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RELATÓRIO E PROPOSTA DO ANTEPROJECTO DA LEI DE BASES DA POLÍTICA CRIMINAL LUANDA, MAIO DE 2012 PARA UMA POLÍTICA CRIMINAL EM ANGOLA

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RELATÓRIO E PROPOSTA

DO ANTEPROJECTO DA LEI

DE BASES DA POLÍTICA

CRIMINAL

LUANDA, MAIO DE 2012

PARA UMA POLÍTICA

CRIMINAL EM ANGOLA

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Observatório da Justiça de Angola – Faculdade de Direito da

Universidade Agostinho Neto

Observatório Permanente da Justiça Portuguesa – Centro de

Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Coordenação

Raul Araújo

Conceição Gomes

Equipa

João André Pedro

Paula Fernando

José Mouraz Lopes

Carla Soares

Artur Manjata

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ÍNDICE GERAL

Sumário executivo…………………………………………………………………………………………………………… 7

Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal……………………………………….. 9

Para uma Política Criminal em Angola

Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal …..……………..

25

Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal –

Contributos ……………………………………………………………………………………………………………………..

123

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SUMÁRIO EXECUTIVO

PROPOSTA DO ANTEPROJECTO DA LEI DE BASES DA POLÍTICA CRIMINAL

Objectivos

A proposta de anteprojecto de Lei-quadro de política criminal estabelece os

princípios gerais e as bases de um sistema integrado de prevenção e

repressão dos fenómenos criminais no contexto da política pública de

segurança, mas dela distinta, as orientações das prioridades em matéria de

prevenção da criminalidade, da investigação criminal, da acção penal e da

execução das penas, bem como os órgãos responsáveis pela sua definição e

execução.

Linhas orientadoras

A proposta de lei estrutura-se em sete capítulos (âmbito e objectivos da lei

quadro; princípios gerais; prevenção criminal; fase preparatória do processo

penal; aplicação e execução das penas; prioridades de política criminal; e

disposições finais) e tem as seguintes linhas orientadoras:

a) Aprofundar os princípios constitucionais de garantia dos direitos

e liberdades fundamentais dos cidadãos, vítimas, detidos, arguidos e

presos, de modo a que se criem as bases gerais da alteração ao ordenamento

jurídico-penal que permita a concretização daqueles princípios constitucionais.

Destaca-se, no âmbito desta linha orientadora, a atribuição a um juiz da

competência para decidir em matéria de liberdades e garantias,

designadamente, no que respeita à validação das detenções, à aplicação de

medidas de coacção e à fiscalização da execução das penas, dando, assim,

concretização ao disposto na alínea f) do artigo 186º da Constituição da

República de Angola.

b) Diferenciação do tratamento da criminalidade, quer na prevenção

dos fenómenos criminais, quer na acção penal (incluindo a instrução criminal,

aplicação e execução das penas) em função da idade do arguido e do tipo de

crime cometido. Nesse sentido, a proposta de lei prevê um conjunto de normas

orientadoras da política criminal no âmbito da criminalidade de pequena e

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Para uma Política Criminal em Angola

média gravidade, da criminalidade juvenil, da criminalidade grave e complexa e

da criminalidade grave contra as pessoas. Destaca-se, ainda, no âmbito da

pequena e média criminalidade e da criminalidade juvenil, a orientação no

sentido de ser reforçada a articulação dos órgãos de repressão e acção penal

com outras instituições do Estado, em especial do sector da educação e do

apoio social, e da comunidade e o incentivo à aplicação de medidas e sanções

alternativas à prisão.

c) Clarificação das funções dos magistrados judiciais, do Ministério

Público e da Polícia de Investigação na fase preparatória dos processos

penais, de acordo com o consagrado na Constituição, designadamente no

artigo 186º. Nesse sentido, entre outros, destaca-se, na presente lei, a previsão

da fiscalização da actividade processual da polícia de investigação pelo

Ministério Público.

d) Prevenção da reincidência. Considera-se esta uma dimensão

essencial da prevenção da criminalidade, prevendo-se a definição de

programas de prevenção da reincidência dos condenados, diferenciados em

função da idade e da existência ou não de patologias associadas ao

cometimento dos crimes.

e) Promoção da eficiência e da transparência na prevenção e

combate dos fenómenos criminais. Neste sentido, definem-se os critérios e

as competências no que respeita às prioridades da política criminal. A proposta

de lei prevê que a Assembleia Nacional, sob proposta do Poder Executivo,

aprove para um período de três anos, as prioridades e orientações em matéria

de prevenção da criminalidade, acção penal e execução das penas e medidas

de segurança, competindo ao Poder Executivo elaborar e apresentar à

Assembleia, no final do período de três anos, um relatório sobre a execução

das políticas aprovadas.

Programa de acção

Tratando-se de uma Lei de Bases, prevê-se, como condição da sua entrada em

vigor, que o Poder Executivo elabore um programa de acção que inclua

medidas concretas, de natureza legal, organizacional ou outras, conducentes à

concretização da presente Lei de Bases.

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PROPOSTA DO ANTEPROJECTO

DA LEI DE BASES DA POLÍTICA

CRIMINAL

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Índice

Capítulo I

Âmbito e Objectivos da Lei de Bases ................................................................................................ 13

Artigo 1º - Finalidade ........................................................................................................................... 13

Artigo 2° - Objectivos gerais da Política Criminal ................................................................................ 13

Capítulo II

Princípios Gerais.............................................................................................................................. 14

Artigo 3º - Garantia dos direitos e liberdades fundamentais .............................................................. 14

Artigo 4º - Protecção das vítimas ........................................................................................................ 14

Artigo 5º - Diferenciação da acção penal em função da idade ........................................................... 14

Artigo 6º - Tratamento diferenciado da criminalidade ....................................................................... 15

Artigo 7º - Celeridade na investigação e no julgamento da criminalidade ......................................... 15

Artigo 8º - Medidas e sanções privativas da liberdade ....................................................................... 15

Capítulo III

Prevenção Criminal ......................................................................................................................... 16

Artigo 9º - Programas de prevenção criminal ..................................................................................... 16

Artigo 10º - Prevenção no âmbito da criminalidade de pequena e média gravidade ........................ 16

Artigo 11º - Prevenção da criminalidade juvenil ................................................................................. 17

Artigo 12º - Prevenção da criminalidade grave e complexa ............................................................... 17

Artigo 13º - Prevenção da criminalidade grave contras as pessoas .................................................... 17

Capítulo IV

Fase preparatória do processo penal................................................................................................ 18

Artigo 14º - Competência do Ministério Público ................................................................................. 18

Artigo15º - Restrição de direitos e liberdades fundamentais ............................................................. 18

Artigo 16º - Polícia de investigação ..................................................................................................... 18

Artigo 17º - Medidas de coacção alternativas à prisão ....................................................................... 19

Artigo 18º - Diversão e consensualização............................................................................................ 19

Capítulo V

Aplicação e Execução das penas ....................................................................................................... 19

Artigo 19º - Sanções penais e dever de fundamentação .................................................................... 19

Artigo 20º - Fiscalização da execução das penas e medidas de segurança ......................................... 20

Artigo 21º - Prevenção da reincidência ............................................................................................... 20

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4

Capítulo VI

Prioridades de política criminal ........................................................................................................ 20

Artigo 22º - Objectivos gerais .............................................................................................................. 20

Artigo 23º - Competência para a definição das prioridades ............................................................... 21

Artigo 24º - Orientações e prioridades ................................................................................................ 21

Artigo 25º - Limites .............................................................................................................................. 22

Artigo 26° - Alterações ......................................................................................................................... 22

Artigo 27º - Cumprimento das orientações e prioridades .................................................................. 22

Artigo 28º - Poder Executivo ............................................................................................................... 22

Artigo 29º - Ministério Público ............................................................................................................ 23

Artigo 30º - Avaliação da aplicação da lei sobre prioridades de política criminal .............................. 23

Capítulo VII

Disposições finais ............................................................................................................................ 23

Artigo 31º - Concretização da Lei de Bases ......................................................................................... 23

Artigo 32º - Entrada em vigor .............................................................................................................. 23

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Proposta do anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

13

Capítulo I

Âmbito e Objectivos da Lei de Bases

Artigo 1º

Finalidade

A presente lei estabelece os princípios e os objectivos gerais de um sistema

integrado de prevenção e repressão dos fenómenos criminais no contexto da política

pública de segurança, mas dela distinta, as orientações que permitem definir as

prioridades em matéria de prevenção da criminalidade, da investigação criminal, da

acção penal e da execução das penas, bem como os órgãos responsáveis pela sua

definição e execução.

Artigo 2°

Objectivos gerais da Política Criminal

A política criminal deve prosseguir os seguintes objectivos gerais:

a) Promover a eficácia na prevenção e redução da criminalidade e maior celeridade

na investigação e julgamento dos crimes;

b) Assegurar a paz social e a defesa de bens jurídicos, públicos e privados;

c) Garantir os direitos das vítimas, atendendo aos diferentes graus e tipos de

vulnerabilidade;

d) Assegurar, de forma efectiva, os direitos e as garantias dos suspeitos, dos

arguidos e dos condenados pela prática de crime, em especial, quando privados de

liberdade;

e) Desenvolver um sistema penal orientado para inserção social dos condenados.

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Para uma Política Criminal em Angola

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Capítulo II

Princípios Gerais

Artigo 3º

Garantia dos direitos e liberdades fundamentais

A definição e execução da política criminal, nas suas várias vertentes, devem

respeitar e defender os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos

consagrados na Constituição, garantindo a sua efectivação.

Artigo 4º

Protecção das vítimas

1. A justiça penal, nas suas diferentes fases, deve promover e proteger os direitos

das vítimas, em especial quando estas sejam crianças, pessoas idosas, doentes,

deficientes ou pessoas que, pela sua condição social ou económica, se encontrem

em situação de especial vulnerabilidade.

2. A concretização do disposto no número anterior impõe, não só a existência de

normas legais específicas com esse objectivo como também a criação de outras

condições, de natureza organizacional e no âmbito da formação dos agentes

judiciais, que fomentem essa protecção, quer nas esquadras de polícia, quer nos

tribunais.

Artigo 5º

Diferenciação da acção penal em função da idade

1. O direito e a justiça penal devem assegurar um tratamento penal positivamente

diferenciado aos jovens adultos com idade inferior a 20 anos.

2. Na concretização deste princípio orientador, a lei deve prever, de forma clara, a

privação da liberdade como medida de excepção, a especial atenuação das

condenações penais em pena de prisão e adequados programas de inserção social

dos jovens delinquentes.

3. O disposto nos números anteriores não pode excluir o desenvolvimento de

políticas e de medidas próprias, de natureza legal ou outras, dirigidas às crianças e

jovens menores de 16 anos, que cometem crimes.

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Proposta do anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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Artigo 6º

Tratamento diferenciado da criminalidade

1. A Assembleia Nacional e o Poder Executivo, no âmbito das suas competências,

devem procurar desenvolver políticas e medidas, de natureza legal e organizacional,

que permitam, de forma efectiva, um tratamento processual diferenciado da

criminalidade de pequena e média gravidade e da criminalidade mais grave e

complexa, designadamente, no que respeita à aplicação de medidas de coacção e

de sanções penais, de modo a tornar a privação da liberdade excepcional e

tendencialmente aplicada apenas à criminalidade mais grave.

2. Os órgãos de polícia criminal, o Ministério Público e os tribunais, no exercício das

suas competências, devem procurar desenvolver medidas que permitam uma prática

activa em consonância com o disposto no número anterior.

Artigo 7º

Celeridade na investigação e no julgamento da criminalidade

1. No respeito pelos direitos e garantias constitucionais dos agentes do crime e das

vítimas, os poderes legislativo, executivo e judicial, no âmbito das suas

competências, devem actuar no sentido de promover a celeridade processual e a

eficácia da justiça penal de modo a que a aplicação e execução das penas esteja

temporalmente o mais próximo possível do cometimento do crime.

2. Para a concretização do disposto no número anterior deve ser dado especial

impulso às reformas dos códigos penal e de processo penal e da organização

judiciária, bem como à regulamentação de um conjunto de matérias essenciais à

eficácia da justiça penal, designadamente, no que respeita às escutas telefónicas,

agente infiltrado e outros meios de obtenção da prova, à protecção de testemunhas

e declarantes e ao segredo de justiça.

Artigo 8º

Medidas e sanções privativas da liberdade

1. Os poderes executivos e judiciais devem desenvolver medidas e procedimentos

que assegurem a execução das penas privativas de liberdade de acordo com as

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Para uma Política Criminal em Angola

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finalidades previstas na lei penal, impedindo a permanência de pessoas em situação

de reclusão findo o período legal da prisão preventiva ou da pena de prisão aplicada.

2. Para a concretização do disposto no número anterior devem ser criadas

condições, procedimentais e organizacionais, que permitam melhor acesso e mais

celeridade do instituto de habeas corpus e criado, no âmbito da organização

judiciária, um órgão jurisdicional distinto, com competências próprias de

acompanhamento das medidas de segurança e das de penas de prisão.

Capítulo III

Prevenção Criminal

Artigo 9º

Programas de prevenção criminal

1. A prevenção dos fenómenos criminais, como instrumento privilegiado de

promoção da paz social e da defesa dos bens jurídicos, constitui um dos pilares da

política criminal a desenvolver.

2. Os programas de prevenção da criminalidade devem prever a articulação entre

organizações policiais e judiciais de controlo da criminalidade e entre estas e outras

organizações do Estado e da comunidade, susceptíveis de actuar como factores de

socialização, e devem ser distintos em função da perigosidade social e da

complexidade dos fenómenos criminais.

Artigo 10º

Prevenção no âmbito da criminalidade de pequena e média gravidade

As políticas e medidas dirigidas à prevenção da criminalidade de pequena e média

gravidade articulam-se com outras políticas públicas, em especial no domínio da

educação, do apoio social a grupos sociais mais vulneráveis pela sua condição

social ou económica, e com outras medidas de prevenção da reincidência.

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Proposta do anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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Artigo 11º

Prevenção da criminalidade juvenil

1. As políticas dirigidas à criminalidade juvenil devem dar prioridade à prevenção

criminal.

2. Para concretização do disposto no número anterior deve ser criado um Plano de

Prevenção da Criminalidade Juvenil, especialmente dirigido aos jovens com menos

de 20 anos.

Artigo 12º

Prevenção da criminalidade grave e complexa

1. As políticas e medidas de prevenção dirigidas à criminalidade grave e complexa

consideram as normas e instituições internacionais por força das obrigações do

Estado Angolano e devem articular-se com outras áreas da governação e

instituições do Estado e da comunidade.

2. Para a prossecução do disposto no número anterior, o Estado promove o

desenvolvimento de regras e a criação de instituições que permitam maior

transparência e eficácia no escrutínio do funcionamento da administração pública,

central e regional, e de outras pessoas colectivas públicas e privadas que actuem,

directa ou indirectamente, na execução de políticas públicas.

3. Deve ainda criar regras que imponham às organizações do Estado e da

sociedade, designadamente agentes bancários, financeiros e comerciais o dever de

colaborar com as entidades competentes para a prevenção e investigação desta

criminalidade.

Artigo 13º

Prevenção da criminalidade grave contras as pessoas

1. Deve ser dada especial atenção à prevenção da criminalidade que afecte, de

forma grave, a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas.

2. Os programas de prevenção a desenvolver devem integrar instituições das

comunidades locais e atender às especificidades sócio-culturais das diferentes

regiões de Angola.

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Capítulo IV

Fase preparatória do processo penal

Artigo 14º

Competência do Ministério Público

1. Compete ao Ministério Público dirigir a fase preparatória do processo penal,

promover o processo penal e exercer a acção penal, nos termos do disposto na

Constituição.

2. No exercício das competências previstas no número anterior, o Ministério Público

é coadjuvado pelos órgãos de Polícia.

3. A lei, designadamente a Lei Orgânica da Procuradoria - Geral da República, as

leis processuais, de organização judiciária e de organização e funcionamento da

Polícia, deve incorporar os princípios gerais previstos no número anterior.

Artigo15º

Restrição de direitos e liberdades fundamentais

1. A lei, em especial as leis do processo penal e de organização judiciária,

assegura que as decisões do Ministério Público, na fase preparatória dos

processos penais, que apliquem medidas de coacção privativas da liberdade

sejam sempre apreciadas por um juiz, diferente do juiz de julgamento, que as

valida ou não, num prazo máximo de 5 dias.

2. O não cumprimento do disposto no número anterior torna a medida de

coacção aplicada ilegal.

Artigo 16º

Polícia de investigação

1. A fiscalização da actividade processual da polícia de investigação é da

competência do Ministério Público.

2. O Estado deve desenvolver esforços que permitam criar condições, de natureza

legal, organizacional ou outra, que aprofundem, no âmbito do Ministério do Interior, a

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Proposta do anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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autonomia administrativa e financeira da polícia de investigação, distinta das funções

de segurança e de defesa nacional.

Artigo 17º

Medidas de coacção alternativas à prisão

1. A lei deve alargar o âmbito de aplicação de medidas de coacção alternativas à

prisão, impondo à aplicação da prisão preventiva critérios rígidos de necessidade,

adequação e proporcionalidade.

2. O poder executivo deve proporcionar condições que permitam uma maior

aplicação prática das medidas alternativas, designadamente através da

disponibilização de meios técnicos e de acções de formação profissional.

3. O Ministério Público e o poder judicial devem criar condições para que os seus

agentes actuem activamente na concretização dos objectivos da presente norma.

Artigo 18º

Diversão e consensualização

1. A lei deve prever medidas de diversão e de consensualização, que permitam, de

acordo com a natureza da criminalidade, o perfil social do agente do crime e a

necessidade de prevenção geral e especial, uma maior utilização de soluções

alternativas à acusação.

2. A concretização do disposto no número anterior deve incluir a criação da

mediação penal.

Capítulo V

Aplicação e Execução das penas

Artigo 19º

Sanções penais e dever de fundamentação

1. A previsão legal e a aplicação concreta das sanções penais devem ser

adequadas ao tipo de crime, à idade e ao perfil do agente do crime e às

necessidades de prevenção geral e especial.

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Para uma Política Criminal em Angola

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2. A lei penal deve alargar o âmbito de aplicação das penas alternativas à prisão e

obrigar à fundamentação da escolha da pena de prisão quando outras sanções eram

igualmente possíveis.

3. O Poder Executivo deve criar condições que permitam a eficácia das penas

alternativas à prisão.

4. As penas devem ser aplicadas e executadas de forma a cumprirem as suas

finalidades e a evitarem a estigmatização do condenado.

Artigo 20º

Fiscalização da execução das penas e medidas de segurança

1. A fiscalização da execução das penas e medidas de segurança deve ser

assegurada por um Juiz, distinto do Juiz de julgamento.

2. A lei de organização judiciária dá cumprimento ao disposto no número anterior.

Artigo 21º

Prevenção da reincidência

1. O Poder Executivo deve definir programas de prevenção da reincidência dos

condenados a executar, quer em meio prisional, quer em meio livre.

2. Os programas previstos no número anterior devem prever repostas diferenciadas

em função da idade do agente, das necessidades de prevenção especial e da

existência ou não de determinadas patologias associadas ao cometimento dos

crimes.

Capítulo VI

Prioridades de política criminal

Artigo 22º

Objectivos gerais

A definição de orientações e de prioridades em matéria de política criminal tem como

objectivo central a eficiência na prevenção e no combate a determinados fenómenos

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Proposta do anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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criminais e a transparência da selecção da criminalidade a prevenir e a investigar

prioritariamente.

Artigo 23º

Competência para a definição das prioridades

1. A Assembleia Nacional aprova, para um período de três anos, sob proposta

devidamente fundamentada do Poder Executivo, a lei das prioridades e orientações

em matéria de prevenção da criminalidade, de acção penal e de execução de penas

e medidas de segurança.

2. A apresentação da proposta prevista no número anterior deve assentar em

estudos que permitam avaliar, designadamente a criminalidade real, a criminalidade

participada e os factores de socialização e de reincidência, e é precedida de audição

dos Conselhos Superiores da Magistratura Judicial e do Ministério Público, do

Conselho de Segurança Nacional, da Procuradoria-Geral da República, da Ordem

dos Advogados e dos Órgãos de Polícia.

Artigo 24º

Orientações e prioridades

1. As orientações e prioridades podem incidir sobre qualquer matéria de política

criminal, compreendendo, designadamente, a indicação de tipos de crimes ou de

fenómenos criminais em relação aos quais se justifiquem especiais medidas de

prevenção criminal, prioridade na investigação, aplicação de medidas alternativas à

acusação ou sanções não privativas da liberdade, a definição de zonas ou regiões

do países mais sensíveis a determinados fenómenos criminais, a especial afectação

dos recursos humanos e materiais a determinada criminalidade, a definição de

procedimentos de cooperação entre o Ministério Público e os órgãos de polícia

criminal ou com outras organizações do Estado ou da sociedade, a definição de

condições e situações de detenção, as condições de execução da pena de prisão ou

a definição de programas de prevenção especial.

2. Os crimes objecto de prioridade podem ser definidos em função do bem jurídico

tutelado, da norma legal que os prevê, do modo de execução, do resultado, dos

danos individuais e sociais ou da penalidade.

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Para uma Política Criminal em Angola

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3. O regime de prioridades não prejudica o reconhecimento do carácter urgente dos

processos, nos termos legalmente previstos.

Artigo 25º

Limites

A definição de orientações e prioridades a que se refere o artigo anterior tem que

respeitar os princípios e normas constitucionais e não pode:

a) Colocar em causa a independência dos tribunais e a autonomia do Ministério

Público;

b) Conter directivas, instruções ou ordens sobre processos determinados;

c) Afastar o princípio da legalidade isentando da acção penal qualquer crime.

Artigo 26°

Alterações

Se no decurso do período previsto no artigo 23º ocorrerem fenómenos criminais de

especial gravidade ou dimensão, a Assembleia Nacional, sob proposta do Poder

Executivo e ouvidas as entidades referidas naquele artigo, pode introduzir alterações

às prioridades e às orientações de política criminal.

Artigo 27º

Cumprimento das orientações e prioridades

Os tribunais, o Ministério Público, os órgãos de polícia, os serviços prisionais e

demais instituições ou organismos abrangidos pela lei adoptam as prioridades e

orientações definidas devendo, designadamente, distribuir os meios humanos e

materiais em função dessas prioridades e orientações.

Artigo 28º

Poder Executivo

O Poder Executivo, no âmbito das suas competências, emite as directivas, ordens e

instruções necessárias destinadas a fazer cumprir a lei sobre as orientações e

prioridades de política criminal.

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Proposta do anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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Artigo 29º

Ministério Público

1. Compete ao Ministério Público identificar os processos abrangidos pelas

prioridades e orientações de política criminal.

2. O Procurador-Geral da República emite as directivas, ordens e instruções

destinadas a fazer cumprir a lei sobre as orientações e prioridades de política

criminal.

Artigo 30º

Avaliação da aplicação da lei sobre prioridades de política criminal

1.O Poder Executivo apresenta à Assembleia Nacional, no prazo de 60 dias antes

da cessão da vigência da lei sobre as prioridades de política criminal prevista no

artigo 23º, um relatório sobre a execução da mesma.

2. A elaboração do relatório previsto no número anterior tem a colaboração da

Procuradoria-Geral da República, em especial, no que respeita ao exercício da

acção penal.

Capítulo VII

Disposições finais

Artigo 31º

Concretização da Lei de Bases

1. O Poder Executivo deve apresentar à Assembleia Nacional, no prazo de 90 dias

após a entrada em vigor da presente Lei, um programa de acção que inclua medidas

concretas conducentes à sua concretização.

2. A primeira lei sobre orientações e prioridades de política criminal, prevista no

artigo 23º, deverá ser proposta e aprovada no prazo de um ano após a entrada em

vigor da presente Lei de Bases.

Artigo 32º

Entrada em vigor

A presente Lei entra em vigor 30 dias após a sua publicação.

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Para uma Política Criminal em Angola

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Aprovada em

O Presidente da Assembleia Nacional, Paulo Kassoma.

O Presidente da República, José Eduardo dos Santos

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RELATÓRIO DA PROPOSTA

DE ANTEPROJECTO DA LEI

DE BASES DA POLÍTICA

CRIMINAL

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ÍNDICE

Nota Introdutória ................................................................................................................................ 29

1. A Política Criminal na Constituição ................................................................................................... 35

1.1. O princípio da separação de poderes e a delimitação funcional de competências entre órgãos ... 35

1.2. O princípio do acusatório e a intervenção judicial para fiscalização das garantias fundamentais

dos cidadãos ........................................................................................................................................... 40

2. As entidades encarregues da execução da política criminal ............................................................. 43

2.1. A Organização Judiciária do Sistema de Justiça Penal ..................................................................... 44

2.2. O Ministério Público ........................................................................................................................ 47

2.3. Os Órgãos dependentes do Ministério do Interior .......................................................................... 51

A Polícia Nacional .............................................................................................................................. 53

Os Serviços de Migração e Estrangeiros ............................................................................................. 58

Os Serviços Prisionais ......................................................................................................................... 60

3. A Justiça Penal em Angola: breve caracterização ............................................................................. 63

3.1. A Avaliação nos Relatórios Internacionais ....................................................................................... 63

3.2. A Criminalidade Registada ............................................................................................................... 67

3.3. A evolução processual da criminalidade ......................................................................................... 75

4. Principais questões levantadas no Âmbito da Preparação da Proposta de Anteprojecto de Lei de

Bases da Política Criminal .................................................................................................................... 87

4.1. A prevenção da criminalidade ......................................................................................................... 88

4.2. Estado de Direito democrático e modelo de investigação criminal ................................................ 92

4.3. Papel do Juiz no processo penal .................................................................................................... 101

5. A importância e a delimitação de uma lei de bases da política criminal ......................................... 105

6. Principais linhas orientadoras da proposta de anteprojecto da lei de bases da politica criminal .... 109

6.1. Aprofundar os princípios constitucionais de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos

cidadãos, vítimas, detidos, arguidos e presos ...................................................................................... 109

6.2. Promover a eficiência e a transparência na prevenção e no combate aos fenómenos criminais 110

6.3. Aprofundar estratégias de prevenção da criminalidade e de reinserção social ............................ 111

Definição de um plano de prevenção da criminalidade em geral .................................................... 112

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Definição de um plano de prevenção da delinquência juvenil ......................................................... 112

Programas de prevenção da reincidência dos condenados ............................................................. 113

6.4. Diferenciar o tratamento processual da criminalidade ................................................................. 114

6.5. Clarificar as competências do Juiz, do Ministério Público e da Polícia de Investigação na fase

preparatória dos processos penais ....................................................................................................... 115

6.6. Determinar os órgãos com competência para a definição da política criminal ............................ 117

7. Outras recomendações conexas ..................................................................................................... 119

7.1. Conhecimento real da situação criminológica do país .................................................................. 119

7.2. Reforma da legislação penal .......................................................................................................... 119

7.3. Formação profissional ................................................................................................................... 120

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NOTA INTRODUTÓRIA

O presente estudo visa enquadrar e fundamentar a Proposta do Anteprojecto

da Lei de Bases da Política Criminal. Ambos os trabalhos foram realizados pela

Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto (FDUAN), no âmbito do

Observatório da Justiça de Angola (OJA), em colaboração com o Observatório

Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ-CES) do Centro de Estudos Sociais

da Universidade de Coimbra, ao abrigo de um Protocolo celebrado entre o

Ministério da Justiça de Angola e a FDUAN. No âmbito daquele Protocolo,

encontra-se em curso o desenvolvimento de um conjunto de trabalhos sobre o

Sistema de Justiça em Angola, tendo como objectivo último a produção de

quatro propostas de anteprojectos das seguintes Leis: Lei de Organização e

Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, Lei de Bases da Política

Criminal, Lei de Acesso à Justiça e Lei dos Julgados de Paz.

Neste relatório apresentam-se os resultados da análise e da reflexão realizadas

tendo em vista a preparação do Anteprojecto da Lei de Bases da Política

Criminal. O programa de trabalho decorreu entre Julho de 2011 e Fevereiro de

2012, período em que se procedeu à recolha, sistematização e análise de

dados que permitissem retratar alguns aspectos essenciais do Sistema de

Justiça Penal do País e nos possibilitassem uma reflexão e propostas de

reforma sustentadas.

A recolha dos dados que serviram de base às análises que apresentamos

neste relatório foi feita com recurso a métodos quantitativos e qualitativos. A

escassez de indicadores estatísticos disponíveis e as dificuldades de

cruzamento das várias fontes levaram-nos a um maior investimento, ainda que

escasso dado o curto período de tempo disponível, em dados qualitativos. A

análise documental foi particularmente importante na fase inicial do trabalho

para o enquadramento jurídico-constitucional das várias vertentes da matéria

em análise. Realizámos várias entrevistas semi-estruturadas e painéis de

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Para uma Política Criminal em Angola

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discussão com Actores Judiciais directamente envolvidos na aplicação do

Direito e da Justiça Penal ou no processo de reforma em curso. Estas duas

metodologias foram especialmente importantes para o nosso trabalho.

Ao longo do trabalho de campo foram muitas as pessoas que connosco

colaboraram, quer fornecendo dados, quer aceitando debater connosco vários

aspectos do Direito e da Justiça Criminal. Foi a sua prestimosa colaboração

que tornou possível a realização deste trabalho. Dois primeiros agradecimentos

são especialmente devidos: a Sua Excelência a Senhora Ministra da Justiça

Dr.ª Guilhermina Prata, muito agradecemos pela confiança depositada no

Observatório da Justiça de Angola e no Observatório Permanente da Justiça

Portuguesa para a execução deste projecto, pelo apoio, sempre que solicitado,

ao trabalho de recolha de dados e pela disponibilidade para connosco discutir

vários aspectos das propostas apresentadas; a Sua Excelência o Senhor

Ministro do Interior Dr. Sebastião Martins, pela colaboração do seu Ministério

em nos fornecedor os dados estatísticos solicitados e, em especial, pela sua

generosa disponibilidade em integrar um grupo de discussão sobre a Proposta

de Anteprojecto de Lei. Os seus contributos naquele painel de discussão foram

essenciais para o dinamismo e para a riqueza da discussão.

Um segundo agradecimento é dirigido a todos os senhores Magistrados

Judiciais e do Ministério Público, Advogados e representantes de organizações

da sociedade civil que connosco colaboraram, pois sem o seu solícito

contributo e activa participação nos painéis e nas entrevistas que promovemos

não teria sido possível realizar este trabalho.

Como acima referimos, este relatório é parte de um conjunto de trabalhos em

preparação ao abrigo do Protocolo celebrado entre a FDUAN e o Ministério da

Justiça. Algumas das entrevistas e painéis de discussão realizados versaram

sobre todos os temas que integraram aquele conjunto de trabalhos, embora

trazendo para este estudo apenas os contributos que à temática em análise

dizem respeito, pelo que reafirmamos aqui os nossos agradecimentos às

pessoas que se disponibilizaram para essa discussão mais ampla. Assim,

agradecemos aos Ex.mos Senhores Presidente do Tribunal Constitucional, Dr.

Rui Ferreira; Presidente do Tribunal Supremo, Dr. Cristiano A. André; e

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Manuel Vicente Inglês Pinto, toda a

disponibilidade e riqueza da reflexão que nos proporcionaram.

Igual agradecimento é devido aos Senhores Magistrados e Advogados que

participaram nos painéis de discussão1, Senhores Magistrados Judiciais Dr.

Adão Chiova, Dr. Francisco Bernardo, Dr. Félix Sebastião, Dr. Leonardo

Chitungo e Dr. Ngyalu Afonso; aos Senhores Magistrados do Ministério Público

Dr. António Binza, Dr. António Neto, Dr. Bundo Vita, Dr. Celestino Paulo

Benguela, Dr. Justo Bartolomeu e Dra. Selma Cunha; e aos Senhores

Advogados Dr. António Joaquim, Dr. Arão Mbula Tembo, Dr. Hermenegildo

Cachimbombo, Dra. Ludmila Sousa, Dr. Mário Alberto Muaxingue, Dra.

Marylene de Freitas, Dra. Pulquéria Van-Dúnem e Dr. Samuel João.

Pela disponibilidade manifestada em ceder as instalações do INEJ para o

efeito, agradecemos ao seu Director, Dr. Norberto Capeça.

Especificamente para a produção deste trabalho, agradecemos as entrevistas

que nos concederam a Senhora Conselheira Dra. Luzia Sebastião; os

Senhores Professores Dr. Grandão Ramos e Dr. Eduardo Samba; o Dr.

Henriques dos Santos, Vice Procurador-Geral da República; e o Dr. Domingos

Vaz, Procurador-Geral Adjunto.

Procedemos, ainda, à recolha de dados junto do Ministério da Justiça, da

Procuradoria-Geral da República (PGR) e da Direcção Nacional de

Investigação Criminal. Dada a impossibilidade de identificarmos todas as

pessoas que nos facultaram e auxiliaram nessa tarefa, deixamos aqui o nosso

agradecimento, nas pessoas dos seus dirigentes.

A proposta de Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal beneficiou,

ainda, da prestimosa reflexão e opinião crítica de destacadas personalidades

que participaram num painel de discussão de análise da versão preliminar da

proposta, que em muito melhorou a proposta final. Agradecemos, assim, de

forma muito especial a Sua Excelência o Senhor Ministro do Interior, Dr.

1 Foram realizados três painéis de discussão (um com Magistrados Judiciais, um com

Magistrados do Ministério Público e um com Advogados), tendo ocupado cada um deles, um

dia de trabalho.

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Para uma Política Criminal em Angola

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Sebastião Martins, à Senhora Juíza Conselheira Dr.ª Luzia Sebastião, ao

Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Manuel Vicente Inglês Pinto,

ao Senhor Director Nacional de Investigação Criminal, Dr. Eugénio Pedro

Alexandre, aos Senhores Procuradores Drs. Vamba Cuca e Luciano Cachaca,

aos Senhores Professores Drs. Correia Bartolomeu e Eduardo Samba, ao

Senhor Chefe de Gabinete do Director da DNIC, Dr. Waldemar José, ao

Senhor Chefe do Departamento do Contencioso da Polícia Económica, Dr.

Paulo de Jesus e ao Senhor Dr. Manuel Evaristo, Técnico do Gabinete Jurídico

do Ministério do Interior.

Agradecemos, ainda, ao Senhor Procurador-Geral da República, Dr. João

Maria de Sousa, e ao Senhor Director da DNIC, Comissário Eugénio Pedro

Alexandre, os contributos que nos fizeram chegar por escrito.

Cabe-nos dirigir um especial agradecimento ao Senhor Doutor José Mouraz

Lopes, pela disponibilidade em ter acedido debater, enquanto consultor,

algumas das questões que surgiram aquando da elaboração deste estudo e

das quais damos conta neste relatório e pelo acompanhamento na produção da

Proposta de Anteprojecto de Lei. A sua elevada competência técnica foi

essencial para o resultado final deste trabalho.

Agradecemos, também, à Dra. Hélia Pimentel, Coordenadora Administrativa e

Financeira do OJA e à Alice Furtado, responsável pelo secretariado, todo o

apoio prestado na realização do trabalho de campo.

Para a concretização das fases de investigação, de produção do relatório e de

elaboração da Anteproposta de Lei, o estudo que aqui se apresenta contou

com a colaboração, em momentos distintos, de vários colaboradores do OJA e

de Investigadores do OPJ, cujo contributo se agradece: Artur Manjata, Miguel

Aguiar Cardoso, Tatiana Barbosa, Catarina Trincão, Fátima de Sousa, Marina

Henriques e Tiago Ribeiro.

Pelo especial envolvimento neste projecto, quer na recolha de dados, quer na

produção do relatório e da Anteproposta de Lei, destacamos o trabalho

desenvolvido pelos nossos colegas do OJA e do OPJ, João André Pedro,

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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Paula Fernando e Carla Soares. A todos eles o nosso reconhecido

agradecimento.

Os Coordenadores

Raul Araújo

Conceição Gomes

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1. A POLÍTICA CRIMINAL NA CONSTITUIÇÃO

A definição de um quadro legal de Política Criminal depende, em primeiro

lugar, do enquadramento que a Constituição da República (CRA) der a várias

vertentes da Justiça Penal. Desde logo, do modelo de Justiça Penal

consagrado e das suas multíplices implicações, designadamente no que

respeita à articulação constitucionalmente prevista entre o Poder Legislativo, o

Poder Judicial e o Poder Executivo. Neste ponto, começamos, assim, por

analisar o enquadramento constitucional da Justiça Penal no que respeita a

duas matérias essenciais: (1) o princípio da separação de poderes e a

delimitação funcional de competências entre órgãos; e (2) o princípio do

acusatório e a intervenção judicial para fiscalização das garantias fundamentais

dos cidadãos.

1.1. O princípio da separação de poderes e a delimitação funcional de competências entre órgãos

A República de Angola é um Estado Democrático de Direito que assenta, entre

outros, no princípio fundamental da separação de poderes e interdependência

de funções2 - princípio estrutural da organização do Poder Político, que impõe

uma separação horizontal de poderes, ou seja, uma repartição de funções

pelos diferentes órgãos3.

2 Cf. artigo 2.º, n.º 1, da CRA.

3 Como refere Gomes Canotilho, “o princípio da separação de poderes transporta duas

dimensões complementares: (1) a separação como «divisão», «controlo» e «limite» do poder –

dimensão negativa; (2) a separação como constitucionalização, ordenação e organização do

poder do Estado tendente a decisões funcionalmente eficazes e materialmente justas

(dimensão positiva). (…) O princípio da divisão como forma e limite do poder (divisão de

poderes e balanço de poderes) assegura uma medida jurídica ao poder do Estado e,

consequentemente, serve para garantir e proteger a esfera jurídico-subjectiva dos indivíduos e

evitar a concentração de poder. O princípio da separação na qualidade de princípio positivo

assegura uma justa e adequada ordenação das funções do estado e, consequentemente,

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Para uma Política Criminal em Angola

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A Constituição da República Angolana define como órgãos de soberania o

Presidente da República, a Assembleia Nacional e os Tribunais, devendo, cada

um destes órgãos actuar com respeito pela separação e independência de

funções estabelecida constitucionalmente4. A definição da Política Criminal

numa acepção ampla5, isto é, parafraseando Zaffaroni, considerando-se como

“a ciência ou a arte de seleccionar os bens (ou direitos) que devem ser

tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efectivar tal tutela,

o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”6,

importa uma divisão funcional entre os diversos órgãos de soberania que

concorrem, por um lado, para a sua definição e, por outro, para a sua execução

eficaz.

A Assembleia Nacional, em primeiro lugar, enquanto parlamento da República

de Angola e, portanto, representativo de todos os Angolanos7, tem

competência política e legislativa alargada, com excepção das matérias

reservadas pela Constituição ao Presidente da República8. Em matéria de

Política Criminal, compete à Assembleia Nacional legislar, com reserva

absoluta, sobre as matérias relacionadas com a definição dos crimes, penas e

medidas de segurança, sobre as bases do processo criminal, bem como sobre

os direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e respectivas

restrições e limitações9. O Poder Legislativo está, no entanto, como é evidente,

materialmente limitado pela própria Constituição, designadamente no que

respeita à proibição da pena de morte10, à previsão da imprescritibilidade e

intervém como esquema relacional de competências, tarefas, funções e responsabilidades dos

órgãos constitucionais de soberania. Nesta perspectiva, separação ou divisão de poderes

significa responsabilidade pelo exercício de um poder” (cf. Canotilho, JJ Gomes. 2003. Direito

Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina. 7.ª edição).

4 Cf. artigo 105.º da CRA.

5 Os diferentes conceitos de Política Criminal serão analisados mais adiante.

6 Cf. Zaffaroni, Eugenio Raúl. (1999). Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. Eugenio

Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. 2ª ed. Revista e actualizada. São Paulo: Revista dos

Tribunais.

7 Cf. artigo 141.º da CRA.

8 Cf. artigo 161.º da CRA.

9 Cf. artigo 164.º da CRA.

10 Cf. artigo 59.º da CRA.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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insusceptibilidade de amnistia e liberdade provisória aos crimes hediondos e

violentos11, à protecção constitucional dos direitos dos detidos e dos presos12,

às normas referentes à privação da liberdade13; às regras para a aplicação da

Lei Criminal14, à previsão de limites das penas e das medidas de segurança15

e, ainda, às garantias constitucionais do processo criminal16.

Ao Presidente da República, em segundo lugar, enquanto titular do Poder

Executivo, compete, em termos gerais, definir a orientação política do País, nos

termos da Constituição, e, consequentemente, definir a Política Criminal,

podendo, ainda, exercer iniciativa legislativa, mediante Proposta de Lei a

apresentar à Assembleia Nacional17. O Conselho de Ministros18, por sua vez,

enquanto órgão auxiliar do Presidente da República na formulação e execução

da política geral do País, pronuncia-se sobre a política de governação, a sua

execução, bem como sobre as Propostas de Lei a submeter à Assembleia

Nacional19.

O momento de definição da Política Criminal, enquanto Política Pública

fundamental20, pode, ainda, determinar o envolvimento de dois órgãos

constitucionais com competências consultivas de relevo: (1) o Conselho da

República - órgão colegial de natureza consultiva do Chefe de Estado, onde

têm assento, além do próprio Presidente da República, o Vice-Presidente da

11 Cf. artigo 61.º da CRA.

12 Cf. artigo 63.º da CRA.

13 Cf. artigo 64.º da CRA.

14 Cf. artigo 65.º da CRA.

15 Cf. artigo 66.º da CRA.

16 Cf. artigo 67.º da CRA.

17 Cf. artigo 120.º, alíneas a) e i), da CRA.

18 O Conselho de Ministros é presidido pelo Presidente da República e é integrado pelo Vice-

Presidente, Ministros de Estado e Ministros (cf. artigo 134.º, n,º 2, da CRA).

19 Cf. artigo 134.º, n,º 4, alíneas a) e b), da CRA.

20 Segundo Teresa Sousa, “as políticas públicas não são mais do que o Estado em acção, na

qualidade de sujeito actuante, numa lógica de adequação das suas funções às necessidades

colectivas”. (cf. Sousa, Teresa. (2009). O Direito Penal na Encruzilhada: Reflexões em torno da

Política Criminal à luz da Ciência Política. Julgar.n.º 7).

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Para uma Política Criminal em Angola

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República, o Presidente da Assembleia Nacional, o Presidente do Tribunal

Constitucional, o Procurador-Geral da República, os antigos Presidentes da

República, os Presidentes dos partidos políticos e coligações representados na

Assembleia Nacional e dez cidadãos designados pelo Presidente da República

para este efeito21 - e (2) o Conselho de Segurança Nacional - órgão de consulta

do Presidente da República para os assuntos relativos à condução da política e

estratégia da segurança nacional, bem como à organização, ao funcionamento

e à disciplina das Forças Armadas, da Polícia Nacional e demais organismos

de garantia da ordem constitucional e dos órgãos de inteligência e de

segurança de Estado em particular. Este órgão é presidido pelo Presidente da

República e composto pelo Vice-Presidente da República, pelo Presidente da

Assembleia Nacional, pelo Presidente do Tribunal Constitucional, pelo

Presidente do Tribunal Supremo, pelo Procurador-Geral da República, pelos

Ministros de Estado e Ministros indicados pelo Presidente da República e por

outras entidades indicadas pelo Presidente da República22.

As opções fundamentais de Política Criminal estão, assim, constitucionalmente

entregues, em primeira linha, ao Poder Legislativo, submetendo-se os órgãos

de execução daquela Política ao princípio basilar da legalidade, segundo o qual

o Estado, além de se dever subordinar à Lei Constitucional, também deve

fundar a sua actuação na legalidade, respeitando e fazendo respeitar as leis23.

Se é verdade que a definição e as opções fundamentais do quadro legal da

política, organização e investigação criminal pertencem ao Poder Legislativo,

em primeira linha, e ao Poder Executivo, em segunda, não é menos verdade

que o Poder Judicial, bem como os Órgãos de Polícia Criminal, concorrem para

a sua execução, assumindo, igualmente, a Constituição um papel delimitador

da diferenciação funcional de competências entre os Tribunais, o Ministério

Público e a Polícia de Investigação Criminal, bem como modelador do seu

modo de relacionamento e de interdependência recíproca.

21 Cf. artigo 135.º da CRA.

22 Cf. artigo 136.º da CRA.

23 Cf. artigo 6.º, n.º 2, da CRA.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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Aos Tribunais - Órgão de Soberania com competência para administrar a

Justiça em nome do povo -, no exercício da sua função jurisdicional, são

confiadas competências constitucionais para dirimir conflitos, assegurar a

defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como dos

princípios do acusatório e do contraditório24.

Ao Ministério Público, por sua vez, compete, além da representação do Estado,

da defesa da legalidade democrática e dos interesses que a Lei assim o

determinar, promover o Processo Penal e exercer a Acção Penal, devendo-o

fazer com respeito pela Lei e, segundo a Constituição, através da direcção da

fase preparatória dos processos penais, sem prejuízo, todavia, da fiscalização

das garantias fundamentais dos cidadãos por Magistrado Judicial25.

A Constituição define, deste modo, um modelo claro de divisão de

competências e de articulação funcional no Sistema de Justiça Penal entre a

magistratura judicial e o Ministério Público. Se a este cabe a direcção da fase

preparatória dos processos penais, àqueles compete intervir sempre que esteja

em causa a necessidade de salvaguardar os direitos e garantias fundamentais.

É atendendo a este quadro constitucional que a proposta que apresentamos

estabelece as competências entre a magistratura judicial e do Ministério

Público no que respeita à concretização da Política Criminal.

A Constituição da República de Angola, no seu Capítulo IV, sob a epígrafe

“Garantia da Ordem e Polícia Nacional”, define como objectivo da garantia da

ordem “a defesa da segurança e tranquilidade públicas, o asseguramento e

protecção das instituições, dos cidadãos e respectivos bens e dos seus direitos

e liberdades fundamentais, contra a criminalidade violenta ou organizada e

outro tipo de ameaças e riscos, no estrito respeito pela Constituição, pelas leis

e pelas convenções internacionais de que Angola seja parte”, relegando para a

Lei a organização e o funcionamento dos órgãos encarregues de garantir a

ordem pública26. Contudo, apesar desta norma, a Constituição define a Polícia

24 Cf. artigo 174.º da CRA.

25 Cf. artigo 186.º da CRA.

26 Cf. artigo 209.º da CRA.

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Para uma Política Criminal em Angola

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Nacional como “a instituição nacional policial, permanente, regular e

apartidária, organizada na base da hierarquia e da disciplina, incumbida da

protecção e asseguramento policial do País, no estrito respeito pela

Constituição e pelas leis, bem como pelas convenções internacionais de que

Angola seja parte”. Esta previsão constitucional de, por um lado, remeter para a

Lei a "a organização e funcionamento dos órgãos que assegurem a ordem

pública" e, por outro, considerar a Polícia Nacional como a "a instituição

nacional policial…" tem levantado alguma controvérsia e dúvidas, como adiante

se verá, sobre o grau possível de autonomia e de dependência funcional dos

Órgãos de Polícia encarregues da investigação criminal27.

A Lei Fundamental define, nos seus traços fundamentais, o modelo de

investigação criminal, conferindo, contudo, ao legislador amplitude na melhor

definição da articulação entre os órgãos de investigação criminal e o Ministério

Público, enquanto responsável pela promoção do Processo Penal e pelo

exercício da Acção Penal28.

1.2. O princípio do acusatório e a intervenção judicial para fiscalização das garantias fundamentais dos cidadãos

Como já referimos, encontra-se constitucionalmente consagrado o princípio do

acusatório no Processo Penal, garantindo a Constituição a distinção entre a

entidade julgadora e aquela que exerceu funções de investigação e acusação.

Mas, a concretização do princípio do acusatório exige mais, impondo fronteiras

mais rigorosas no desenho do modelo processual penal a adoptar. Como

referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, “estrutura acusatória significa, no

plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano

subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução)

e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador”.

Concretizando, aqueles autores referem que “rigorosamente considerada, a

estrutura acusatória do processo penal implica: (a) proibição de acumulações

27 Cf. artigos 209.º e 210.º da CRA.

28 Cf. artigo 185.º da CRA.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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orgânicas a montante do processo, ou seja, a proibição de que o Juiz de

Instrução seja também o órgão de acusação; (b) proibição de acumulação

subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também

julgador; (c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto

é, o órgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e

vice-versa”29. A razão subjacente a esta imposição constitucional é a da

salvaguarda das condições indispensáveis a uma decisão judicial: a

imparcialidade, a objectividade e a independência. Para tal, cabe aos Tribunais

assegurar que quem julga, o faça dentro dos limites que lhe são fixados por

uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferente.

O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria, considerando

que o princípio do acusatório, previsto no artigo 349.º do Código de Processo

Penal, conjugado com o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 35007, de 13 de Outubro

de 1945, bem como nos artigos 174.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, da CRA, é um dos

subprincípios do processo equitativo. Nesse sentido, o Acórdão considera que

“o sistema acusatório consiste numa disputa entre as partes em que o juiz está

numa situação de supremacia e imparcialidade relativamente a elas”, o que

implica que o juiz do julgamento se encontra vinculado tematicamente à

acusação e à pronúncia. Na sustentação desta interpretação, o Acórdão

sublinha que “o padrão internacional sobre esta matéria essencial à garantia

dos direitos fundamentais tem sido o de que o juiz que proferiu o despacho de

pronúncia só pode ser admitido a participar no julgamento se não tiver tido

qualquer intervenção substantiva na fase prévia ao julgamento e na prolação

da pronúncia, tomando decisões importantes que impliquem a avaliação da

prova já existente. Assim é para se evitar que o juiz firme uma convicção

adversa ao arguido e comece o julgamento com uma presunção de culpa do

réu, em face da prova da instrução preparatória e contraditória que ele já tenha

apreciado”30.

29 Cf. Canotilho, JJ Gomes e Moreira, Vital. (2007). Constituição da República Portuguesa

Anotada. Volume I. Coimbra: Coimbra Editora. 4.ª edição.

30 Cf. Acórdão n.º 122/2010, de 23 de Setembro (recurso extraordinário de

inconstitucionalidade – processos n.ºs 158 e 159/2010).

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Para uma Política Criminal em Angola

42

A Constituição, deixando muito embora alguma margem de conformação ao

legislador ordinário, estabelece já as linhas mestras que constituem o esboço

inicial daquela divisão de competências funcionais dentro do processo penal.

Assim, ao Ministério Público atribui a competência para, entre outros,

“promover o processo penal e exercer a acção penal”31 e dirigir a fase

preparatória dos processos penais. O exercício destas competências não pode,

como já referimos, colocar em causa a “fiscalização das garantias

fundamentais dos cidadãos”, devendo esta função ser assumida por

Magistrados Judiciais, nos termos a definir na Lei.

Caberá ao Legislador ordinário definir com clareza qual o papel atribuído a

cada um daqueles órgãos e qual a forma como as suas competências devem

ser exercidas. Em função da solução encontrada poderemos ter um Juiz de

Garantias com mais ou menos poderes, impondo-se apenas a certeza de que,

por exigência constitucional, a Magistratura Judicial terá que assumir as

funções de fiscalizador das garantias dos cidadãos. Em simultâneo, na nossa

interpretação, o texto constitucional aponta para a consolidação e reforço da

atribuição da titularidade da Acção Penal ao Ministério Público. Esta é uma

matéria de crucial importância para o futuro da Justiça Penal Angolana, daí que

consideremos fundamental a definição, a curto prazo, pelo legislador ordinário

do modelo de investigação criminal que, no quadro Constitucional, melhor sirva

os objectivos da Justiça Penal Angolana.

31 Cf. artigo 186.º da CRA.

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43

2. AS ENTIDADES ENCARREGUES DA EXECUÇÃO DA POLÍTICA CRIMINAL

Como adiante melhor se verá, a Política Criminal engloba duas vertentes –

uma de âmbito preventivo e uma segunda de âmbito repressivo32. Na execução

destas duas dimensões da Política Criminal participa uma plêiade de

Instituições e de Órgãos.

Na dimensão de prevenção, entendida nas suas diversas fases (prevenção

primária, secundária e terciária33) podem intervir, desde logo, a Comunidade,

os Serviços de Assistência Social, a Polícia (entendida como órgão de

proximidade), as diversas Associações da Sociedade Civil, os Serviços de

Execução das Penas, bem como, ainda que indirectamente, os Tribunais e o

Ministério Público.

Na dimensão de repressão, por seu turno, a execução da Política Criminal é

reservada aos Tribunais, ao Ministério Público e aos Órgãos de Polícia

Criminal.

Dado o particular papel assumido pelos Tribunais, pelo Ministério Público,

pelos Órgãos de Polícia Criminal e pelos Serviços encarregues da Execução

das Penas e tendo, ainda, em atenção a importância que o modelo de

organização daquelas entidades assumirá para uma eficaz execução da

32 Cf. Albuquerque, Paulo Pinto de. (2004). O que é a política criminal, porque precisamos dela

e como a podemos construir?. Disponível em

http://www.ucp.pt/site/resources/documents/Docente%20-

%20Palbu/o%20que%20%C3%A9%20a%20pol%C3%ADtica%20criminal.pdf, acedido em 27

de Dezembro de 2011.

33 A prevenção primária é orientada para evitar a prática de factos ilícitos criminais,

independentemente da concreta existência ou manifestação exterior dos mesmos. A prevenção

secundária age nos grupos societários que manifestam um particular risco de cometimento de

factos ilícitos criminais. A prevenção terciária é dirigida a uma população perfeitamente

identificável: os agentes da prática de factos qualificados pela Lei como crimes, tendo como

objectivo último evitar a reincidência.

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Para uma Política Criminal em Angola

44

Política Criminal, dar-lhes-emos, neste ponto, particular atenção, ainda que de

forma sintética.

2.1. A Organização Judiciária do Sistema de Justiça Penal34

Aos Tribunais, nos termos do artigo 174.º da CRA, compete administrar a

Justiça em nome do povo, dirimindo conflitos de interesses, público ou privado,

assegurando a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem

como os princípios do acusatório e do contraditório e reprimir as violações da

legalidade democrática.

A maior reforma do sistema judiciário do período pós-independência ocorreu

em 1988, com a criação do Sistema Unificado de Justiça35, que consagra as

bases da organização judiciária ainda hoje vigente. Caracterizada pela

adopção de uma organização judiciária única36, o Sistema Unificado de Justiça

fez coincidir a divisão territorial da Justiça com a divisão político-administrativa

do País e criou três categorias de Tribunais: o Tribunal Popular Supremo; os

Tribunais Populares Provinciais; e os Tribunais Populares Municipais37.

34 Para uma leitura pormenorizada sobre a evolução da organização judiciária em Angola, veja-

se Araújo, Raul et al. (2012). “A Organização Judiciária em Angola”. In Gomes, Conceição;

Araújo, Raúl (orgs.) A luta pela relevância social e política: os tribunais judiciais em Angola. In

Santos, Boaventura de Sousa; Van Dúnen, José Octávio Serra (dir.). Luanda e Justiça:

Pluralismo jurídico numa sociedade em transformação. Vol. II. Coimbra: Almedina.

35 Aprovado pela Lei n.º 18/88, de 31 de Dezembro.

36 O Sistema Unificado de Justiça procedia à unificação das jurisdições civil e militar ao nível do

Tribunal Supremo, criando uma Câmara Militar. A competência e jurisdição dos Tribunais

Militares foi regulada pela Lei sobre a Justiça Penal Militar, aprovada pela Lei n.º 19/88, de 31

de Dezembro. Em 1994, com a aprovação da Lei n.º 1/94, de 7 de Janeiro, foram criados novos

Órgãos de Justiça Militar: o Conselho Supremo de Justiça Militar, o Supremo Tribunal Militar,

os Tribunais Militares Regionais de zona e de guarnição, a Procuradoria Militar e a Polícia

Judiciária Militar. A Lei de Justiça Militar previa que os Tribunais Militares julgassem todo o tipo

de crimes desde que os intervenientes fossem militares. Contudo, face a um pedido de

fiscalização sucessiva da inconstitucionalidade em relação àquelas normas promovida pela

PGR, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o seu conteúdo, tendo ficado

plasmado na Lei que os Tribunais Militares apenas poderiam conhecer crimes considerados

militares

37 A designação “popular” foi retirada dos tribunais com a revisão constitucional de 1992,

aprovada pela Lei n.º 23/92, de 16 de Setembro.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

45

A actual organização judiciária que serve o Sistema de Justiça Penal é, assim,

herdeira do Sistema Unificado de Justiça, sendo a administração da Justiça

Penal entregue à Câmara dos Crimes do Tribunal Supremo, à Sala dos Crimes

dos Tribunais Provinciais e aos Tribunais Municipais.

À Câmara dos Crimes do Tribunal Supremo compete, em regra, apenas julgar

em sede de recurso de decisões proferidas pelos Tribunais de Primeira

Instância38. Aos Tribunais Provinciais, através da Sala dos Crimes Comuns

compete o julgamento, em primeira instância, das condutas penalmente mais

graves, julgando todos os processos relativos a infracções penais comuns e

procedendo à confirmação, revogação, alteração e anulação das decisões

proferidas pelos Tribunais Municipais em processo de natureza penal. Os

Tribunais Municipais, por seu turno, julgam, em primeira instância, os

processos-crime puníveis com pena correccional, cujo julgamento não seja

cometido por Lei a outro Tribunal e praticam, por carta ou mandato, nos termos

da Lei do Processo, todos os actos judiciais que lhes forem solicitados ou

ordenados por outros Tribunais. A competência dos Tribunais Municipais

resume-se, assim, aos julgamentos dos processos sumários e das

transgressões.

A revisão constitucional de 1992 veio prever a criação de um Tribunal

Constitucional, efectivamente criado em 2008 pela Lei n.º 2/08, de 17 de Junho

(Lei Orgânica do Tribunal Constitucional). A composição do Tribunal

Constitucional compreende os seguintes três órgãos: Plenário, Presidente e

Câmaras. Inclui onze Magistrados, quatro indicados pelo Presidente da

República, incluindo o Presidente do Tribunal, quatro eleitos pela Assembleia

Nacional, dois eleitos pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial e um

seleccionado por concurso público curricular, tendo jurisdição em todo o

território nacional, prevalecendo as suas decisões sobre as dos restantes

Tribunais, inclusive sobre as decisões do Tribunal Supremo.

38 A Lei do Sistema Unificado de Justiça prevê, no entanto, também que a Câmara dos Crimes

do Tribunal Supremo julgará, em primeira instância, os feitos criminais em que seja o PGR a

exercer a Acção Penal; bem como os feitos criminais cometidos por entidades nomeadas pelo

PR, por Juízes dos Tribunais Provinciais e Municipais, por Magistrados do Ministério Público

junto deles ou por Assessores Populares, quando estes sejam acusados por crimes no

exercício das suas funções.

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Para uma Política Criminal em Angola

46

A revisão constitucional de 2010 anuncia uma alteração à actual organização

judiciária, rompendo com o modelo herdado do Sistema Unificado de Justiça.

Estabelece como tribunais superiores o Tribunal Constitucional, o Tribunal

Supremo, o Tribunal de Contas e o Supremo Tribunal Militar39 e prevê a criação

de Tribunais da Relação como tribunais intermédios entre os tribunais de 1ª

instância e o Tribunal Supremo. A nova Constituição dá, assim, abertura para

uma ampla revisão da organização judiciária.

Encontra-se, actualmente, em discussão uma Proposta de Anteprojecto da Lei

de Organização e Funcionamento dos Tribunais da Jurisdição Comum, a qual

tem como objectivos centrais aumentar a eficiência e a qualidade do

desempenho funcional dos tribunais através da criação de uma nova geografia

da justiça e de novos modelos de organização e gestão dos tribunais da

jurisdição comum, estruturando-se em torno de um conjunto de linhas

orientadoras, de entre as quais destacamos as seguintes: (a) alargamento da

rede de tribunais de modo a tornar a justiça geograficamente mais próxima; (b)

aumento da eficiência e da qualidade da justiça; (c) flexibilização da estrutura

judiciária de modo a responder aos diferentes “Países Judiciários”; (d)

institucionalização de um Sistema de Justiça itinerante de modo a promover o

acesso e a qualidade da justiça; e, ainda, (e) aprofundamento da articulação do

sistema judiciário com outras instituições conexas.

De acordo com aquela proposta, os Tribunais Municipais e os Tribunais

Provinciais serão abolidos e, em seu lugar, serão criados os Tribunais de

Comarca. Estes tribunais, de primeira instância40, serão, por regra, tribunais de

competência genérica podendo, contudo, sempre que o volume e a

complexidade jurídica dos processos assim o justifique, proceder-se à criação

de Salas Especializadas. Em matéria criminal, a proposta prevê a criação das

39 Cf. artigo 176.º da CRA.

40 A regra é que os Tribunais de Comarca funcionem em Tribunal Singular, podendo, todavia,

funcionar em Tribunal Colectivo, designadamente, em matéria criminal, quando o crime seja

punível, em abstracto, com pena de prisão superior a dois anos.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

47

seguintes Salas: a Sala do Crime41, a Sala de Instrução Criminal42, a Sala de

Execução das Penas43 e a Sala de Pequenas Causas Criminais44.

Uma outra matéria avançada na Proposta em análise, com reflexos no âmbito

criminal, prende-se com o regime previsto para os recursos, cuja apreciação,

por regra, passa a ser dos Tribunais da Relação, independentemente do valor

da causa, da natureza e do tipo de sanções e da medida da pena,

assegurando-se, assim um grau de recurso. Ao Tribunal Supremo são

reservados, em regra, os recursos em matéria de direito, mantendo-se uma

competência residual em matéria de facto quando tenha sido aplicada pena ou

medida privativa da liberdade superior a cinco anos.

2.2. O Ministério Público45

Nos termos do artigo 185.º da Constituição, o Ministério Público, composto por

Magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados, é o órgão da

Procuradoria-Geral da República essencial à função jurisdicional do Estado,

sendo dotado de autonomia, caracterizada pela sua vinculação a critérios de

legalidade e objectividade, e estatuto próprio. A Constituição, garantindo a sua

autonomia face aos restantes poderes do Estado e a sua independência face à

41 Compete a esta Sala: (a) julgar processos-crime não atribuídos a outras Salas; (b) cumprir as

cartas rogatórias e precatórias que lhe sejam dirigidas; (c) exercer as demais competências

conferidas por lei, e, ainda (d) exercer as competências atribuídas à Sala de Instrução Criminal,

nas comarcas onde esta não tenha sido instalada.

42 À Sala de Instrução Criminal compete exercer as funções jurisdicionais relativas às fases

processuais anteriores ao julgamento.

43 A esta Sala compete acompanhar e fiscalizar a execução de pena ou medida privativa da

liberdade aplicada, decidir da sua modificação, substituição e extinção, bem como conhecer

dos recursos interpostos de decisões tomadas, em sede disciplinar, pelos Directores dos

Estabelecimentos Prisionais.

44 Aos Tribunais de Pequenas Causas Criminais compete preparar e julgar os processos de

transgressão, os processos sumários e os processos de Polícia Correccional a que não seja

aplicável pena privativa da liberdade superior a dois anos.

45 Seguiremos, de perto, neste ponto, Araújo et al. (2012), “As profissões forenses:

caracterização, recrutamento e formação”. In Gomes, Conceição; Araújo, Raúl (orgs.) A luta

pela relevância social e política: os tribunais judiciais em Angola. In Santos, Boaventura de

Sousa; Van Dúnen, José Octávio Serra (dir.). Luanda e Justiça: Pluralismo jurídico numa

sociedade em transformação. Vol. II. Coimbra: Almedina.

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Para uma Política Criminal em Angola

48

Magistratura Judicial, confere-lhe um conjunto de competências necessárias à

representação do Estado, à defesa da legalidade democrática e o dos

interesses que a Lei determinar, bem como à promoção do Processo Penal e

ao exercício da Acção Penal. Atribui-lhe, assim, competência para representar

o Estado junto dos Tribunais, exercer o patrocínio judiciário de incapazes, de

menores e de ausentes, promover o Processo Penal e exercer a Acção Penal,

defender os interesses colectivos e difusos, promover a execução das decisões

judiciais, dirigir a fase preparatória dos processos penais, sem prejuízo da

fiscalização das garantias fundamentais dos cidadãos por Magistrado Judicial,

nos termos da lei46.

Como refere Araújo et al (2012), “a magistratura do Ministério Público é, talvez,

a profissão jurídica que espelha de forma mais nítida a evolução do Sistema

Judicial pós-independência no sentido da sua independência e autonomia face

ao Poder Político. De unidade orgânica subordinada ao Presidente da

República, como Chefe de Estado, à previsão expressa da legitimidade de

recusa de cumprimento de directivas, ordens e instruções ilegais, a

magistratura do Ministério Público “travou uma longa batalha” pela

autonomia”47.

Na sua versão originária48, a Procuradoria-Geral da República foi desenhada

sob um cunho marcadamente hierarquizado em relação ao Poder Executivo,

recebendo instruções directas e de cumprimento obrigatório por parte do

Presidente da República, enquanto Chefe de Estado. O Procurador-Geral da

República era nomeado e exonerado livremente pelo Presidente da República

e o Vice-Procurador Geral da República nomeado, sob proposta do

Procurador-Geral da República, pelo Presidente da República, a quem cabia

46 Cf. artigo 186.º da CRA.

47 Cf. Araújo et al. (2012), “As profissões forenses: caracterização, recrutamento e formação”.

In Gomes, Conceição; Araújo, Raúl (orgs.) A luta pela relevância social e política: os tribunais

judiciais em Angola. In Santos, Boaventura de Sousa; Van Dúnen, José Octávio Serra (dir.).

Luanda e Justiça: Pluralismo jurídico numa sociedade em transformação. Vol. II. Coimbra:

Almedina.

48 A Procuradoria-Geral da República foi criada, em 1979, pela Lei n.º 4/79, de 16 de Maio. A

Lei do Sistema Unificado de Justiça não tratou do Ministério Público, remetendo a sua

regulamentação para Lei especial.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

49

igualmente a sua exoneração, livremente ou sob proposta do Procurador-Geral

da República.49 A governamentalização do Ministério Público e a sua

governação centralizada é acentuada, em 1990, com a primeira alteração à Lei

da Procuradoria-Geral da República50, prevendo um sistema de nomeações

hierarquizadas51.

É apenas com a revisão constitucional de 1992 que a magistratura do

Ministério Público começa a encontrar os contornos de autonomia que a

caracterizam actualmente, com a criação do Conselho Superior da Magistratura

do Ministério Público. A Constituição de 1992 deixa, no entanto, ao legislador

ordinário uma margem considerável de conformação da composição deste

novo órgão, prevendo apenas que o mesmo será composto por membros

eleitos pela Assembleia Nacional e membros de entre si eleitos pelos

Magistrados do Ministério Público, em termos a definir por lei.52. É em 1994 que

surge tal definição, com a aprovação do Estatuto dos Magistrados Judiciais e

do Ministério Público53. O Estatuto comporta, ainda, duas inovações relevantes:

(1) o paralelismo face à magistratura judicial, designadamente, no que respeita

às condições de ingresso, bem como a independência face àquela

magistratura; e (2) a possibilidade de recusa de cumprimento de directivas,

ordens e instruções ilegais ou com fundamento em grave violação da sua

consciência jurídica54.

O percurso da Magistratura do Ministério Público no sentido da consagração da

sua autonomia encontra forte apoio na revisão constitucional de 2010.

Determina-se a vinculação do Ministério Público a critérios de legalidade e de

objectividade, que se constitucionaliza nas vertentes de responsabilidade e

49 Cf. artigo 5.º da Lei n.º 4/79, de 16 de Maio.

50 Cf. Lei n.º 5/90, de 7 de Abril.

51 O Procurador-Geral da República, os Vice-Procuradores Gerais da República e os Adjuntos

do Procurador-Geral da República eram livremente nomeados e exonerados pelo Presidente da República (artigo 16.º, 19.º e 22.º), sendo os Procuradores Provinciais da República e adjuntos nomeados e exonerados pelo Procurador-Geral da República (artigo 36.º), bem como os Procuradores Municipais da República, sob proposta do Procurador Provincial da Província onde devem exercer funções (artigo 48.º).

52 Cf. artigo 137.º.

53 Aprovado pela Lei n.º 7/94, de 29 de Abril.

54 Cf. artigo 10.º.

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Para uma Política Criminal em Angola

50

subordinação hierárquica55 e na garantia de inamovibilidade.56 É também nesta

revisão constitucional que o Conselho Superior da Magistratura do Ministério

Público se assume como órgão superior de gestão e disciplina da Magistratura

do Ministério Público57.

Em 2011, é aprovada a Lei do Conselho Superior da Magistratura do Ministério

Público58, órgão de gestão e disciplina da Magistratura do Ministério Público,

que regula a sua actual composição. O Conselho é, assim, composto pelo

Procurador-Geral da República, que o preside, e pelos Vice-Procuradores

Gerais da República, por dois Procuradores Gerais-Adjuntos da República, dois

Sub-Procuradores Gerais da República, dois Procuradores da República, dois

Procuradores-Adjuntos da República, quatro juristas designados pelo

Presidente da República e seis juristas designados pela Assembleia Nacional59.

Ao Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público compete,

designadamente, nomear, colocar transferir, promover e exonerar os

Magistrados do Ministério Público; realizar a sua avaliação de desempenho; e

exercer a acção disciplinar sobre os Magistrados do Ministério Público60.

De acordo com a Lei Orgânica da PGR, ao Ministério Público, na área criminal,

compete exercer a Acção Penal; ordenar a prisão preventiva em instrução

preparatória e fazer cumprir a prisão ordenada pelos tribunais; validar a prisão

preventiva em instrução preparatória ordenada pelas autoridades de

investigação e instrução criminal; ordenar a soltura dos arguidos detidos e

substituir a prisão preventiva por outras medidas estabelecidas na lei; fiscalizar

a instrução dos processos criminais, velando pelo respeito devido aos detidos e

às garantias de defesa destes e pelo respeito estrito dos prazos de prisão

55 Cf. artigo 185.º da CRA.

56 Cf. artigo 187.º da CRA.

57 Cf. artigo 190.º. O Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público é presidido pelo

Procurador-Geral da República e integra os seguintes membros: a) Os Vice Procuradores-Gerais da República; b) Membros eleitos pelos Magistrados do Ministério Público entre si e nas respectivas categorias; c) Membros designados pelo Presidente da República; d) Membros eleitos pela Assembleia Nacional.

58 Lei n.º 15/11, de 18 de Março.

59 Cf. artigo 2.º da Lei n.º 15/11, de 18 de Março.

60 Cf. artigo 30.º da Lei n.º 15/11, de 18 de Março.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

51

preventiva e de duração da instrução; instruir processos criminais e, em

especial, aqueles em que sejam arguidos entidades nomeadas pelo Presidente

da República nos termos da Lei Constitucional, Deputados da Assembleia

Nacional, Juízes dos Tribunais Provinciais e Municipais, Magistrados do

Ministério Público, Membros do Conselho da República, Provedor e Provedor

Adjunto de Justiça e, por crimes cometidos no exercício das suas funções, os

Juízes Substitutos, Substitutos dos Magistrados do Ministério Público e

Assessores Populares; fiscalizar o cumprimento das sentenças penais velando

pelo respeito devido aos presos, pelo estrito cumprimento dos prazos de prisão

e pelas medidas de recuperação e reintegração social dos delinquentes;

participar nas tarefas de prevenção criminal e de recuperação e reintegração

social dos delinquentes, em colaboração com os demais organismos

interessados61.

2.3. Os Órgãos dependentes do Ministério do Interior

Nos termos do artigo 1.º do seu Estatuto Orgânico, o Ministério do Interior

(MININT) é o órgão da Administração Central do Estado ao qual compete, em

geral, promover, de acordo com as directrizes do Governo, a formulação,

coordenação e execução da ordem e da segurança interna, controlo da

entrada, permanência, residência e saída de estrangeiros, execução das

medidas privativas da liberdade e garantia do exercício dos direitos e

liberdades fundamentais dos cidadãos.

O Estatuto Orgânico atribui ao MININT um conjunto alargado de competências,

nomeadamente a manutenção da ordem e tranquilidade públicas; a garantia da

segurança interna, respeito da legalidade democrática, e defesa dos direitos e

garantias constitucionais dos cidadãos; protecção de pessoas e bens; o

controlo da detenção, uso e porte de armas, munições e explosivos; a

organização, preparação, direcção e controlo da actividade de Auxiliares de

Polícia e de Defesa Civil; controlo da entrada, permanência, residência e saída

61 Cf. artigo 3.º da Lei n.º 5/90, de 7 de Abril, na redacção dada pela Lei n.º 8/2006, de 29 de

Setembro. Está em discussão a eventual revisão da Lei da PGR, tendo como objectivo, entre

outros, a sua conformação ao novo quadro constitucional.

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Para uma Política Criminal em Angola

52

de estrangeiros; prevenção e repressão da criminalidade; a fiscalização da

execução das penas e medidas de segurança privativas de liberdade

cominadas pelos tribunais, bem como realizar o trabalho de reeducação dos

condenados e delinquentes sujeitos a medidas de segurança62.

A estrutura orgânica do MININT é constituída pelos Serviços de Apoio

Consultivo - Conselho Consultivo, Conselho Superior de Quadros e Corpo de

Conselheiros -, Serviços de Apoio Técnico - Inspecção Geral, Gabinete

Jurídico; Gabinete de Estudos, Informação e Análise; e Gabinete de Recursos

Humanos -, Serviços de Apoio Instrumental - Gabinete do Ministro, Gabinetes

dos Vice Ministros, Gabinete de Intercâmbio e Cooperação, Direcção de

Logística, Direcção de Asseguramento Técnico, Direcção de Comunicações e

Informática, Serviço de Saúde, Direcção de Planeamento e Finanças e

Departamento de Protocolo e Relações Públicas -, Serviços Executivos

Centrais - Forças de Ordem Interna e Serviço de Segurança Interna, Serviço de

Migração e Estrangeiros e Serviço de Bombeiros - e Serviços Executivos

Locais - Delegações Provinciais.

Os Serviços Executivos Centrais são compostos por quatro órgãos operativos

fundamentais e desconcentrados: Polícia Nacional, Serviço de Migração e

Estrangeiros, Serviços Prisionais e Serviço de Protecção Civil e Bombeiros.

Actualmente, os Órgãos de Polícia Criminal – Direcção Nacional de

Investigação Criminal da Polícia Nacional, Direcção Nacional de Inspecção e

Investigação das Actividades Económicas da Polícia Nacional e o Serviço de

Migração e Estrangeiros - e os Serviços responsáveis pela execução das

penas – os Serviços Prisionais – encontram-se sob a alçada do Ministério do

Interior. Neste ponto daremos atenção a estes órgãos.

62 Cf. artigo 3.º do Estatuto Orgânico do MININT.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

53

A Polícia Nacional 63

Em Abril de 1975, o Governo de Transição de Angola procedeu à alteração da

designação da Polícia de Segurança Pública - PSP, órgão da administração

colonial de Angola - para Corpo de Polícia de Angola - CPA. Foi então criado o

Comando Unificado, o Estado-Maior e a Inspecção Administrativa, em

substituição do Comando Geral da PSP. Nesse ano, por decisão do Governo, o

Corpo de Polícia de Angola64 foi colocado sob subordinação do Ministério da

Defesa.

Em 1978, com a criação, pela Lei nº 12/78, de 26 de Maio, da Secretaria de

Estado da Ordem Interna, o então Corpo de Polícia Popular de Angola (CPPA),

juntamente com a Polícia Judiciária e a Inspecção dos Serviços Prisionais65, os

Centros de Observação de Menores66, a Direcção dos Serviços de Viação e

Trânsito e o Corpo de Guardas Privativos dos Portos, Caminhos-de-ferro e

Transportes67, passam a integrar este órgão do Governo.

Em 197968, o CPPA é extinto, tendo sido criada a Direcção Nacional da Polícia

Popular (DNPP), que integrava, ainda, a Direcção dos Serviços de Viação, o

Corpo de Guardas Privativos, Caminhos-de-ferro e Transportes e os Centros

de Observação de Menores. Nesse mesmo ano, com a criação do Ministério do

Interior69, a DNPP passa a depender directamente do Vice-Ministro da Ordem

Interna.

A integração legal de todos os órgãos policiais num organismo único ocorreu

em 21 de Junho de 1986, com a aprovação do Regulamento Orgânico da

Polícia. A Polícia passou a ser dirigida por um Comando Geral, que integra

63 Seguimos de perto o seguinte relatório: Ministério do Interior (2009), Gabinete de Estudos,

Informação e Análise. 1.ª Edição. Luanda.

64 Em 1976, o CPA passou a designar-se por Corpo de Polícia Popular de Angola (CPPA).

65 Até então sob a tutela do Ministério da Justiça.

66 Até então sob a tutela da Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais.

67 Até então sob a tutela do Ministério dos Transportes e Comunicações.

68 Pelo Despacho n.º 2/79, de 2 de Maio.

69 Através da Lei n.º 7/79.

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Para uma Política Criminal em Angola

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como órgãos de Direcção Operativa, as Direcções Nacionais de Ordem

Pública, de Investigação Criminal, de Investigação e Inspecção das Actividades

Económicas, de Instrução Processual e de Viação e Trânsito, com

representatividade executiva a nível Provincial e, com excepção da última, a

nível Municipal.

Em 1988, o Comando Geral da Polícia foi colocado na dependência directa do

Chefe do Estado, regressando ao Ministério do Interior em Janeiro de 1989.

Em 1993, foi aprovado o Estatuto Orgânico da Polícia Nacional, que atribui à

Polícia Nacional a competência para prevenir a delinquência, combater a

criminalidade e proceder à investigação dos crimes e dos seus autores,

realizando a instrução preparatória dos respectivos processos, bem como

exercer acções especializadas de Polícia Científica para o apoio da actividade

de investigação criminal e da instrução preparatória dos respectivos

processos70.

Actualmente, a Polícia Nacional compreende quatro níveis de Comando:

Comando Central; Comando Provincial; Comando de Divisão e Comando

Municipal. A Polícia Nacional é dirigida por um Comandante Geral que é

coadjuvado por dois 2.ºs Comandantes Gerais que respondem pelas áreas de

Ordem Pública e de Protecção e Intervenção, respectivamente.

Em 1996, foi aprovado o Regulamento Disciplinar da Polícia Nacional71 e, em

2008, a Lei dos Postos e Distintivos da Polícia Nacional72 e o Regulamento de

Carreiras da Polícia Nacional73. Este último consagra já, no seu Capítulo III,

uma carreira autónoma para o pessoal da Direcção Nacional de Investigação

Criminal e para a Direcção Nacional de Inspecção e Investigação das

Actividades Económicas, que assumem alguma autonomia na estrutura da

Polícia Nacional.

70 Cf. artigo 5.º, alíneas d) e n), do Decreto n.º 20/93, de 11 de Junho.

71 Pelo Decreto n.º 41/96.

72 Lei n.º 9/08, de 2 de Setembro.

73 Decreto n.º 177/08, de 22 de Dezembro.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

55

A actual estrutura da Polícia Nacional encontra-se ilustrada na Figura 1.

Figura 1. Organograma da Polícia Nacional

Fonte: Ministério do Interior (2009)

Como se pode verificar, a Direcção Nacional de Investigação Criminal (DNIC) e

a Direcção Nacional de Inspecção e Investigação das Actividades Económicas

(DNIIAE), apesar de assumirem alguma autonomia face aos restantes órgãos

da Polícia Nacional, continuam a depender directamente do Comando Geral.

A Direcção Nacional de Investigação criminal (DNIC)

Em consonância como o Estatuto Orgânico da Polícia Nacional, o artigo 1.º, n.º

1, do Regulamento Orgânico da DNIC dispõe que este é um órgão do

Comando Geral da Polícia Nacional, hierarquicamente na dependência do

Comandante Geral da Polícia Nacional, a quem compete a investigação e a

instrução preparatória dos processos-crime, prevendo-se, no entanto, a sua

sujeição “à fiscalização da Procuradoria-Geral da República durante o exercício

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Para uma Política Criminal em Angola

56

da actividade processual”74. Como adiante se verá, apesar da previsão

constitucional e legal quanto a esta matéria, a prática mostra ainda existirem

muitas dificuldades de concretização das competências funcionais do Ministério

Público.

A DNIC “é dirigida por um Director Nacional nomeado em comissão de serviço

pelo Ministro do Interior sob proposta do Comandante Geral da Polícia

Nacional, e quando ostentar a patente de Oficial Comissário, é nomeado pelo

Presidente da República, sob proposta do Comandante Geral da Polícia

Nacional”75. Ao Director Nacional compete, entre outras funções, dimanar

ordens de serviço, directivas, despachos e instruções que julgar convenientes

no exercício da actividade específica de investigação criminal, superintender os

órgãos que integram a Direcção Nacional de Investigação Criminal, exercer o

poder disciplinar dentro das suas competências, assegurar a unidade funcional

da Direcção Nacional de Investigação Criminal, submeter à consideração do

Comandante Geral da Policia Nacional os assuntos que careçam de resolução

superior, definir a estratégia de actuação da Direcção Nacional de Investigação

Criminal em conformidade com a Política Criminal contida no Programa do

Governo e na Lei em geral, e de harmonia com as orientações dimanadas do

Comandante Geral da Polícia Nacional e manter informado o Comandante

Geral sobre todas as questões relevantes76.

A DNIC organiza-se em órgãos de apoio consultivo77, órgãos de apoio

técnico78, órgãos de apoio instrumental79, órgãos centrais de investigação

criminal80 e órgãos provinciais de investigação criminal81, 82.

74 Cf. artigo 1.º, n.º 3, do Regulamento Orgânico da DNIC.

75 Cf. artigo 9.º, n.º 1, do Regulamento Orgânico da DNIC.

76 Cf. artigo 10.º do Regulamento Orgânico da DNIC.

77 Conselho Operativo, Conselho Consultivo Normal, Conselho Consultivo Alargado e Conselho

de Quadros (artigo 8.º do Regulamento Orgânico da DNIC).

78 Laboratório Central de Criminalística, Gabinete Nacional da Interpol, Departamento de

Assessoria Técnico-Jurídica, Departamento de Planificação, Informação e Análise,

Departamento de Identificação e Informação Criminal, Departamento de Recursos Humanos e

Departamento de Inspecção (artigo 8.º do Regulamento Orgânico da DNIC).

79 Departamento Administrativo, Departamento de Contabilidade e Finanças, Departamento de

Logística e Serviços, Departamento de Telecomunicações e Informática, Departamento de

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

57

A estrutura e organização dos órgãos provinciais de investigação criminal são

reflexo da dependência hierárquica supra referida relativamente à Polícia

Nacional. As Direcções Provinciais de Investigação Criminal (DPIC)83

“dependem hierarquicamente dos Comandantes Provinciais da Polícia

Nacional, e na sua actividade específica de investigação e instrução processual

encontram-se sob dependência metodológica e funcional do órgão central de

Investigação Criminal, sob fiscalização da Procuradoria Geral da República”84.

Nos termos do artigo 5.º do seu Regulamento Orgânico, à DNIC “compete a

investigação e instrução de processos dos seguintes crimes: a) tráfico de

estupefacientes, substâncias psicotrópicas e precursores; b) pesquisa,

produção, posse e comercialização não autorizada de diamantes; c)

falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e outros

equiparados e respectiva franqueagem, branqueamento de capitais e dinheiro,

bem como crimes praticados através de meios informáticos; d) fraude na

obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito; e) corrupção e crimes

eleitorais; f) organizações terroristas e banditismo; g) crimes contra a

Segurança do Estado; h) rebelião armada, motim ou levantamento; i)

perturbações nos serviços de transporte rodoviário, aéreo, marítimo, fluvial e

ferroviário; j) contra a paz, humanidade e ambiente; k) cárcere privado e rapto;

l) furto e roubo em instituições de crédito ou repartições dos Ministérios do

Planeamento, Economia e Finanças Públicas; m) crimes executados com

bombas, granadas, matéria ou engenho explosivo, armas de fogo proibidas e

Transportes e Departamento de Educação Moral e Cívica (artigo 8.º do Regulamento Orgânico

da DNIC).

80 Gabinete Central de Operações, Departamento de Combate ao Tráfico Ilícito de Pedras e

Metais Preciosos, Departamento de Crimes Contra Ordem e Tranquilidade Públicas,

Departamento de Crimes Contra as Pessoas, Departamento de Prevenção à Delinquência

Juvenil, Departamento de Crimes Contra a Propriedade, Departamento de Acidentes,

Departamento de Combate ao Narcotráfico e Departamento de Investigação Criminal nos

Portos, Aeroportos e Postos Fronteiriços (artigo 8.º do Regulamento Orgânico da DNIC).

81 Os órgãos provinciais de investigação criminal correspondem à divisão política administrativa

de cada Província (artigo 8.º do Regulamento Orgânico da DNIC).

82 Cf. artigo 7.º do Regulamento Orgânico da DNIC.

83 As DPIC são órgãos locais aos quais compete a investigação e a instrução preparatória dos

crimes no território da Província (artigo 37.º, n.º 1, do Regulamento Orgânico da DNIC).

84 Cf. artigo 37.º, n.º 3, do Regulamento Orgânico da DNIC.

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Para uma Política Criminal em Angola

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objectos armadilhados; n) homicídios e outra forma de violência ou crimes

contra as pessoas; o) furto de coisa móvel que tenha valor científico, artístico

ou histórico e que se encontre em colecção pública ou em local acessível ao

público, que possua elevada significação no desenvolvimento tecnológico ou

económico ou que pela sua natureza seja substância altamente perigosa; p)

associações de malfeitores; q) incêndio, exposição de pessoas a substâncias

radioactivas e libertação de gazes tóxicos ou asfixiantes, desde que em

qualquer caso, o facto seja imputável a título de dolo; r) roubo, furto e tráfico de

veículos, e viciação dos respectivos elementos identificativos; s) falsificação de

carta de condução, livrete e título de registo de propriedade de veículos

automóveis, de certificados de habilitações literárias, de passaportes e de

bilhete de identidade ou outros documentos autênticos e escritos; t) todos os

restantes crimes comuns, previstos e puníveis nos termos do Código Penal e

legislação complementar em vigor”.

Como veremos, a integração da DNIC na estrutura da Polícia Nacional e,

consequentemente, na dependência do Comando Geral, é uma solução

questionada por muitos Agentes Judiciais, que vêem nesta integração um dos

principais obstáculos à concretização das competências constitucionais do

Ministério Público no exercício da investigação e Acção Penal.

Os Serviços de Migração e Estrangeiros

O Serviço de Migração e Estrangeiros (SME) é o órgão do Ministério do Interior

ao qual compete promover e coordenar a execução das medidas e acções

inerentes ao controlo de entrada, trânsito, permanência, residência e saída de

pessoas nos postos de fronteira terrestre, aérea, marítima e fluvial em todo

território nacional85.

85 Cf. artigo 23.º do Estatuto Orgânico do Ministério do Interior e artigo 1.º do Estatuto Orgânico

do Serviço de Migração e Estrangeiros.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

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Actualmente, a organização e funcionamento do Serviço de Migração e

Estrangeiros encontra-se definida no seu Regulamento Executivo, aprovado

pelo Decreto Executivo n.º 10/2010. Ao SME é atribuída, entre outras,

competência para proceder à instrução preparatória dos processos referentes

às infracções ao regime jurídico legal de cidadãos estrangeiros no território

nacional86.

O SME é dirigido por um Director Nacional, nomeado pelo Ministro do Interior,

e compreende órgãos de apoio consultivo, órgãos de apoio técnico, órgãos de

apoio instrumental, órgãos executivos centrais e órgãos executivos locais87

(Figura 2).

86 Cf. artigo 2.º, alínea e), do Regulamento Orgânico do SME.

87 Cf. artigos 3.º e 4.º do Regulamento Orgânico do SME.

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Para uma Política Criminal em Angola

60

Figura 2. Organograma do Serviço de Migração e Estrangeiros

Fonte: SME (2012)88

Ao Serviço de Migração e Estrangeiros são, assim, atribuídas competências

em matéria de investigação criminal, paralelamente às cometidas à Polícia

Nacional. Com esta atribuição de competências, a Lei cria Órgãos de Polícia

Criminal autónomos, distintos em função do tipo de criminalidade a investigar.

Os Serviços Prisionais

Os Serviços Prisionais são os Serviços Executivos Centrais do Ministério do

Interior que visam executar as medidas privativas da liberdade decretadas por

autoridades judiciais89. Cabe, ainda, aos Serviços Prisionais executar políticas

públicas de reabilitação e reinserção social dos reclusos e fiscalizar o

88 Disponível em

http://www.sme.ao/index.php?option=com_content&view=article&id=79&Itemid=114&lang=pt,

acedido em 25 de Fevereiro de 2012.

89 Cf. artigo 24.º do Estatuto Orgânico do Ministério do Interior.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

61

cumprimento das medidas de prisão preventiva, assim como dos prazos para

liberdade condicional.

Os Serviços Prisionais são dirigidos por um chefe com a categoria de Director

Nacional, nomeado em comissão de serviço pelo Ministro do Interior,

coadjuvado por um ou mais Directores Adjuntos.

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63

3. A JUSTIÇA PENAL EM ANGOLA: BREVE CARACTERIZAÇÃO

A par do enquadramento constitucional desta temática e da análise dos

principais actores na execução da Política Criminal, consideramos importante

conhecer, ainda que de forma breve, algumas das principais características da

Justiça Penal Angolana, em especial, algumas das questões que a seu respeito

se levantam, bem como a criminalidade registada recorrendo, por um lado, a

estudos já realizados sobre esta matéria e, por outro, aos dados recolhidos no

decurso deste trabalho.

Começaremos, assim, em primeiro lugar, por dar conta da avaliação

internacional que tem vindo a ser feita da Justiça Penal em Angola,

identificando os principais bloqueios apontados. Em segundo lugar,

analisaremos os dados estatísticos que nos permitem conhecer a criminalidade

registada e a sua evolução processual.

3.1. A Avaliação nos Relatórios Internacionais

O Direito e a Justiça Penal são, de longe, as áreas do Sistema Judicial que

mais têm sido objecto de estudos e relatórios internacionais. Não é alheio a tal

facto, certamente, por um lado, a maior ingerência que o Direito Penal induz na

liberdade das pessoas e, por outro, a particular atinência desta temática com a

questão dos Direitos Humanos que, com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, passou a ser objecto de destaque na agenda internacional.

São vários os pontos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que se

entrelaçam com a Justiça Penal, destacando-se a consagração do Direito de

cada individuo à vida, à liberdade e à segurança pessoal, bem como o preceito

que estipula expressamente que ninguém pode ser arbitrariamente preso,

detido ou exilado. Prevê-se, igualmente, o Direito de cada indivíduo a ver a sua

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Para uma Política Criminal em Angola

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causa ser, equitativa e publicamente, julgada por um Tribunal independente e

imparcial e, não menos importante, o princípio da presunção de inocência até

que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo

público e em que todas as garantias necessárias de defesa sejam

asseguradas.

É, portanto, à luz do ideal comum do reconhecimento e aplicação universal e

efectiva destes e outros direitos fundamentais, tanto às populações dos

próprios Estados membros que subscreveram a Declaração Universal, como às

dos territórios colocados sob a sua jurisdição, que os relatórios internacionais

analisam a evolução e o desempenho da Justiça Penal dos diferentes Estados,

neste caso, da Justiça Penal em Angola.

De entre os vários relatórios internacionais produzidos sobre esta temática

destacamos, pela sua pertinência e ligação com o tema, o Relatório do Instituto

de Direitos Humanos, produzido em Julho de 2003 pela Associação

Internacional de Advogados, com o apoio da Iniciativa Sociedade Aberta para a

África Austral, sobre “Angola Promoção da Justiça Pós-Conflito” e o “Relatório

sobre os Direitos Humanos e a Administração da Justiça Penal em Angola”,

entre 2006 e 2009, elaborado pela Associação Justiça, Paz e Democracia

(AJPD).

O primeiro relatório foi elaborado na sequência de uma visita de auscultação a

Angola de uma delegação de juristas da Associação Internacional de

Advogados, no período compreendido entre 12 e 18 de Abril de 2003. Foram

ouvidos, nessa ocasião, diversas entidades e Agentes da Justiça,

designadamente, Advogados e dirigentes da Ordem dos Advogados de Angola,

o Vice-Presidente do Tribunal de Contas; Magistrados do Supremo Tribunal, o

Procurador-Geral da República, membros do Poder Executivo, membros da

Polícia Nacional, representantes da Missão das Nações Unidas em Angola e

organizações não-governamentais. A missão de auscultação tinha como

objectivos centrais examinar (1) o estado do Sistema Judiciário, sua

independência e condições dos respectivos Serviços; (2) o estado da profissão

jurídica, a sua independência profissional, liberdade de associação, capacidade

profissional, adequação da respectiva formação e acessibilidade; (3) a situação

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

65

do Estado de Direito e as respectivas ameaças; (4) a eficácia e acessibilidade

ao sistema de administração de Justiça e, em particular, o modo como a guerra

o afectou; (5) a conformidade do Estado Angolano com as normas e padrões

internacionais de protecção dos direitos humanos e de administração da

Justiça, em particular no que respeita às questões relacionadas com a adesão

de Angola a convenções internacionais, designadamente sobre as mulheres, e

ao Tribunal Criminal Internacional e a transposição para a legislação nacional

dessas convenções.

Por sua vez, o segundo relatório em análise teve como principais fontes de

informação (1) as notícias e entrevistas nas rádios e jornais; (2) entrevistas a

várias entidades ligadas à administração da justiça, designadamente, Juízes,

Procuradores e Activistas dos direitos humanos; (3) a observação, por parte de

alguns membros da AJPD, aquando da sua visita a determinadas Províncias e

a serviços do Sistema Judicial, tendo sido visitadas 9 das 18 Províncias do

País.

Da análise destes dois Relatórios podemos constatar que os resultados e

conclusões apresentados em ambos os trabalhos, não obstante respeitarem a

períodos temporais distintos, são semelhantes e que há um conjunto de

aspectos comuns sobre o Direito e a Justiça Penal que são colocados em

destaque com a mesma evidência. Salientamos dois pontos essenciais. Por um

lado, ambos os relatórios relatam situações de arbitrariedade e violação dos

direitos humanos nas diferentes fases do Processo Penal (tanto na fase

investigatória, como na fase de julgamento e na fase de execução da pena

aplicada). Por outro, não obstante aquela constatação e o relato de situações

concretas de violação de direitos fundamentais, ambos os relatórios apontam

para um esforço, por parte das entidades envolvidas na administração da

justiça, de alteração de procedimentos, com vista a uma maior democratização

da Justiça Penal e à sua compatibilização com o respeito pelos Direitos

Humanos e pelos direitos fundamentais dos cidadãos.

De facto, uma das notas que mais se evidencia é a de que, apesar da

consagração e salvaguarda dos Direitos Humanos e das garantias e direitos

fundamentais dos cidadãos, quer na Constituição da República de Angola, quer

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Para uma Política Criminal em Angola

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por via da adesão de Angola a diferentes Acordos Internacionais, quer, ainda,

em diversa legislação ordinária, na prática ainda se verificam muitas situações

de arbitrariedade e de violação de direitos fundamentais. As principais críticas

apontadas podem ser sintetizadas nos seguintes aspectos: (1) número elevado

de detidos, quando comparado com o número de condenados90, o que

evidencia uma subutilização das medidas de coacção alternativas à prisão; (2)

considerável hiato temporal entre o momento em que os suspeitos são detidos

e o momento em que os mesmos são apresentados a julgamento, mostrando a

seriedade do problema da morosidade da Justiça Penal, problema, aliás,

reconhecido pelos próprios Agentes Judiciais, designadamente pela

Procuradoria-Geral da República; (3) maus-tratos infligidos a detidos e presos;

(4) non liquet em relação a pedidos de habeas corpus91; (5) preterição de

formalidades essenciais de um processo equitativo92; (6) violação dos limites

máximos de detenção.

O trabalho de campo realizado para este relatório, designadamente as

entrevistas a Advogados e os painéis de discussão, permite concluir que, hoje,

estas continuam a ser questões marcantes da Justiça Penal, a requerem uma

particular atenção das políticas públicas e dos Agentes Judiciais no sentido da

sua eliminação a curto e a médio prazo.

Naqueles relatórios, esta matéria é analisada por um ângulo mais complexo,

que evidencia a sua dificuldade de resolução a curto prazo. Os relatórios

salientam o facto de as insuficiências da Justiça Penal em Angola serem um

reflexo de problemas estruturais vários, que afectam a Sociedade Angolana e,

em particular, o Sistema de Justiça que, não obstante as melhorias e os

avanços registados, se mantêm. No caso do Sistema Judicial, salientam-se os

90 O número de condenados representa apenas um quarto da população prisional.

91 No relatório da AJPD dá-se conta de casos frequentes em que os Juízes, em contradição

com as garantias constitucionais, se recusam a decidir sobre os pedidos de habeas corpus que

lhes são apresentados, remetendo os processos para o Procurador-Geral da República que,

por sua vez, declina a apreciação da matéria por considerar que se trata de matéria judicial. A

consequência desta situação é a de que tais pedidos acabam por cair no esquecimento e, em

consequência, os detidos continuam detidos.

92 A título de exemplo, denunciam-se situações de sentenças, com arguidos presos, não

reduzidas a escrito e que, consequentemente, dificilmente podem ser objecto de recurso e de

arguidos cuja defesa é assegurada por Funcionários Judiciais sem formação técnica.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

67

seguintes problemas: a escassez de quadros técnicos com formação

adequada, a falta de Juízes e de Procuradores, de Advogados e, em geral, a

escassez de recursos materiais e financeiros, que tornam muito difícil o

exercício quotidiano das funções da Justiça. Enfatiza-se, ainda, o facto de as

melhorias das condições remuneratórias apenas se terem feito sentir

relativamente aos Juízes e Procuradores, continuando os demais Agentes da

Justiça, designadamente Instrutores e Investigadores, Funcionários dos

Cartórios e Assistentes Prisionais, a auferir salários baixos que, segundo os

relatórios acima identificados, não são condicentes com a sua função.

Naqueles relatórios é dado particular destaque à falta de condições de

habitabilidade e de funcionamento dos estabelecimentos prisionais,

nomeadamente no que respeita ao acesso a bens mais básicos como a

alimentação93 e cuidados de saúde. A tendência de aplicação de medidas e

penas detentivas, como evidenciam os indicadores que a seguir se

apresentam, e a sobrelotação dos estabelecimentos prisionais agravam esta

situação.

3.2. A Criminalidade Registada

Não é possível a definição e a execução de uma correcta Política Criminal sem

que se tenha um real conhecimento da situação criminológica do País, quer no

que respeita à criminalidade denunciada ou que por qualquer meio chega ao

conhecimento das autoridades policiais, quer no que respeita à criminalidade

oculta, esta essencial para a definição das medidas actuantes na vertente

preventiva da Política Criminal. Neste ponto, apresentamos a evolução do

volume e da natureza da criminalidade, nos últimos anos, ainda que de forma

sucinta, tendo como fonte os indicadores que nos foram fornecidos pela

Direcção Nacional de Investigação Criminal. Trata-se, portanto, apenas da

criminalidade registada. De fora fica uma parte, que poderá ser substancial, da

93 Segundo aqueles relatórios, em muitos casos são as famílias dos presos que asseguram a

sua alimentação.

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Para uma Política Criminal em Angola

68

criminalidade – a criminalidade que não é denunciada e que,

consequentemente, não chega às instâncias formais de controlo social.

Como foi referido, em 2002, pelo Observatório Permanente da Justiça

Portuguesa, no estudo As tendências da criminalidade e das sanções penais

na década de 90 – problemas e bloqueios na execução da pena de prisão e da

prestação de trabalho a favor da comunidade94, “esta situação levanta, desde

logo, duas ordens de questões amplamente debatidas pela criminologia: a

questão da representatividade das estatísticas oficiais na estrutura da

criminalidade real e a questão da criminalidade oculta, expressão que inclui

todo o crime desconhecido das instâncias de controlo. Não se conhecendo a

criminalidade oculta é difícil estabelecer o volume e a estrutura da

criminalidade real, bem como apurar a sua representatividade social”.

O conhecimento da criminalidade real é fundamental para a definição de uma

adequada Política Criminal, nomeadamente através da eleição dos campos

privilegiados de actuação ao nível da prevenção primária, secundária e terciária

da criminalidade. A análise da criminalidade registada apenas oferece uma

visão parcelar da realidade, permitindo extrapolações pouco fidedignas. Como

referem Figueiredo Dias e Costa Andrade, a criminologia começou por

entender que a criminalidade denunciada reproduziria a estrutura da

criminalidade real. No entanto, “hoje encaram-se as coisas com maior

cepticismo. Há razões para crer que, mais do que uma cópia da criminalidade

real, a criminalidade estatística é o resultado de um complexo processo de

refracção entre ambas, existindo um profundo desajustamento, tanto qualitativo

quanto quantitativo”95.

Uma das técnicas possíveis para um maior conhecimento da criminalidade real

é a realização de inquéritos à vitimação, com o objectivo de conhecer o volume

e a estrutura da criminalidade não denunciada, bem como as razões da sua

94 Cf. Santos, Boaventura de Sousa e Gomes, Conceição. (2002). As tendências da

criminalidade e das sanções penais na década de 90 – problemas e bloqueios na execução da

pena de prisão e da prestação de trabalho a favor da comunidade. Coimbra: CES/OPJ,

disponível em http://opj.ces.uc.pt/pdf/7.pdf.

95 Cf. Dias, Jorge de Figueiredo e Andrade, Manuel da Costa. “Criminologia – o homem

delinquente e a sociedade criminógena” (1992). Coimbra Editora.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

69

ocultação96. Do nosso conhecimento, não existem em Angola estudos que

permitam uma aproximação fidedigna à criminalidade real. A riqueza e a

complexidade cultural da Nação Angolana que pode levar à não denúncia de

determinados tipos de crime graves, designadamente quando cometidos no

contexto familiar, tornam esta uma matéria a merecer especial atenção das

políticas públicas, devendo levar a que se incentive a realização de estudos

desta natureza.

Como já referimos, focar-nos-emos na análise da criminalidade registada,

recorrendo aos dados estatísticos que nos foram fornecidos pela Direcção

Nacional de Investigação Criminal, relativamente aos anos 2009, 2010 e aos

primeiros três trimestres de 201197. Os dados apresentados reportam-se,

assim, apenas à criminalidade registada na DNIC, deixando de fora aquela que

é participada na DNIIAE e no SME.

O Gráfico 1. mostra o número de crimes registados na DNIC, o número de

crimes em que a sua autoria era conhecida e o número de detidos.

96 Para uma visão do trabalho desenvolvido no âmbito das Nações Unidas nesta matéria, veja-

se Manual on Victimization Surveys (2010), disponível em

http://www.unece.org/fileadmin/DAM/publications/oes/STATS_Manual_Victimization_surveys_E

.pdf. Esta metodologia não é, no entanto, isenta de críticas, apresentando algumas limitações,

nomeadamente, o facto de resultarem da própria auto-selecção da informação prestada pelas

vítimas de crimes nos inquéritos e o facto de deixarem de fora um certo tipo de criminalidade,

hoje em dia particularmente relevante – os chamados crimes sem vítima, em que o bem

jurídico violado é, em regra, de interesse público. Defende-se, por isso, a realização de estudos

especificamente dirigidos a este tipo de criminalidade.

97 Os dados apresentados relativamente ao ano 2011 não incluem os dados relativos aos

meses de Outubro, Novembro e Dezembro de 2011.

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Para uma Política Criminal em Angola

70

Gráfico 1. Criminalidade registada na DNIC (2009, 2010, Jan-Set 2011)

Fonte: DNIC

Mais de 80% dos crimes registados na DNIC são crimes cuja autoria é

conhecida e, em cerca de 76% dos crimes registados, os suspeitos da prática

dos factos encontram-se detidos. Estas percentagens, pela sua

representatividade, permitem-nos, desde logo, avançar duas hipóteses a

exigirem estudos aprofundados que permitam, por um lado, infirmá-las e, por

outro, conhecer as suas razões.

Em primeiro lugar, a pequena percentagem de crimes denunciados em que não

há identificação do autor dos factos praticados parece evidenciar a disparidade

entre a criminalidade denunciada e a criminalidade real. Efectivamente, os

dados apontam para um padrão de comportamento na denúncia da prática de

crimes: a participação será feita, maioritariamente, nos casos em que a própria

vítima terá uma suspeita de quem é o autor da prática dos factos ou em que há

flagrante delito. Em segundo lugar, existe no Sistema Judicial uma tendência

para a detenção de uma percentagem muito elevada dos suspeitos da prática

de ilícitos criminais. Como veremos infra, a percentagem relevante de

criminalidade de pequena e média gravidade, julgada em processo sumário,

indicia uma sobre utilização da medida detentiva. Estes indicadores confirmam

as percepções constantes dos relatórios internacionais e dos próprios

0

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2009 2010 Jan-Set 2011

Crimes Conhecidos Crimes autoria conhecida Detidos

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

71

operadores judiciários. Esta é uma realidade pelo impacto negativo, quer nos

direitos dos cidadãos e no Estado de Direito Angolano, quer no próprio Sistema

Judicial e Prisional, que, com fundamento em estudos especificamente a ela

dirigidos, deve merecer, a curto prazo, especial atenção das políticas públicas

a desenvolver no âmbito da Justiça.

Como se pode verificar pelo Gráfico 2., que mostra a distribuição territorial da

criminalidade registada, no período identificado, a Província de Luanda, em

consonância com a concentração e densidade demográfica que lhe é

conhecida, é aquela que regista um maior número de crimes, representando,

em 2009, cerca de 21% do total da criminalidade registada no País, em 2010 e

nos primeiros três trimestres de 2011, cerca de 18%.

Gráfico 2. Criminalidade registada por Província

Fonte: DNIC

À Província de Luanda seguem-se as Províncias de Benguela, Huíla e Cuanza

Sul, que, nos primeiros três trimestres de 2011, registavam, respectivamente,

cerca de 10%, 9% e 11% do total da criminalidade registada no País. No pólo

oposto situam-se as Províncias do Bengo e da Lunda Sul.

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2009 2010 Jan-Set 2011

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Para uma Política Criminal em Angola

72

Os dados oficiais parecem apontar para um aumento da criminalidade

registada no ano de 2011 (Gráfico 3).

Gráfico 3. Criminalidade registada em média por dia

Fonte: DNIC

Atendendo ao número médio de crimes registados por dia, podemos concluir

com grande probabilidade que, mantendo-se a tendência dos primeiros três

trimestres, no ano de 2011 o número total de crimes conhecidos será superior

ao registado nos dois anos anteriores. No ano de 2011, chegaram ao

conhecimento da DNIC (por denúncia ou em flagrante delito), em média, 128

crimes por dia. Esta cifra é superior à verificada nos anos anteriores,

registando-se, em 2010, uma média de 105 crimes por dia e, em 2009, uma

média de 115 crimes por dia.

Só em Luanda foram registados, no ano de 2009, uma média de 25 crimes por

dia, diminuindo em 2010 para uma média de 19 crimes por dia. Em 2011,

aquele número aumenta novamente para uma média muito próxima à do ano

de 2009 (Gráfico 4).

0

20

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80

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2009 2010 Jan-Set 2011

Crimes conhecidos em média por dia

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

73

Gráfico 4. Criminalidade registada em média por dia por Província

Fonte: DNIC

A média de crimes registados por dia aumentou, em 2011, face aos anos

anteriores, em quase todas as demais Províncias, designadamente e com

especial destaque nas Províncias da Huíla, Cuanza Sul e Bié. Relembramos

que estes dados reportam-se, apenas, aos crimes registados na DNIC,

deixando de fora todos aqueles que são reportados aos restantes Órgãos de

Polícia Criminal (DNIIAE e SME) ou directamente ao Ministério Público.

Efectivamente, como se verá posteriormente, o número de processos

instruídos e remetidos à PGR é muito superior ao aqui assinalado.

O Gráfico 5. mostra a estrutura da criminalidade registada nos anos de 2009 e

2010 e nos primeiros três trimestres de 201198.

98 Com o objectivo de operacionalizar o tratamento dos dados recebidos pela Direcção

Nacional de Investigação Criminal procedemos a agregações dos tipos de crimes, tendo em

atenção o bem jurídico protegido. Assim, na categoria “crimes contra a vida” estão incluídos os

seguintes tipos de crime: Homicídio Voluntário; Homicídio Frustrado; Homicídio voluntário

simples; Homicídio involuntário; Homicídio com culpa grave; Homicídio preterintencional;

Homicídio qualificado; Infanticídio; Aborto; Parricídio; na categoria “crimes contra a integridade

física”: Ofensas Corporais Voluntárias Simples; Of.Cv.Res.Doe.Inc.Trab.; Violência contra

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2009 2010 2011

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Para uma Política Criminal em Angola

74

Gráfico 5. Estrutura da criminalidade registada

Fonte: DNIC

mulher; Violência contra criança; Ofensas corporais involuntárias; Ofensas corporais com

agente de autor; Associação de malfeitores; Assuada; na categoria “crimes contra a liberdade

sexual”: Violação; Violação de menor de 12 anos; Estupro; Tentativa de violação; Atentado ao

pudor; na categoria “crimes contra a liberdade pessoal”: Tráfico seres humanos; Rapto;

Ameaças; Ameaças com arma de fogo; Ameaças de morte; Ameaças com arma branca;

Cárcere privado; na categoria “crimes contra a propriedade”: Roubo de Viatura; Furto Viatura;

Furto; Roubo; Roubo Qualificado; Roubo telemóvel; Furto Telemóvel; Roubo Gado; Furto

Gado; Furto doméstico; Furto qualificado; Furto simples; Furto no local de trabalho; Furto de

veículo; Furto de objecto deixado no veículo; Furto de acessórios de veículo; Danos com culpa

grave; Danos culposos; Danos voluntários não previstos; Danos em porta e janela; na categoria

“crimes contra o património”: Burla; Burla por defraudação; Comunicações clandestinas; Abuso

Confiança; na categoria “tráfico e consumo de estupefacientes”: Tráfico Estup.; Uso Posse e

cons. Estup.; Consumo de estupefaciente; Posse de estupefacientes; Tráfico de

estupefaciente; Tráfico de estupefaciente menor gravidade; Tráfico de drogas; Venda ilegal de

medicamentos; na categoria “tráfico e posse de diamantes”: Tráfico ilícito diamantes; Posse

ilegal diamantes; Posse ilícita de diamantes; na categoria “crimes contra a segurança

colectiva”: Fogo Posto; Condução Ilegal; Posse ilegal de arma de fogo; na categoria “crimes

contra a fé pública”: Falsificação de documentos autênticos; Falsificação de documentos;

Falsificação de moeda nacional; Contrafacção; na categoria “colocação de pessoas em perigo”:

Abandono de família; Exercício irregular actividade económica; Exercício ilegal de medicina;

Exercício ilegal de função titulada; Entrada sem autorização em zona restrita; na categoria

“crimes contra a dignidade e a reserva da vida privada”: Injúrias, Introdução em casa alheia,

Injúrias com Agente de Autoridade; na categoria “crimes cometidos no exercício e em prejuízo

de funções públicas”: Peculato; Peita, suborno e corrupção; Suborno; na categoria “crimes

contra a autoridade pública”: desobediência; na categoria “crimes contra o consumidor e o

mercado”: especulação; violação de direito de autor; e na categoria “crimes de imigração

ilegal”: Auxílio de entrada ilegal no País; Entrada ilegal território nacional.

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2011

Crimes contra a propriedade Crimes contra a integridade físicaCrimes contra a vida Tráfico e consumo de estupefaccientesCrimes contra a liberdade sexual Crimes contra o patrimónioCrimes contra a segurança colectiva Crimes contra a liberdade pessoalTráfico e posse de diamantes

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

75

Os crimes contra a propriedade e os crimes contra a integridade física

representam cerca de 80% da criminalidade registada nos três períodos

considerados, sendo a terceira categoria preenchida com os crimes contra a

vida, que correspondem, a cerca de 8% da criminalidade registada. A

esmagadora maioria da criminalidade registada é, assim, um tipo de

criminalidade que mais contribui para um sentimento de insegurança.

3.3. A evolução processual da criminalidade

Enquanto que para a análise da criminalidade registada recorremos aos dados

estatísticos que nos foram fornecidos pela DNIC, para a análise do tratamento

processual da criminalidade lançámos mão dos dados estatísticos que nos

foram cedidos pela Procuradoria-Geral da República e pelo Ministério da

Justiça.

Como resulta dos indicadores, uma parte relevante da actividade do Ministério

Público junto das Esquadras de Polícia prende-se com a validação da detenção

de suspeitos da prática de factos ilícitos, realizada pelos Órgãos de Polícia

Criminal. O Gráfico 6 mostra o número de processos de validação de detenção

analisados pelo Ministério Públicos nos anos 2009, 2010 e 2011.

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Para uma Política Criminal em Angola

76

Gráfico 6. Processos de validação de detenção (2009-2011)

Fonte: PGR

Vimos já, no ponto anterior, o elevado número de suspeitos detidos pela DNIC.

O gráfico anterior confirma esse elevado número, sendo que, com excepção do

ano de 2010, a maioria dos arguidos detidos vêem a sua detenção validada e

mantida (Gráfico 7).

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2009 2010 2011

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

77

Gráfico 7. Peso relativo dos arguidos detidos soltos e não soltos

Fonte: PGR

Analisando apenas os dados relativos ao ano 2011, verificamos que a

tendência para a manutenção da detenção é mais preponderante nas

Províncias de Luanda (cerca de 70%), de Cabinda (cerca de 65%) e do Bié

(cerca de 62%) (Gráfico 8).

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2009 2010 2011

Arguidos mantidos Arguidos soltos

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Para uma Política Criminal em Angola

78

Gráfico 8. Peso relativo dos arguidos detidos soltos e não soltos por província

Fonte: PGR

A Província do Cuanza Norte é aquela em que se regista um maior número de

arguidos soltos, comparativamente ao número de arguidos em que se mantém

a situação de detenção. Estes indicadores exigem, como acima já se referiu, o

seu aprofundamento através de estudos especificamente a ele dirigidos tendo

como objectivo averiguar a razão do elevado número de detenções.

A necessidade de elaboração de estudos mais aprofundados sobre a Justiça

Penal Angolana é ainda mais premente se considerarmos que o maior número

de processos entrados nos Tribunais reporta-se a processos-crime, situando-

se, no período compreendido entre 2005 e 2010, sempre acima dos 70% do

total de processos entrados (Gráfico 9).

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Arguidos mantidos Arguidos Soltos

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

79

Gráfico 9. Peso relativo dos processos entrados em Tribunal por área do direito

Fonte: Ministério da Justiça

Esta circunstância evidencia a importância da Justiça Penal no funcionamento

do Sistema de Justiça globalmente considerado. O elevado peso relativo da

Justiça Penal no conjunto dos processos entrados é consideravelmente

exponenciada pelos processos entrados nos Tribunais Municipais, o que

reflecte a existência de uma grande massa de conflitualidade de pequena e

média gravidade, evidenciando ainda mais a necessidade de conhecer as

razões do elevado número de validações de detenção, dado que, em princípio,

estaríamos perante criminalidade à qual seria susceptível de aplicar medidas

de coacção e sanções alternativas à prisão.

O Gráfico 9. mostra o peso relativo dos processos remetidos a julgamento por

forma de processo.

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2005 2006 2007 2008 2009 2010

Crime Cível e Administrativo Trabalho Família Menores

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Para uma Política Criminal em Angola

80

Gráfico 9. Peso relativo dos processos remetidos a julgamento por forma de processo

Fonte: PGR

A utilização de determinada forma de processo depende do tipo e da gravidade

do crime em causa. A presença de maior ou menor volume processual de

crimes acusados sob determinada forma de processo é, assim, indiciadora da

gravidade dos delitos em julgamento.

Nos termos do artigo 62.º do Código de Processo Penal, o processo comum

pode ser julgado em: (1) querela99; (2) Polícia correccional100; (3) processo de

transgressões101; ou (4) processo sumário102.

99 São julgados segundo esta forma de processo os crimes a que corresponder qualquer pena

maior ou a pena de demissão (cf. artigo 63.º CPP).

100 Serão julgados em processo de Polícia Correccional os crimes a que corresponderem,

separada ou cumulativamente, as seguintes penas: prisão até um ano; desterro até um ano;

multa até um ano ou até Kz 40.000.00; suspensão do emprego até dois anos; suspensão

temporária dos direitos políticos até dois anos; repreensão; e censura (cf. artigo 65.º CPP).

São, ainda, julgados em processo de Polícia Correccional, os crimes a que corresponderem,

separada ou cumulativamente, as seguintes penas: prisão por mais de um ano; desterro por

mais de um ano; multa por mais de um ano ou de mais de Kz 40.000.00; suspensão do

emprego por mais de dois anos ou sem limitação de prazo; e, suspensão temporária de direitos

políticos por mais de dois anos (cf. artigo 64.º do CPP). Nos termos do artigo 11.º do Decreto

n.º 19271, os crimes indicados no artigo 64.º do CPP (a que corresponderia a forma de

processo correccional) são julgados em processo de Polícia Correccional.

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2009 2010 2011

Querela Proc. Correccional Proc. Sumário

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

81

Como se verifica pelo gráfico anterior, e em consonância com os indicadores

acima analisados, em todos os anos considerados mais de 50% dos

processos-crime são julgados sob a forma de processo sumário, indiciando

uma preponderância da criminalidade menos grave, o que parece conflituar

com o elevado número de arguidos detidos na fase de investigação, levantando

a questão da imprescindibilidade da detenção nesses casos.

A utilização das diferentes formas do Processo Penal é, no entanto, muito

díspar quando comparamos as diversas Províncias (gráfico 11).

101 Em processo de transgressões serão julgadas as contravenções e as transgressões de

regulamentos, editais, posturas ou quaisquer disposições que, atendendo à entidade que as formula, devam qualificar-se de regulamentares (cf. artigo 65.º do CPP).

102 Em processo sumário serão julgadas as infracções criminais a que for aplicável pena de

prisão até dois anos, com ou sem multa acessória, sempre que o infractor for preso em flagrante delito e o julgamento possa efectuar-se nos oito dias subsequentes (cf. artigo 66.º do CPP).

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Para uma Política Criminal em Angola

82

Gráfico 11. Peso relativo dos processos remetidos a julgamento por forma de processo e por

Província (2011)

Fonte: PGR

Luanda é de longe a Província onde se verificam mais julgamentos nesta forma

de processo. No pólo oposto encontra-se a Província do Cuanza Norte, com

uma preponderância visível dos processos julgados sob a forma de Polícia

Correccional, e a Província da Huíla, onde os processos julgados sob a forma

de querela são significativos. Estes indicadores são de elevada importância

para a definição de medidas de política pública diversa, designadamente, no

campo da organização judiciária. Em Luanda é fundamental criar tribunais que

permitam dar resposta, de forma célere, a esta criminalidade de pequena e

média gravidade.

O Quadro 1. mostra o peso relativo dos processos instruídos e remetidos à

PGR por tipo de crime, ou seja, os processos instruídos e remetidos ao

Ministério Público para despacho final.

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Querela Proc. Correccional Proc. Sumário

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

83

Quadro 1. Peso relativo dos processos instruídos e remetidos à PGR por tipo de crime (2009-

2011)

Fonte: PGR

Em consonância com o que verificámos ao analisarmos a criminalidade

registada junto da DNIC, a esmagadora maioria dos processos instruídos e

remetidos à PGR reportam-se a crimes contra a propriedade, seguidos dos

crimes contra a integridade física. Como seria previsível, a mesma realidade

repete-se nos processos introduzidos pelo Ministério Público em julgamento

(Quadro 2).

2009 2010 2011

Crimes contra a propriedade 35,6% 38,5% 37,6%

Crimes contra a integridade física 19,2% 20,2% 19,2%

Crimes contra a vida 8,5% 9,3% 11,3%

Crimes contra o património 7,0% 8,0% 7,8%

Crimes contra a segurança colectiva 7,4% 6,0% 5,5%

Tráfico e Consumo de estupefaccientes 8,0% 5,4% 4,7%

Crimes contra a liberdade sexual 3,3% 3,9% 4,6%

Crimes de imigração ilegal 1,3% 1,3% 1,9%

Crimes contra a liberdade pessoal 1,6% 1,6% 1,6%

Crimes contra o consumidor e o mercado 2,4% 1,3% 1,5%

Crimes contra a autoridade pública 1,2% 1,2% 1,2%

Crimes contra a dignidade e a reserva da vida privada 1,1% 1,2% 1,1%

Colocação de pessoas em perigo 1,7% 0,8% 1,0%

Crimes contra a fé pública 1,3% 0,8% 0,7%

Crimes cometidos no exercicio e em prejuízo de funções públicas 0,1% 0,4% 0,3%

Tráfico e posse de diamantes 0,1% 0,0% 0,0%

Natureza do Crime N.º Casos instruídos e remetidos à PGR

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Para uma Política Criminal em Angola

84

Quadro 2. Peso relativo dos processos remetidos a julgamento por tipo de crime (2009-2011)

Fonte: PGR

Dada a preponderância deste tipo de criminalidade, devem definir-se medidas,

no âmbito da Política Criminal, que possam actuar a nível preventivo. Os

indicadores analisados levam-nos a destacar um outro aspecto. Há um

conjunto de criminalidade com um peso relativo muito reduzido, como sejam os

crimes cometidos no exercício e em prejuízo de funções públicas e os crimes

de imigração ilegal. No que respeita a estes e a outro tipo de crimes de baixa

incidência nos indicadores da criminalidade conhecida, o que importa conhecer

é se estamos ou não perante criminalidade em que é elevada a percentagem

das cifras ocultas, isto é, em que é elevado o número de crimes não

denunciados.

No decurso do presente trabalho não nos foi possível obter informação sobre

as penas aplicadas aos réus julgados e condenados em processos crime, quer

nas Salas dos Crimes dos Tribunais Provinciais, quer nos Tribunais Municipais.

No entanto, o estudo realizado pela Faculdade de Direito da Universidade

Agostinho Neto e pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,

que se centrou na realidade de Luanda, mostra que, aos réus julgados e

condenados na Sala dos Crimes do Tribunal Provincial de Luanda é,

maioritariamente, aplicada, independentemente do tipo de crime em causa, a

2009 2010 2011

Crimes contra a propriedade 33,3% 40,3% 40,3%

Crimes contra a integridade física 19,6% 20,0% 20,1%

Crimes contra a vida 8,8% 9,3% 8,1%

Crimes contra o património 7,2% 7,9% 7,6%

Tráfico e Consumo de estupefaccientes 8,5% 5,3% 5,8%

Crimes contra a segurança colectiva 7,8% 6,0% 5,3%

Crimes contra a liberdade sexual 3,5% 3,9% 4,7%

Crimes contra a dignidade e a reserva da vida privada 1,1% 1,2% 1,9%

Crimes contra a autoridade pública 1,3% 1,3% 1,7%

Crimes contra o consumidor e o mercado 2,6% 1,3% 1,4%

Crimes contra a liberdade pessoal 1,6% 1,7% 1,2%

Crimes contra a fé pública 2,5% 1,0% 0,9%

Colocação de pessoas em perigo 0,8% 0,6% 0,5%

Crimes de imigração ilegal 1,4% 0,0% 0,2%

Crimes cometidos no exercicio e em prejuízo de funções públicas 0,1% 0,2% 0,2%

Tráfico e posse de diamantes 0,1% 0,0% 0,1%

Natureza do Crime N.º de casos remetidos a julgamento

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

85

pena de prisão, sendo a pena de multa residual na maioria dos tipos legais de

crime. Ainda considerando o mesmo estudo, é sintomático que “a forte

incidência da pena de prisão se reflecte, sobretudo, na aplicação de penas de

curta duração: 47% das penas de prisão aplicada são de duração inferior a um

ano, constituindo as penas de prisão de duração inferior a 6 meses a classe

com maior representatividade (34%)”103. Estes indicadores confirmam, por um

lado, o que indicadores anteriormente referidos mostram: estamos perante

criminalidade de pequena e média gravidade. Por outro, que o Sistema

Judicial, cujas razões é importante conhecer, regista uma elevada tendência

para a aplicação de medidas e penas de prisão.

O Anteprojecto do Código Penal, que se encontra em discussão pública,

introduz uma nova proposta de sanções penais, prevendo-se, como penas

principais, a pena de prisão104 e a pena de multa105 e, como penas de

substituição às penas principais, a pena de multa106, a pena de prisão em fins-

de-semana, a prestação de trabalho a favor da comunidade, a suspensão da

execução da pena de prisão e, por fim, a admoestação107. Encontram-se,

ainda, previstas três penas acessórias: a proibição de exercício de função; a

suspensão de exercício de função e a proibição de conduzir veículos

motorizados108. Como medidas de segurança prevê-se o internamento; a

suspensão da execução do internamento; a interdição de actividades; a

103 Cf. Fernando, Paula et al. (2012). “Uma Caracterização da Procura nos Tribunais Judiciais

em Luanda”. In Gomes, Conceição; Araújo, Raúl (orgs.) A luta pela relevância social e política:

os tribunais judiciais em Angola. In Santos, Boaventura de Sousa; Van Dúnen, José Octávio

Serra (dir.). Luanda e Justiça: Pluralismo jurídico numa sociedade em transformação. Vol. II.

Coimbra: Almedina

104 Segundo resulta do n.º 1 do artigo 43.º do Anteprojecto do Código Penal, a pena de prisão

tem, em regra, a duração mínima de 3 meses e a duração máxima de 25 anos.

105 Esta sanção é fixada em dias, de acordo com os critérios previstos neste mesmo Projecto

de Lei, tendo, em regra, o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias. Cada dia de multa deve corresponder a uma quantia entre dois centésimos e dois décimos do salário mínimo mensal da função pública, a fixar pelo Tribunal em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

106 O projecto prevê a regra de que, salvo se a execução da prisão for exigida pela necessidade

de prevenir o cometimento de futuros crimes, a prisão aplicada em medida não superior a 6 meses é substituída por igual número de dias de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável.

107 Cf. artigo 39.º.

108 Cf. artigo 39.º.

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Para uma Política Criminal em Angola

86

cessação da licença de condução de veículos motorizados e a interdição da

concessão de licença.

A reclamação por uma legislação penal que se ajuste ao novo modelo

constitucional e à realidade social Angolana é uma reivindicação de há vários

anos e que urge dinamizar, em especial no que respeita à aprovação dos

Códigos Penal e Processual Penal. Admite-se que um novo enquadramento

jurídico possa alterar a situação acima descrita. Contudo, a eficácia das

reformas legais será muito menor se a entrada em vigor da nova legislação não

for precedida da devida preparação, designadamente de formação dos Agentes

Judiciais que a vão aplicar. A componente formativa que permita, por um lado,

melhor preparação técnica dos Agentes Judiciais e, por outro, uma Cultura

Judiciária mais atenta aos direitos fundamentais dos cidadãos foi largamente

enfatizada nos painéis e entrevistas realizados.

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4. PRINCIPAIS QUESTÕES LEVANTADAS NO ÂMBITO DA PREPARAÇÃO DA PROPOSTA DE

ANTEPROJECTO DE LEI DE BASES DA POLÍTICA CRIMINAL

A Justiça Penal é uma das áreas do Sistema Judicial onde a interpenetração

de outros campos do saber além da ciência jurídica, nomeadamente da

sociologia, da criminologia e da antropologia, é mais vincada. A possibilidade

de diferentes olhares sobre a mesma realidade multiplica-se e enriquece o

conhecimento sobre os fenómenos sociais que lhe são subjacentes. As

perspectivas de análise possíveis são, assim, muito variadas. A vastidão do

campo de análise torna, por si mesmo, impossível que num trabalho com as

características do que se desenvolveu para a apresentação de uma Proposta

de Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal se abarque a totalidade

das questões relevantes no âmbito da matéria em discussão.

Neste ponto, apresentamos as questões que mais se evidenciaram na opinião

dos operadores judiciários entrevistados e dos que participaram nos painéis

realizados. A discussão que estas metodologias proporcionaram foi uma

discussão orientada de acordo com um plano de trabalho traçado tendo em

vista a preparação deste relatório. Com esse objectivo, identificámos um

conjunto de questões que, tendo em atenção o objecto de estudo e a literatura

relevante nesta matéria, considerámos essencial discutir. Nesse sentido,

solicitámos, numa primeira fase, dados estatísticos e recolhemos

documentação relevante e, numa segunda fase, por forma a identificar as

posições dos Operadores Judiciários e dos elementos dos Órgãos de Polícia

Criminal, elaborámos um guião de entrevistas semi-estruturadas com a

preocupação de permitir que, além das questões concretas colocadas, outras

surgissem e que correspondessem às principais preocupações dos

entrevistados.

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Para uma Política Criminal em Angola

88

As questões discutidas poderão se agrupadas em torno de três temáticas

principais: (a) prevenção da criminalidade; (b) modelo de investigação criminal

para um Estado Democrático de Direito; (c) papel do Juiz no Processo Penal.

4.1. A prevenção da criminalidade

A necessidade de uma aposta séria na prevenção da criminalidade foi uma das

temáticas, mais constante e consensual, no discurso dos entrevistados. Esta

aposta deve concretizar-se em diferentes planos de acção. Já referimos

anteriormente que a prevenção pode desdobrar-se em três fases distintas: a

prevenção primária, a prevenção secundária e a prevenção terciária. Os

Operadores entrevistados manifestaram diferentes preocupações para cada

uma destas fases: (a) ao nível da prevenção primária, denunciaram o fraco

investimento público, a necessidade de uma maior articulação de diferentes

organismos do Estado e da comunidade e, sobretudo, a necessidade de se

desenvolverem respostas adequadas ao problema da delinquência juvenil; (b)

ao nível da prevenção secundária, reclamaram a necessidade de reestruturar o

Sistema de Justiça Penal face a uma nova criminalidade emergente e mais

complexa, sobretudo de cariz económico e transnacional, e denunciaram a

necessidade de um maior equilíbrio entre, por um lado, as exigências de

segurança e de prevenção e, por outro, de adequação da pena aplicada ao tipo

de crime à conduta do agente; (c) ao nível da prevenção terciária, enfatizaram

a necessidade de investimento na fase de execução das penas.

De seguida, damos conta de alguns depoimentos em que se salienta a

necessidade de investimento na prevenção primária, bem como de uma maior

articulação com instituições do Estado e da comunidade, evidenciando-se o

consenso, entre os vários Agentes da Justiça, sobre a importância desta

vertente da prevenção.

É urgente apostar na formação cívica e jurídica dos cidadãos, mostrar-lhes que existem valores

e a hierarquia em que devem ser colocados. A formação dos cidadãos, em termos de valores,

nem sempre permite ter a consciência da gravidade de matar alguém para roubar. Temos que

trabalhar a consciência cívica e jurídica dos cidadãos. E esta tarefa de consciencialização tem

que começar desde a infância e nas próprias comunidades, envolvendo as associações da

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

89

comunidade. De facto, um trabalho muito importante a desenvolver em matéria de prevenção é

dar a conhecer as normas proibitivas e as consequências da sua violação. Esta é uma das vias

para combater e controlar a criminalidade. (P47)

Outro campo de acção passa pela educação jurídica da população, designadamente através

dos órgãos de comunicação, com campanhas diárias nos seus espaços que permitam dar a

conhecer as normas proibitivas; de campanhas na formação primária de modo a elevar a

cultura jurídica desde a tenra idade; de trabalhos de sensibilização e de promoção de valores

junto das comunidades, através de activistas do Direito ou educadores sociais. (P50)

Esta ideia surgiu no discurso dos entrevistados frequentemente associada ao

problema da delinquência juvenil. Considera-se urgente vocacionar a política

de prevenção da criminalidade para este problema emergente na sociedade

Angolana, que se traduz num aumento do sentimento de insegurança das

populações, dado o acréscimo significativo da criminalidade dita "bagatelar",

cometida sobretudo por jovens.

A criminalidade bagatelar é outra preocupação porque, por um lado, dada a sua frequência cria

um sentimento generalizado de insegurança e, por outro, os seus Agentes são, por regra,

muito novos. Temos um problema de delinquência juvenil que não podemos deixar de tratar.

(P42)

Temos também que dar especial atenção ao problema da delinquência juvenil, criando, por

exemplo, Centros de Recuperação de Menores. (P50)

Ao nível da prevenção secundária, os entrevistados realçaram a falta de

preparação, quer no plano formativo, quer no plano da organização e

metodologia de trabalho, das actuais estruturas, para o combate a novas

formas de criminalidade que se têm vindo a registar em Angola. Os tipos de

crime mais referidos foram o crime de branqueamento de capitais, o crime

informático e cibernético, a imigração ilegal e o tráfico de seres humanos.

A imigração ilegal e o tráfico de seres humanos deve ser uma das preocupações centrais da

Política Criminal, sobretudo nas Províncias. Temos, também, que prestar mais atenção a uma

criminalidade nova como, por exemplo, o branqueamento de capitais e crimes cibernéticos

(P47)

Os Agentes Judiciais entrevistados salientam a urgência em formar quadros e

em dotar o sistema de meios que permitam combater eficazmente um tipo de

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Para uma Política Criminal em Angola

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crime que, pela sua novidade e especificidade, exige uma nova abordagem por

parte de todos os intervenientes na Acção Penal.

O combate ao crime faz-se com mais investimento em recursos humanos, aumentando o

número de quadros e apostando na sua qualificação, designadamente para combater os novos

crimes, como, por exemplo, os crimes informáticos. E nós actualmente temos grandes

necessidades no que respeita ao número de recursos humanos e de pessoal qualificado. (P47)

Numa outra vertente, alguns entrevistados denunciaram as dificuldades em

encontrar um equilíbrio adequado, no momento de definição da medida de

coacção ou da pena, entre as exigências de segurança e de prevenção,

nomeadamente de prevenção especial, e o tipo de ilícito cometido. Esta

preocupação surgiu no âmbito da discussão sobre a aplicação excessiva de

penas e medidas privativas da liberdade, considerada uma tendência do

Sistema de Justiça Angolano.

Existe uma tendência dos Agentes Judiciários para a utilização desmesurada das penas

privativas da liberdade. Os Agentes Judiciários têm o dever de agir em conformidade com o

princípio de que este tipo de medidas são a ultima ratio, mas não o fazem. (P42)

Para alguns, esta constatação não pode, contudo, induzir a convicção nos

aplicadores do Direito de que tais medidas não são para aplicar, evidenciado

os efeitos negativos de orientações que não sejam devidamente esclarecidas e

colocando a tónica na necessidade primeira de uma Política Criminal que

contribua para reforçar o sentimento de segurança dos cidadãos.

É redutor pensar que uma maior aplicação das medidas não privativas da liberdade é a solução

para todos os problemas. Elas têm que ser aplicadas sempre que a sua aplicação se justifique,

assim como a prisão preventiva também o deve ser sempre que estejam reunidos os

pressupostos. Devem dar-se orientações sempre tendo em conta que, como disse, o fim último

da Política Criminal é a segurança dos cidadãos. (P57)

E também não se deve utilizar o argumento que as medidas não privativas devem ser

aplicadas para resolvermos o problema da sobrelotação das prisões. Não deve ser este o

argumento. Elas devem ser aplicadas sempre que, em concreto, se justifique. O problema da

sobrelotação é bem mais amplo. Aliás, devo dizer que o problema da sobrelotação tem origem

distinta. A verdade é que o número de estabelecimentos prisionais não acompanhou a

evolução demográfica, nem a actuação mais eficaz de todo o sistema judiciário. A sobrelotação

tem que ser resolvida com o aumento dos estabelecimentos prisionais e não com uma mera

diminuição da aplicação das penas não privativas da liberdade quando, em concreto, se

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

91

justifique a sua aplicação. (…) Se assim não for, dá-se um sinal muito perigoso: que o crime

compensa. Quem comete crimes tem que ser responsabilizado e há situações em que tal só é

possível com a aplicação de uma pena de prisão. Como disse anteriormente, além da

prevenção, temos que dar sinais de eficácia e assim afastar a ideia de que o crime pode

compensar. Só assim conseguimos salvaguardar a segurança dos cidadãos. (P57)

Ainda relativamente a esta temática, é de realçar uma outra posição que

enfatiza o excesso de penas e de medidas privativas da liberdade, induzido

não pela lei, mesmo considerado as leis actualmente em vigor, mas sim pela

conduta dos Agentes que a aplicam e que deviam ser responsabilizados pelo

que consideram uma aplicação indevida da lei.

O actual CP e o CPP já prevêem medidas de coacção e sanções alternativas à privação da

liberdade. A única medida que ainda não tem consagração legal é a prisão domiciliária com

recurso a meios electrónicos – mas nem faria sentido que assim não fosse uma vez que não

temos condições para implementar tal medida. O problema não é de previsão legal, mas sim

de concretização dessa previsão legal. Isto só se resolve com pedagogia e formação dos

Órgãos Judiciários que promovem a sua aplicação. Mas, além disso, também é necessária a

sua responsabilização – o que só se consegue com uma previsão legal concreta desta sua

obrigação. (P42)

Este é um problema de falta de consciencialização dos deveres dos Agentes Judiciários. (P50)

É verdade que as medidas alternativas já têm consagração legal. Essa não é a questão. O

problema que temos é na sua aplicação e, portanto, o problema é dos Agentes que aplicam a

lei. Como sabemos é mais fácil, tanto para a Polícia, como para o Ministério Público, prender

do que aplicar uma outra medida, mesmo quando tal não se justifique. (P39)

Uma outra vertente relaciona-se com a aposta que, em matéria de prevenção,

deve ser feita ao nível do sistema prisional e da ressocialização dos

condenados em geral e, em particular, dos condenados a penas de prisão.

É necessário investir nas prisões e na ressocialização. Só desta forma se consegue combater

a criminalidade. Temos que capacitar e profissionalizar as pessoas que cumprem pena de

prisão porque se não o fizermos quando saírem voltam para o crime. (P50)

A Política Criminal a definir não pode descurar as especiais necessidades em matéria de

fortalecimento das medidas de reinserção social em geral e, em particular, quando estejam em

causa arguidos que cumpriram pena de prisão. (P 57)

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Para uma Política Criminal em Angola

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4.2. Estado de Direito democrático e modelo de investigação criminal

Uma das questões mais discutida e que mais controvérsia gerou nos painéis de

discussão e entre os entrevistados prende-se com a definição do modelo de

investigação criminal considerando, em especial, a necessidade da sua

adequação às directrizes constitucionais que resultam da nova Constituição.

Para os operadores judiciários entrevistados, a definição desse modelo implica,

desde logo, que se reflicta sobre a estrutura e o papel a desempenhar pelos

Órgãos de Polícia Criminal na fase de investigação e a sua articulação com as

competências do Ministério Público.

Como já referimos, a Polícia de Investigação Criminal está integrada na

estrutura da Polícia Nacional que se encontra sob alçada do Ministério do

Interior. Para muitos dos entrevistados é fundamental reformular a estrutura e

organização do Órgão de Investigação Criminal de modo a conferir-lhe, por um

lado, maior autonomia face ao Comando Geral da Polícia Nacional e, por outro,

uma maior articulação funcional com o Ministério Público, permitindo que este

órgão possa efectivamente exercer as competências de investigação criminal

que a Constituição lhe atribui.

Se a ideia de autonomia face à estrutura do Comando Geral da Polícia foi

quase unânime, o mesmo não aconteceu quanto à dependência política. Para

alguns, uma maior autonomia do Órgão de Investigação só será conseguida

com a sua passagem para a alçada do Ministério da Justiça. Para outros,

bastaria autonomizar a investigação criminal da estrutura do Comando Geral,

mantendo-se na dependência do Ministério do Interior, mas ao mesmo nível do

Comando Geral de Polícia. Os primeiros enfatizam, sobretudo, a necessidade

de uma Polícia de Investigação dever assumir uma cultura diferente, mais

atenta dos direitos fundamentais e aos princípios judiciários, que nunca

conseguirá obter numa estrutura muito vocacionada para responder, em

primeira linha, a problemas no âmbito da segurança interna. Os segundos

enfatizam uma leitura constitucional no sentido da previsão de uma Polícia

Única, bem como a importância de articulação entre uma Polícia de Segurança

e de Investigação, muito mais fácil quando as estruturas estão próximas.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

93

A primeira solução foi defendida por parte significativa dos entrevistados, em

particular, por Advogados e Magistrados.

Se o Órgão de Polícia de Investigação não estivesse afecta ao MININT seria mais fácil, devia

estar afecto ao Ministério da Justiça. Teria uma sensibilidade diferente que eles hoje não têm.

(Ent. P20 ADV)

A Polícia devia sair do Ministério do Interior, porque aquela mentalidade deles... (Ent. P22

ADV)

Outro aspecto que tem vindo a ser discutido entre nós é a tutela da Polícia de Investigação

Criminal. Eu noto uma excessiva intervenção do Comandante da Polícia. Por isso, entendo que

se deve rever a situação da tutela da Polícia de Investigação Criminal, passando para o

Ministério da Justiça. Talvez desta forma conseguíssemos ultrapassar esses problemas que

temos vindo a constatar. (Ent. P9 MP)

O maior problema está relacionado com a tutela da Polícia de Investigação Criminal. Não

encontro justificações que fundamentem a opção pela manutenção desta Polícia no Ministério

do Interior. (Ent. P11 MP)

Há uma dependência da Polícia Judiciária do Ministério do Interior e devia deixar de existir.

(Ent. P5 J)

Os Investigadores actualmente são todos vinculados ao Ministério do Interior, mas deviam sair

dessa alçada e passar para a alçada do Ministério da Justiça. (Ent. P 2J)

Penso que de imediato não há condições para uma mudança de tutela, mas tem que se

caminhar nesse sentido. É preciso ver desde logo quem são os quadros da DNIC, das DPICs e

dos Serviços Prisionais. Estou convencido que os dirigentes são pessoas com galões… Eu

achava bem que a Polícia saísse da alçada do Ministério do interior. Não sei é se há força

política para isso. (Ent. P40)

Na minha opinião as coisas têm que ser alteradas. Como as coisas estão temos uma justiça

militarizada ou pelo menos quase-militarizada. A Polícia de Investigação Criminal encontra-se

integrada na Polícia Nacional que, por sua vez, está sob alçada do Ministério do Interior. E,

portanto, nesta organização, não há o mínimo de independência que é necessária para a

investigação. Há uma hierarquia militarizada que se faz sentir ou que se pode fazer sentir, há

ordens que têm que ser respeitadas e, por consequência, lá se vai o princípio da legalidade.

Não devemos ter uma hierarquia militarizada. Os quadros da DPIC e da DNIC são quadros da

Polícia Nacional que tem acima deles Intendentes, Comissários… (Ent. P 40)

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Para uma Política Criminal em Angola

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Como já referimos, aqueles que defendem uma posição mais radical, que

passaria pela saída da Polícia de Investigação do Ministério do Interior,

fundamentam a sua posição em duas principais ordens de razões: em primeiro

lugar, por consideram que esta seria a única solução para impor, dentro da

Polícia de Investigação, uma cultura de respeito pelos direitos fundamentais e

de negação de arbitrariedades, designadamente no que toca ao excesso de

prisão. Em segundo lugar, por considerarem que só esta via permitirá ao

Ministério Público exercer cabalmente as suas competências na acção e

investigação penal. Para alguns entrevistados, a subordinação hierárquica dos

Agentes da DNIC dentro da estrutura da Polícia Nacional, com características

militares, obriga-os ao cumprimento das ordens emanadas pelos seus

superiores, mesmo que, processualmente, quer nos termos da lei, quer da

própria Constituição, devessem seguir as orientações do Ministério Público.

Às vezes o Procurador já despachou e manda para o Instrutor, este engaveta aquilo. Vamos lá

e dizem que ainda não chegou… Às vezes o despacho já foi feito de manhã e a pessoa só é

solta no dia seguinte porque tem que passar não sei onde, para escrever no livro tal… e a

pessoa dorme lá mais um dia e o que dizem é “Tem que se cumprir o formalismo…”. É uma

aberração! (Ent. P22 ADV)

Quando um cliente me diz que foi notificado para ir sexta-feira, eu digo logo para não ir, para

arranjar uma desculpa, porque sexta-feira não é para ir à DNIC nem à Polícia Económica,

porque uma pessoa chega lá e tem logo mandado de captura para passar lá o fim-de-semana.

A liberdade das pessoas não tem valor nenhum. Têm prazer em prender, é um prazer mórbido

ver as pessoas lá… Os advogados são tratados abaixo de animais… (Ent. P22 ADV)

Nos Comandos Municipais os processos entram na Polícia e vão para a secretária do

Comandante. A Polícia não faz as diligências antes do Comandante Municipal enviar o

processo para o Comandante Provincial e este despacha nesse sentido. Só depois disto é que,

por exemplo, a pessoa é interrogada. E isto pode levar muitos dias. Por isso, se o Procurador

não for diligente e não estiver atento a estas situações, indo ver aos calabouços se há lá

detidos que já não deviam lá estar, por exemplo, é complicado. Isto acontece porque o

processo está no gabinete dos Comandantes. A tutela efectiva do processo devia ser do MP.

(Ent. P11 MP)

Ainda que denunciando as mesmas situações e manifestando as mesmas

preocupações, outros entrevistados defendem uma solução mitigada, que

consideram mais consentânea com a Constituição: a DNIC deveria sair da

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

95

alçada do Comando Geral da Polícia Nacional, passando a depender

directamente do Ministro do Interior.

Eu sou de opinião que a pessoa que dirige a Polícia de Investigação Criminal deve ser um

Magistrado. O problema em Angola é que o Director da DNIC não é um Magistrado, é um

quadro do Ministério do Interior, é um oficial. E isto não se resolve pelo facto de ser ou não um

jurista. O que importa é que quem dirige não seja um quadro de uma organização militarizada

ou quase-militarizada. (Ent. P 40)

Penso que não é possível, pelo menos por agora, nem sei se seria desejável, retirar a Polícia

de Investigação da tutela do Ministério do Interior, mas penso que deve ser retirada da

dependência do Comando Geral. A DNIC deve estar ao mesmo nível do Comando Geral da

Polícia. (Ent. P45)

Para mim a solução não passa pela escolha do Ministério. O problema que temos é o da

subalternização da DNIC e a solução que eu vejo é fazer subir a DNIC na hierarquia em que se

encontra inserida. Mas penso que não há condições, nem vontade política. Estamos numa fase

em que os esforços políticos se devem centrar no combate à criminalidade, justificando-se

assim a sua integração na Polícia Nacional. Os Países em que a Polícia de Investigação

criminal se encontra no Ministério da Justiça são Países em que a criminalidade não é

expressiva. E a realidade Angolana ainda não é essa.

Para outros, ambos os modelos são possíveis, alertando para as vantagens e

desvantagens de ambos.

Considero que há vantagens e consequências diferentes consoante se opte pelo modelo actual

ou pelo modelo em que a Polícia de Investigação Criminal passe para o Ministério da Justiça.

No modelo actual em que a Polícia de Investigação Criminal se encontra no Ministério do

Interior e enquanto órgão da Polícia Nacional conseguimos uma padronização das Polícias.

Além disso, conseguimos uma economia de meios porque se permite uma partilha que não

seria possível entre Ministérios. Conseguimos ainda ganhos consideráveis em termos de

operabilidade. Ou seja, mantendo-se no Ministério do Interior, enquanto Ministério Policial,

beneficia de toda a actividade operativa desenvolvida pelas demais Polícias. Aliás, esta é uma

solução adoptada em diversos Países, dado o reconhecido ganho em termos operativos. A

eficácia da sua actuação é maior porque beneficia dos circuitos de informação das restantes

Polícias. Por sua vez, a opção pela integração no Ministério da Justiça ganha em matéria de

civilidade e da salvaguarda dos direitos humanos. Mas, perde muito em termos de vocação

operativa e de eficácia. Além disso, não podemos esquecer que, ainda que a Polícia de

Investigação Criminal faça apenas a instrução preparatória, a sua actuação interliga-se com a

actuação das demais Polícias e que, no desempenho das suas atribuições, também tem que ir

para o terreno fazer buscas, por exemplo. E é a Polícia de Segurança quem a auxilia nesta

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Para uma Política Criminal em Angola

96

matéria. A cooperação seria muito mais difícil se tivesse que envolver dois Ministérios. É que,

no modelo actual, o topo da hierarquia é o mesmo, os objectivos são comuns, há reuniões em

que todos estão presentes, onde se definem e ajustam estratégias de actuação conjunta, a

informação é partilhada e, muito importante, os recursos financeiros são os mesmos. Esta é

outra das grandes vantagens dos modelos de Polícia integrada. Considero que, tudo

ponderado, o modelo de Polícia integrada é mais vantajoso para Angola. Aceito que haja

défices em matéria de direitos humanos, mas são mesmo esses são controlados. O que

defendo é cada uma das Polícias actue dentro das suas competências próprias, mas que a sua

acção estratégica seja consertada. Ou seja, órgãos distintos que trabalham de forma partilhada

mas que se insiram todas na mesma organização. Sempre vi vantagens neste modelo. A DNIC

pode estar presente nas reuniões da Polícia Nacional. Isso é uma vantagem porque consegue

ter acesso a mais informação. (Ent. P42)

Procurando alternativas para uma situação em que há consenso quanto à

necessidade de mudança, há quem defenda que a solução passa por um

reforço efectivo dos poderes do Ministério Público na fase de investigação, que

deve incluir maior poder de intervenção e de fiscalização da acção dos órgãos

que executam ou auxiliam na investigação criminal.

A mudança de tutela não resolve. Como é que o Procurador vai obrigar que o Investigador faça

se não tem competência disciplinar sobre ele? Quem dirige a instrução é que deve ter a

direcção da Polícia de Investigação Criminal. A Polícia devia ser um órgão do Ministério

Público para poder ter poder disciplinar sobre as Polícias. (Ent. P10 MP)

O Laboratório está equipado, mas em termos humanos não corresponde. O que eu defendo é

que a tutela do Laboratório está mal, o laboratório devia ser independente, não devia depender

do MININT, mas devia ser criado um Laboratório Nacional, uma equipa de Médicos e

Inspectores e depender do Governo. (Ent. P57)

Existem argumentos válidos para manter as coisas como estão. A DNIC e as DPICs têm

experiência, têm o Laboratório de Polícia Científica, têm algumas valias que são importantes.

Mas, além destes argumentos, os mais fortes são os argumentos políticos. É necessário

conhecer melhor os recursos humanos da DPIC e da DNIC, saber se são todos Funcionários

do Ministério do Interior, se são Polícias ou se são juristas. Mas, acredito que seja difícil pegar

nestes quadros e colocá-los sob a alçada do Ministério da Justiça. Formar quadros novos

também não é menos difícil. (Ent. P40)

Embora em posição minoritária, houve quem defendesse a continuidade do

actual enquadramento estrutural e funcional da Polícia de Investigação, isto é,

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

97

na estrutura do Comando Geral da Polícia Nacional, dando uma visão diferente

da relação Polícia de Investigação / Ministério Público.

O figurino de uma Polícia única, seguido aliás em muito Países Europeus, é para se manter.

Esta é, aliás, uma questão que a nova Constituição veio clarificar ao estabelecer

expressamente a existência de uma Polícia única. Portanto, é uma questão que nem é bom

estar a desenterrar. Já foi suficientemente discutida e agora está ultrapassada. A Polícia de

Investigação Criminal deve continuar sob tutela do Ministério do Interior e manter-se como um

Órgão da Polícia Nacional. Do ponto de vista de estratégia da investigação não faz qualquer

sentido passar para o Ministério da Justiça, nomeadamente porque a DNIC conseguiu

recentemente passar a fazer-se representar junto da própria Direcção do Ministério do Interior

e já é autónoma em termos financeiros. A DNIC é uma unidade orçamental autónoma. Hoje a

militarização da Polícia Nacional já não é um problema. Isso não se reflecte nas relações com

o MP. Cada um sabe e cumpre o seu papel e não é pelo facto de a Polícia de Investigação

Criminal estar na hierarquia da Polícia Nacional e no Ministério do Interior que os

Investigadores vão deixar de prestar contas ao MP. A questão da hierarquia é uma falsa

questão até porque o próprio Ministério Público é hierarquizado. Ao contrário do que alguns

advogam, hoje já não há Comandantes a dar ordens aos Investigadores. Isso foi num tempo

longínquo. Não digo que não possa acontecer esporadicamente, mas isso é como em tudo na

vida. Eu não tenho conhecimento dessas situações. O nosso País evoluiu e os que ainda se

agarram a esses argumentos desconhecem a realidade. São argumentos falaciosos. Essas

aberrações já não existem. Esse já não é mais um problema real. Hoje os Investigadores são

autónomos dos Comandantes e não recebem ordens destes. Se tal vier a acontecer

pontualmente deve ser tratado no caso concreto. (Ent. P47)

Independentemente da estrutura da DNIC, o que para alguns dos entrevistados

deve ser enfatizado é a actual dificuldade de definição e delimitação de

competências entre a DNIC e o Ministério Público. O que consideram

fundamental é, assim, que, na Lei e na prática, se definam de forma clara as

competências funcionais no âmbito da fase de instrução do Ministério Público e

da Polícia de investigação criminal, de modo a que o Ministério Público assuma

efectivamente os poderes que a Constituição e a Lei lhes conferem em matéria

de investigação e Acção Penal.

Há um casamento mal definido entre as Polícias e o Ministério Público. Ninguém sabe muito

bem como é que as coisas funcionam. Os advogados queixam-se muito deste casamento.

Segundo eles, o dono do processo não é o Ministério Público, mas a Polícia. Ou seja, quem

dirige os processos é a DPIC e os procuradores apenas intervém quando há uma solicitação

nesse sentido, nomeadamente pela própria DNIC que pode ter dúvidas. Mas, se a intervenção

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Para uma Política Criminal em Angola

98

do Ministério Público não for solicitada, este apenas tem acesso ao processo no fim da

investigação para fazer uma de três coisas: arquivar, pedir mais diligências de prova ou acusar.

O processo termina com um relatório do Investigador ao Procurador. O Investigador informa

das diligências efectuadas e do que se conseguiu provar. Segundo os Advogados, o Ministério

Público, na maioria das vezes, nem sequer vê o processo. Ou seja, existe a suspeita de que os

Procuradores se limitam a ler o relatório do Investigador e decidem arquivar ou acusar sem ver

o processo. Esta é uma acusação muito grave. (…) os poderes que actualmente se encontram

atribuídos à DNIC e à DPIC resultam de base legal muito duvidosa. (Ent. P40)

Há uma forte subordinação do Ministério Público à Polícia. A reforma deve ir o mais longe

possível na tentativa de mudar esta situação (Ent. P39)

O que eu tenho notado é que o Director da DNIC tem mais poderes do que o próprio

Procurador e essas competências a mais que ele tem não funcionam… Devia-se avaliar se a

Polícia deve assumir tanto protagonismo na instrução do processo ou se se deve encontrar um

meio-termo, uma instrução equilibrada, talvez independente. (Ent. P21 ADV)

O Ministério Público, da forma como interage com eles, parece um Inspector da Polícia...

Penso que devia haver uma entidade independente, porque apesar de ser independente, na

prática o Procurador funciona como se fosse um Instrutor. Para sermos recebidos pelo

Procurador temos que ligar para o Chefe do Procurador, para falarmos com o nosso

constituinte tem que haver autorização lá de cima, ficar quatro horas à espera, depois somos

chamados com má cara, falamos cinco minutos e o Polícia ainda fica a uma distância de três

metros, praticamente a ouvir o que estamos a dizer! O grande problema é que eles (Polícia)

ficam com o processo ali e dizem que já enviaram ao Procurador e nada! Se estiverem noutra

instituição, ainda é pior. (Ent. P22 ADV)

No meu entendimento, a Polícia de Investigação Criminal devia ser um órgão do Ministério

Público. Isto só se resolve se o Ministério Público tiver poder disciplinar sobre os

Investigadores. (Ent. P10 MP)

Nós temos muitas dificuldades em lidar com a Polícia de Investigação Criminal. Por vezes até

somos ameaçados... (Ent. P16 MP)

E, mais uma vez, se chama a atenção para a estrutura hierarquizada da DNIC

face ao Comando Geral da Polícia Nacional que, na opinião de vários

entrevistados, se traduz, na prática, numa desautorização das orientações

emitidas pelo Ministério Público, redundando na desconsideração funcional das

suas competências e na preterição de formalidades essenciais no âmbito do

Processo Penal.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

99

A quem é que procurador vai apresentar queixa do Instrutor? O Director da DNIC depende do

MININT e olha para aquele sujeito como um Polícia, como um membro da corporação que está

a ser desautorizado, e aliam-se e cria-se esta dificuldade. (Ent. P20 ADV)

Há interferências no nosso trabalho em quase todas as Províncias. Nunca cumprem os nossos

despachos nos prazos que deviam cumprir. Depois, quando os chamamos à atenção, arranjam

sempre desculpas, ou porque o carro avariou, ou porque estiveram numa missão que foi dada

pelo Comandante. E quando pedimos os processos vimos que ainda não foi nada feito. Depois

os processos não andam! (Ent. P13 MP)

Entre uma ordem do Ministério Público e uma ordem de um superior hierárquico da Polícia

Nacional o Investigador vai certamente respeitar esta última. Há aqui uma hierarquia muito

mais vincada e em relação ao Ministério Público há sempre uma certa independência.

(Ent.P40)

Neste âmbito, é de salientar os relatos de situações de interferência e mesmo

desaparecimento de processos.

Só nos chegam os casos em que o Comandante entende que devem chegar. Eu sei que

existem casos que não me apresentam - eu tive a necessidade de fazer um levantamento dos

processos do Município, queria saber quantos processos a Polícia de investigação criminal

tinha e verifiquei que havia processos que estavam com o Comandante porque os pedi aos

Investigadores e eles não os tinham. Tive que ligar ao Comandante. Pedi-lhe os processos que

tinha com ele e ainda não chegaram. Isso passou-se há pouco tempo, há cerca de dois meses.

Os arguidos desses processos não eram cidadãos quaisquer. Eram pessoas importantes…

(Ent. P11 MP)

Enquanto a investigação criminal estiver subordinada ao Comandante vai haver casos que

nunca vão chegar à investigação criminal. O pessoal da investigação criminal, estando

subordinado ao Comandante, nunca está na investigação criminal, a trabalhar para a

investigação. Está a cumprir ordens do Comandante. Enfim, nunca está no Órgão Instrutor

como deveria estar. E depois os processos ficam parados... (Ent. P11 MP)

Verificamos com frequência má instrução de processos. Alguns Instrutores, eles próprios, têm

interesse nesses processos e viciam os processos, a própria instrução. (Ent. P5 J)

É que estamos a falar de poder, e sabemos que há pessoas que, pela sua posição, não são

chamadas à DNIC. Mas, tem que haver mudanças. Agora, como é que efectivamente vai ser a

relação entre a DNIC e o MP, não sei. (Ent. P 40)

Assistimos a um certo corporativismo nos processos em que os arguidos são Polícias. Daí que

considere que a questão da tutela da Polícia de Investigação Criminal deva ser revista,

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Para uma Política Criminal em Angola

100

passando para o Ministério da Justiça. Talvez desta forma conseguíssemos ultrapassar esses

problemas que temos vindo a constatar. (Ent. 9 MP)

As interferências maiores correm nos processos em que os arguidos também são Polícias. Eu

sugeria que quando, na instrução, verificássemos que o arguido faz parte da Polícia existissem

mecanismos que permitissem que nós avocássemos esse processo. Este tipo de processos

tem que ser instruído directamente pelo MP. Desta forma conseguíamos evitar este tipo de

situações. (Ent. P6 MP)

A precariedade funcional do Ministério Público é, na percepção de alguns dos

entrevistados, agravada pela falta de condições de trabalho com que os

Procuradores Municipais se deparam, sobretudo quando comparadas às do

Comandante de Polícia.

Outro problema são as condições dos Procuradores Municipais. Temos condições muito piores

do que as condições dos Polícias. Sem ar condicionado e magistrado a transpirar, sem

condições nenhumas de trabalho. Quem vir esta realidade pensa que o Procurador é um mero

Funcionário que responde à Polícia. Isto psicologicamente tem efeitos! (P7 MP)

Como já amplamente referimos, o novo quadro constitucional confere ao

Ministério Público a competência para dirigir a fase investigatória dos

processos penais. O que exige uma melhor adequação da Lei e da prática a

este novo enquadramento. Impõe-se, por isso, o desenvolvimento de reformas

que permitam a concretização dos princípios e orientações constitucionais.

Consideramos que a publicação de uma Lei de Bases da Política Criminal pode

significar um passo importante na concretização desse objectivo.

A Lei da PGR não prevê a possibilidade de avocação de processos. O Ministério Público

reduziu-se à sua função de fiscalizador da DNIC. Por sua vez, a DNIC faz a investigação ou

instrução preparatória. Acontece que todos os poderes da DNIC e da DPIC resultam de um

diploma interno - suponho que seja um Decreto Executivo do Ministério do Interior, mas

segundo a CRA esta seria uma matéria de lei. A nova CRA atribui essa função ao MP, mas as

coisas ainda se mantêm como eram porque até agora não foram efectuadas as reformas legais

que são necessárias. Os processos continuam a ser abertos e trabalhados nas Esquadras. Em

teoria é obrigatoriamente dado conhecimento ao Ministério Público e, em teoria, também

deveriam existir subdelegados do Procurador da República nas Secções de investigação das

Esquadras. (Ent. P 40)

Outra situação que necessita de ser revista ou pelo menos clarificada é a competência da

DNAP na instrução dos processos em que não são investigadas as pessoas para que,

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

101

inicialmente, aquele órgão foi pensado. Têm surgido situações em que a DNAP se tem

arrogado da competência de instruir processos que não lhe estão atribuídos. (Ent. P47)

De certa forma em contraste com esta situação, merece referência o relato de

uma experiência positiva de articulação entre Ministério Público e Polícias no

âmbito dos Serviços de Migrações e Estrangeiros, onde se considera não se

registarem problemas de interferência das Polícias no exercício das

competências do Ministério Público. Os entrevistados apontam como uma das

razões, do que consideram uma boa articulação, o facto de este serviço não se

encontrar sob a alçada do Comando Geral da Polícia Nacional.

Gostaria de salientar que, neste caso, em que o Serviço de Fronteiras depende directamente

do Ministro do Interior, mas não do Comando Geral da Polícia, não temos qualquer problema

de articulação entre aqueles Serviços e o Ministério Público. (Ent. P45)

4.3. Papel do Juiz no processo penal

Um terceiro aspecto dominou a discussão e entrevistas e dividiu opiniões: o

papel do Juiz no Processo Penal, em especial na fase de investigação. No

âmbito da reforma da justiça em curso encontra-se a ser revista a Lei Penal e a

Lei Processual Penal. No âmbito dessa revisão deverá ser tomada uma

posição sobre esta matéria em consonância com as directrizes constitucionais

acima já referidas. Foi já tendo como referência o novo quadro constitucional

que se desenvolveu o debate sobre as possíveis funções da Magistratura

Judicial nesta fase e, em especial, de um Juiz de Garantias.

Dever-se-ia passar para essa figura do Juiz de Instrução para que a investigação se torne um

pouco mais séria, porque há casos em que se põe aí o indivíduo que é inocente e o criminoso

fica de lado, e isto não me parece sério. Já tive processos em que duvidei bastante do que se

fez, e houve um processo em que rejeitei a acusação porque os verdadeiros criminosos não

foram… Um juiz de instrução é necessário. (P2 J)

O Ministério Público dirige a instrução e instruir é ver quais são os actos que levam até ao juízo

de… Daí que a figura do Juiz de Instrução seria bem-vinda. O que às vezes existe é que a

relação entre o Ministério Público e a Polícia de instrução e investigação, nalguns casos, não é

muito bem-sucedida, porque o Investigador é daqueles que quando põe a mão num caso quer,

a todo o custo, ver o homem em Tribunal e condenado. Este ano, num julgamento fui

interpelado por um Investigador que me disse estar um pouco descontente porque o Tribunal

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Para uma Política Criminal em Angola

102

“tem tomado decisões aquém do nosso interesse, porque nós julgamos que o réu será

condenado numa pena um pouco mais gravosa…” Eu respondi: “Eu conduzo a discussão e é

com base nela que eu vou decidir e vejo se aquilo que você me traz está ou não provado. Não

se pode surpreender porque isso é efeito do seu trabalho, se instruir bem o processo eu não

terei tanta dificuldade! Eu não me posso investir nas vestes do Instrutor, nem nas do Ministério

Público!” é complicada a relação Ministério Público, Instrutor do processo e Juiz, por isso a

figura do Juiz de Instrução seria bem-vinda. (P1 J)

A criação do Juiz de Instrução é fundamental. Caso contrário não vamos ter justiça nenhuma.

Quem pronuncia e quem vai julgar serem pessoas diferentes é fundamental. (P22 ADV)

A Constituição fala apenas de Magistrado Judicial. Não concretiza. Mas ainda que seja o Juiz

de Instrução isso não retira as competências que são próprias do Ministério Público. O Juiz de

Instrução não dirige a instrução. (P42)

A Constituição não impõe que haja um Juiz de Instrução, mas sim um Juiz de Garantias. E

também não impõe que seja o Juiz a validar. O Ministério Público pode validar e o arguido que

se sinta lesado nos seus direitos em garantias passa a poder exigir a fiscalização do Juiz. (…)

Não podemos ter um Juiz de Instrução porque a instrução é do Ministério Público. A

Constituição apenas prevê o Juiz das Garantias. Em caso algum se deve utilizar a expressão

Juiz de Instrução. Não faz parte da nossa tradição e pode levantar muitas dúvidas e

interpretações erradas. (P50)

Se é verdade que a interpretação constitucional sobre a extensão do papel da

Magistratura Judicial na fase de instrução está longe de ser consensual, essa

consensualidade é muito mais próxima no que respeita às decisões em matéria

de direitos e garantias dos arguidos, considerando-se que a Constituição atribui

essa competência a um Juiz.

Além de Juiz das Garantias para o qual Constituição aponta, deve ser também um Juiz de

Instrução de forma a acabar com a situação actual de que o Juiz que pronuncia é o mesmo

Juiz que julga. (P39)

A Constituição é impositiva no que toca à fiscalização das garantias fundamentais dos

cidadãos por parte de um Magistrado Judicial. Trata-se de um imperativo constitucional que

deve ser respeitado. E não pode ser interpretado só na perspectiva de um eventual recurso.

Trata-se da fiscalização de toda a actividade do Ministério Público que colida com os direitos e

garantias dos arguidos. (P57)

Embora salientando as novas orientações constitucionais, vários entrevistados

chamaram a atenção para a dificuldade da sua concretização nas actuais

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

103

condições de funcionamento do Sistema Judicial, de escassez de recursos

vários, designadamente de recursos humanos. Salientam que se é possível

assegurar a presença de um Procurador em cada Esquadra Policial, o mesmo

não se poderá dizer relativamente aos Magistrados Judicias, hoje, ainda,

sobretudo confinados à Capital Provincial. Consideram, por isso, que se as

actuais condições de organização e funcionamento do Sistema Judicial não se

alterarem, a concretização daquela orientação constitucional poderia ter um

efeito perverso.

Quem será o Juiz de Instrução? Esse pode ser o problema. Os Magistrados são poucos. O Juiz

de Instrução não pode ser o Juiz do Julgamento. (P17 MP)

Tem que ser o Procurador a decidir sobre as detenções. Com o actual movimento processual

os Juízes não têm tempo. Essas decisões têm que ser tomadas pelo Ministério Público. (P11

MP)

Hoje, existem Magistrados do Ministério Público em todas as Esquadras de Polícia e junto dos

Serviço de Fronteiras. Onde há Polícia há Magistrados do Ministério Público. Existem, neste

momento, cerca de 330 Procuradores a exercerem funções junto das Polícias. Por vezes, as

condições de trabalho, a começar pelas instalações, são muito precárias, mas os Procuradores

estão lá. (P50)

Deve ter-se muito cuidado porque com a criação desta figura pode vir a bloquear-se o exercício

da Acção Penal. Temos que pensar no território e na localização destes Juízes. Onde é que

eles irão estar? Quais os meios de comunicação que existem? Não há, nem se justificaria,

Juízes suficientes que permitisse colocar um Juiz próximo de cada Esquadra. (…) Nas actuais

circunstâncias de carência de recursos e de forte concentração territorial dos Órgãos de

Justiça, o Juiz das Garantias não pode funcionar para a base, isto é, para a investigação

criminal. No âmbito da investigação criminal não podem ser retirados quaisquer das actuais

competências do Ministério Público, como por exemplo, no que respeita à aplicação das

medidas de coacção ou em matéria de provas. Quando muito o Juiz das Garantias pode actuar

em sede de recurso, interposto por qualquer pessoa ou familiar. (P50)

Há 30 anos que esta é uma atribuição do Ministério Público e o País está assim organizado. E

não podemos esquecer que uma alteração deste tipo pode ter graves consequências práticas,

levando a que tudo fique parado. É que nem sequer temos Juízes suficientes para uma solução

deste tipo. Quem é que vamos mandar para o interior? Não temos Juízes para colocar em todo

o lado. E o que vai acontecer é que a reforma não vai poder ser concretizada. E fica tupo

parado. O Ministério Público deixa de poder fazê-lo e não há Juízes que o façam. O Estado vai

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Para uma Política Criminal em Angola

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levar muito tempo a implementar uma reforma deste tipo. Antes de se avançar era essencial

formar Juízes em número suficiente. (P66)

Mas onde é que irá funcionar esse Juiz das Garantias ou o Juiz de Instrução? Nas Esquadras?

Nos Tribunais? Esta solução vai levantar muitas questões de ordem prática e do ponto de vista

da sua efectiva concretização. (P63)

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5. A IMPORTÂNCIA E A DELIMITAÇÃO DE UMA LEI DE BASES DA POLÍTICA CRIMINAL

Uma Lei de Bases da Política Criminal é, em geral, considerada como

instrumento fundamental da prossecução da política pública do Estado no

domínio da Justiça Penal, colocada em paralelo com a Política de Segurança

Interna, Segurança Externa e Defesa Nacional, mas delas se distinguindo. Até

porque, como decorre do princípio da separação de poderes, pilar fundamental

do Estado de Direito, a concretização da Política Criminal é efectuada, em

grande parte, por órgãos independentes, como são os Tribunais, ou dotados de

uma autonomia efectiva em relação aos demais poderes do Estado, como é o

caso do Ministério Público. Daí que faça todo o sentido a existência de um

quadro normativo específico no domínio da Política Criminal, embora articulado

com outras dimensões do Estado na área da segurança, mas que assegure o

equilíbrio entre a salvaguarda dos interesses e direitos de todos os cidadãos e

a necessidade de o Estado estar dotado de mecanismos para assegurar a paz

jurídica e a tranquilidade pública.

A discussão tendo em vista a criação de uma Lei de Bases da Política Criminal

faz emergir a necessidade da delimitação do conceito "Política Criminal". Na

verdade, sob a mesma designação, identificamos diferentes concepções que

se reflectem nos conteúdos normativos da Lei, determinando diferentes

âmbitos de aplicação. Confrontam-se, no essencial, duas concepções: uma

mais ampla e outra mais restrita. Teresa Sousa sistematiza da seguinte forma a

diferença entre Política Criminal em sentido estrito e Política Criminal em

sentido amplo: “a política criminal em sentido estrito, compreende,

essencialmente, a definição dos tipos incriminadores a partir de uma

categorização dogmática do delito e das penas, bem como o tratamento

processual das diferentes categorias de infracções, encontrando o respectivo

suporte na Constituição, nos Códigos Penais e de Processo Penal, bem como

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Para uma Política Criminal em Angola

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na legislação avulsa com estes conectada”. Para exemplificar uma visão mais

alargada do conceito de Política Criminal, relembra a posição de Paulo Pinto de

Albuquerque, segundo o qual aquela será “o programa de objectivos, de

métodos de procedimento e de resultados que o Ministério Público e as

autoridades de Polícia criminal prosseguem na prevenção e repressão dos

delitos"109.

Ao definir uma concepção ampla de Política Criminal, Zaffaroni considera que

se trata da "ciência ou a arte de seleccionar os bens (ou direitos) que devem

ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efectivar tal

tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já

eleitos”110.

Por sua vez, sobre esta questão, Jorge de Figueiredo Dias considera que “a

política criminal surge como uma ciência trans-positiva, trans-dogmática e

trans-sistemática face a um qualquer Direito Penal positivo. A sua função última

consiste em servir de padrão crítico tanto do Direito constituído, como do

Direito a constituir, dos seus limites e da sua legitimação. Neste sentido se

deverá compreender a afirmação de que a Política Criminal oferece o critério

decisivo de determinação dos limites da punibilidade e constitui, deste modo, a

pedra-angular de todo o discurso legal-social da

criminalização/descriminalização"111.

A Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases que apresentamos privilegia uma

concepção ampla de Política Criminal. Consideramos que uma Lei de Bases da

Política Criminal deve sistematizar um conjunto de instrumentos normativos

fundamentais para desenvolver e colocar em prática todas as medidas de

109 Cf. Sousa, Teresa. (2009). O Direito Penal na Encruzilhada: Reflexões em torno da Política

Criminal à luz da Ciência Política. Julgar.n.º 7.

110 Cf. Zaffaroni, Eugenio Raúl. (1999). Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. Eugenio

Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. 2ª ed. Revista e atualizada. São Paulo:Revista dos

Tribunais.”

111 Cf. Dias, Jorge de Figueiredo. (2001). Temas Básicos da Doutrina Penal – sobre os

fundamentos da doutrina penal, sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

107

prevenção e de combate ao crime e de segurança de um Estado Democrático,

que respondam às expectativas dos princípios constitucionais.

Nesse sentido, a proposta estabelece os princípios gerais de um sistema

integrado de prevenção e repressão dos fenómenos criminais no contexto da

política pública de segurança, mas dela distinta, as orientações e os critérios

definidores das prioridades em matéria de prevenção da criminalidade, da

investigação criminal, da Acção Penal e da execução das penas, bem como os

órgãos responsáveis pela sua definição e execução.

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6. PRINCIPAIS LINHAS ORIENTADORAS DA PROPOSTA DE ANTEPROJECTO DA LEI DE BASES

DA POLITICA CRIMINAL

A Proposta de Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal estrutura-se

em sete capítulos (âmbito e objectivos da Lei de Bases; princípios gerais;

prevenção criminal; fase preparatória do Processo Penal; aplicação e execução

das penas; prioridades de política criminal; e disposições finais) e tem as

seguintes linhas orientadoras.

6.1. Aprofundar os princípios constitucionais de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, vítimas, detidos, arguidos e presos

A publicação de uma Lei de Bases da Política Criminal permite definir as

orientações que o Estado entende que melhor podem vir a concretizar aqueles

princípios constitucionais. Uma Lei de Bases da Política Criminal vincula a

essas orientações os seus destinatários directos, nomeadamente o Ministério

Público, os Órgãos de Polícia e os Serviços Prisionais, que devem assumir os

objectivos da Lei e adoptar as orientações constantes da mesma, conferindo

maior coerência ao Sistema de Justiça Penal e permitindo uma acção mais

concertada dos órgãos encarregues da execução da Política Criminal.

Destaca-se, no âmbito desta linha orientadora, a previsão legal da atribuição a

um Juiz das competências em matéria de liberdades e garantias,

designadamente no que respeita à validação das detenções, à aplicação de

medidas de coacção e à fiscalização da execução das penas, dando, assim,

concretização ao disposto na alínea f) do artigo 186º da Constituição da

República de Angola.

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Para uma Política Criminal em Angola

110

Uma Lei de Bases da Política Criminal deve, por um lado, enquadrar-se

constitucionalmente de modo a não apontar orientações que o texto

constitucional não permita e, por outro, deve procurar apontar caminhos

facilitadores da concretização dos princípios constitucionais e, sobretudo, criar

um quadro legal que permita a articulação dos poderes do Ministério Público,

da Polícia e do Juiz, garantindo sempre o respeito, quer pela independência

dos vários poderes envolvidos, quer pelos direitos fundamentais dos cidadão,

de modo a que a Lei e a prática não vão mais além das restrições

constitucionalmente admitidas, contribuindo, assim, para a consolidação do

Estado Democrático de Direito.

6.2. Promover a eficiência e a transparência na prevenção e no combate aos fenómenos criminais

Num Estado Democrático de Direito devem ser os órgãos de soberania

legitimados pelo voto popular a definirem a estratégia de combate ao crime. A

Proposta de Anteprojecto apresentada prevê, assim, que a Assembleia

Nacional, sob proposta do Poder Executivo, aprove, para um período de três

anos, as prioridades e orientações em matéria de prevenção da criminalidade,

Acção Penal e execução das penas e medidas de segurança, competindo ao

Poder Executivo elaborar e apresentar à Assembleia, no final do período de

três anos, um relatório sobre a execução das políticas aprovadas.

A proposta encara o fluxo criminal desde a fase de prevenção até à fase de

reinserção social, passando pela investigação e Acção Penal e pela execução

das penas. Prevê-se, assim, a possibilidade de adopção de medidas prioritárias

de Política Criminal, tanto na prevenção como na investigação, como também

na execução das penas e medidas de segurança. A definição de um quadro

legal de onde emanem orientações precisas, legitimadas e transparentes em

matéria de prevenção e combate aos fenómenos criminais e, em simultâneo,

que preveja instrumentos de avaliação que, de forma regular, permitam a

prestação de contas dos órgãos responsáveis pela condução da Política

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

111

Criminal, é um passo significativo no aprofundamento do Estado de Direito

Angolano.

Uma Lei de Bases da Política Criminal é um instrumento normativo que pode

permitir enfrentar a crescente discrepância entre a intenção normativa de tudo

investigar, subjacente ao princípio da legalidade, e a prática que, em concreto,

atinge pouco. Sobretudo sabendo que não é realmente possível cumprir, de

forma integral, o princípio da legalidade na investigação criminal através de

soluções normativas formais, pouco diferenciadas e sem capacidade de serem

agilizadas de forma não arbitrária. Ao definirem-se os critérios das prioridades,

evita-se o que acontece na prática: a existência de uma "oportunidade sem

critérios". A Lei de Bases permite estabelecer objectivos e orientações, tendo

em conta, em cada momento e atendendo às circunstâncias locais, as

principais ameaças aos bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. Sendo que

a definição de prioridades e orientações da Política Criminal não prejudica o

princípio da legalidade, nem afecta a independência dos tribunais e a

autonomia do Ministério Público. A definição da Política Criminal situa-se num

plano abstracto, não permitindo a manipulação de processos concretos, nem,

por si, isentar quaisquer crimes dos correspondentes procedimentos ou

sanções.

6.3. Aprofundar estratégias de prevenção da criminalidade e de reinserção social

Como acima evidenciámos, para a maioria dos entrevistados esta é uma

dimensão essencial da Política Criminal, sobretudo tendo em mente a

prevenção da delinquência juvenil. A Lei deve, por isso, dar especial atenção a

esta matéria e, na sua execução, definirem-se programas especificamente a

ela dirigidos.

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Para uma Política Criminal em Angola

112

Definição de um plano de prevenção da criminalidade em geral

A acção sobre os factores de risco e a prevenção da delinquência devem

nortear as políticas públicas de controlo social numa relação de articulação

entre instituições públicas e privadas que contactam com a população e com os

seus contextos familiares, laborais e sociais. O plano de prevenção da

criminalidade a desenvolver deverá identificar os elementos de risco inerentes

a comportamentos delinquentes e definir áreas privilegiadas de actuação,

ferramentas a utilizar e as entidades e a articulação entre elas. O plano deverá,

ainda, procurar envolver instituições com áreas de actuação distintas e com

respostas multifacetadas e multidisciplinares, permitindo alcançar mais

eficiência e qualidade na acção conjunta do Estado e da sociedade.

Definição de um plano de prevenção da delinquência juvenil

Não existem, em Angola, do nosso conhecimento, estudos aprofundados sobre

delinquência juvenil - que é urgente realizar -, mas as percepções sobre este

fenómeno e o alarme social que o mesmo desencadeia, sobretudo nas áreas

metropolitanas com maior densidade populacional, permitem-nos avançar com

a hipótese de que a delinquência juvenil constitui um problema grave e com

consequências preocupantes na Sociedade Angolana. A grande maioria das

crianças e jovens implicadas nas malhas da delinquência terá tido um passado

de carências de vária ordem, designadamente de natureza valorativa. Não se

promovendo uma intervenção atempada das instâncias de controlo social -

como a família e a escola - essa criança ou adolescente, com grande

probabilidade, tende a socializar-se num ambiente marginal à integração social

plena. Urge, por isso, olhar para a realidade social das crianças, dos

adolescentes e dos jovens adultos nas suas várias vertentes e intervir numa

fase pré-delito ou, pelo menos, numa fase pré-delito grave.

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

113

A necessidade de uma intervenção precoce é salientada nos instrumentos

normativos internacionais, que recomendam a criação de um sistema de

intervenção junto da criança e do jovem em desvio e/ou delinquente. Partindo

da identificação dos factores de risco e do desvio associados aos

comportamentos delinquentes, preconiza-se a definição de medidas que, em

acção concertada entre as várias entidades, possam actuar sobre os grupos

socialmente mais vulneráveis.

Programas de prevenção da reincidência dos condenados

Ainda no âmbito da prevenção da criminalidade destaca-se a importância da

criação de programas de prevenção da reincidência dos condenados,

diferenciados em função da idade e da existência ou não de patologias

associadas ao cometimento dos crimes. A questão da reinserção social é uma

matéria que tem vindo a integrar as agendas de reforma em muitos Países. É,

contudo, uma matéria complexa que depende, não só das políticas definidas

para o Sistema Prisional, mas também para o Sistema Judiciário, globalmente

considerado. Depende, desde logo, do tratamento político-jurídico que for dado

ao modo de punir. A opção clara por medidas e sanções alternativas à pena de

prisão fará, naturalmente, diminuir a pressão sobre o Sistema Prisional. Mas,

depende também das políticas definidas e executadas para os vários sectores

do Sistema Prisional, como sejam no âmbito da saúde, do ensino e da

formação profissional. As características e o investimento em cada um

daqueles sectores são indicadores do modelo de reinserção social

preconizado. A reforma nesta matéria não pode, também, deixar de ter em

conta instrumentos normativos internacionais, como, por exemplo, as “Regras

Mínimas para o Tratamento dos Reclusos” da Organização das Nações

Unidas.

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Para uma Política Criminal em Angola

114

6.4. Diferenciar o tratamento processual da criminalidade

O Sistema Judicial deve incorporar mecanismos legais e organizacionais que

permitam diferenciar o tratamento da criminalidade, quer na fase de prevenção,

quer da Acção Penal (incluindo a instrução criminal, aplicação e execução das

penas) em função da idade do arguido e do tipo de crime cometido. Nesse

sentido, a Proposta de Lei apresentada prevê um conjunto de normas

orientadoras da Política Criminal no âmbito da criminalidade de pequena e

média gravidade, da criminalidade juvenil, da criminalidade grave e complexa e

da criminalidade grave contra as pessoas.

Destaca-se, ainda, no âmbito da pequena e média criminalidade e da

criminalidade juvenil, a orientação no sentido de ser reforçada a articulação dos

órgãos de repressão e Acção Penal com outras instituições do Estado, em

especial do sector da educação e do apoio social, e da comunidade e o

incentivo à aplicação de medidas e sanções alternativas à prisão. Numa outra

vertente, deve dar-se atenção à criminalidade de massa. Em especial em

Luanda, como evidenciam as estatísticas disponíveis, salienta-se um tipo de

criminalidade induzida maioritariamente por crimes rodoviários e crimes contra

o património.

O tratamento processual da criminalidade de pequena e média gravidade

impõe a criação e aplicação de mecanismos alternativos ao julgamento de

modo a, por um lado, potenciar a resolução de litígios antes da fase de

julgamento e a simplificação e a agilização dos procedimentos; e, por outro,

libertando os recursos disponíveis para um outro tipo de criminalidade de maior

gravidade e complexidade a exigir melhores e mais recursos. A legislação

penal deve, assim, passar a incluir e a incentivar a aplicação de medidas de

diversão, bem como da mediação penal. A mediação, como via alternativa à

resposta formal, envolvendo no processo de composição do litígio, agressor,

vítima, a família e a comunidade, constitui mais um filtro para situações que

não devem ser submetidas ao estigma de audiência formal e, ao mesmo

tempo, potencia a pacificação social e a prevenção da reincidência ao actuar

mais rapidamente e com o envolvimento de todas as partes próximas do

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

115

conflito. A sua implementação deve ser cuidadosamente planeada e dotada

das condições para o seu funcionamento eficaz, devendo garantir-se as

características de proximidade, celeridade e informalidade.

Ainda neste âmbito, uma das questões em debate em muitos Países prende-se

com a reflexão sobre a excessiva criminalização de certas condutas,

designadamente condutas rodoviárias de pequena gravidade, transferindo-se

para o campo da Justiça Penal problemas que deveriam ser resolvidos através

de outras respostas sociais. A revisão da Reforma Penal em curso deveria

reflectir sobre esta questão.

6.5. Clarificar as competências do Juiz, do Ministério Público e da Polícia de Investigação na fase preparatória dos processos penais

A Lei Penal deve clarificar as competências dos diferentes Órgãos na fase

preparatória dos processos penais de acordo com o consagrado na

Constituição, designadamente no artigo 186º. Um dos objectivos de uma Lei de

Bases da Política Criminal é definir quem é quem na investigação criminal e os

poderes que deve assumir, considerando o modelo de investigação criminal

constitucionalmente consagrado, nomeadamente os papéis atribuídos aos

Órgãos de Polícia Criminal, ao Ministério Público, ao Juiz de Julgamento e ao

Juiz de Garantias. No caso de Angola, o novo enquadramento constitucional,

sem que tenha sido ainda secundado pela necessária reforma penal torna os

papéis dos sujeitos encarregues da fase preparatória dos processos penais

pouco claros. O que significa que é importante assumir, na Lei e na prática, a

atribuição da titularidade da Acção Penal e da investigação criminal ao

Ministério Público, bem como definir quais as competências a atribuir ao Juiz

de Garantias, concretizando um dos princípios fundamentais de um Processo

Penal democrático, que é o de que o Juiz que investiga não julga. O respeito

pelos princípios da independência e imparcialidade, absolutamente essenciais

para a própria legitimação dos Tribunais, só assim pode ficar assegurado.

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Para uma Política Criminal em Angola

116

Na concretização da orientação constitucional, a Lei deve determinar que só

um Juiz pode tomar decisões ou permitir a prática de actos processuais que

restrinjam direitos fundamentais, nomeadamente nas fases preliminares do

processo. Ou seja, o ordenamento jurídico-penal deve prever a existência de

um Juiz de Garantias que, com independência e imparcialidade, tome decisões

susceptíveis de afectar, na fase de investigação, os direitos fundamentais dos

cidadãos, como é o caso das medidas de coacção privativas da liberdade.

Dada a natureza da investigação criminal, que compreende o conjunto de

diligências destinadas a averiguar a existência de um crime, determinar os

seus agentes e a sua responsabilidade e descobrir e recolher as provas, deve

ter-se em conta a necessidade de respeitar os controlos de actuação externos

e internos que não devem permitir a concentração numa única entidade do

conjunto de poderes que são dados a quem investiga. Consideramos, por isso,

que seja qual for o modelo de investigação a prosseguir, é importante separar

as competências dos Órgãos de Polícia de Segurança e Defesa Nacional, dos

Órgãos de Polícia de Investigação Criminal, ainda que na dependência da

mesma autoridade ou Ministério. Nesse sentido, deverá reforçar-se a

autonomia da Polícia de Investigação Criminal face à estrutura de Segurança,

dotando os seus Agentes de formação específica para que, no exercício da

função de investigação criminal, compreendam que estão sempre

processualmente dependentes do Ministério Público ou do Juiz de Garantias.

Esta dependência, não sendo uma dependência orgânica, é fundamental para

evitar mecanismos de arbitrariedade no exercício da investigação criminal e

abusos que possam ser cometidos, tendo em conta os enormes poderes de

facto que a investigação criminal comporta. Esta dependência dos Órgãos

Judiciais deve ser assumida por toda a hierarquia da Polícia Nacional. Uma

coisa é a dependência orgânica, no caso concreto da responsabilidade do

Ministério do Interior, outra coisa é a dependência no âmbito do Processo

Penal, das Magistraturas (Ministério Público e Juiz de Garantias).

Devem, ainda, estabelecer-se mecanismos de fiscalização dos Órgãos de

Polícia Criminal, por parte do Ministério Público e do Juiz, no domínio do

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

117

processo, bem como de auditorias no próprio Sistema Policial. Sublinhe-se que

num sistema em que a Polícia está organicamente dependente de um

Ministério (portanto no âmbito do Poder Executivo) devem prever-se

mecanismos de fiscalização amplos no âmbito das competências da

investigação criminal, nomeadamente com a possibilidade do Ministério Público

puder efectuar a fiscalização das acções de investigação criminal da

competência da Polícia (e só estas). Nesse sentido, destaca-se na Proposta de

Lei, entre outros, a previsão da fiscalização da actividade processual da Polícia

de Investigação por parte do Ministério Público.

6.6. Determinar os órgãos com competência para a definição da política criminal

Uma Lei de Bases da Política Criminal deve estabelecer que é o Poder

Executivo, como responsável pela Política Pública de Justiça, que apresenta à

Assembleia a Lei que conforma e decide quais as prioridades que irão vigorar

num determinado período, bem como a posterior avaliação da sua execução.

É, assim, o Poder Executivo o responsável primeiro da Política Criminal de um

País. A responsabilidade do Poder Executivo deve, no entanto, ter em conta

que a execução das prioridades depende, em regra, da intervenção de outro

poder: o Poder Judicial.

A Proposta de Lei que define quais a prioridades para um determinado período

deve, por isso, ser precedida da audição de um conjunto de entidades –

Ministério Público, Conselho Superior da Magistratura, Polícia Nacional, Ordem

dos Advogados – que, de forma sustentada, devem poder pronunciar-se sobre

como consideram dever concretizar-se o Programa de Política Criminal para o

período em causa e quais os meios necessários para o concretizar.

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119

7. OUTRAS RECOMENDAÇÕES CONEXAS

7.1. Conhecimento real da situação criminológica do país

O fundamento das escolhas que irão sustentar uma determinada Política

Criminal, essencial na legitimação da própria Política Criminal, ou seja a base

criminológica onde se sustentam os objectivos que se pretendem alcançar com

Lei, deve partir de um conhecimento real da situação criminológica de um País.

Daí que consideremos fundamental desenvolver um conjunto de estudos

criminológicos, sociológicos e de análise estatística que possam responder a

essa necessidade. Como acima referimos, a Lei de Bases da Política Criminal

tem um amplo campo de aplicação, tratando de matérias relacionadas com a

prevenção e a investigação criminal, com o tratamento processual dos crimes e

mesmo com a aplicação de sanções. Abrange, por isso, realidades, ainda que

interligadas, diferentes a exigirem respostas diferenciadas. A definição das

prioridades de investigação criminal exige, assim, um conhecimento sólido,

com base em estudos empíricos, dos fenómenos criminais nas suas várias

vertentes e das cifras ocultas do crime, de modo a identificarem-se os crimes

mais presentes e mais danosos para os cidadãos e para a sociedade em geral.

7.2. Reforma da legislação penal

A relação entre a Organização da Investigação Criminal e o Sistema Penal e

Processual Penal impõe uma forte articulação entre a Lei de Bases da Política

Criminal e o modelo de Sistema de Processo Penal. No caso de Angola, não

pode deixar de sublinhar-se o facto dos Códigos Penal e de Processo Penal

permanecerem, na sua essência, diplomas herdados do período colonial, com

uma estrutura pouco compatível com a organização de um Estado Democrático

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Para uma Política Criminal em Angola

120

de Direito e, sobretudo, desadequado ao novo enquadramento constitucional e

às exigências da concretização de uma Política Criminal no Século XXI.

Além da reforma dos Códigos, que urge concluir, é importante elaborar um

conjunto de Leis, como por exemplo, no âmbito dos mecanismos de diversão,

da justiça de crianças e jovens, da organização judiciária, etc., que permitam

articular e pôr em funcionamento todo um sistema normativo na área da Justiça

Penal, fundamental a um Estado Democrático de Direito. Experiências bem

sucedidas em outros Países mostram a importância das reformas no âmbito do

Sistema Penal levarem em consideração a mudança, em simultâneo, de Leis

substantivas, Leis adjectivas e Leis organizatórias. A Suíça é um exemplo

paradigmático de como um Estado Federal com vinte e quatro cantões, quatro

línguas e várias subculturas, concretizou, entre 2006 e 2011, uma unificação

normativa no domínio do Sistema Penal, transformando toda a organização

complexa de vinte e quatro «estados» numa única ordem jurídica federal

unificada, quer no domínio do Processo Penal, quer no domínio da organização

judiciária, quer, ainda, no domínio da estrutura do Ministério Público.

7.3. Formação profissional

A par das reformas de natureza legal importa criar as condições para a sua

plena e efectiva aplicação prática. Dotar os Órgãos Policiais e Judiciais de

recursos materiais e humanos é essencial, dadas as elevadas carências dos

vários tipos de recursos, exigindo, assim, ao Executivo um forte investimento

neste sector do Estado.

Numa outra vertente, salientamos a importância da componente formativa para

o sucesso das reformas. Revela-se essencial um forte investimento na

formação dos profissionais, e não apenas formação técnico-jurídica, mas

também formação multidisciplinar e especializada. As prioridades formativas

devem ser orientadas em função das linhas estruturantes e dos objectivos

estratégicos de Reforma. No caso da Justiça Penal, deverá ser desenvolvido,

em especial, um plano estratégico de formação dirigido aos Magistrados e aos

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Relatório da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal

121

Órgãos de Polícia Criminal envolvidos na investigação da criminalidade grave e

complexa. Tal formação deve preceder futuras colocações no desempenho

daquelas funções. Também a Ordem dos Advogados deve dar mais atenção,

ao fixar os conteúdos formativos dos planos de formação, aos desafios que a

actual Justiça Penal coloca aos seus profissionais. Mas, a formação deve

também permitir mudanças na Cultura Judiciária que reforcem o respeito pelos

direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.

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DISCUSSÃO DA PROPOSTA DE

ANTEPROJECTO DA LEI DE

BASES DA POLÍTICA CRIMINAL

CONTRIBUTOS

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ÍNDICE

NOTA PRÉVIA ............................................................................................................................................. 127

1. Prevenção da Criminalidade .................................................................................................................. 129

2. Ministério Público.................................................................................................................................. 130

3. Juiz de Instrução / Juiz das Garantias .................................................................................................... 132

4. Medidas Privativas da Liberdade .......................................................................................................... 138

5. Definição das Prioridades ...................................................................................................................... 141

6. Título da Lei ........................................................................................................................................... 141

7. Outras Questões .................................................................................................................................... 143

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127

NOTA PRÉVIA

Apresentam-se neste documento as posições dos intervenientes no Seminário realizado

em Fevereiro de 2012 com vista à discussão de uma versão preliminar da Proposta de

Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal e os contributos que, posteriormente,

nos foram enviados por escrito. Todos os contributos foram transcritos na íntegra,

sendo aqui apresentados de acordo com uma sistematização por grandes temas,

garatindo o anonimato daqueles que nos chegaram a título individual. A proposta final

que foi apresentada beneficiou em muitos de todos contributos. A todas as pessoas e

entidades queremos deixar o nosso penhorado agradecimento pela sua participação

nesta discussão.

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129

1. PREVENÇÃO DA CRIMINALIDADE

Ministério do Interior

A prevenção da criminalidade deve ser uma aposta no âmbito da Política Criminal e, em

particular, no que respeita ao tratamento especial que deve ser dado à criminalidade

juvenil.

Direcção Nacional de Investigação Criminal (Ofício N.º

27/GAB.DIR.NAC/DNIC/2012, de 17 de Fevereiro)

“No domínio da prevenção da criminalidade, o texto privilegia o desenvolvimento de

programas que tenham em conta, fundamentalmente, os aspectos ligados à perigosidade

social e a complexidade dos fenómenos criminais, considerando-se a prevenção como um

dos alicerces da política criminal.

Assim sendo, em vez de uma Lei-Quadro, de conteúdo marcadamente pragmático, (…)

pensamos que tais disposições teriam acolhimento mais apropriado em diplomas com

dignidade de Lei, porém, apresentados à aprovação do colégio parlamentar, para

vigorarem por períodos previamente definidos, tendo em atenção as metas a alcançar em

cada particular domínio.

Outro aspecto a considerar na elaboração dos instrumentos legais acima sugeridos, é a

necessidade de participação directa dos órgãos superiores da magistratura judicial e do

Ministério Público, assim como os de Polícia Criminal, Segurança e Ordem Interna e Ordem

dos Advogados, devendo igualmente acautelar-se a componente repressiva da aplicação da

lei, com vista a se obter os melhores resultados na sua implementação”.

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Para uma Política Criminal em Angola

130

Parecer do Ministério do Interior (Ofício N.º 3892/GAB.MINIT/12, de 09 de Abril

“No domínio da Prevenção da Criminalidade, o texto privilegia o desenvolvimento de

programas que tenham em conta, fundamentalmente, os aspectos ligados à perigosidade

social e a complexidade dos fenómenos criminais, considerando-se a prevenção como um

dos alicerces da política criminal.

Assim sendo, em vez de numa Lei-Quadro, de conteúdo marcadamente programático, salvo

diferente opinião de V.Excias., entendemos que tais disposições teriam acolhimento mais

apropriado em diplomas com dignidade de Lei, porém, apresentados à aprovação do

colégio parlamentar, para vigorarem por períodos previamente definidos, tendo em

atenção as mestas a alcançar em cada particular domínio.

Outro aspecto a considerar na elaboração dos instrumentos legais acima sugeridos, é a

necessidade da participação directa dos órgãos superiores da magistratura judicial e do

Ministério Público, assim como os de Polícia Criminal, Segurança e Ordem Interna e da

Ordem dos Advogados, devendo igualmente acautelar-se a componente repressiva da lei,

com vista a se obter os melhores resultados na sua implementação”.

2. MINISTÉRIO PÚBLICO

Ministério do Interior

É essencial proceder à clarificação e definição dos papéis a desempenhar por cada um

dos agentes judiciários de forma a que estes possam ser responsabilizados pela sua

acção. O artigo 9.º contempla uma questão que pode levantar algumas dúvidas. O que se

pretende é que o MP passe a ser fiscalizado pelos juízes?

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Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal- Contributos

131

Direcção Nacional de Investigação Criminal (Ofício N.º

27/GAB.DIR.NAC/DNIC/2012, de 17 de Fevereiro)

“De facto, sendo a Assembleia Nacional e o Executivo órgãos de soberania com

competência em matéria de direitos, liberdades e garantias, têm o dever constitucional de

definir através de Lei de Bases, os princípios conformadores da política criminal em Angola

cuja execução cabe, prima facie, ao Ministério Público e, complementarmente, aos órgãos

especiais de polícia criminal, relativamente aos quais, aliás, não se deverá perder de vista a

sua estruturação orgânica e unitária já constitucionalmente consagrada”.

Parecer do Ministério do Interior (Ofício N.º 3892/GAB.MINIT/12, de 09 de Abril)

“De facto, sendo a Assembleia Nacional e o Executivo órgãos de soberania com

competência em matéria de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, têm o dever

constitucional de definir, através de Lei de Bases, os princípios conformadores da política

criminal em Angola, cuja execução cabe, prima facie, ao Ministério Público e,

complementarmente, aos órgãos especiais de polícia criminal, relativamente aos quais,

aliás, não se deverá perder de vista a sai estruturação orgânica unitária já

constitucionalmente consagrada.

Teríamos, assim, dois instrumentos legais distintos, um contendo os princípios da política

criminal, isto é, as linhas mestras da política pelas quais se deve reger a legislação do

domínio da prevenção e repressão da criminalidade (Lei de Bases) e outro, determinando o

alcance exacto de tais princípios, através de normas aplicáveis a casos concretos (Lei da

Política Criminal).

Em nossa opinião, enquadrar-se-iam no primeiro caso, por exemplo, todas as disposições

contidas no Capítulo VI do actual anteprojecto, havendo a referir, no n.º 2 do artigo 23.º,

além dos órgãos citados, a necessidade de inclusão do Consleho Superior de Segurança

Nacional”.

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Para uma Política Criminal em Angola

132

3. JUIZ DE INSTRUÇÃO / JUIZ DAS GARANTIAS

Docente da FDUAN 1

O artigo 9.º ainda exige alguma concretização. Fala-se apenas de magistrado judicial e

isto pode levar a diversas orientações. Quem é este juiz? É o juiz da causa? O Juiz das

garantias? O juiz de instrução? Não podemos esquecer que temos uma tradição

enraizada segundo a qual esta é uma competência do MP. E por isso não basta dizer que

é juiz. É necessário concretizar. A formulação não é clara e pode levar a diferentes

interpretações.

A CRA fala apenas de magistrado judicial. Não concretiza. Mas, ainda que seja o juiz de

instrução, isso não retira as competências que são próprias do MP. O juiz de instrução

não dirige a instrução.

Magistrado do Ministério Público1

O artigo 9.º permite fazer uma interpretação extensiva. É necessário clarificar quem é o

magistrado judicial. Além disso devemos repensar esta solução. Há 30 anos que esta é

uma atribuição do MP e o país está assim organizado. E não podemos esquecer que uma

alteração deste tipo pode ter graves consequências práticas, levando a que tudo fique

parado. É que nem sequer temos juízes suficientes para uma solução deste tipo. Quem é

que vamos mandar para o interior? Não temos juízes para colocar em todo o lado. E o

que vai acontecer é que a reforma não vai poder ser concretizada. E fica tupo parado. O

MP deixa de poder fazê-lo e não há juízes que o façam. O Estado vai levar muito tempo a

implementar uma reforma deste tipo. Antes de se avançar era essencial formar juízes em

número suficiente.

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Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal- Contributos

133

Magistrado do Ministério Público2

A CRA não impõe que haja um juiz de instrução, mas sim um juiz de garantias. E também

não impõe que seja o juiz a validar. O MP pode validar e o arguido que se sinta lesado

nos seus direitos em garantias passa a poder exigir a fiscalização do juiz.

Não podemos ter um juiz de instrução porque a instrução é do MP. A CRA apenas prevê

o juiz das garantias. Em caso algum se deve utilizar a expressão juiz de instrução. Não faz

parte da nossa tradição e pode levantar muitas dúvidas e interpretações erradas.

Magistrado Judicial

A solução da proposta faz todo o sentido. Aliás, além de juiz das garantias, deve ser um

juiz de instrução de forma a acabar com a situação actual de que o juiz que pronuncia é o

mesmo juiz que julga. Nesta Lei deve-se falar do Juiz de Instrução e do Juiz de Execução

das Penas. E se assim for, como deveria ser, deve ser concretizado em conformidade.

Ministério do Interior

A CRA é impositiva no que toca à fiscalização por parte do magistrado judicial. Trata-se

de um imperativo constitucional que deve ser respeitado. E não pode ser interpretado só

na perspectiva de um eventual recurso. Trata-se da fiscalização de toda a actividade do

MP que colida com os direitos e garantias dos arguidos.

DOCENTE DA FDUAN 2

Mas onde é que irá funcionar esse juiz das garantias ou o juiz de instrução? Nas

esquadras? Nos tribunais? Esta solução vai levantar muitas questões de ordem prática e

do ponto de vista da sua efectiva concretização.

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Para uma Política Criminal em Angola

134

Procuradoria-Geral da República junto da DNIIAE, (ofício n.º

77/GAB/PGR/DNIIAE/2012, de 10 de Fevereiro)

Alteração do artigo 9.º da Proposta de Lei:

“1. A lei, em especial a CRA incumbe ao Ministério Público dirigir a fase preparatória dos

processos penais e consequente validação das detenções e à aplicação das medidas

coactivas.

2. A fiscalização das garantias fundamentais dos cidadãos é assegurada por um

Magistrado Judicial, nas vestes de Juiz das garantias a ser instituído nas sedes dos

Tribunais de Comarcas ou junto dos organismos das autoridades judiciárias, assim como a

fiscalização da garantia da execução das penas nos moldes a definir em regulamento

próprio.

3. A fiscalização das garantias fundamentais dos cidadãos referida no número anterior é

de execução imediata mediante a simples reclamação do lesado ou do seu mandatário

judicial”.

Apresentam a seguinte fundamentação:

“I – Fundamentação jurídico-legal e político

No actual contexto processual penal a fase de investigação da existência ou não de crime

designadamente fase de Instrução Preparatória, dirigida pelo Ministério Público,

Magistrado competente para confirmar ou não a prisão ou outras medidas coactivas e

nunca por um Juiz de Instrução. Neste sentido quando muito um “Juiz das garantias” mas

em sede de fiscalização da aplicação das medidas coactivas pelo Ministério Público, tal

como impõe a al.) f) do art. 186º da Constituição da República de Angola.

Ora, a manter-se tal designação do Magistrado Judicial com os poderes enunciados poderá

haver confusão, inclusivamente, na entidade que garante as liberdades e ao mesmo tempo,

“priva essas mesmas liberdades”.

Entendemos que a dimensão constitucional do Ministério Público, em Angola não foi

substituída e nem sofreu limitações na sua acção, mesmo que seja para aplicar a medida de

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coacção mais grave que é a Prisão Preventiva na fase de Instrução Preparatória. E é assim

pois, o Ministério Público como Órgão de Justiça, visando a verdade material, baseia a sua

acção em critérios de legalidade e objectividade nos termos do n.º 2 do artº 185º da CRA.

No entanto havendo necessidade de reforçar as garantias dos cidadãos nos termos da al. f)

do artº 186 da CRA que o artº 9 pretende regular, foi instituída a figura do Juiz das

garantias a quem competira a fiscalização de medidas coactivas decretadas pelo

Ministério Público.

Esta sugestão decorre de facto de o Ministério Público não poder ser considerado como

parte do Processo Penal, pois, em bom rigor a noção da parte inquerida da sua

legitimidade nos termos em que o Código de Processo Civil a define, o Ministério Público

não tem interesse directo em demandar da procedência da acusação não deriva para o de

(Mº Pº) qualquer intenção. É o Mº Pº como o Juiz um Órgão Judiciário e o seu interesse real

só pode ser o interesse de realização da Justiça.

II – Quanto ao Juiz de Instrução

A Constituição da República de Angola introduziu em sede da instrução preparatória

dirigida pelo Ministério Público, a figura do Juiz como fiscalizador das garantias

fundamentais dos cidadãos (al. f) do artº 186º).

Da interpretação dessa norma constitucional que o presente projecto de diploma visa

regulamentar parece claro que “fiscalização das garantias fundamentais” não significa

nem de longe nem de perto “aplicação de medidas coactivas”.

Entendemos que o legislador constutuinte não pretendeu nem substituir nem restringir o

papel tradicional do Mº Pº no que tange à confirmação de prisão reforçou as garantias dos

detidos com introdução do juiz na fase de instrução preparatória, para efeitos de

fiscalização dessas mesmas garantias.

E este fundamento tem uma razão histórica.

Na vigência da Lei Constitucional Angolana de 1975 a legalização da prisão preventiva

incumbia ao Mº Pº, fora aprovadas várias leis, as quais de mantiveram em vigor, nunca

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Para uma Política Criminal em Angola

136

tendo sido questionada a inconstitucionalidade das suas normas, após a entrada em vigor

quer da Lei Constitucional revista aprovada pela Lei n.º 32/92, de 16 de Setembro quer da

Constituição da República de Angola de 2010.

De entre essas Leis, e para o caso que nos interessa, apontam-se a Lei n.º 5/90 de 7 de Abril

(Lei da PGR) [artº 2, als. f), g), h), artº 16 als. e), etc.,] bem como a Lei n.º 18-A/92 de 17 de

Julho, Lei da Prisão Preventiva em Instrução Preparatória [artºs 3º, 4º, 9º etc.] por força

destas leis a aplicação das medidas coacivas, incluindo a prisão preventiva, estava (como

ainda está) acometida ao Mº Pº. Repete-se: NUNCA TAIS NORMAS FORAM DECLARADAS

INSCONSTITUCIONAIS.

Do confronto do artº 63º al. h da CRA com o artigo 38º da Lei Constitucional de 1992,

parece não resultar nenhuma roptura com o sistema anterior, porquanto a CRA manteve a

figura do magistrado competente para a confirmação ou não da prisão. Não foi explicada

a razão pela qual este magistrado competente não possa continuar a ser o Mº Pº e seja

substituído pela figura do “juiz de instrução”.

Entendemos que a dimensão constitucional de Mº Pº não sofreu limitações na sua acção,

mesmo que seja para aplicar medida de coacção mais grave que é a prisão preventiva. É

verdade que tal é assim porque resulta da lógica da fase preparatória (inquisitória).

Inquisitória pois o Mº Pº procede oficiosamente às diligências de prova, como Órgão de

Justiça, visando a verdade material, ou seja, a culpa ou inocência do arguido, baseado em

critérios de legalidade e objectividade, como se verá mais adiante.

Entendemos igualmente, por essa mesma razão que as medidas de coacção devem

continuar a der aplicadas pelo Mº Pº por ser a entidade que está, na fase instrutória, em

melhor posição para as aplicar.

Finalmente, entendemos ainda não repugnar que este papel continue atribuído ao Mº Pº,

pois como é sabido as medidas de coacção são medidas cautelares e não medidas punitivas.

Ora, apenas estas, como é óbvio, podem ser aplicadas, exclusivamente, pelo Juiz.

Com estes fundamentos, somos de parecer que seja mantido o actual papel do Mº Pº que,

aliás, até o vem exercendo em localidades onde nem sequer existe um tribunal.

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Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal- Contributos

137

Ao “Juiz de Instrução” que preferimos designar por “Juiz das garantias”, em conformidade

com o disposto na al. f) do artº 186º da CRA, caberia o poder de fiscalizador dessas

garantias fundamentais dos cidadãos, quer através da providência de Habeas Corpus, por

prisão ou detenção ilegal, consagrada no artº 68º da CRA, quer para apreciar reclamações

sobre revogação, substituição ou reforço das medidas de coacção aplicadas, reexame dos

pressupostos da prisão preventiva, excesso de prisão preventiva bem como a interdição de

saída do País ou sobre a aplicação do aresto preventivo.

III – Quanto às Partes

Outra questão doutrinária, aliada, à primeira e que importa aclarar, tem haver com as

partes processuais em processo penal, portanto, como já referido, embora sendo um

processo basicamente acusatório integrado por um princípio de investigação. Por isso, em

nossa opinião deve falar-se não em parte, mas em sujeitos processuais.

Não será demais recordar que, nos termos do artº 186 da CRA, ao Mº Pº é deferida a

titularidade e a direcção da instrução preparatória dos processos penais (al. f), bem como

a competência exclusiva para a promoção processual penal e o exercício da acção penal

(al. c): daí que lhe seja atribuído, não o estatuto de parte mas o de uma autentica

magistratura (a magistratura do Mº Pº) sujeita ao estrito dever de objectividade e

legalidade (artº 185º CRA).

O Mº Pº, regendo-se pelos critérios da legalidade e objectividade, como ficou dito, não

interessado na condenação, mas unicamente na obtenção de uma decisão justa; nesta

medida ele partilha com o Juiz um dever de intervenção estritamente objectiva; e isto,

acentue-se, nas fases contraditória, e de julgamento presididas pelo Juiz, mas também e em

igual medida na fase de instrução preparatória de que ele é o domínuis.

“Do início até ao fim do processo, a vocação do Mº Pº não é a de “parte”, mas a de entidade

unicamente interessada na descoberta da verdade na realização do Direito, obedecendo

em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade. Logo a partir

daqui, falar de um “processo de partes” não tem qualquer sentido útil (ver Figueiredo Dias,

sobre os sujeitos processuais no novo código de processo penal, jornadas de Direito

Processual penal, o novo CPP, Almedina, 1998, P. 31).

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Para uma Política Criminal em Angola

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Ora, se assim é, não entendemos qual a razão para que o Mº Pº não possa continuar a

proceder ao primeiro interrogatório do detido para a confirmação ou não da prisão e

aplicar as respectivas medidas cautelares.

IV – Conclusão

Finalmente em jeito de conclusão importa referir que o Ministério Público é um Órgão do

Estado independentemente e outros Órgãos do executivo no exercício da sua actividade

jurisdicional; é um Órgãos bem organizado, disciplinado e estruturado à dimensão do

território angolano.

Cada País ou Nação faz a sua história e em Angola por razões históricas do nosso recente

processo revolucionário, o Mº Pº como acima ficou escalpelizado, validou prisões e

praticou actos que em nenhum momento feriram as garantias fundamentais dos cidadãos

e nem questionamentos no sentido negativo. Esta é uma tarefa tradicional do Mº Pº

conquistada por mérito próprio ao longo dos últimos de 36 anos da independência de

Angola.

Pelo tudo o que fica aqui expendido, nada obstem que o Mº Pº continue a exercer a mesma

tarefa, aliás, o único que na tua conjuntura está em condições, pois, além do domínio do

“dossier” ou matéria, tem quadros qualificados em todo o território nacional,

fundamentalmente, junto dos Órgãos Policiais que efectuam as detenções.”

4. MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE

Ministério do Interior

É imprescindível tratar nesta sede da questão do cumprimento das penas de prisão para

além da sua duração.

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Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal- Contributos

139

É redutor pensar que uma maior aplicação das medidas não privativas da liberdade é a

solução para todos os problemas. Elas têm que ser aplicadas sempre que a sua aplicação

se justifique, assim como a prisão preventiva também o deve ser sempre que estejam

reunidos os pressupostos. Devem dar-se orientações para a sua preferência, mas sempre

tendo em conta que, como disse, o fim último da política criminal é a segurança dos

cidadãos.

E também não se deve utilizar o argumento que as medidas não privativas devem ser

aplicadas para resolvermos o problema da sobrelotação das prisões. Não é este o

argumento. Elas devem ser aplicadas sempre que em concreto se justifique. O problema

da sobrelotação é bem mais amplo. Aliás, devo dizer que o problema da sobrelotação

tem origem distinta. A verdade é que o número de estabelecimentos prisionais não

acompanhou a evolução demográfica, nem a actuação mais eficaz de todo o sistema

judiciário. A sobrelotação tem que ser resolvida com o aumento dos estabelecimentos

prisionais e não com uma mera diminuição da aplicação das penas não privativas da

liberdade quando, em concreto, se justifique a sua aplicação.

Se assim não for vamos estar a dar um sinal muito perigoso: que o crime compensa.

Quem comete crimes tem que ser responsabilizado e há situações em que tal só é

possível com a aplicação de uma pena de prisão. Como disse anteriormente, além da

prevenção, temos que dar sinais de eficácia e assim afastar a ideia de que o crime pode

compensar. Só assim conseguimos salvaguardar a segurança dos cidadãos.

Docente FDUAN 1

Há uma tendência dos agentes judiciários para a utilização desmesurada das penas

privativas da liberdade. Os agentes judiciários têm o dever de agir em conformidade

com o princípio de que este tipo de medidas é a última ratio.

No artigo 17.º sugere-se a substituição da expressão “A lei processual penal deve” por

“Os órgãos judiciários devem”. Os actuais CP e CPP já prevêem medidas de coacção

alternativas às penas privativas da liberdade. A única medida que ainda não tem

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Para uma Política Criminal em Angola

140

consagração legal é a prisão domiciliária com recurso a meios electrónicos – mas nem

faria sentido que assim não fosse uma vez que não temos condições para implementar

tal medida. Deve-se alterar a formulação escolhida porque o problema não é com a

previsão legal, mas sim com a concretização dessa previsão legal. Isto só se resolve com

pedagogia e formação dos órgãos judiciários que promovem a sua aplicação. Mas, além

disso, também é necessária a sua responsabilização – o que só se consegue com uma

previsão legal concreta desta sua obrigação.

Não se trata de uma previsão legal que consagre uma interferência no poder judicial.

Não se trata de um caso em concreto. Ainda que possa ser uma injunção meramente

indicadora. O poder judicial é que vai analisar o caso concreto porque não se estabelecer

nada em concreto.

Magistrado Judicial

Uma causa que contribui para a aplicação excessiva das medidas de privação da

liberdade é a própria Lei da Prisão Preventiva que permite que esta seja aplicada a

crimes puníveis com pena superior a 2 anos.

A redacção do artigo 17.º deve ser concretizada. A problemática da celeridade é um

problema dos órgãos judiciários e não do poder legislativo, executivo e judicial. É

verdade que as medidas alternativas já têm consagração legal. Essa não é a questão. O

problema que temos é na sua aplicação e, portanto, dos agentes que aplicam a lei. Como

sabemos é mais facial, tanto para a polícia, como para o MP, prender do que aplicar uma

outra medida, mesmo quando tal não se justifique.

Magistrado do Ministério Público2

Este é um problema de falta de consciencialização dos deveres dos agentes judiciários.

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Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal- Contributos

141

5. DEFINIÇÃO DAS PRIORIDADES

DNIC

A formulação que se faz relativamente à periodicidade com que se devem definir as

prioridades é demasiadamente genérica. Dever-se-ia especificar em concreto os prazos

em que toda esta matéria deveria respeitar.

No que respeita à audiência que deve ser feita às várias entidades dever-se-ia ouvir o

Conselho de Segurança Nacional.

Direcção Nacional de Investigação Criminal (Ofício N.º

27/GAB.DIR.NAC/DNIC/2012, de 17 de Fevereiro)

“(…) devendo ser salvaguardada uma definição expressa dos crimes prioritários, bem como

a estatuição dos fins, prioridades e regras conformadoras da Política Criminal”.

6. TÍTULO DA LEI

Docente FDUAN 1

A opção mais certa seria “Lei-quadro de política criminal” dado que ao colocar

“organização e “investigação” corre-se o risco de espartilhar ainda mais estas matérias –

que já são tratadas em diplomas próprios. Além disso são poucos os artigos que tratam

da organização e da investigação e, portanto, o título escolhido acaba por não reflectir o

conteúdo da lei. Todavia, estes artigos podem e devem manter-se uma vez que quando

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Para uma Política Criminal em Angola

142

falamos de política criminal falamos necessariamente de organização e investigação

criminal. Trata-se apenas de um ajustamento do título ao conteúdo.

DNIC

A nova CRA não prevê “Leis-Quadro” mas sim “Leis de Bases”.

Direcção Nacional de Investigação Criminal (Ofício N.º

27/GAB.DIR.NAC/DNIC/2012, de 17 de Fevereiro)

“A correspondência a nós endereçada, datada de 6 de Fevereiro de 2012, refere-se à

Proposta de Lei de Bases da Política Criminal”, designação que, quanto a nós, nos parece

ser mais adequada por ir de encontro ao actual texto constitucional, relativamente à

expressão Lei-Quadro constante do Documento Interno – Versão Provisória.

Por outro lado, foi-nos solicitado parecer sobre a Proposta de Lei de Bases da Política

Criminal, mas foi-nos enviado o documento com o título Proposta de Anteprojecto da Lei-

Quadro da Política, organização e Investigação Criminal, tema que consideramos diverso

daquele e por isso mesmo merecedor de diferente abordagem.

De facto, é notória no documento a formulação de normas sobra a organização, estrutura

e atribuições de órgãos judiciais e do Ministério Público, matérias estas já devidamente

acolhidas em outros instrumentos legais, razão pela qual sugerimos a sua consequente

supressão”.

Parecer do Ministério do Interior (Ofício N.º 3892/GAB.MINIT/12, de 09 de Abril)

“A título introdutório importa, antes de mais, referir que a correspondência a nós

endereçada refere-se à Proposta de Lei de Bases da Política Criminal, designação que,

quanto a nós, nos parece ser mais adequada por ir de encontro ao actual texto

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Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal- Contributos

143

constitucional, relativamente à expressão Lei-Quadro, constante do Documento Interno –

Versão Provisória, nos ermos dos artigos 164.º 165.º.

Por outro lado, foi-nos solicitado parecer sobre a Proposta de Lei de Bases da Política

Criminal, mas foi-nos enviado o documento com título Proposta de Anteprojecto da Lei-

Quadro da Política, Organização e Investigação Criminal, tema que consideramos diverso

daquele e por isso mesmo merecedor de diferente abordagem.

De facto, é notória no documento a formulação de normas sobre a organização, estrutura

e atribuições de órgãos judiciais e do Ministério Público, matérias estas já devidamente

acolhidas em outros instrumentos legais, razão pela qual sugerimos a sua supressão”.

7. OUTRAS QUESTÕES

Ministério do Interior

A Política Criminal a definir não pode descurar as especiais necessidades em matéria de

fortalecimento das medidas de reinserção social em geral e, em particular, quando

estejam em causa arguidos que cumpriram pena de prisão. (…) É essencial reforçar o

sentimento de segurança das populações e apostar na responsabilização dos agentes

pela prática dos seus actos. Não menos importante é criar condições para dar efectiva

execução às orientações que vierem a resultar da Lei de Política Criminal. (…)Devem-se

analisar os dados estatísticos, avaliar o fenómeno da criminalidade, promover estudos

sobre estas matérias, em cada ano. Só assim vamos conseguir adequar a lei à realidade e

dar orientações precisas aos agentes que estão no terreno. Só o conhecimento da

realidade nos permite ter uma actuação eficaz. A regularidade da avaliação é essencial.

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Para uma Política Criminal em Angola

144

Docente FDUAN 1

O artigo 7.º (Celeridade na investigação e no julgamento da criminalidade) é

demasiadamente abstracto. O que se está a fazer é atribuir incumbências em matéria de

celeridade ao poder legislativo, executivo e judicial quando este é um problema dos

agentes judiciários. O problema da morosidade tem rosto. Por isso, deve fazer-se

referência directa aos agentes. Há órgãos concretos que devem ser identificados. Esta é

uma obrigação concreta dos órgãos do judiciário, mormente do PGR. Este normativo

podia mesmo ir ainda mais além e concretizar a obrigação dos órgãos judiciários, além

de deverem actuar em conformidade com o princípio da celeridade, terem que propor

medidas concretas nesta matéria. (…) Faz-se referência a leis e institutos que ainda não

existem, nomeadamente aos mecanismos de diversão. Devemos traçar e conceber uma

Lei-quadro de Política Criminal tendo por base apenas os diplomas legais que já existem

à data. Não é prudente, nem operacional, que assim não seja. Não podemos ter uma lei

assente em futurologia.

DNIC

Tudo o que respeite à organização deve ser tratado em sede própria e não nesta lei.

Trata-se de uma matéria que deve ser tratada apenas nas respectivas leis orgânicas.

Esta proposta de lei é muito vaga. Devia ser mais concreta. Precisamos de uma lei que vá

mais ao pormenor, que concretize as coisas. Além disso deviam ser tratadas muitas

outras questões que não são abordadas e que dificultam em muito o nosso trabalho,

designadamente a questão da protecção das vítimas, dos agentes infiltrados, das escutas

e dos meios de obtenção de prova para os novos tipos de crime.

Não é uma lei deste tipo que precisamos mas sim uma lei muito mais concreta, que dê

resposta às nossas necessidades enquanto operacionais.

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Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal- Contributos

145

Magistrado Judicial

A necessidade de uma lei onde se defina a política criminal é uma realidade, mas

devemos ter tempo para a discussão e não ter pressas impostas por calendários

eleitorais. Devíamos ir mais devagar com toda esta reforma da Justiça.

O que deve ficar nesta lei são apenas os princípios gerais. Esta tem necessariamente de

ser uma lei geral.

A sistematização e a terminologia utilizada podem ser melhoradas.

Advogado

Esta lei devia contemplar matérias que não se encontram previstas: a protecção das

testemunhas e dos declarantes e, ainda, a definição dos limites ao segredo de justiça.

Direcção Nacional de Investigação Criminal (Ofício N.º

27/GAB.DIR.NAC/DNIC/2012, de 17 de Fevereiro

“Da leitura a este capítulo [Cap. I] concluímos pretender-se definir a política de segurança

pública, nomeadamente, no que diz respeito à prevenção da criminalidade e à repressão

dos fenómenos criminais, acções estas que envolveriam órgãos especializadas de

investigação criminal, prossecução penal e execução das penas.

O projecto propõe como objectivos gerais para a materialização da política de segurança

pública, a redução da criminalidade, a garantia e defesa dos direitos e bens dos entes

públicos e privados, incluindo a sua reinserção na sociedade.

Atendendo que, com a adopção de uma política criminal, se pretende definir objectivos,

prioridades e linhas de actuação, seria de todo aconselhável estabelecer regras explicitas

quanto à independência dos poderes intervenientes e quanto ao respeito pela legalidade

democrática, mormente em matéria penal e processual penal”.

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Para uma Política Criminal em Angola

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(…)

“Relativamente à competência jurisdicional, à diferenciação dos sujeitos passivos da acção

penal e da tipologia das condutas criminosas, às exigências no domínio da eficiência e

eficácia da investigação dos delitos, bem como das medidas penais de segurança e

privativas da liberdade, tratando-se de matérias de reconhecida importância, pensamos

conhecerem já, de algum modo, dignidade constitucional acolhimento especial no âmbito

do nosso direito positivo”.

(…)

“Teríamos, assim, dois instrumentos legais distintos, um contendo os princípios da política

criminal, isto é, as linhas mestras da política pelas quais se deve reger a legislação no

domínio da prevenção e repressão da criminalidade (Lei de Bases) e outro, determinando o

alcance exacto de tais princípios, através de normas aplicáveis a casos concretos (Lei de

Política Criminal)

Em nossa opinião enquadrar-se-iam no primeiro caso, por exemplo, todas as disposições

contidas no Capitulo VI do actual anteprojecto, havendo a referir, no n.º 2 do artigo 23.º,

além dos órgãos citados, a necessidade de inclusão do Conselho Superior de Segurança

Nacional”.

Parecer do Ministério do Interior (Ofício N.º 3892/GAB.MINIT/12, de 09 de Abril)

“Capítulo I (Âmbito e Objectivos)

Da Leitura a este capítulo concluímos pretender-se definir a política de segurança pública,

nomeadamente, no que diz respeito à prevenção da criminalidade e à representação dos

fenómenos criminais, acções estas que envolveriam órgãos especializados de investigação

criminal, prossecução penal e execução de penas.

O projecto propõe como objectivos gerais para a materialização da política de segurança

pública, a redução da criminalidade, a garantia e defesa dos direitos e bens dos entes

públicos e privados, incluindo a sua reinserção na sociedade

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Discussão da Proposta do Anteprojecto da Lei de Bases da Política Criminal- Contributos

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Atendendo que, com a adopção de uma política criminal, se pretende defenir objectivos,

prioridades e linhas de actuação, seria de todo aconselhável estabelecer-se regras

explicitas quanto à independência dos órgãos intervenientes e quanto ao respeito pela

legalidade democrática, mormente em matéria penal e processual penal.

Capítulo II (Princípios Gerais)

Contém normas concretizadoras dos objectivos enunciados no capítulo anterior,

designadamente no que se refere à garantia dos direitos e liberdades fundamentais, cuja

tutela, no âmbito da actual constituição, reputamos suficientemente eficaz.

Relativamente à competência jurisdicional, à diferenciação dos sujeitos passivos da acção

penal e da tipologia de condutas criminais, às exigências no domínio da eficiência e

eficácia da investigação dos delitos, bem como das medidas penais de segurança e

privativas de liberdade, tratando-se de matérias de reconhecida importância, pensamos

conhecerem já, de algum modo, dignidade constitucional, acolhimento especial no âmbito

do nosso direito positivo.

De qualquer modo, saudamos a sua inclusão na futura lei, devendo ser salvaguardada uma

definição expressa dos crimes prioritários, bem como a estatuição clara dos fins,

prioridades e regras conformadoras da Política Criminal em Angola”.