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Paradigma Positivista: As Diferentes Faces de um Ilustre Desconhecido. Autoria: Angela Cristiane Santos Póvoa, Ricardo Quadros Gouvea, Walter Bataglia, Maria Luisa Mendes Teixeira Resumo: Este artigo propõe uma síntese da lógica positivista sob a perspectiva de seus principais desdobramentos filosóficos, que deram origem a correntes distintas dentro do mesmo paradigma epistêmico. Para tanto, são analisadas as principais correntes positivistas, a saber: i) positivismo originário ou Comteano; ii) positivismo lógico ou do Círculo de Viena; iii) positivismo crítico; e iv) pós-positivismo. A revisão sistemática da literatura permitiu encontrar pressupostos distintos e até mesmo opostos atuando dentro do mesmo paradigma, o que sinaliza a importância do reconhecimento de sua heterogeneidade bem como suas implicações para a pesquisa científica.

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Page 1: Paradigma Positivista: As Diferentes Faces de um … · 5 conjunto de idéias defendidas pelos filósofos do Círculo de Viena ficou conhecido como positivismo lógico ou empirismo

Paradigma Positivista: As Diferentes Faces de um Ilustre Desconhecido.

Autoria: Angela Cristiane Santos Póvoa, Ricardo Quadros Gouvea, Walter Bataglia, Maria Luisa Mendes Teixeira

Resumo: Este artigo propõe uma síntese da lógica positivista sob a perspectiva de seus principais desdobramentos filosóficos, que deram origem a correntes distintas dentro do mesmo paradigma epistêmico. Para tanto, são analisadas as principais correntes positivistas, a saber: i) positivismo originário ou Comteano; ii) positivismo lógico ou do Círculo de Viena; iii) positivismo crítico; e iv) pós-positivismo. A revisão sistemática da literatura permitiu encontrar pressupostos distintos e até mesmo opostos atuando dentro do mesmo paradigma, o que sinaliza a importância do reconhecimento de sua heterogeneidade bem como suas implicações para a pesquisa científica.

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Introdução O objetivo deste artigo é explorar, em forma de síntese, a lógica positivista em suas principais correntes derivadas, desde sua origem na tradição francesa com Auguste Comte, passando pelo positivismo lógico do Círculo de Viena e pelo positivismo crítico de Karl Popper até culminar com a mais recente corrente denominada pós-positivista. O positivismo, enquanto paradigma epistêmico, herda seus traços fundamentais do Iluminismo do século XVIII, sendo primeiramente sistematizado por Comte. Já o positivismo lógico ou empiricismo lógico do Círculo de Viena diferenciou-se do positivismo Comteano por oferecer novas propostas epistemológicas, sobretudo no uso da lógica na linguagem, sofrendo grande influência de pensadores como Wittgenstein e Carnap. O positivismo crítico, por sua vez, tem sua origem nas críticas de Popper ao positivismo lógico, e embora não fizesse parte do Círculo de Viena, Popper mantinha uma relação muito próxima com os seus membros. A filosofia Popperiana foi primeiramente sistematizada em 1934 com a publicação da obra intitulada “Logic der Forschung”, e que se constituiu numa crítica ao positivismo do Círculo de Viena. Nesta obra, Popper defendeu a concepção de que todo o conhecimento é falível, corrigível e virtualmente provisório. Por fim, o pós-positivismo é marcado pelo pensamento de autores como Thomas Kunh, Irme Lakatos e Paul Feyerabend que defenderam idéias e pressupostos inaceitáveis na perspectiva do positivismo lógico e originário além de tecerem críticas ao positivismo crítico, apontando suas incoerências (Kuhn) ou propondo seu aperfeiçoamento (Lakatos). Este artigo não tem a pretensão de oferecer uma descrição exaustiva e detalhada acerca de cada corrente positivista, uma vez que tal empreendimento fugiria ao escopo desta proposta, mas espera-se proporcionar uma visão generalista que permita ao leitor diferenciar cada corrente positivista em seus aspectos principais, situando-o de forma a permitir uma melhor compreensão acerca de um paradigma que, embora hegemônico no estudo das ciências em geral, é ainda bastante mal compreendido e interpretado. O título deste artigo faz alusão ao fato de o positivismo ser formado por diferentes correntes de pensamento ou “faces”, não sendo possível seu conhecimento como um paradigma linear e homogêneo. É chamado de “ilustre” em razão de ser o paradigma epistêmico ainda predominante na pesquisa científica, mas é ao mesmo tempo “desconhecido” uma vez que, em razão de ser pouco compreendido ou compreendido em partes, é freqüentemente associado ao calculismo e a indiferença em relação aos aspectos cognitivos do indivíduo. Desta forma, ao ser apresentado ao positivismo na perspectiva de suas distintas vertentes, o leitor será convidado a refletir sobre o fato de que embora este paradigma esteja ancorado em pressupostos que defendem a objetividade e a precisão, o próprio paradigma parece carecer dela, o que o torna ironicamente paradoxal e especialmente interessante. Para fins de elaboração deste artigo, foi utilizada a revisão sistemática como forma de planejar a revisão da literatura. A revisão sistemática busca, por meio do uso de métodos explícitos e sistemáticos, a identificação, seleção e avaliação crítica dos textos utilizados como fontes de pesquisa. A escolha da revisão sistemática como método de pesquisa foi norteada por suas características específicas como: a redução do viés do autor; ser replicável; ser atualizada; e identificar lacunas no campo de pesquisa (FIALHO, BOTELHO e MACEDO, 2010). Assim, a revisão sistemática deste artigo foi estruturada e formalizada por meio de um protocolo, que estabeleceu regras que orientaram a busca por textos e a posterior análise de conteúdo, que foi conduzida conforme proposta por Bardin (1977). Seguindo as orientações de Bardin (1977), foi estabelecido um sistema de categorização definido a posteriori, sendo este classificado como “milha” e aplicado a cada corrente positivista analisada. As categorias de análise que nortearam a comparação entre as correntes positivistas analisadas foram: i) definição de teoria válida; ii) definição de conhecimento científico; iii) lógica do método; iv) demarcação entre

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ciência e não-ciência; v) posicionamento em relação a metafísica; vi) forma de evolução do conhecimento. Este artigo está estruturado da seguinte forma: a primeira parte apresenta o referencial teórico sobre o tema, apresentando cada corrente positivista em seus aspectos principais e gerais, numa ordem cronológica; Na segunda parte, são apresentadas as categorizações e análise de conteúdo, que mostram os pressupostos de cada corrente positivista para cada categoria de análise; A terceira e última seção apresenta as considerações finais do artigo.

Positivismo Originário: O pensamento de Auguste Comte

O pensamento de Comte pode ser sintetizado a partir de três temas básicos: O primeiro tema propõe uma filosofia da história que apresenta o positivismo como único conhecimento verdadeiramente científico; O segundo tema aborda a classificação das ciências baseadas na filosofia positiva; Por fim, o terceiro tema trata de uma sociologia que, determinando a estrutura e os processos de modificação da sociedade, permite a reforma prática das instituições. Em relação ao primeiro tema, este serve de moldura para explicar “a verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia positiva” e está relacionado à formulação de uma filosofia da história que pode ser sintetizada na lei dos três estágios ou dos três métodos de filosofar (COMTE, 1973, p.9). Para Comte (1973), a verdadeira natureza do conhecimento não pode ser revelada sem uma perspectiva histórica de seu progresso. Assim, cada ramo do conhecimento deve necessariamente passar por três estágios históricos diferentes e mutuamente excludentes, a saber: i) o estado teológico ou fictício, que é o ponto de partida necessário à inteligência humana e que busca explicações para os fenômenos com base na atuação de agentes sobrenaturais ou mágicos. É considerado como a infância do conhecimento; ii) o estado metafísico ou abstrato constitui-se numa passagem intermediária no processo de maturidade do conhecimento, e substitui os agentes sobrenaturais da primeira fase por forças abstratas. É considerado como a juventude do conhecimento; iii) o estado positivo ou científico, que é fixo e ocupa-se em descobrir leis e relações invariáveis, e corresponde a maturidade do conhecimento. É o estágio que busca descobrir as leis efetivas que regem os fenômenos por meio do uso combinado do raciocínio e da observação. Segundo Comte (1973) esse estado positivo teria sido iniciado com os trabalhos de Galileu, Bacon e Descartes. O segundo tema da obra de Comte (1973) refere-se à classificação das ciências, propondo uma hierarquia que tinha como ponto de partida o estudo dos fenômenos mais simples e gerais em direção aos mais complexos e específicos, definindo a seguinte ordem: matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia. A educação científica com base nesta hierarquia era considerada necessária, pois sem ela, o ser humano não atingiria o estado maduro da racionalidade positiva. O terceiro tema básico da obra de Comte esta centrado na reforma da sociedade a partir de uma reorganização intelectual, moral e política, nessa ordem. Comte atribui à filosofia positiva o papel de restabelecer a ordem na sociedade capitalista industrial, que havia sido quebrada pela Revolução Francesa. Comte (1973) defendia ainda a legitimidade da exploração industrial e a estratificação da sociedade em classes sociais.

Só a filosofia positiva pode ser considerada a única base sólida da reorganização social, que deve terminar o estado de crise no qual se encontram, há tanto tempo, as nações mais civilizadas. (COMTE, 1973, p.17).

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Todas as ciências, segundo Comte, estavam destinadas a alcançar o estado positivo, sendo que este uma vez alcançado, não mais retrocede e desta forma, promove-se o crescimento contínuo do conhecimento a partir de novas observações. Revela-se, portanto, o caráter progressista e cumulativo do conhecimento. Para Comte, os fenômenos sociais ainda estavam nos estágios teológicos e metafísicos, o que explicaria o não estabelecimento de leis universais. Comte (1973) também defendia que a passagem pelos 3 estágios históricos constituía-se numa lei exata que poderia ser observada de forma direta, tanto na esfera individual quanto geral, e é neste contexto que Comte introduz a noção da observação, tão cara ao positivismo. Comte (1973, p.11) dizia que “todos os bons espíritos repetem, desde Bacon, que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados.” Ao introduzir a observação como método empírico, Comte imediatamente remete a importância da teoria, como uma explicação para os fatos que são observados:

(...) de um lado toda teoria positiva deve necessariamente fundar-se sobre observações, (mas) é inegavelmente perceptível, de outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito precisa duma teoria qualquer. (COMTE, 1973, p.13).

Para Comte, todos os fenômenos estão sujeitos a leis naturais e invariáveis, que devem ser reduzidas ao menor número possível, tendo em vista seu caráter generalista e objetivo.

o caráter fundamental da filosofia positiva é tomar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, considerando como absolutamente inacessíveis e vazia de sentido para nós a investigação das chamadas causas, sejam elas primeiras, sejam finais. (COMTE, 1973, p.5).

Nesta citação, é possível observar, que embora ressalte que o objetivo científico não é o de buscar causas iniciais e finais, Comte mostra-se preocupado em oferecer uma explicação causal “mediante relações normais de sucessão e similitude”. A busca por leis gerais tinha o propósito de permitir a previsão dos fenômenos. Para Comte, “o verdadeiro espírito positivo consistia, sobretudo em ver para prever, estudar o que é, a fim de concluir disso o que será, segundo o dogma geral da invariabilidade das leis naturais” (COMTE, 1973, p.56). Dentre as principais características do positivismo Comteano estão: a noção de que a realidade é constituída pela soma das partes; a realidade só existe a partir de fatos que podem ser observados, sendo verdadeiro somente aquilo que pode ser empiricamente testado, e desta forma, não admite a noção de conhecimento a priori ao mesmo tempo em que também exclui questões metafísicas, que são consideradas inacessíveis em razão de não serem passíveis de verificação. Positivismo Lógico: O Círculo de Viena O Círculo de Viena foi constituído no início do século XX por um grupo de intelectuais que se propunham a estudar questões relativas à ciência, lógica e linguagem. Destacavam-se dentre seus integrantes nomes como: Moritz Schlick, Hans Hahn, Otto Neurath, Hempel, Rudolf Carnap, Wittgenstein entre outros. No documento que marca a criação do grupo, chamado de “Manifesto do Círculo de Viena”, de 1929, Neurath, Carnap e Hahn mostravam-se preocupados com o renascimento de idéias metafísicas que “ameaçavam repor em questão o lugar que só a ciência ocupa e deve ocupar” (BARBEROUSSE et al, 2000, p.13). O

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conjunto de idéias defendidas pelos filósofos do Círculo de Viena ficou conhecido como positivismo lógico ou empirismo lógico. A proposta dos membros do Círculo de Viena era promover a “purificação” do positivismo, em resposta a repulsa destes pela Metafísica. Mesmo o positivismo Comteano era avaliado como metafísico em certa medida, o que levou inclusive a rejeição do termo “positivista” pelos membros do Círculo. Tal posicionamento mostrava a exaltação da lógica no discurso científico, e por esta razão, tais pensadores ficaram conhecidos como positivistas lógicos. Sobre isso Schlick afirmou: “Se alguém qualificar de positivista toda esta tese que nega a possibilidade da Metafísica, nada se pode objetar. Neste sentido, deveria eu mesmo professar-me um positivista convicto” (SCHLICK, 1975, p.46). O objetivo do Círculo de Viena era lançar os fundamentos para a construção de uma ciência unificada, que fosse capaz de reunir todos os conhecimentos proporcionados pelas diferentes ciências. Para tanto, insistiam em imunizar a ciência de toda e qualquer “contaminação” de teorias que tivessem como base vertentes filosóficas. Assim posto, cabe questionar quais critérios poderiam distinguir um discurso dotado ou não de sentido científico na perspectiva dos positivistas lógicos. Barberousse et al (2000) esclarece que o positivismo lógico advogava a superioridade da ciência empírica relativamente à busca da verdade, sendo esta sustentada pela observação, que garantia o confronto com a realidade. A observação era “a única capaz de exercer um controle objetivo nas hipóteses científicas e de servir de pedra de toque para a sua verdade ou falsidade” (BARBEROUSSE et al 2000, p.14). Para os positivistas lógicos, o conhecimento se iniciava com a observação, e por esta razão, rejeitavam a idéia Kantiana de conhecimento a priori. Assim, uma proposição somente tinha sentido quando era dotada de enunciados empíricos capazes de serem verificados pela experiência ou observação; não sendo empíricos, seriam inadequados para uma discussão racional. Desta forma, esperava-se que o Princípio da Verificação pudesse contribuir para a obtenção de um conhecimento seguro. Neste ponto, residia uma das preocupações pontuais de Carnap (1975), pois ao defender que o princípio que determina a verdade é o da verificação empírica, como lidar então com as proposições epistemológicas, que não se referiam a fatos, mas às proposições? Seria a epistemologia destituída de verdade? Para responder a esta questão, Carnap (1975) defendeu que as proposições epistemológicas são proposições dotadas de significado, que se referem não diretamente aos fatos, mas antes à linguagem empregada para referir-se aos fatos. Neste sentido, a tarefa da filosofia era depurar a linguagem científica de suas imprecisões, construindo linguagens que obedecessem ao rigor de uma sintaxe lógica. Nesta perspectiva, surge então uma característica peculiar que estava presente nos debates dos pensadores do Círculo: a reflexão em torno da linguagem. Em 1921, a edição da obra Tractatus Logico-Philosophicus, de Wittgenstein (2001) influenciou diretamente as reflexões dos participantes do Círculo, e este colocava, em síntese, que uma sentença é uma figuração da realidade, como um quadro vivo, e não “como se fosse” a realidade (Teoria da Figuração), de forma que uma teoria da realidade correspondia a uma teoria da linguagem, numa relação paralela. Havia, portanto, uma correspondência entre estrutura do mundo e estrutura da linguagem. Por este motivo, considerava a linguagem como uma representação que projetava a realidade. Segundo Wittgenstein (2001), toda proposição é significativa (ou tem sentido) quando diz algo a respeito do mundo, sendo portadora de uma afirmação sobre a realidade. Esta afirmação transforma-se num enunciado, ou seja, numa entidade lingüística que indica como são os fatos. Nesta perspectiva, delimitar o conhecimento convertia-se numa tarefa de caracterizar a linguagem enunciativa. No entanto, as regras gramaticais não seriam suficientes para separar proposições científicas das não científicas. A gramática carecia de complemento, ou seja, de regras lógicas capazes de determinar quais proposições poderiam ser significativas em termos científicos.

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Desta forma, era necessário desenvolver uma teoria lingüística que fosse capaz de fornecer os instrumentos analíticos necessários para definir a significatividade de uma sentença, e em grande parte esta tarefa coube a teoria proposta por Wittgenstein (2001). Em 1931, Carnap publicou dois ensaios que buscavam precisar a idéia de uma junção imediata entre a ciência enquanto sistema de enunciados e a experiência sensível (BARBEROUSSE, 2000, p.15). Para Carnap, o sentido das palavras é determinado pelo sentido dos enunciados em que figuram, e em consonância com Wittgenstein, Carnap considerava que o significado dos enunciados complexos é determinado pelo sentido dos enunciados elementares de que são compostos, e desta forma, o significado de um enunciado é constituído pelas condições em que é verdadeiro, ao que Carnap acrescentou a tese verificacionista do enunciado (BARBEROUSSE, et al, 2000). Quanto a isto, afirmou Carnap (1975, p.105) que “Cumpre enfatizar que, quando falamos de verificabilidade, entendemos a possibilidade lógica de verificação, e somente isso”. Assim, uma das principais teses defendidas pelos pensadores do Círculo era a de ser possível elaborar, por meio de uma construção lógica e experiencial, uma linguagem básica e fundamental que servisse como uma fonte de ligação entre as várias ciências, da física à filosofia, da sociologia à biologia (PETTERSEN, 2006). Nesta perspectiva, problemas semânticos assumiam a proporção de se tornarem epistemológicos, uma vez que o significado de uma palavra consistia tanto em suas relações intralingüísticas com outros termos ou enunciados como também sua relação com a realidade extralingüística. Assim, é possível observar que o Positivismo Lógico e o Comteano, embora partilhassem idéias bastante semelhantes, a epistemologia do Círculo de Viena defendia que a base empírica da ciência poderia ser efetiva no plano lógico das proposições. Tais reflexões causaram impacto sobre a ciência, uma vez que a linguagem passou a ser parâmetro da cientificidade, algo até então não defendido. O Positivismo Crítico de Karl Popper Karl Popper distingue-se dos demais filósofos em razão de seu posicionamento firme e muitas vezes polêmico, que afrontou o pensamento positivista até então estabelecido. O método científico proposto por Popper buscou enfrentar o que ele considerava dois dos principais problemas da teoria do conhecimento: O primeiro foi o problema da indução e o segundo, o problema da demarcação (SILVA, 1995). No que se refere ao problema da indução, este estava associado ao método indutivo, defendido pelos pensadores do Círculo de Viena, e trazia em si problemas de ordem lógica que foram levantados por David Hume, sendo esta argumentação conhecida como “A crítica de Hume”. A crítica de Hume, brevemente aqui exposta, pode ser sintetizada partindo-se do princípio de que realizamos inferências causais supondo a conexão entre fatos presentes e futuros, ou seja, espero que o sol nasça hoje porque isto já ocorreu centenas de outras vezes. Tais inferências causais são, portanto, relacionadas à experiência passada e, segundo Hume, não há condições para estabelecer leis universais e atemporais com base na experiência passada, pois quem pode garantir, com base no passado, a ocorrência de eventos futuros? Em outras palavras, quem pode garantir que o Sol nascerá amanhã? O que há resume-se apenas numa expectativa da repetição de um fenômeno. “Mas se todo o conhecimento vem da experiência (como defendem os empiristas) e da experiência não se podem retirar conclusões universais e atemporais, como resolver esta contradição? (SILVA, 1995, p.20). Tomando como base esta argumentação, Hume conclui que uma vez que a razão desempenha um papel menor, o fundamento da ciência seria irracional. Sobre esta questão, Popper (1982) argumentou que a lógica indutivista é falha, pois não é possível justificar enunciados universais a partir de experiências e observações particulares,

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pois isto seria mais do que a experiência ou a observação nos autoriza. Não importa quantos resultados ou observações se tenha sobre um enunciado, não é possível torná-lo universal, e nisto Popper concordava com Hume. Popper (1982) buscou responder à crítica de Hume a partir do conceito de Falsificação como o procedimento que tanto resolve o problema da indução como também define a demarcação entre atividade científica e não científica. “Um enunciado ou teoria é falsificável segundo o meu critério, se e só se existir pelo menos um falsificador potencial” (POPPER, 1987, p.20). Pelo critério da falsificação, se não é possível justificar um enunciado universal, dado sua impossibilidade de ser confirmado por meios empíricos, então somente é possível confrontá-lo com enunciados particulares que são passíveis de teste e podem negar as assertivas do enunciado universal, ou seja, podem torná-lo refutável. Popper (1982) propõe o seguinte exemplo: supondo um enunciado universal “todos os cisnes são brancos”, a verificação empírica de todos os cisnes na totalidade espaço-temporal existente é impossível. Mas a observação de um único cisne preto é capaz de falsificar o enunciado universal. Neste caso, o dado de observação pode ser apresentado como um enunciado particular que nega a afirmação do enunciado universal, justificando-o como falso. Desta forma, uma única observação basta para falsificar toda uma teoria. Para Popper, o princípio da falseabilidade também permite demarcar o que é ou não ciência a partir da possibilidade do conhecimento ser submetido a testes empíricos e ser eventualmente falsificado (SILVA, 1995). Todo conhecimento que não pode ser falsificado, não pode ser considerado científico, pois é dogmático. Assim, a solução apresentada ao problema da indução é homogênea a solução da demarcação entre ciência e não-ciência. É importante ressaltar que para Popper, era necessário que um enunciado fosse testado empiricamente não em razão de sua verificabilidade, mas pela sua falseabilidade. Dessa forma, Popper propunha o abandono da crença na verdade científica absoluta, sobretudo pela insuficiência de seus métodos, e defendia que as soluções científicas eram apenas provisórias. Para Popper (1982), uma teoria científica é sempre uma conjectura ou hipótese, ou seja, algo que é passível de refutação. Uma teoria pode ser corroborada quando é validada por testes empíricos, mas por mais que seja testada, ainda assim não haverá garantias de sua irrefutabilidade. Isso porque a “corroboração não atribui um valor de verdade” (SILVA, 1995, p.50). Por outro lado, também são conjecturais as falsificações das teorias, pois “todo conhecimento é conjectural, inclusive as falsificações da teoria (...), e nenhuma teoria pode ser dada como definitivamente ou terminantemente falsificada” (POPPER, 1987, p.22). Desta forma, não é possível verificar uma teoria, pois estas são conjecturas provisórias e nunca podem ser dadas como definitivamente verdadeiras (SILVA, 1995). O pensamento de Popper a respeito da teoria pode ser resumido na seguinte frase: “Não sabemos, só podemos conjecturar” (POPPER, 1982, p.218). Desta forma, as teorias científicas são propostas como hipóteses, e são substituídas por novas hipóteses quando são falsificadas. A filosofia de Popper pode ser considerada oposta ao positivismo lógico no que se refere à origem da teoria. Popper não acreditava que existisse um caminho estritamento lógico e racional capaz de levar a formulação de novas teorias, mas estas podiam ter como pontos de partida a imaginação, a intuição, a criatividade... “as teorias podem ser vistas como livres de criações da nossa mente, o resultado de uma intuição quase poética, da tentativa de compreender intuitivamente as leis da natureza” (POPPER, 1982, p.218). Assim, Popper mostrava-se favorável a metafísica, inclusive atribuía a ela a origem de várias teorias. “Nossas conjecturas são orientadas por fé não científica, metafísica (embora biologicamente explicável), em leis, em regularidades que podemos desvelar” (POPPER, 1975, p.306). Desta forma, Popper afirmava que é mais correto logicamente concluir pela falsidade de uma teoria do que pela sua verdade. Isto porque as teorias devem ser compreendidas como

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tentativas humanas de descrever e entender a realidade, uma vez que “as teorias são nossas invenções, nossas idéias e não se impõe a nós (POPPER, 1982, p.144). Popper também acreditava que “todo conhecimento é impregnado de teoria, inclusive nossas observações” (POPPER, 1975, p.75), ou seja, não existem dados puros ou livres de teoria, pois todas as observações são sempre realizadas à luz de pressupostos e teorias prévias que o cientista traz consigo. Nesta perspectiva, o trabalho do cientista é elaborar teorias e colocá-las à prova. "Ora, eu sustento que as teorias científicas nunca são inteiramente justificáveis ou verificáveis, mas que, não obstante, são suscetíveis de se serem submetidas à prova”. (POPPER, 1993 p.46) Desta forma, a objetividade dos enunciados científicos residia na condição deles poderem ser submetidos a teste. Por fim, na concepção epistemológica Popperiana, a Ciência pode ser compreendida como um “jogo interminável”, no qual uma teoria é submetida à prova e tendo suas qualidades comprovadas não será facilmente superada a não ser que outra teoria resista melhor às provas ou ocorra o falseamento da teoria anterior. O Pós-Positivismo: Kuhn, Lakatos e Feyerabend A definição do que é o pensamento “pós-positivista” é, até o momento, tema de certo debate e controvérsia. Não há uma definição clara sobre seus pressupostos, sendo esta corrente muitas vezes associada à pensadores pós-modernos como Focault, Latour, Derrida entre outros. No entanto, para fins deste artigo, foi utilizada a orientação proporcionada pelo dicionário de filosofia de Abbagnano (1982) que coloca que a epistemologia positivista é representada pelo conjunto de idéias desenvolvidas pelos pensadores Thomas Kuhn, Irme Lakatos e Paul Feyerabend. Tendo em vista que esses autores defendem diferentes perspectivas quanto à ciência e sua epistemologia, suas idéias serão apresentadas separadamente em forma de síntese. Thomas Kuhn distingue-se dos demais pensadores por desenvolver sua epistemologia em contato estreito com a história das ciências. Para ele, a ciência é um empreendimento cujo progresso se efetiva na articulação entre ciência normal e revoluções da ciência (SILVA, 1995, p.68). Dessa forma, o progresso da ciência não pode ser visto como uma linha reta, mas como uma alternância entre linhas e saltos. As linhas representam o desenvolvimento da ciência normal enquanto os saltos representam as revoluções científicas. Durante o período da ciência normal, os cientistas contribuem para o progresso do conhecimento por meio da exploração intensiva de um domínio de fenômenos. “Essa demarcação do domínio a explorar e o estabelecimento de orientações acerca das modalidades dessa exploração é tarefa de um paradigma, que governa cada fase da ciência normal” (SILVA, 1995, p.69). Assim, o período de ciência normal é governado pelo paradigma e tem o objetivo de montar “quebra-cabeças” ou desvendar enigmas dentro da estrutura fornecida pelo paradigma, sem expectativas de novas descobertas. O paradigma é portanto, uma estrutura mental ou um modelo que os cientistas seguem, num determinado período histórico, e que é constituído por teorias, formas de procedimentos, métodos e certos princípios metafísicos que oferecem as condições para a resolução de enigmas e “quebra-cabeças” (KUHN, 2000). No período de ciência normal, os cientistas avançam de forma acumulativa e contínua, à medida que acrescentam melhorias às teorias já existentes, mas tais melhoramentos são restritos, pois os cientistas somente enxergam aquilo que o paradigma permite detectar. Assim, “um paradigma pode até mesmo afastar uma comunidade daqueles problemas sociais relevantes que não são redutíveis à forma de um quebra-cabeça, pois são incompatíveis com o paradigma” (KUHN, 2000 p.60). As anomalias surgem quando o paradigma não consegue

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resolver um problema ou dificuldade que surge no processo de investigação. A persistência de certas anomalias pode provocar uma crise que pode culminar com uma mudança no paradigma, ou seja, ocorre uma revolução científica. Esse processo não é linear, mas ocorre na forma de saltos. É importante ter em vista que não se trata de passar de um período de ignorância para outro de “saber”, mas de uma transição, “um processo em que escolha depende em última instância do assentimento dado por um grupo científico após um processo de argumentação persuasiva” (SILVA, 1995, p.75). O período de revolução científica é, neste sentido, um período de mudança de paradigmas e o que muda é a maneira de olhar o mundo. Os diferentes paradigmas irão considerar diferentes tipos de questões como legítimas ou significativas. “O nascimento de uma nova teoria rompe com a tradição da prática científica e introduz uma nova, o que se leva a cabo com regras diferentes e dentro de um universo de razões também diferentes” (KUHN, 2000, p.142). Neste contexto, a divergência na forma como os cientistas passam a enxergar o mundo levanta a questão da incomensurabilidade entre os paradigmas, ou seja, os paradigmas não são passíveis de serem comparados, uma vez que partem de premissas distintas. Para Kuhn (2000) a verdade de cada teoria funciona apenas dentro de cada paradigma. Desta forma, não há verdade absoluta. A verdade é intra-paradigmática. Em síntese, Kuhn propõe que o progresso se faz mediante a revolução, sendo esta uma alternativa ao progresso cumulativo, que caracterizou a explicação indutivista da ciência. Irme Lakatos propõe a metodologia dos programas de investigação científica como proposta para resolver problemas que Popper e Kuhn não puderam solucionar. Para tanto, parte do princípio de que a ciência não é um conjunto de conjecturas ou refutações que são sujeitos a tentativa e erro, mas que a ciência é formada por um conjunto de programas de pesquisa, sendo ela mesma um grande programa (LAKATOS, 1978). Os programas são definidos como “estruturas teóricas que proporcionam um quadro racional de desenvolvimento de idéias fecundas, fazendo progredir o conhecimento por via da competição multifacetada entre si” (SILVA, 1995, p.111). O programa de investigação científica pode ser compreendido como uma série de estruturas de teorias em desenvolvimento e de regras metodológicas que orientam a investigação, sendo tais programas formados por um núcleo duro e por seu cinturão de proteção. O núcleo duro é constituído por um enunciado universal ou um conjunto deles que expressam a conjectura fundamental do programa sendo irrefutável (LAKATOS, 1978). Este núcleo duro “é defendido da refutação por uma vasta cinta protetora formada por hipóteses auxiliares (LAKATOS, 1978, p.16). Isso quer dizer, que para Lakatos a “heurística negativa” do programa protege o núcleo duro diante de problemas como refutação ou anomalia, que poderiam declará-lo como falso, uma vez que a falsidade incidirá sobre alguma(s) hipótese (s) auxiliar(es) do cinturão protetor, e desta forma, compete ao cinturão de proteção suportar a pressão dos testes aos quais o programa é submetido por meio de ajustes que permitam anular qualquer tentativa de falsificação (SILVA, 1995, p.112). Por outro lado, a heurística positiva orienta as modificações que devem ser feitas no cinturão protetor quando é observada uma incompatibilidade entre previsões teóricas e os fatos. “A heurística positiva consiste num conjunto parcialmente articulado de sugestões ou palpites sobre como mudar e desenvolver as variantes refutáveis do programa de pesquisa, e sobre como modificar e sofisticar o cinto de proteção refutável” (LAKATOS, 1979; p. 165). Assim, a “heurística positiva” impede que os cientistas se confundam, indicando caminhos que poderão, lentamente, explicá-las e transformá-las em corroborações. Desta forma, sempre é possível ajustar “cinturão protetor” para explicar qualquer anomalia.

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Mas como distinguir um programa científico de outro pseudocientífico ou degenerativo? Contrariamente a Popper, a diferença não pode consistir no fato de uns terem sido refutados e outros não. Num programa considerado progressivo, a teoria conduz a novas descobertas. Nos programas degenerativos, as teorias são fabricadas meramente para enquadrar os fatos conhecidos. Desta forma, o programa newtoniano pode ser considerado científico, já o programa marxista é degenerativo, pois as profecias de Marx, nunca se realizaram, ou seja, a teoria não acompanhou os fatos. Um programa está “regredindo” ou “degenerando” se “seu crescimento teórico se atrasa com relação ao seu crescimento empírico; isto é, se somente oferece explicações post-hoc de descobertas casuais ou de fatos antecipados e descobertos por um programa rival” (LAKATOS, 1979; p. 117). O progresso do conhecimento depende da existência de programas concorrentes, sendo que o abandono de um programa deve-se a existência de um programa melhor, e esse embate pode levar décadas. Assim, para Lakatos, não há experimentos cruciais que sejam capazes de acabar com um programa de pesquisa, uma vez que o cinturão protetor é capaz de absorver fatos novos ou problemáticos e a falsificação das teorias tem, portanto, um caráter histórico. Paul Feyerabend, em sua obra intitulada “Contra o Método” (1977), defende uma posição em favor daquilo que ele chama de anarquismo epistemológico, e que se traduz na defesa de um pluralismo metodológico. O anarquismo defendido por Feyerabend tem o significado de oposição a um princípio único, absoluto e imutável, o que não quer dizer que este pensador seja avesso a qualquer procedimento metodológico, numa espécie de “vale-tudo”. A argumentação de Feyerabend busca mostrar que a proposição de regras muito gerais por parte de filósofos da ciência, postas como capazes de orientar a investigação científica, não oferecem sustentação nem para a prática efetiva dos cientistas nem são desejáveis do ponto de vista metodológico. Feyerabend (1977) insiste que as regras do método podem e é desejável que sejam desrespeitadas, sendo isso absolutamente necessário para o desenvolvimento da ciência, uma vez que todas as metodologias, mesmo as mais óbvias tem seus limites e algumas regras, ainda que consagradas, são irracionais. Feyerabend rechaça aquilo que chama de anarquismo ingênuo, que consiste em crer que todas as regras são desprovidas de interesse e devem ser abandonadas, mas coloca que “qualquer regra tem seus limites e pode sempre deparar-se-nos uma situação em que ela tenha de ser violada” (SILVA, 1995, p.297). Para Feyerabend, embora as regras sejam falíveis, também proporcionam sucessos e ajudam o cientista em sua investigação. O que Feyerabend defende é que todas as regras têm seus limites, o que não significa que se deve proceder sem regras. Sua intenção é mostrar que, na prática concreta da investigação, a validade e utilidade das regras metodológicas estão elas próprias, postas à prova.

Defendo uma abordagem contextual, mas as regras contextuais não são para substituir as regras absolutas, são para as complementar. Não pretendi eliminar regras (...) mas pelo contrário, expandir o inventário de regras, bem como sugerir um novo uso para todas elas. (FEYERABEND, 1977, p.164)

Na perspectiva de Feyerabend, tentar antecipar todas as regras e procedimentos que irão servir a uma pratica concreta de investigação equivale a não fazer justiça à riqueza e complexidade do processo (SILVA, 1995, p.298). Problemas novos geram novas abordagens e não há método que possa antecipar a emergência de todas as novas modalidades de ataque a uma situação nova.

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O suposto princípio anarquista de Feyerabend não é mais do que a expressão desta crítica à tentativa de determinar regras que sejam aplicáveis a todos os casos da investigação concreta e recusa a idéia de método universal e adequado a todas as circunstâncias.

Se queres padrões universais, se não podes viver sem princípios que se apliquem independentemente da situação, da forma do mundo, das exigências da investigação, das peculiaridades do temperamento, então eu dou-te tal principio. Será vazio, inútil e ridículo – mas será um principio. Será o principio do vale-tudo. (FEYERABEND, 1977, p.188)

Para Feyerabend (1977), o avanço da ciência ocorre em razão de substituir, quando necessário, os modos de proceder considerados próprios do contexto da justificação por modos de proceder considerados próprios do contexto da descoberta. Silva (1995, p.302) coloca que a proposta de Feyerabend mostra-se especialmente relevante por “libertar a reflexão acerca do método científico de uma forte associação método/algoritmo, aproximando-a mais da associação método/estratégia.” O conceito de estratégia não fornece uma indicação particularizada dos atos a cumprir, mas somente do espírito dentro do qual a decisão deve ser tomada e do esquema global no qual as ações devem ocorrer. Feyerabend (1977) contribui no sentido de apontar que o método científico deve privilegiar a ação estratégica em detrimento da ação tática. Em síntese, a filosofia da ciência de Feyerabend é captada em seu sentido mais profundo se for encarada como um alargamento do falibilismo: não só as teorias científicas são sempre suscetíveis de serem comprovadas como verdadeiras, mas também os métodos da ciência mudam com o tempo e circunstâncias (SILVA, 1995). Categorização e análise de conteúdo A etapa da categorização e análise de conteúdo buscou mostrar como cada corrente positivista posicionava-se em relação a um mesmo tema proposto. Assim, a primeira categoria de análise teve como objetivo definir o conceito de uma teoria válida na perspectiva das diferentes correntes positivistas. Os resultados foram sintetizados na forma de figura, de forma a ressaltar os elementos de divergência, semelhança e oposição em cada corrente positivista analisada. O mesmo procedimento foi aplicado às demais categorias propostas, e que foram definidas no protocolo da pesquisa.

Conceito de teoria válida para cada corrente positivista

Originário Uma teoria é um corpo teórico que proporciona explicações para os fatos observados, sendo comprovada pela observação e experiência.

Lógico As teorias são explicações e sistematizações a partir de uma linguagem lógica de cunho axiomático.

Crítico Uma teoria científica é sempre uma conjectura ou hipótese, ou seja, algo que é passível de refutação. Uma teoria é verdadeira até que seja falseada pela experiência empírica, mas este falseamento não a descarta, apenas mostra que está mais longe da verdade em relação à outra que não foi falseada.

Pós A teoria define-se a partir dos pressupostos adotados pelo paradigma no qual o conhecimento se desenvolve, sendo portanto restrita ao paradigma (Kuhn).

Figura 1: Recorte das unidades de registro referentes à definição de teoria. Fonte: Os autores (com base nos resultados da pesquisa)

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Nesta primeira categorização, observa-se que a definição acerca de uma teoria válida é bastante semelhante para os positivismos originário e lógico, sendo esta reduzida a uma explicação para os fenômenos observados, ainda que o positivismo lógico introduza a importância da lógica na linguagem para a formulação da teoria. Já a perspectiva crítica introduz uma nova dinâmica ao papel da teoria no processo de construção do conhecimento, sendo esta identificada como uma conjectura passível de refutação. No pós-positivismo a teoria deixa de ter seu papel pré-definido, sendo este dependente do paradigma no qual se insere.

O que define um conhecimento científico em cada corrente positivista? Originário É aquele que pode ser empiricamente testado pela observação ou experiência e que conduz a

leis gerais e invariantes sobre os fenômenos naturais, com o objetivo de permitir a previsão dos fenômenos.

Lógico Um conhecimento válido é atestado pelo Princípio da Verificação. Somente é verdadeiro o conhecimento passível de ser verificado. Mesmo as proposições epistemológicas são reconhecidas como válidas por meio da verificação lógica de seus enunciados.

Crítico Um conhecimento é científico quando pode ser refutado ou enquanto não refutado. Todo conhecimento dogmático não pode ser científico.

Pós Quando oferece uma explicação coerente com o paradigma metateórico, sendo válido dentro do paradigma. É incomensurável com outro paradigma. (Kuhn)

Figura 2: Recorte das unidades de registro referentes à definição de conhecimento científico. Fonte: Os autores (com base nos resultados da pesquisa)

A segunda categoria de análise mostrou que a definição de um conhecimento científico está fortemente ligada ao empirismo, quando se trata da corrente originária e lógica. Tais correntes esperavam que o empirismo as conduzisse ao encontro de um conhecimento “seguro”. Este pensamento não é partilhado pelo positivismo crítico, que reconhece a impossibilidade da universalização do conhecimento com base na experimentação, sendo que a esta cabe apenas a tarefa de refutar um conhecimento que se pretenda válido. Já o pós-positivismo desvincula qualquer relação entre empirismo e conhecimento científico, a menos que tal relação seja válida dentro do paradigma no qual se atua.

Qual o lógica do método? Originário Indução, dedução e construção. “Induzir para deduzir a fim de construir”.

Lógico Indução por repetição ou eliminação. Dedução apenas para juízos analíticos a priori. Indução para juízos sintéticos a posteriori.

Crítico Hipotético-dedutivo.

Pós A lógica do método não pode ser pré-definida pois depende da complexidade do fenômeno em investigação. O método se constitui na investigação (Feyerabend). A lógica do método é intraparadigmática, sendo definida e restrita pelo paradigma em que se atua (Kuhn)

Figura 3: Recorte das unidades de registro referentes à definição de lógica do método. Fonte: Os autores (com base nos resultados da pesquisa)

Ao longo do processo de evolução do paradigma positivista, observa-se o abandono da lógica da indução, passando pela forma hipotético-dedutiva, até culminar com a idéia de que o método bem como sua lógica não podem ser definidos a priori, mas estão sujeitos as complexidades e contexto da descoberta ou ao paradigma que orienta a investigação.

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Quais os critérios de demarcação entre ciência e não ciência? Originário Somente são científicas as proposições passíveis de serem observadas ou experimentadas. Esse

pressuposto exclui a possibilidade da metafísica ser compreendida como ciência.

Lógico Princípio da verificação empírica com base no método indutivo é característica da ciência, enquanto que os métodos especulativos caracterizam as não-ciências.

Crítico Falseabilidade como critério de demarcação. Somente são científicas as proposições que podem ser falsificadas. Todo conhecimento que não pode ser falsificado, não pode ser considerado científico.

Pós Não é científica toda afirmação que se pretenda universal e absoluta. A ciência não estabelece dogmas, mas reconhece a conexão entre teoria e metateoria.

Figura 4: Recorte das unidades de registro referentes à demarcação entre ciência e não ciência. Fonte: Os autores (com base nos resultados da pesquisa)

A demarcação das fronteiras entre ciência e não ciência, na perspectiva do positivismo originário e lógico, é definida por meio da verificação empírica. No positivismo crítico, o empirismo ainda assume este papel, mas numa outra perspectiva, sendo considerada como “ciência” todo conhecimento capaz de ser falsificado por meio do teste empírico. Esta noção é abandonada no pós-positivismo, que não reconhece nem o dogma nem o empirismo.

Qual o posicionamento de cada corrente positivista em relação à metafísica?

Originário Considerada uma filosofia inicial, é transitória e serve de passagem para alcance do estágio positivista. Não pode ser científica por não ser passível de verificação empírica.

Lógico Completa repulsa. A verdadeira ciência não se apóia em pressupostos metafísicos.

Crítico É considerada necessária ao desenvolvimento ciência, sendo também uma possível origem para a teoria.

Pós Reconhece a incontornabilidade da metafísica na ciência. A ciência não pode dissociar-se da metafísica.

Figura 5: Recorte das unidades de registro referentes ao posicionamento em relação à metafísica. Fonte: Os autores (com base nos resultados da pesquisa)

A relação entre o positivismo e a metafísica sofre profundas mudanças ao longo da evolução do paradigma, partindo de uma posição de completa repulsa ao reconhecimento de sua incontornabilidade na ciência. A repulsa à metafísica foi, inclusive, uma das motivações para a formação do Círculo de Viena e pode ser considerada como um pressuposto que opõe fortemente o positivismo originário e lógico ao positivismo crítico e pós-positivismo.

Como o conhecimento pode evoluir na perspectiva de cada corrente positivista? Originário Quando a ciência atinge seu estado positivo, novas observações levam a novas descobertas, que

permitem seu progresso contínuo por acumulação.

Lógico Por acumulação e descobrimento de leis gerais a partir de fenômenos particulares.

Crítico Pela corroboração e falseamento de teorias, que são conjecturas e traduzem um conhecimento provisório. A superação de uma teoria pela outra promove a evolução do conhecimento.

Pós Para Kuhn, o progresso se efetiva na articulação entre ciência normal e revoluções da ciência, que ocorre por meio de evoluções e saltos transparadigmáticos. Para Lakatos, o progresso do conhecimento depende da substituição e concorrência entre programas de pesquisa científica.

Figura 6: Recorte das unidades de registro referentes à forma de acumulação do conhecimento. Fonte: Os autores (com base nos resultados da pesquisa)

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O processo de evolução do conhecimento é outro pressuposto que sofre importantes mudanças no paradigma positivista. Primeiramente, a evolução é vista como ocorrendo a partir de sua acumulação, sendo esta visão substituída pela idéia de corroboração e falseamento defendida no positivismo crítico, até ganhar diferentes contornos no pós-positivismo. Considerações Finais Este artigo permitiu observar que o paradigma positivista valeu-se da crítica como instrumento para seu aperfeiçoamento contínuo. Assim, o positivismo lógico surgiu a partir da crítica ao positivismo originário, mais especificamente em relação ao posicionamento deste diante da metafísica, que era compreendida como o conhecimento em sua juventude. O positivismo lógico alcançou o mérito de introduzir inovações pelo uso da lógica na linguagem, algo até então inédito, aperfeiçoando o paradigma. Já o positivismo crítico de Popper surgiu a partir da crítica ao positivismo lógico, buscando mostrar a incoerência do uso do método indutivista. É interessante notar que ao propor o método hipotético-dedutivo, Popper também estabeleceu critérios de demarcação entre ciência e não ciência. O pós-positivismo, por sua vez, surgiu a partir da crítica ao positivismo crítico de Popper. Lakatos buscou aperfeiçoar as idéias de Popper enquanto Kuhn buscou mostrar suas incoerências. Soma-se a isso a contribuição de Feyerabend e seu anarquismo epistêmico que pregava a não definição apriorística do método. Assim, observa-se que este paradigma obteve o mérito de reinventar-se a partir das críticas recebidas por cada corrente. Esta capacidade de reinvenção pode ser uma das explicações possíveis para a hegemonia deste paradigma no desenvolvimento da ciência até os dias de hoje. A capacidade de reinventar-se também pode trazer uma conseqüência negativa, que é a perda da identidade ou da essencialidade do paradigma. No entanto, se há algo que congrega todas as correntes positivistas aqui demonstradas é a existência de um ethos comum: a racionalidade. A racionalidade está presente em qualquer uma das correntes positivistas examinadas. É fato que nas correntes originária e lógica, esta racionalidade está centralizada, mas tal racionalidade vai gradativamente cedendo espaço, assumindo uma posição descentralizada à medida que o paradigma avança para o positivismo crítico e pós-positivismo. No entanto, embora descentralizada, a racionalidade está sempre presente, mesmo no pós-positivismo, por vezes acusado de ser irracional. A tese da irracionalidade no pós-positivismo não pode ser tomada como verdadeira, pois tanto Kuhn quanto Lakatos defendiam a presença da racionalidade, seja na lógica do paradigma ou no programa de pesquisa, respectivamente. Mesmo Feyerabend, acusado de ser irracional em razão de defender uma anarquia epistêmica, foi mal interpretado, uma vez que este defendia que o método devia ser definido em consonância com o problema investigado, respeitando suas complexidades e natureza, o que demonstra o caráter racional da escolha do método. Também é notório observar que o desenvolvimento do paradigma positivista implicou no surgimento de correntes de pensamento que adotavam pressupostos distintos e até mesmo opostos entre si, o que traz importantes implicações para a pesquisa científica pois uma vez que se desenvolve uma pesquisa sob o orientação do paradigma positivista, é importante ter em vista qual a corrente de pensamento que orienta a condução da pesquisa. A heterogeneidade do paradigma está, portanto, expressa nas diferenças entre os pressupostos básicos de cada corrente analisada. Um exemplo desta heterogeneidade é a perspectiva positivista em relação à metafísica que muda radicalmente ao longo da evolução do paradigma. O inverso ocorre em relação ao empirismo, que ocupava uma função central nos positivismos originário e lógico, e passa a perder gradativamente seu espaço no positivismo

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crítico, acentuando-se essa perda no pós-positivismo. É possível afirmar que os pressupostos acerca da teoria, definição de conhecimento científico, método e acumulação de conhecimento também sofrem transformações ao longo da evolução do paradigma, conforme demonstrado nas figuras propostas, que ressaltam a heterogeneidade do paradigma positivista e seus aspectos distintivos. Assim, o desenvolvimento do paradigma positivista ao longo do tempo caminhou no sentido de abandonar pressupostos pré-definidores para os papéis desempenhados pela teoria e pelo método, que tinham como objetivo o alcance de uma verdade universal e incontestável. É notório observar que à medida que o paradigma positivista evoluía, favorecia-se uma maior “liberdade” para o desenvolvimento da ciência, que foi desistindo de buscar leis invariantes de causa e efeito (positivismos originário e lógico), passando a ocupar-se em conhecer e descobrir os fenômenos, tendo em vista o contexto e as complexidades envolvidas no processo de investigação científica, incluindo o reconhecimento da existência de aspectos subjetivos do pesquisador e sua interferência nos resultados da pesquisa. Nesta perspectiva, observa-se que o desenvolvimento do pensamento positivista tende a caminhar no sentido de, em última instância, considerar os aspectos cognitivos da mente humana no processo investigativo. Este movimento deverá forçar uma nova reinvenção da tradição positivista que deverá culminar na compreensão da epistemologia como uma ciência natural, ocupada em desvendar os mecanismos de funcionamento da mente humana. Quine (1969) foi o primeiro filósofo a defender esse movimento da epistemologia positiva em direção a uma epistemologia naturalizada. Assim, se as conclusões de Quine (1969) estiverem corretas, os próximos passos do positivismo tenderão a caminhar no sentido de favorecer a compreensão da epistemologia como uma ciência natural.

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Referências

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