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Para Vik Lovell,que me disse que os dragões não existiam,e depois me levou até suas tocas.

“...one flew east, one flew west,one flew over the cuckoo’s nest.”*Cantiga popular de roda

*“...um voou para leste, um voou para oeste, um voou por cima do ninhodo cuco.”

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Nota do autor

Psicodélicos anos 1960. Deus sabe o que isso significa, cer-tamente bem mais do que drogas, apesar de as drogas te-rem levado toda a fama daqueles dias.Sei bem como era isso. Legalmente, é bom deixar claro.Na verdade, foi quase um ato de patriotismo naqueles pri-meiros anos de psicodelismo.Todas as terças-feiras pela manhã eu me encaminhavapara o hospital em Menlo Park, Califórnia. Era levado pelomédico para um quartinho, tomava umas pílulas ou bebiaum suco amargo e era trancado lá dentro. A cada quarentaminutos ele voltava para checar se eu continuava vivo, apli-cava uns testes, fazia algumas perguntas e saía. Nos longosintervalos entre essas visitas, eu ficava observando o fun-cionamento da minha mente ou olhando pela janelinha gra-deada da porta.A imaginação é capaz de atravessar qualquer prisão.Os pacientes ficavam pelo corredor lá fora, seus rostoseram terríveis. Às vezes eles me davam uma olhada, às ve-zes era eu que os espiava, mas raramente nós nos encaráva-mos. Era muito constrangedor e doloroso. O rosto humanoé capaz de revelar muito mais do que é possível tolerar caraa cara.Seis meses depois, o experimento com as drogas che-gou ao fim e eu me candidatei ao trabalho. Fui contratadocomo auxiliar da enfermagem para trabalhar na mesma

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seção, com o mesmo médico e a mesma enfermeira que meatenderam anteriormente — embora houvesse diversasoutras seções disponíveis! Muito esquisito.Mas, como eu disse, eram os anos 1960.Aqueles rostos continuavam lá, dolorosamente expos-tos. Para despistá-los, eu andava com um caderno de ano-tações. Rabiscava alguns deles no meu caderno. Não, não ébem isso. Enquanto rememoro essas cenas posso ver que osrostos se desenhavam sozinhos. Eu apenas segurava a ca-neta e esperava a mágica acontecer.Afinal de contas, aqueles eram os anos 1960.K. K., 2000

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Prefácio da edição brasileiraLoucura e estilo de existência

Joel Birman*

Publicado originalmente em 1962, Um estranho no ninhode Ken Kesey se inscreve efetivamente num contexto histó-rico de ruptura, não apenas na sociedade norte-americanamas também no plano internacional. Estamos aqui nummomento de descontinuidade, no qual o estatuto da lou-cura foi colocado radicalmente em questão. Esta conden-sava, como metáfora da desordem, tudo aquilo que deveriaser normalizado, para que o sistema social pudesse se re-produzir com indivíduos conformistas e obedientes. O con-finamento psiquiátrico, instrumentado pelo eletrochoque,pela lobotomia e pela então nascente psicofarmacologia, erao símbolo maior de uma forma de vida (Wittgenstein). Acomparação disso tudo com os campos de concentraçãonazistas era bastante evidente.O cenário de confinamento, controle e solidão, no con-texto da Guerra Fria e do macarthismo, delineava o estilo*Psicanalista, membro do Espace Analytique e do Espaço Brasileiro de Es-tudos Psicanalíticos, professor titular do Instituto de Psicologia da Uni-versidade Federal do Rio de Janeiro e professor adjunto do Instituto deMedicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa-dor e consultor do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).

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de existência na sociedade norte-americana. Isso se eviden-ciava em diferentes obras: no romance Os nus e os mortos(1948), de N. Mailer, no ensaio sociológico A multidão soli-tária (1957), de D. Riesman e no filme de S. Kubrick in-titulado Caminhos da glória (1957). A homogeneização dasociedade norte-americana estava presente nas páginas deO homem organizado (1956), de W.H. White, assim comonos romances de Ginsberg e Burroughs.A crítica à condição social da loucura se delineou emdiversas frentes. A internação psiquiátrica foi questionada,assim como a leitura do louco como doente mental. A crí-tica da psiquiatrização da loucura foi colocada em cena.Nesta perspectiva, T. Szasz publicou nos Estados Unidos Omito da doença mental (1960), R. Laing, na Inglaterra, edi-tou O eu dividido: um estudo sobre a sanidade e a loucura(1960), M. Foucault publicou na França Loucura e desrazão:História da loucura na Idade Clássica (1961), e E. Goffmanpublicou Asilo (1960) nos Estados Unidos. O rastilho domovimento antipsiquiátrico foi aceso e uma onda de con-testação do sistema psiquiátrico se disseminou pelo mundo.Porém, interrogar-se efetivamente sobre o que seria aloucura evidenciava o desejo de afirmação da liberdade,numa atmosfera sufocante de controle social generalizado.Neste sentido, a contestação antipsiquiátrica se conjugouinicialmente com o movimento beatnik e posteriormentecom o movimento hippie. O que estava em pauta era atransvalorização do mundo, com vistas a construir a con-tracultura como um outro estilo de existência. Com efeito,se o uso costumeiro de drogas psicodélicas era um antído-to contra os eletrochoques e psicofármacos, não se podeesquecer que uma revolução dos costumes estava em mar-cha, que teve nas gigantescas manifestações contra a Guer-

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ra do Vietnã, na rebelião estudantil de maio de 1968 e nofeminismo os seus signos mais ostensivos.Nada seria jamais como antes, pois o mundo foi vira-do de ponta-cabeça. Mesmo que se tenha realizado poste-riormente “uma outra volta do parafuso” (H. James), coma restauração pós-moderna, certos limiares éticos foramdefinitivamente ultrapassados, transformando o nosso ho-rizonte. Um estranho no ninho restitui esse cenário mági-co de um mundo em franca subversão contra os guardiõesda ordem e as seduções do consumo, fazendo palpitar co-rações e mentes de que o sonho prometéico ainda conti-nua pulsante.

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Parte I

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Eles estão lá fora.Três auxiliares negros de uniformes brancos bem naminha frente, fazendo sexo no corredor e se esfregando an-tes que eu possa apanhá-los.Eles estão fazendo a limpeza quando eu saio do dormi-tório, todos os três, mal-humorados e odiando tudo, a horado dia, o lugar onde estão, as pessoas com quem têm de tra-balhar. Quando sentem todo esse ódio, melhor que não mevejam. Vou esgueirando-me rente à parede, silencioso comoa poeira, com meus sapatos de lona, mas eles estão equipa-dos com uma sensibilidade excepcional que detecta meumedo e todos erguem o olhar, os três ao mesmo tempo, osolhos brilhando como o faiscar de válvulas no interior deum rádio velho.— Olhem só, aí está o chefe. O chefão, gente. O velhochefe Vassoura. Vai em frente, chefe Vassoura...Enfiam um esfregão na minha mão e mostram o lugarque eles querem que eu limpe hoje, e eu vou. Um bate comviolência na parte de trás das minhas pernas, com um cabode vassoura, para que eu ande depressa.— Puxa, olha só pra ele, não é fantástico? É bem cres-cido, mas posso cuidar dele como um bebê.Eles riem, e então eu os ouço cochichar atrás de mim,as cabeças bem juntas. Zumbido de maquinaria negra, zum-

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bindo ódio e morte e outros segredos do hospital. Não sedão ao trabalho de falar em voz baixa sobre seus ódios se-cretos quando estou por perto, porque pensam que sou sur-do e mudo. Todo mundo pensa isso. Sou suficientementevivo para enganá-los a esse ponto. Se o fato de eu ser comoum índio mestiço alguma vez me ajudou nesta vida suja,ajudou-me a ser vivo, ajudou-me durante todos esses anos.Estou limpando perto da porta da enfermaria quandouma chave gira na porta do outro lado, e sei que é a Chefona,pela maneira como os encaixes da fechadura cedem à pe-netração da chave, suave, rápida e familiar, já que há tantotempo ela está habituada com as fechaduras. Ela entra comuma rajada de frio, tranca a porta, e vejo seus dedos desli-zarem pelo aço polido — a ponta de cada dedo da mesmacor que seus lábios. Um tom de laranja esquisito. Como aponta de um ferro de soldar. Uma cor tão quente ou tão friaque, se ela nos toca, não sabemos dizer a temperatura.Carrega sua bolsa de vime trançado, como as que a tri-bo Umpqua vende em quantidade à beira da estrada du-rante o mês quente de agosto, uma bolsa com o formato deuma caixa de ferramentas e alça de cânhamo. Ela sempreusou essa bolsa em todos os anos em que estive aqui. Oponto é aberto e posso ver lá dentro; não há estojo de pó-de-arroz ou batom ou objetos de mulher, ela mantém aquelabolsa cheia de milhares de componentes que tenciona uti-lizar no cumprimento de seus deveres cotidianos — rodase engrenagens, dentes de engate polidos a ponto de mos-trar um brilho violento, minúsculas pílulas que cintilamcomo porcelana, agulhas, fórceps, alicates de relojoeiro, car-retéis de fio de cobre...Ela me cumprimenta com um aceno de cabeça quandopassa. Largo o esfregão, recuo, encostando-me na parede,

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sorrio e tento enganar os detectores dela o máximo possí-vel, não deixando que veja meus olhos — ninguém podesaber muito a respeito de outra pessoa se não houver mui-to contato visual.Na sombra onde estou, ouço seus saltos de borracha con-tra os azulejos e as tralhas na bolsa de vime se chocarem umascontra as outras, fazendo barulho, como o som do seu cami-nhar quando ela passa por mim no corredor. Ela pisa duro.Quando abro os olhos, está já lá no fim, quase virando paraentrar pela porta de vidro da Sala das Enfermeiras, onde pas-sará o dia sentada diante de sua escrivaninha, olhando parafora, pela janela, e anotando o que está acontecendo à suafrente, na enfermaria onde passamos o dia, durante as pró-ximas oito horas. O rosto dela assume um ar satisfeito e tran-qüilo diante desse pensamento.Então... ela avista os auxiliares. Eles ainda estão juntos,lá embaixo, cochichando entre si. Não a ouviram entrar naenfermaria. Agora, sentem que ela está olhando fixamentepara eles, mas é tarde demais. Não deveriam ser estúpidosa ponto de se agrupar e ficar cochichando na hora em queela está para chegar. Ficaram agitados e confusos. Ela seabaixa e avança para onde eles estão juntos e encurralados,na extremidade do corredor. Sabe o que estiveram dizendo,e posso ver que está furiosa, absolutamente descontrolada.Vai estraçalhar os bastardos negros, membro por membro,tão furiosa ela está. Vai inflando-se, incha até que as costasestejam acentuadas dentro do uniforme branco e ela tenhaestendido os braços longe o suficiente para envolver e aper-tar os três, umas cinco, seis vezes. Olha em volta, girando aenorme cabeça. Ninguém acordado para ver, só o velho Vas-soura Bromden, o índio mestiço, ali atrás, escondendo-seatrás do esfregão, e que não pode falar para pedir ajuda.

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Assim, ela realmente fica à vontade, e o sorriso com bocapintada se contorce, transformando-se num franco rosna-do, e ela se enche de ar, tornando-se cada vez maior, grandecomo um trator, tão grande que posso sentir o cheiro damáquina lá dentro, como se sente o cheiro de um motorpuxando uma carga pesada demais. Prendo a respiração epenso, meu Deus, desta vez eles vão até o fim! Desta vez elesdeixarão o ódio crescer demais e passar da medida, e vãoestraçalhar-se uns aos outros, reduzindo-se a pedaços an-tes que se dêem conta do que estão fazendo!Mas bem no momento em que ela começa a entortaraqueles braços musculosos em torno dos garotos negros eeles começam a golpeá-la na parte inferior do corpo comos cabos de vassoura, todos os pacientes começam a sair dosdormitórios para ver o que é aquela confusão, e ela tem devoltar a ser o que era, antes de ser apanhada sob sua hor-renda e verdadeira forma. Mas, quando os pacientes aca-bam de esfregar os olhos de modo a perceber a razão de todoo tumulto, tudo o que vêem é a enfermeira-chefe sorriden-te, calma e fria como de hábito, dizendo aos três auxiliaresnegros que seria melhor se eles não ficassem em grupo ta-garelando quando é manhã de segunda-feira, e há tantacoisa para ser feita na primeira manhã da semana...— ...quer dizer, segunda-feira de manhã, vocês sabem,rapazes...— Sim, Dona Ratched...— ...e nós temos uma quantidade considerável de com-promissos esta manhã, assim, talvez, se não for muito ur-gente ficarem de pé aí conversando em grupinho...— Sim, Dona Ratched...Ela pára e cumprimenta com a cabeça alguns dos pa-cientes que se aproximaram e olham com os olhos verme-

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lhos e inchados de sono. Ela cumprimenta um a um. Umgesto preciso, automático. O rosto dela é liso, calculado efeito com precisão, como o de uma boneca cara, a pele comoesmalte cor-de-carne, mistura de branco e creme, e olhosem tonalidade azul-bebê, nariz pequeno, pequenas narinascor-de-rosa — tudo combinando muito bem, exceto a cordos lábios e das unhas e o tamanho dos peitos. Seja comofor, um erro foi cometido na hora da produção, colocan-do-se aqueles seios grandes de mulher — não fosse por isso,teria sido um trabalho perfeito, e a gente pode ver o quantoisso a amargura.Os homens ainda estão de pé, esperando para ver porque ela estava em cima dos auxiliares; então, ela se lembrade ter-me visto e diz:— E uma vez que é segunda-feira, rapazes, por que nãocomeçamos bem a semana fazendo primeiro a barba docoitadinho do Sr. Bromden esta manhã, antes do corre-correque acontece depois do café à barbearia, para vermos se épossível evitar um pouco do... ah!... tumulto que ele costu-ma criar, não acham?Antes que qualquer pessoa pudesse se virar para me pro-curar, enfiei-me depressa no armário das vassouras, fecheia porta com um puxão e, no escuro, prendi a respiração. Apior hora para se fazer a barba é antes de tomar o café.Quando temos algum alimento na barriga, tornamo-nosmais fortes e bem mais despertos, e os miseráveis que tra-balham para a Liga não têm tanta possibilidade de inserirum dos aparelhos deles na gente disfarçadamente, em vezde um barbeador elétrico. Mas, quando nos barbeiam an-tes do café, como ela me obriga a fazer certas manhãs — às6h30, numa sala de paredes e bacias brancas, e longas lâm-padas de luz fluorescente no teto, para assegurar que não

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haja nenhuma sombra, e rostos por toda parte encurralan-do a gente, gritando atrás dos espelhos —, então, qual é achance que se tem contra uma das máquinas deles?Eu me escondo no armário das vassouras e escuto, como coração batendo na escuridão, e tento evitar ficar commedo, tento dirigir meus pensamentos para fora dali, paraalgum outro lugar — tento pensar no passado e ter recor-dações sobre o vilarejo e o grande rio Columbia, pensarsobre, ah!, uma vez quando papai e eu estávamos caçandoaves entre cedros, perto de The Dalles... Mas, como sempreacontece quando tento dirigir meus pensamentos para opassado e ali me esconder, o medo muito próximo se infiltrapela memória. Posso sentir aquele garoto negro, o menorde todos lá fora, aproximando-se pelo corredor acima, fa-rejando em busca do meu medo. Abre as narinas como fu-nis, a cabeça desproporcional virando-se para um lado epara o outro enquanto ele fareja, e suga o medo vindo detoda a ala. Agora ele está me farejando, posso ouvi-lo ron-car. Não sabe onde estou escondido, mas está farejando eprocurando. Tento ficar quieto...(Papai me diz para ficar quieto, diz que o cachorro estápegando o rastro de uma ave em algum lugar bem perto.Tomamos um perdigueiro emprestado de um homem emThe Dalles. Todos os cachorros do vilarejo são vira-latasimprestáveis, é o que papai diz, comedores de tripas de pei-xe e sem classe alguma; esse cachorro aqui, ele tem ichtinto!Eu nada digo, mas já vejo a ave lá em cima numa moita,encolhida num bolo de penas cinzentas. O cachorro corren-do em círculos, embaixo, rastro demais por todo lado paraque ele aponte com segurança. O pássaro a salvo, enquantose mantiver quieto. Ele está se agüentando bastante bem,mas o cachorro continua farejando, em círculos, cada vez

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mais perto. Então, o pássaro não resiste e se lança para forada moita, soltando penas, a fim de encontrar o tiro da armade papai.)O negro menor e um dos maiores me apanham antesque eu consiga dar dez passos fora do armário das vassou-ras, e me arrastam de volta para a barbearia. Não luto nemfaço qualquer ruído. Se você gritar, é pior para você. Eu se-guro os gritos. Seguro até que eles cheguem às minhas têm-poras. Não tenho certeza se é uma daquelas outras máquinase não um barbeador até que chega bem perto; então nãoconsigo segurar. Não é mais uma questão de força de von-tade quando eles chegam às minhas têmporas. É um... bo-tão que, apertado, diz “ataque aéreo, ataque aéreo”, me ligae me faz berrar tão alto que é como se não houvesse somalgum, todo mundo gritando comigo, mãos tapando osouvidos por trás de uma parede de vidro, rostos se mexen-do por toda a volta, em conversas, mas nenhum som sain-do das bocas. Meu som absorve todos os outros. Eles ligama máquina de neblina outra vez, e está nevando frio e bran-co por cima de todo o meu corpo, como leite desnatado,tão espesso que eu poderia até me esconder ali dentro seeles não estivessem me segurando. Não consigo ver além deum palmo à minha frente através da neblina, e o único somque consigo ouvir acima do grito que estou dando é o daChefona berrando e avançando pelo corredor acima, en-quanto atira pacientes para fora de seu caminho com aquelabolsa de vime. Ouço-a aproximar-se, mas não consigo ca-lar-me. Grito até ela chegar. Eles me seguram enquanto elaenfia a bolsa de vime pela minha boca adentro e empurrapara baixo com um cabo de vassoura.(Um cão de caça late acuado lá fora na neblina, corren-do assustado e perdido porque não pode enxergar. Não há

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rastros no chão, exceto os que ele está deixando, e ele farejaem todas as direções com seu focinho frio, que parece umaborracha, e não consegue acompanhar nenhum outro ras-tro a não ser o de seu próprio medo, que vai penetrando,queimando por dentro como vapor.) Vai queimar-me exa-tamente desse jeito, finalmente contando tudo isso, sobre ohospital, e ela, e os caras — e sobre McMurphy. Estive cala-do durante tanto tempo que agora isso vai jorrar para forade mim como as águas de uma enchente, e, se você pensaque o cara que está contando isso está exagerando e deli-rando, meu Deus; você acha que é horrível demais para teracontecido realmente, isso é pavoroso demais para ser ver-dade! Por favor, ainda é difícil para mim manter a menteclara quando penso nisso. Mas é a verdade, mesmo que nãotenha acontecido.QUANDO A NEBLINA se dissipa, permitindo que eu enxerguenovamente, estou sentado na enfermaria onde passamos odia. Eles não me levaram para a sala de choque dessa vez.Lembro-me de que me tiraram da barbearia e me tranca-ram no isolamento. Não lembro se tomei café. Provavelmen-te não. Posso trazer de volta à memória algumas manhãsque passei trancado no isolamento em que os auxiliaresnegros ficavam trazendo porções repetidas de tudo — su-postamente eram para mim, mas, em vez disso, eles comiam— até que os três tomavam café, enquanto eu continuavadeitado ali naquele colchão fedendo a mijo, observando-oscomer ovos com torradas. Posso sentir o cheiro da gordurae ouvi-los mastigando as torradas. Em outras manhãs, elesme trazem mingau frio e me obrigam a comê-lo.Dessa manhã simplesmente não me lembro. Eles me fi-zeram engolir um bocado dessas coisas que chamam de pí-

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lulas, de modo que nada sei até que ouvi a porta da enfer-maria ser aberta. Aquele abrir de porta significa que são pelomenos 8 horas, significa que se passou talvez uma hora emeia enquanto estive apagado naquela sala de isolamento,quando os técnicos poderiam ter entrado e instalado qual-quer coisa que a Chefona tivesse ordenado e eu não teria amais remota idéia do que fosse.Ouço barulho na porta da enfermaria, bem lá no fimdo corredor, fora de meu campo de visão. Aquela porta co-meça a se abrir às 8 horas e se abre e fecha um milhão devezes por dia, crac, clic. Todas as manhãs nós nos sentamosenfileirados de cada lado da enfermaria, onde passamos odia, armando quebra-cabeças depois do café, esperandoouvir uma chave girar na fechadura e aguardando para verquem está entrando. Não há muito mais o que fazer. Às ve-zes, na porta, surge um jovem residente que chegou cedopara ver como estamos. Antes da Medicação. AM, como elesdizem. Outras vezes, é a visita de uma esposa, de saltos al-tos, com a bolsa apertada contra a barriga. Ou então é umaninhada de professoras primárias levadas em excursão poraquele idiota da Divisão de Relações Públicas, que está sem-pre batendo palmas com as mãos úmidas e dizendo o quan-to ele se sente feliz porque os hospitais para doentes mentaiseliminaram toda a crueldade ultrapassada: “Que atmosfe-ra festiva, não acham?” Ele se alvoroça, batendo palmas, emvolta das professoras, que se reúnem num grupo compactopor medida de segurança. “Oh, quando penso em antiga-mente, na imundície, na comida ruim, e mesmo, sim, nabrutalidade, oh, só então percebo, senhoras, que já percor-remos um longo caminho vitorioso em nossa campanha!”Quem quer que entre pela porta é geralmente alguém desa-pontador, mas há sempre uma oportunidade de que seja

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diferente, e quando uma chave gira na fechadura todas ascabeças se levantam, como se estivessem presas por cordéis.Hoje de manhã, a lingüeta da fechadura estala demaneira estranha; não é um visitante habitual que estána porta. A voz de um homem da escolta grita irritada eimpaciente:“Admissão, venham assinar por ele”, e os auxiliares vão.Admissão. Todo mundo pára de jogar cartas e jogos detabuleiro e se vira na direção da porta da enfermaria. Nor-malmente eu estaria lá fora varrendo o corredor e veriaquem eles estão admitindo, mas, nesta manhã, como já ex-pliquei, a Chefona me fez engolir um milhão de coisas, enão posso levantar-me da cadeira. Quase sempre sou o pri-meiro a ver a Admissão. Observo o recém-chegado a arras-tar-se pela porta adentro e deslizar ao longo da parede, ficarde pé apavorado até que os auxiliares venham assinar porele e levá-lo para a sala do chuveiro, onde o despem e o dei-xam tremendo, com a porta aberta, enquanto os três cor-rem, sorrindo com malícia, para baixo e para cima peloscorredores, procurando a vaselina. “Nós precisamos daque-la vaselina”, dirão à Chefona, “para o termômetro.” Ela olhade um para o outro: “Tenho certeza de que precisam”, e lhesentrega um pote contendo no mínimo um galão, “mas pres-tem atenção, rapazes, não fiquem todos juntos lá dentro.”Então, vejo dois, talvez os três lá dentro, naquela sala dochuveiro, com a Admissão, mergulhando e untando aqueletermômetro na gordura até que fique coberto por uma ca-mada do tamanho do seu dedo, murmurando: “É isso aí,mamãe, é isso aí”, e então eles fecham a porta e abrem to-dos os chuveiros até que não se possa ouvir mais nada excetoo barulho da água contra o ladrilho verde. Estou lá fora, namaioria dos dias, e vejo isso.

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Mas esta manhã tenho de ficar sentado na cadeira e ape-nas os escuto trazê-lo para dentro. Entretanto, ainda que eunão possa vê-lo, sei que não é uma Admissão comum. Nãoo ouço deslizar apavorado ao longo da parede, e, quandoeles lhe falam a respeito do chuveiro, ele não se submete sim-plesmente com um “sim” esquálido, ele lhes responde dire-tamente, numa voz alta e impudente, que já está mais doque muitíssimo limpo, obrigado.— Eles me puseram no chuveiro, hoje de manhã, notribunal, e ontem à noite na cadeia. E eu juro que acreditoque teriam me lavado as orelhas durante a corrida de táxiaté aqui, se tivessem encontrado um jeito. Pô, cara, pareceque toda vez que eles me despacham para algum lugar eutenho de ser bem esfregado e lavado antes, durante e de-pois da operação. Estou ficando de tal jeito que só o baru-lho da água me faz começar a juntar meus pertences. E saiade perto de mim com esse termômetro, Sam, e me dê umminuto pra dar uma olhada no meu novo lar; nunca estivenum Instituto de Psicologia antes.Os pacientes se entreolham com expressões intrigadas,depois outra vez para a porta de onde a voz dele ainda estávindo. Falando mais alto do que seria preciso se os negrosestivessem em qualquer lugar perto dele. Ele fala como seestivesse longe, muito acima deles, falando para baixo,como se estivesse velejando 45 metros acima, gritando paraaqueles lá embaixo, no chão. Fala como um grande ho-mem. Eu o ouço aproximar-se pelo corredor e parece gran-de pela maneira de andar, e ele não desliza mesmo, temchapa de ferro nos saltos e os faz estalar no chão comoferraduras. Surge na porta e pára, enfia os polegares nosbolsos, as botas bem separadas, e fica ali, com os outrosolhando para ele.

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— Bom dia, amigos.Há um morcego de papel da festa de Halloween pen-durado num cordão acima de sua cabeça; ele levanta o bra-ço e dá um piparote no morcego, que começa a girar.— Dia de outono bem agradável — continua ele.Fala um pouco do jeito como papai costumava falar, vozalta, selvagem mesmo, mas não se parece com papai; papaiera um índio puro de Columbia — um chefe — e duro ebrilhante como a coronha de uma arma. Esse cara é ruivo,com longas costeletas vermelhas e um emaranhado de ca-chos saindo por baixo do boné, está precisando dar um corteno cabelo há muito tempo, e é tão robusto quanto papaiera alto, queixo, ombros e peito largos, um amplo sorrisodiabólico, muito branco, e é duro de um jeito diferente doque papai era, mais ou menos do jeito que uma bola debeisebol é dura sob o couro gasto. Uma cicatriz lhe atraves-sa o nariz e uma das maçãs do rosto, no lugar em que al-guém o acertou numa briga, e os pontos ainda estão nocorte. Ele fica de pé ali, esperando; e, como ninguém tomaa iniciativa de lhe responder, começa a rir. Ninguém é ca-paz de dizer exatamente por que ele ri; não há nada engra-çado acontecendo. Mas não é da maneira como aquelerelações-públicas ri, é um riso livre e alto que sai de sua lar-ga boca e se espalha em ondas cada vez maiores até ir deencontro às paredes por toda a ala. Não como aquele risodo gordo relações-públicas. Este som é verdadeiro. Eu medou conta de repente de que é a primeira gargalhada queouço há anos.Ele fica de pé, olhando para nós, balançando-se para trásnas botas, e ri e ri. Cruza os dedos sobre a barriga sem tiraros polegares dos bolsos. Vejo como suas mãos são grandese grossas. Todo mundo na ala — pacientes, funcionários e

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todos os outros — está pasmo e abobalhado diante dele ede sua risada. Não há qualquer movimento para fazê-loparar, nenhuma iniciativa para dizer alguma palavra. Eleentão interrompe a risada, por algum tempo, e vem andan-do, entrando na enfermaria. Mesmo quando não está rin-do, aquele ressoar de seu riso paira à sua volta, do mesmomodo como o som paira em torno de um grande sino queacabou de ser tocado — está em seus olhos, na maneiracomo sorri, na maneira como fala.— Meu nome é McMurphy, companheiros, R. P.McMurphy, e sou um jogador idiota. — Ele pisca o olhoe canta o pedacinho de uma canção. — “...e sempre po-nho... meu dinheiro... na mesa” — sem parar de rir.Vai andando até um dos jogos de cartas, vira para cimaas cartas de um dos Agudos,* com um dedo grosso e pesa-do, olha de soslaio para a mão e sacode a cabeça:— Sim, senhor, foi pra isso que vim para este estabeleci-mento, para trazer pra vocês, coleguinhas, alegria e diverti-mento na mesa de jogo. Não havia mais ninguém naquelaColônia Penal de Pendleton para tornar meus dias interes-santes, assim requeri uma transferência, entenderam? Preci-sava de algum sangue novo. Que horror! Olha só o jeito comoesse cara segura as cartas, mostrando pra todo mundo noquarteirão! Vou esfolar vocês, crianças, como carneirinhos.Cheswick junta e apanha suas cartas. O homem ruivoestende a mão para que Cheswick a aperte.— Oi, companheiro, o que você está jogando? Pino-chle?** Jesus, não é de admirar que não se importe emmostrar suas cartas. Vocês não têm aqui um baralho co-*Em inglês, acute — Classificação médica para crises severas, porém bre-ves, da doença. (N. do E.)**Nos Estados Unidos, jogo de cartas semelhante ao besigue. (N. do T.)

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mum? Bem, aqui vamos nós, eu trouxe comigo meu bara-lho, só por via das dúvidas. Ele tem algo mais do que cartasfiguradas... e vejam as fotografias, hum? Cada uma é dife-rente. Cinqüenta e duas posições.Cheswick já tem os olhos esbugalhados, e o que ele vênaquelas cartas não está lhe ajudando.— Calma, agora, não lambuze tudo. Temos muitotempo, muitos jogos pela frente. Gosto de usar este meubaralho aqui porque leva pelo menos uma semana paraque os outros jogadores sejam capazes até mesmo de vera seqüência...Está vestido com as calças e a camisa da colônia penal,desbotadas pelo sol a ponto de terem ficado da cor de leiteaguado. Seu rosto, pescoço e braços são da cor de courocurtido avermelhado, por ter trabalhado muito tempo noscampos. Na cabeça, um gorro de motociclista, e, dobradano braço, uma jaqueta de couro. Usa botas cinzentas eempoeiradas, suficientemente pesadas para partir um ho-mem ao meio com um pontapé. Afasta-se de Cheswick, tirao gorro e, ao bater com ele na coxa, levanta uma nuvem depoeira. Um dos auxiliares anda à sua volta com o termô-metro, mas ele é rápido demais para eles; escapole, enfian-do-se entre os Agudos, e começa a andar de um lado paraoutro, apertando as mãos, antes que o auxiliar possa fazerboa pontaria. A maneira como ele fala, sua piscadela, suaconversa espalhafatosa, sua fanfarronice, tudo me lembraum vendedor de automóveis, ou um leiloeiro — ou um da-queles homens com o rosto pintado de preto que a gente vêem palcos de espetáculos de variedades de segunda classe,lá na frente de suas bandeiras tremulantes, de pé com umacamisa listrada com botões amarelados, atraindo as pessoascomo se fosse um ímã.

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— O que aconteceu, sabem, pra dizer a pura verdade,foi que me enfiei em umas brigas na colônia penal e a corteme declarou psicopata. E acham que vou discutir com a cor-te? Pois sim, podem apostar até seu último dólar que nãovou. Se isso me tira daqueles malditos campos de ervilha,serei o que quer que o coraçãozinho de cada um deles dese-jar, seja psicopata, cachorro louco ou lobisomem, porque oque quero é nunca mais ver uma enxada até o dia da minhamorte. Agora, eles me dizem que um psicopata é um caraque briga demais e trepa demais, mas eles não estão total-mente certos, não acham? Quero dizer, quem já ouviu falarde um homem que tivesse trepado demais? Alô, companhei-ro, como eles chamam você? Meu nome é McMurphy eaposto 2 dólares aqui e agora que você não é capaz de medizer quantos pontos tem nessa mão de pinochle, que estásegurando, não olhe. Dois dólares; o que é que acha? Porra,que droga, Sam! Será que não pode esperar meio minutoantes de me cutucar com esse seu maldito termômetro?O RECÉM-CHEGADO fica parado, observando tudo por ummomento, para ter uma visão completa da enfermaria.De um lado da sala, os pacientes mais jovens, conheci-dos como Agudos — porque os médicos acham que elesainda podem ser curados —, praticam queda-de-braço etruques com cartas em que somam e subtraem para se en-contrar uma determinada carta. Billy Bibbit tenta aprendera enrolar um cigarro artesanal, e Martini anda de um ladopara outro, procurando objetos debaixo das mesas e das ca-deiras. Os Agudos se movimentam bastante. Contam pia-das uns para os outros e riem em silêncio, cobrindo o rostocom as mãos (ninguém jamais ousa se soltar e rir, a equipeinteira do hospital apareceria com blocos de anotações e um

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monte de perguntas) e escrevendo cartas com minúsculoslápis amarelos mastigados.Eles se espionam uns aos outros. Às vezes, um homemdiz algo a respeito de si mesmo que não tinha intenção dedeixar escapar, e um de seus companheiros, na mesa ondeele falou, boceja, levanta-se e vai sorrateiramente até o gran-de livro de registro diário que fica junto da Sala das Enfer-meiras e anota ali a informação que ouviu — de interesseterapêutico para todos. Pelo menos, a Chefona afirma queé para isso que o diário serve, mas eu sei que ela espera ape-nas obter informações suficientes para mandar um caraqualquer ao Prédio Principal e, lá, ser vistoriado por den-tro da cabeça para resolver o problema.O cara que escreveu a informação no diário, esse ganhauma estrela ao lado de seu nome na lista e vai dormir tardeno dia seguinte.Do lado oposto da sala, em frente aos Agudos, ficam osrefugos da Liga, os Crônicos. Estes não estão no hospitalpara serem tratados, mas apenas para que sejam impedi-dos de andar por aí pelas ruas fazendo má propaganda dohospital. Os Crônicos estão internados para sempre, o pes-soal do hospital reconhece. Os Crônicos estão divididos emCaminhantes — como eu, que ainda andam por aí se fo-rem mantidos alimentados — Circulantes e Vegetais. Na ver-dade, os Crônicos — ou a maioria de nós — não passamde máquinas com defeitos internos que não podem ser re-parados, defeitos provocados por tantos anos dando cabe-çadas, de tal modo que, quando o hospital o encontra, osujeito está sangrando apaticamente num terreno baldioqualquer.Mas existem alguns Crônicos em quem os técnicos co-meteram uma série de erros há anos; alguns de nós que éra-

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mos Agudos, quando entramos, e fomos modificados. Ellisé um Crônico que entrou Agudo e foi definitivamente da-nificado quando eles carregaram demais em cima dele, na-quela pútrida sala assassina de cérebro que os auxiliareschamam de “Loja de Choque”. Agora ele está pregado naparede no mesmo estado em que eles o tiraram da mesa pelaúltima vez, na mesma posição, os braços abertos, a palmadas mãos encolhida, com o mesmo terror no rosto. Ficapregado na parede assim, como um troféu empalhado. Elesarrancam os pregos na hora de comer ou na hora de levá-lo para a cama, ou ainda quando querem que ele saia dali,para que eu possa limpar a poça que se forma no local. An-teriormente, ele permanecia tanto tempo num mesmo pon-to que a urina apodreceu o assoalho e as próprias vigas, eele vivia caindo pelo buraco ali aberto para o andar inferior,dando todos os tipos de dores de cabeça lá embaixo quan-do faziam a contagem de verificação.Ruckly é outro Crônico que entrou há poucos anoscomo um Agudo, mas com ele carregaram demais de ma-neira diferente: cometeram um erro em uma daquelas ins-talações de cabeça. Ele estava sendo uma inconveniênciageral por toda parte, chutando os auxiliares, mordendo aspernas das estudantes de enfermagem, de maneira que olevaram embora para ser consertado. Eles o amarraramàquela mesa e a última vez que o viram foi pouco antes defecharem a porta; ele piscou, no minuto antes de a porta sefechar, e disse aos auxiliares, quando iam se afastando:“Vocês pagarão por isso, seus malditos moleques de piche.”E eles o trouxeram de volta para a enfermaria, duas se-manas depois, careca, com o rosto todo ferido, vermelho,melado, e com dois pininhos do tamanho de botões costu-rados, um em cima de cada olho. Pelos olhos, a gente pode

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ver como eles o fundiram por completo lá dentro; os olhosdele ficaram esfumaçados, cinzentos e vazios, como fusíveisqueimados. Agora ele não faz outra coisa o dia inteiro se-não segurar uma velha fotografia diante daquele rostodestruído, revirando-a sem parar em seus dedos frios. Comtodo aquele manusear a fotografia ficou gasta e cinzenta,dos dois lados, como seus olhos, de forma que não se podemais dizer o que era.Agora, a equipe técnica, bem, eles consideram Rucklyum de seus fracassos, mas não tenho certeza de como elepoderia estar melhor se a instalação tivesse sido perfeita. Asinstalações que eles fazem atualmente, em geral, são bem-sucedidas. Os técnicos adquiriram mais habilidade e expe-riência. Nada mais de buracos de botões na testa, nenhumcorte mesmo — eles inserem pelas cavidades dos olhos. Àsvezes, um cara vai até lá para fazer tratamento, deixa a en-fermaria furiosa — chega louco e xingando o mundo in-teiro, e volta poucas semanas depois, com os olhos roxos,cobertos de hematomas, como se tivesse apanhado, e de re-pente torna-se a pessoa mais doce, mais boazinha, mais bemcomportada que jamais se viu. Ele talvez até vá para casaem um mês ou dois, com um chapéu bem puxado sobre orosto de sonâmbulo, vagueando por um sonho simples efeliz. Um sucesso, eles dizem, mas digo que ele é apenas maisum robô para a Liga e estaria melhor se fosse um fracassocomo Ruckly, sentado ali, revirando e babando em cima dafotografia. Ele nunca faz nada muito diferente. O auxiliarmais baixo vez por outra consegue arrancar-lhe uma rea-ção violenta quando, inclinando-se bem perto dele, pergun-ta: “Ei, Ruckly, o que você imagina que sua mulherzinha estáfazendo na cidade hoje à noite?” A cabeça de Ruckly se le-vanta. A memória sussurra em algum lugar naquele apare-

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lho danificado. Ele fica vermelho e as veias saltam da testa.Isto o incha de tal maneira que ele mal pode emitir um som.Uma baba começa a escorrer-lhe pelo canto da boca ao for-çar o maxilar para dizer alguma palavra. Quando finalmentechega ao ponto em que parece dizer algo, é um ruído baixoe estrangulado que se ouve, capaz de arrepiar a pele da gen-te: “Fffffffoda a mulher! Ffffffoda a mulher!”, e desmaia emseguida por causa do esforço.Ellis e Ruckly são os Crônicos mais jovens. O CoronelMatterson é o mais velho, um velho soldado da PrimeiraGuerra Mundial, que é dado a levantar, com a bengala, assaias das enfermeiras que passam, ou a contar uma históriasaída do texto em sua mão esquerda para qualquer um quequeira ouvir. É o mais velho da enfermaria, mas não o queestá aqui há mais tempo — a esposa o internou há apenasalguns anos, quando chegou ao ponto em que não tinhamais condições de cuidar dele.Eu sou a pessoa que está aqui na enfermaria há maistempo, desde a Segunda Guerra Mundial. Estou aqui hámais tempo que qualquer outra pessoa. Mais tempo quequalquer outro paciente. A Chefona está aqui há mais tem-po que eu.Os Crônicos e os Agudos geralmente não se misturam.Cada grupo fica do seu lado na enfermaria, da maneira comoos auxiliares querem. Eles dizem que é mais arrumado assime dão a entender a todos que é assim que querem que conti-nue. Eles nos levam para lá depois do café e observam a se-paração dos grupos movendo a cabeça com satisfação.— É isso mesmo, senhores, é assim mesmo. Agora,mantenham-se assim.Na realidade, não há muita necessidade de eles dizeremcoisa alguma, porque, a não ser por mim, os Crônicos não

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se movimentam para onde quer que seja, e os Agudos dizemque preferem mesmo ficar lá no lado deles, alegando que olado dos Crônicos fede mais que fralda suja. Mas eu sei quenão é tanto o fedor que os mantém longe do lado dos Crôni-cos, mas o fato de que não gostam de ser lembrados de queali está o que pode vir a acontecer com eles qualquer dia des-ses. A Chefona percebe esse medo e sabe explorá-lo; eladeixará claro para um Agudo sempre que ele começar aaborrecê-la: “Vocês, meninos, sejam bons meninos e coope-rem com a política dos funcionários que têm em mente a suacura, ou vocês acabarão ali, naquele lado.”(Todos na enfermaria têm orgulho da maneira como ospacientes cooperam. Nós recebemos uma plaqueta de me-tal presa num pedaço de madeira que vem gravada assim:PARABÉNS POR SE DAREM BEM COM O MENOR NÚMERO DEFUNCIONÁRIOS DE QUALQUER DAS ENFERMARIAS DO HOSPI-TAL. É um prêmio pela cooperação. Fica pendurada bem emcima do livro de registro, exatamente no meio, entre osCrônicos e os Agudos.)Essa nova Admissão, o ruivo, McMurphy, sabe muitobem que não é um Crônico. Depois de ter examinado a en-fermaria por um minuto, ele vê que está destinado ao ladodos Agudos e vai direto para lá, sorrindo e apertando a mãode todos que encontra. De início, vejo que ele está fazendoos do lado de lá se sentirem pouco à vontade, com todas assuas brincadeiras e palhaçadas e com a maneira atrevidacom que grita com o auxiliar, que ainda está atrás dele comum termômetro, e especialmente com aquela sua risada. Osindicadores tremem no painel de controles com seu resso-ar. Os Agudos ficam com um ar assustado e inquieto quan-do ele ri, assim como ficam as crianças numa sala de aulaquando algum garoto está fazendo bagunça demais e a

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professora, fora da sala. Eles estão com medo de que a pro-fessora volte de repente e resolva que todos têm de ficar decastigo depois. Estão todos se remexendo, agitando-se, emreação aos indicadores no painel de controle; vejo queMcMurphy percebe que está fazendo com que se sintam in-quietos, mas ele não deixa que isso o detenha.— Porra, mas que coleção de caras mais tristes. Vocês aínão me parecem assim tão loucos. — Ele tenta fazer com queeles se descontraiam, assim como a gente vê um leiloeiro quediz piadas para descontrair o público antes de começar opregão. — Qual de vocês alega ser o mais louco? Qual é omaior lunático? Quem dirige estes jogos de cartas? É meuprimeiro dia, e o que gosto de fazer é causar uma boa im-pressão logo de início no homem certo, se ele puder me pro-var que é o homem certo. Quem é o valentão do pedaço?Está dizendo isso diretamente para Billy Bibbit. Ele seinclina e olha fixamente com tanta dureza para Billy que estese sente compelido a gaguejar que ainda não é o valentãodo pedaço, embora seja o próximo na li-li-linha de suces-são para o posto.McMurphy estende a mão para baixo na frente de Billy,e Billy não pode tomar outra atitude senão apertá-la.— Bem, companheiro — diz ele a Billy —, estou real-mente satisfeito que você seja o próximo na li-linha para oposto, mas, uma vez que estou pensando em assumir o co-mando deste espetáculo, talvez seja melhor eu falar com ohomem de cima. — Ele olha em volta, até onde alguns Agu-dos pararam de jogar cartas, cobre uma das mãos com aoutra e estala os dedos todos de uma vez. — Estou queren-do ser, sabe, companheiro, uma espécie de magnata dajogatina nesta enfermaria, incrementar um vinte-e-um vio-

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lento. Assim, é melhor você me levar ao seu chefe e nós va-mos resolver quem vai ser o valentão aqui dentro.Ninguém sabe ao certo se este homem, forte como umtouro, com a cicatriz e o sorriso selvagem, está fazendo umasimples encenação ou se é suficientemente louco para estarde acordo com a maneira como fala, ou ambas as situações,mas eles estão começando a se divertir com as tiradas dele.Observam, enquanto ele fecha aquela grande mão verme-lha no braço magro de Billy, esperando para ver sua resposta.Billy percebe que agora cabe a ele quebrar o silêncio, assimolha em volta e escolhe um dos jogadores de pinochle:— Harding — diz Billy. — Acho que seria você. Você éo presidente do Conselho de Pa-Pa-Pacientes. Es-Es-estehomem quer falar com você.Agora os Agudos estão sorrindo, já não mais tão inquie-tos, satisfeitos porque algo fora da rotina está acontecendo.Todos riem de Harding, perguntam-lhe se é o valentão dosmaníacos. Ele põe suas cartas na mesa.Harding é um homem simplório e nervoso, com um rostoque às vezes faz a gente pensar que já o viu no cinema, umrosto bonito demais para ser apenas um qualquer na rua. Temombros largos e magros e os curva sobre o peito quando estátentando esconder-se dentro de si mesmo. Tem mãos tãocompridas, brancas e elegantes que acho que elas se escul-piram uma à outra de um bloco de sabão, e às vezes elas sesoltam e flutuam no ar na frente dele, livres como dois pas-sarinhos brancos, até que ele perceba e as prenda entre osjoelhos; desagrada-lhe o fato de ter mãos bonitas.Ele é o presidente do Conselho de Pacientes, porque temum papel que diz que se formou numa universidade. O pa-pel está numa moldura e fica em sua mesinha-de-cabecei-ra, ao lado do retrato de uma mulher de maiô que também

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parece que a gente já viu no cinema — tem seios muito gran-des e está segurando a parte de cima do maiô sobre eles comos dedos, e olhando de esguelha para a câmera. A gente podever Harding sentado numa toalha atrás dela, parecendomuito magricela em seus calções, como se ele estivesse es-perando por algum sujeito grandalhão para chutar areia emcima dele. Harding se gaba muito de ter uma mulher da-quelas como esposa, diz que ela é a mulher mais sexy domundo e que ela não se cansa de tê-lo todas as noites.Quando Billy o aponta, Harding se recosta na cadeira eassume um ar de importância, fala para cima, para o teto,sem olhar para Billy ou para McMurphy.— Por acaso este... cavalheiro tem entrevista marcada,Sr. Bibbit?— O senhor tem entrevista marcada, Sr. McM-m-mur-phy? O Sr. Harding é um homem ocupado, ninguém o vêsem ter hora ma-marcada.— Esse homem ocupado, o Sr. Harding, ele é o valen-tão dos malucos? — Ele olha para Billy e este concordamovendo a cabeça bem depressa; Billy está deliciado comtoda a atenção que está recebendo.— Então, diga ao Harding, o valentão dos doidos, queR. P. McMurphy está esperando para vê-lo, porque este hos-pital não é grande o bastante para nós dois. Estou acostuma-do a ser o chefe. Fui um valentão para todos os trambiquesentre os madeireiros, no Noroeste, e valentão dos jogadoresdurante a guerra na Coréia e fui até o maior mondadeiro deervilhas naquela plantação em Pendleton — assim, creio que,se estou condenado a ser um lunático, então estou destinadoa ser o melhor deles. Diga a esse Harding que ou ele me en-frenta de homem para homem ou ele é um sujeito desprezí-vel e é melhor que esteja fora da cidade antes do pôr-do-sol.

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Harding se recosta para trás, enfia os polegares naslapelas.— Bibbit, diga a este jovem carreirista, McMurphy, queeu o encontrarei no saguão principal ao meio-dia em pon-to e que resolveremos este caso de uma vez por todas, delibidos inflamadas.Harding tenta falar com a voz arrastada como McMurphy;soa engraçado, com sua voz fina e ansiosa:— Também poderia avisar a ele, só para ser justo, quesou o maior maníaco lunático desta enfermaria há quasedois anos seguidos, e que sou mais maluco do que qualquerhomem vivo.— Sr. Bibbit, o senhor poderia avisar a este Sr. Hardingque sou tão maluco que admito ter votado no Eisenhower.*— Bibbit! Diga ao Sr. McMurphy que sou tão malucoque votei no Eisenhower duas vezes!— E então diga logo ao Sr. Harding — ele apóia as mãossobre a mesa e se inclina, a voz ficando mais baixa — quesou tão maluco que planejo votar no Eisenhower outra vez,agora em novembro.— Eu tiro o chapéu — Harding diz, inclina a cabeça edepois aperta a mão de McMurphy. — Não há dúvida deque McMurphy venceu, mas o que não tenho bem certeza édo quê.Todos os outros Agudos deixam de lado o que estavamfazendo e aproximam-se para ver de que espécie nova é estesujeito. Jamais alguém como ele esteve naquela enfermaria.Estão perguntando-lhe de onde ele vem e o que faz, de um*Eisenhower — Presidente dos Estados Unidos entre 1953 e 1961. Candi-dato do Partido Republicano, sua eleição encerrou os vinte anos de domí-nio democrata na política americana. (N. do E.)

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modo como nunca os vi fazer. Ele diz que é um homem comuma missão. Diz que era apenas um vagabundo errante eum madeireiro, antes que o Exército o apanhasse e lhe en-sinasse qual era sua vocação natural, exatamente como elesensinam a arte da evasão e a arte da mistificação a algunshomens, a alguns outros eles ensinam a jogar pôquer. Des-de então, ele se acomodou e se dedicou ao jogo em todos osníveis. Apenas jogar pôquer e continuar solteiro e viver ondee como quisesse, se as pessoas o deixassem.— Mas — diz ele — vocês sabem como a sociedadepersegue um homem dedicado. Desde que encontrei minhavocação, já estive preso em tantas cadeias de cidades peque-nas que poderia escrever um livro. Dizem que sou umdesordeiro incorrigível. Como se eu brigasse muito. Merda.Eles não se importavam tanto quando eu era um madeirei-ro estúpido e me enfiava em uma briga; isto é desculpável,eles dizem, é um sujeito trabalhador que dá duro botandopara fora a tensão. Mas, se você é um jogador, se eles sabemque você é homem de topar um jogo de fundo de salão devez em quando, tudo que você tem de fazer é cuspir atra-vessado e você é um criminoso maldito. Puxa, estava estou-rando o orçamento aquela história de me levar e de metrazer para a cadeia de carro.Ele sacode a cabeça, infla as bochechas e continua:— Mas aquilo foi só por um período. Aprendi os tru-ques. Para dizer a verdade, aquela pena por assalto, que euestava cumprindo em Pendleton, foi a primeira cadeia emcerca de um ano. Foi por isso que acabei estourado. Estavafora de forma; o cara conseguiu se levantar do chão e cha-mar os tiras antes que eu abandonasse a cidade. Um sujeitomuito duro...

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Ele ri de novo e vai apertando as mãos e se senta parajogar queda-de-braço toda vez que o auxiliar chega pertodemais com o termômetro, até ter conhecido todos do ladodos Agudos. E, quando aperta a mão do último Agudo, vematé os Crônicos, como se não fôssemos nada diferente. Nãose pode saber se ele é realmente simpático ou se tem algu-ma estratégia de jogador para tentar aproximar-se e conhe-cer sujeitos já tão pirados que muitos deles não sabem nemos próprios nomes.Ele está ali puxando a mão de Ellis da parede e sacudin-do, como se fosse um político, candidato a alguma coisa, e ovoto de Ellis fosse tão importante como o de todo os outros.— Companheiro — diz a Ellis numa voz solene —, meunome é R. P. McMurphy e não gosto de ver um homemdeixar sua barba chapinhar em sua própria água. Por quevocê não se enxuga?Ellis olha para baixo, para a poça em volta de seus pés,bastante surpreso.— Ora, obrigado — diz ele, e até se afasta uns poucospassos em direção à latrina antes que as garras puxem suasmãos de volta para a parede.McMurphy vem descendo a fileira de Crônicos, apertaa mão do Coronel Matterson, de Ruckly e do Velho Pete.Aperta a mão de Circulantes, Caminhantes e Vegetais, apertaas mãos que ele tem de levantar dos colos como se estivesseapanhando passarinhos mortos, passarinhos mecânicos,maravilhas de ossos minúsculos e fios cuja elasticidade seperdeu. Aperta a mão de todos que encontra, exceto a deGeorge Grande, o maníaco por limpeza, que sorri e recua,afastando-se daquela mão anti-higiênica; assim, McMurphyapenas o saúda e diz para a própria mão direita quando vaise afastando:

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— Mão, como você acha que aquele sujeito ali desco-briu todo o mal em que você já esteve metida?Ninguém consegue imaginar qual é o objetivo dele, oupor que ele está fazendo tamanha encenação para conhecertodo mundo, mas é melhor do que fazer quebra-cabeças.Ele fica dizendo o tempo todo que é necessário circular econhecer os homens com quem irá lidar, parte do trabalhode um jogador. Mas ele deve saber que não vai tratar comnenhum demente de 80 anos que não poderia fazer maisnada com uma carta de baralho senão enfiá-la na boca emascá-la durante algum tempo. Entretanto, parece que estáse divertindo, como se fosse o tipo de pessoa que gosta derir dos outros.Eu sou o último. Ainda amarrado na cadeira no canto.McMurphy pára quando chega até onde estou, enfia nova-mente os polegares nos bolsos e se inclina para trás para rir,como se visse alguma coisa mais engraçada em mim do queem qualquer outra pessoa. De repente, fico apavorado.Quem sabe ele estivesse rindo porque soubesse que a ma-neira como eu estava sentado ali, com os joelhos puxadospara cima e os braços em volta deles, olhando fixamentepara a frente, como se nada pudesse ouvir, não passava deencenação.— Oobaa — disse ele —, olha só o que nós temos aqui.Lembro-me de toda essa parte realmente muito bem. Eume lembro da maneira como ele fechou um olho, inclinou acabeça para trás e olhou para baixo, rindo de mim por sobreaquela cicatriz cor-de-vinho no nariz que já estava sarando.De início, pensei que estivesse rindo por causa do aspectoengraçado que eu tinha, rosto de índio e cabelos pretos e lus-trosos. Pensei que talvez estivesse rindo de como eu pareciafraco. Mas então me lembro de ter pensado que ele estava

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rindo porque não se havia deixado enganar nem por umminuto pela minha encenação de surdo-mudo; não fazia di-ferença o quanto a encenação fosse habilidosa, ele havia per-cebido e estava rindo e piscando para que eu soubesse.— Qual é sua história, grande chefe? Você parece o Tou-ro Sentado fazendo greve de ficar sentado. — Olhou paraos Agudos, para ver se eles ririam de sua piada; quandoapenas riram em silêncio, ele tornou a olhar para mim episcou de novo. — Qual é seu nome, chefe?Billy Bibbit gritou do outro lado da sala:— O n-n-nome dele é Bromden. Chefe Bromden. Mastodo mundo o chama de chefe Vassoura,* porque os enfer-meiros o obrigam a varrer o chão gr-grande parte do tem-po. Acho que não há m-muito mais que ele possa fazer. Ésurdo. — Billy apoiou o queixo nas mãos. — Se eu fosse s-s-surdo — suspirou —, eu me mataria.McMurphy continuava olhando para mim.— Quando ele crescer, vai ficar bem grande, não vai?Gostaria de saber qual é a altura dele.— Acho que alguém o m-m-mediu uma vez, deu maisde 2 metros; mas, mesmo sendo grande, tem medo até dasua própria s-s-sombra. É só um gr-grande índio surdo.— Quando o vi sentado aqui, pensei que ele parecia umíndio mesmo. Mas Bromden não é um nome indígena. Deque tribo ele é?— Não sei — disse Billy. — Ele já estava aqui qu-quan-do eu che-cheguei.— Tenho informação do médico — disse Harding —de que ele só é meio-índio, um índio de Columbia, acho. É*Broom, vassoura em inglês, tem a mesma pronúncia da primeira sílabado nome Bromden. (N. do T.)

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uma tribo extinta de Columbia Gorge. O médico disse queo pai dele era líder da tribo, daí o título desse sujeito, “che-fe”. Quanto a essa parte do nome “Bromden”, temo que meusconhecimentos de tradições indígenas não cheguem até aí.McMurphy inclinou-se, baixando a cabeça bem pertoda minha, de tal maneira que eu tinha de olhar para ele.— Isso é verdade? Você é surdo, chefe?— Ele é su-su-surdo e mudo.McMurphy franziu os lábios e olhou fixamente parameu rosto durante muito tempo. Então se endireitou no-vamente e estendeu a mão.— Bem, que diabo, ele pode apertar mãos, não pode?Surdo, ou seja lá o que for. Por Deus, chefe, você pode sergrande, mas é bom apertar minha mão ou considerarei uminsulto. E não é uma boa idéia insultar o novo valentão dohospital de doidos.Quando ele disse isso, olhou para trás, para Billy eHarding, e fez uma careta, mas deixou aquela mão na mi-nha frente, grande como uma travessa de jantar.Eu me lembro muito bem do aspecto daquela mão: ha-via graxa nas unhas, como se tivesse trabalhado numa ga-ragem; havia uma âncora tatuada nas costas da mão; haviaum band-aid sujo no meio do nó dos dedos, a ponta des-colando. O restante das articulações dos dedos estava co-berto de cicatrizes e cortes, antigos e recentes. Lembro quea palma da mão era lisa e dura como osso, de tanto mane-jar os cabos de madeira de machados e enxadas, não a mãoque se pensaria poder lidar com cartas. A palma era caleja-da, e os calos estavam rachados, e a sujeira entranhada nasrachaduras. Um mapa rodoviário de suas viagens pelo Oes-te. Aquela palma fez um som arrastado contra a minha mão.Eu me lembro de que os dedos eram grossos e fortes fechan-

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do-se sobre os meus, e minha mão começou a ficar estra-nha e começou a inchar ali naquela minha vareta de braço,como se ele estivesse transmitindo o próprio sangue paradentro dela. Latejava de sangue e força. Floresceu quase quetão grande como a dele, eu me lembro ...— Sr. McMurphy.É a Chefona.— Sr. McMurphy, poderia vir até aqui, por favor?É a Chefona. O auxiliar com o termômetro foi buscá-la. Ela está de pé ali, batendo com o termômetro no relógiode pulso, os olhos faiscando enquanto tenta avaliar o novohomem. Os lábios estão com aquele formato triangular,como os lábios de uma boneca, prontos para uma mama-deira de mentira.— O enfermeiro Williams me disse, Sr. Murphy, que osenhor está sendo meio difícil com relação a tomar o ba-nho da admissão. Isso é verdade? Por favor, compreenda, euaprecio a maneira como tomou a seu encargo aproximar-se dos outros pacientes, mas tudo no seu devido tempo, Sr.Murphy. Sinto muito interromper o senhor e o Sr. Bromden,mas por favor compreenda: todos... têm de seguir as regras.Ele inclina a cabeça para trás e dá aquela piscadela, mos-trando que ela não o está enganando, da mesma maneiracomo eu não o enganei, que ele a apanhou. Olha para elacom apenas um dos olhos durante um minuto.— A senhora sabe, dona — diz ele. — A senhora sabe...isso é exatamente o que alguém sempre me diz a respeito dasregras...Ele sorri. Ambos sorriem, cada um avaliando o outro.— ...bem no momento em que eles descobrem que es-tou a ponto de fazer o extremo oposto.Então, ele solta minha mão.

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