, revestimentos ópticos, estrutura-ção de superfícies, concentração solar…) e tecnologias específicas ligadas ao espacial.

em matéria de pesquisa nuclear, os esforços foram coroados pela assinatura de um Memorando de entendimento na presen-ça de S. a. r., o Príncipe Philippe, quando de sua passagem por

tions de marbre dans le baroque en Belgique’, Policromia. A Escultura Policromada Religiosa dos Séculos XVII e XVIII. Actas do Congresso Internacional Policromia em 2002, Lisboa, IPCR, 2004, p. 95-102, e ‘L’Ange Gardien et la Sainte Hélène de Cornelis Vander Veken (1666-1740). Analyses stylistique, technique et matérielle, traitement de conservation’, Bulletin de l’IRPA, 31, 2004/05 (2006).

referênciasCeUleMaNS, C. Historiek van de stage, Bulletin de l’Institut royal du Patrimoine artis-

tique, 27 (1996/1998), Bruxelles, 2000, p. 208. MaSSCHeleIN-KleINer, l. les cinquante ans de l’IrPa, Bulletin de l’Institut royal

du Patrimoine artistique, 27 (1996/1998), Bruxelles, 2000, p. 18 e 25.archives KIK/IrPa – Bruxelas.

a cooperação acadêmica, científica e técnica entre Bélgica e BrasilC l a u d e M i s s o n

Page 44: Parte 4 - Colaboração Científica

150

p a r t e 4 – c o l a b o r a ç ã o c i e n t í f i c a

Brasília (maio de 2010). O texto aprovado estabelece as condições para um programa de colaboração, a longo prazo, em domínios de pesquisa, como armazenamento de resíduos radiativos, dosimetria, corrosão, qualificação dos combustíveis, educação e formação e ir-radiações. Uma missão anterior dos altos dirigentes do SCK-CeN ao Brasil (2011) detalhava as formas de colaboração nessas áreas.

a ação da Bélgica insere-se num quadro europeu mais amplo: é neste contexto que deve ser colocada a nossa presença nas fei-ras euro-Pós (2011) e estude no exterior (2012), que tinham por objetivo apresentar aos estudantes universitários brasileiros uma larga gama de possibilidades de formação na europa.

Diante destes sucessivos desenvolvimentos, não é, por conse-guinte, surpreendente constatar que a Bélgica figure na primeira fila dos países parceiros quando do lançamento do ambicioso pro-grama brasileiro Ciência sem Fronteiras, que deve oferecer mais de 100 mil bolsas em quatro anos a estudantes brasileiros que de-sejem completar sua formação em Ciências exatas no estrangeiro. este assunto foi abordado com detalhe, por ocasião da visita oficial que a Presidente Dilma rousseff realizou à Bélgica na inaugura-ção do festival europalia Brasil (outubro de 2011).

O simpósio Belgium-Brasil Networking in Science, Technolo-gy and Innovation for a Better Future, seguido de encontros entre os presidentes do FWO e do FNrS com o presidente do CNPq, entre o presidente da Capes e o representante do CNPq com re-presentantes de todas as universidades belgas e, por último, um encontro entre as universidades e centros de investigação belgas com delegações das associações andifes e abruem permitiram às duas partes discutir sobre as condições de futuros intercâmbios.

as negociações foram rapidamente iniciadas para tornar pos-sível, no princípio de 2012, a assinatura de acordos para o acolhi-mento desses bolsistas na Bélgica. a sua progressiva implemen-tação terá sido facilitada pelas conversações entre os reitores de universidades brasileiras membros da associação Brasileira dos reitores das Universidades estaduais e Municipais-abruem e to-dos os homólogos belgas quando da missão dos primeiros na Bél-gica (em julho de 2012).

a cooperação técnica

Note-se que a cooperação bilateral igualmente desenvolveu-se no domínio técnico. Tendo em conta a importância que represen-tam as infraestruturas de transporte nos nossos dois países, e tendo em conta a experiência adquirida pela Bélgica durante séculos, pareceu útil organizar visitas de responsáveis brasileiros aos nossos portos e infraestruturas fluviais.

a formação de especialistas brasileiros em gestão portuária, oferecida há mais de 20 anos por antwerp/Flanders Port Training

Center-aPeC, merecia ser melhor estruturada. a fim de dar-lhe um quadro formal e um caráter privilegiado, a Secretaria de Por-tos assinava com o aPeC – mais uma vez na presença de S. a. r., o Príncipe Philippe – um acordo de cooperação técnica para a formação de pessoal e a troca de informações (maio de 2010). esse acordo, renovado para um período de dois anos em julho de 2011, permite a dezenas de especialistas familiarizarem-se com as técnicas modernas de gestão das operações portuárias mais diver-sas. Deveria, além disso, favorecer o desenvolvimento de investi-mentos belgas no Brasil nesse setor.

À margem da visita oficial do Presidente luis Inácio lula da Silva a Bruxelas (2009), os altos dirigentes do Ministério dos Transportes do Brasil efetuaram uma visita que lhes permitia estudar as técnicas e obras desenvolvidas na Bélgica para assegu-rar eficazmente o transporte de mercadorias por vias navegáveis. Começaram, então, negociações que levaram à conclusão de um Protocolo de Intenções com os governos regionais flamengo e va-lão (2011). Contemplava uma interação sobre, designadamente, o Plano Diretor brasileiro de vias navegáveis, o projeto de canal navegável, as construções, operação e manutenção das vias na-vegáveis, os projetos de vias navegáveis ecologicamente corretas, o transporte multimodal. Foram igualmente previstos estágios de formação e aperfeiçoamento de conhecimentos no domínio dos transportes por vias navegáveis.

Para consolidar essas novas relações, o segundo Seminário Bel-go-Brasileiro de Vias Navegáveis foi organizado em Brasília, em abril de 2012.

Conclusão

esperamos que estas diferentes iniciativas deem frutos e que o movimento não somente seja mantido, mas também ampliado. essas trocas têm um efeito muito importante para o futuro das nos-sas relações com este grande parceiro que é o Brasil. a esse respei-to, é muito agradável sublinhar que, primeiro, o Presidente luís Inácio lula da Silva, quando de sua visita oficial em 2009, e, em seguida, a Presidente Dilma rousseff, quando de sua visita oficial em 2011, manifestaram, pessoalmente, o interesse e prometeram apoio a esta cooperação bilateral acadêmica, científica e técnica. Não há nenhuma dúvida de que esta colaboração deva desenvol-ver-se sempre mais, para maior benefício dos nossos dois países.

Claude Misson é embaixador honorário da Bélgica. Jovem diploma-ta sucessivamente em Jeddah e Brasilia, foi nomeado embaixador em Abu Dhabi, Lisboa e Madrid; foi diretor geral do Institut Egmont em Bruxelas antes de encerrar a carreira em Brasília. Vive atualmen-te em Madri.