para que servem as instituicoes culturais em epocas de crise rui matoso 02 2015

10
 Para que servem as instituições culturais em épocas de crise ? T odos sofremos agora mais do que em qualquer outro momento  pela falta total de agentes, de instituições coletivas capazes de atuar efetivamente.  Zygmunt Bauman 1  [ Data e autor desconhecidos. ] Ao longo da história da humanidade, a formação da cidade enquanto território político de uma comunidade (  polis) ou das mais diversas instituições (políticas, sociais, culturais, cívicas, etc), surge como resultado da interação entre pessoas e a envolvente contextual com o propósito de organizar a vida colectiva em torno de princípios, valores e bens comuns (paz, saúde, liberdade, segurança, igualdade, educaç ão, cultur a,...) orientadas para promover a “vida boa” ( bios) na sua pluralidade de situações, e assim salvaguardar o futuro. Sem um nível ade qua do de inter ão social e simból ica que per mita ge rar laç os de pertença cultural, estimular novos vínculos sociais e simultaneamente produzir a capacidade para 1 http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=102739 Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]  DRAFT in progress / ESBOÇO em desenvolvimento

Upload: ruimatoso

Post on 07-Oct-2015

214 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Para que servem as instituições culturais em épocas de crise ?

TRANSCRIPT

  • Para que servem as instituies culturais em

    pocas de crise ?

    Todos sofremos agora mais do que em qualquer outro momento

    pela falta total de agentes, de instituies coletivas capazes de atuar efetivamente.

    Zygmunt Bauman1

    [ Data e autor desconhecidos. ]

    Ao longo da histria da humanidade, a formao da cidade enquanto territrio poltico de

    uma comunidade (polis) ou das mais diversas instituies (polticas, sociais, culturais, cvicas, etc),

    surge como resultado da interao entre pessoas e a envolvente contextual com o propsito de

    organizar a vida colectiva em torno de princpios, valores e bens comuns (paz, sade, liberdade,

    segurana, igualdade, educao, cultura,...) orientadas para promover a vida boa (bios) na sua

    pluralidade de situaes, e assim salvaguardar o futuro.

    Sem um nvel adequado de interao social e simblica que permita gerar laos de

    pertena cultural, estimular novos vnculos sociais e simultaneamente produzir a capacidade para

    1 http://outras-palavras.net/outrasmidias/?p=102739

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

    RuiTexto digitadoDRAFT in progress / ESBOO em desenvolvimento

  • partilhar novas ideias e novos mundos, uma instituio no cumpre o seu desgnio de nutrir e

    sustentar as relaes sociais. Neste sentido, uma instituio pode tambm ser vista como uma

    tecnologia social que possibilita a durabilidade e sustentabilidade de uma determinada sociedade.

    Uma instituio assim um coletivo de elementos em interao permanente com maior

    ou menor inrcia-, composto por actores humanos e no-humanos (mquinas), os quais em

    conjunto favorecem o desenvolvimento de estratgias de ao. No caso das redes telemticas,

    veja-se, por exemplo, o papel das tecnologias de mediao, nomeadamente nas redes sociais

    (facebook, twitter,etc.) e o potencial que comportam para criar ligaes online e offline.

    Na esfera pblica cultural uma das mais relevantes funes sociais das instituies,

    especialmente por via das prticas artsticas, a capacidade de criticar e propor alternativas ao

    status quo vigente, o qual se expressa na cristalizao das hierarquias, dos privilgios e das

    desigualdades. por esse motivo que uma sociedade democrtica no pede instituies

    paternalistas com modelos pr-concebidos, inculcados e administrados de cima para baixo,

    designadamente em pocas de crises mltiplas. As instituies devem antes conjugar as vontades

    coletivas e representar a sociedade civil (ou parte dela) face aos poderes polticos previamente

    institudos no mbito das constituies polticas republicanas, contribuindo desse modo para o

    desenvolvimento das sociabilidades, das solidariedades e para a intensificao da democracia.

    As instituies devem (re)conhecer e agir mediante os problemas concretos que afetam as

    sociedades em cada poca, funcionando como um dispositivo coletivo de resoluo/mitigao

    desses mesmos problemas. Os pblicos das instituies seriam ento mobilizados pelo

    pragmatismo e por uma tica que no fundada na noo de obrigao mas na noo de valor,

    porque para lidar com os problemas as pessoas teriam de ajustar o seu comportamento (atitudes,

    motivaes, estratgias, etc.) em relao situao concreta.

    Ao mesmo tempo que sustentam a coeso e o equilbrio necessrio construo social do

    mundo, as instituies (em geral) deveriam ser catalisadores do debate plural de ideias e projetos

    distintos - acolhendo o agonismo inerente s dissenses- de forma regular e sistemtica, pois a

    isso obriga a diversidade sociocultural. Neste aspeto fulcral que as instituies articulem

    estratgias de resistncia contra fenmenos extremos, em especial contra toda e qualquer

    configurao do fascismo, seja poltico, social, financeiro ou de outro gnero. Desse modo, abrem

    espao inovao social e ao questionamento radical, no ficando exclusivamente ao servio de

    esquemas reprodutores do condicionamento social e de comportamentos mimticos.

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

  • INSTITUIES CULTURAIS / CAPITALISMO SEMITICO

    O que capitaliza o capital poder semitico.

    Flix Guattari (A Revoluo Molecular)

    [ Damien Hirst, Lullaby, the Seasons (2002) -fragmento. ]

    O campo cultural, como qualquer outro campo, no o podemos esquecer, atravessado

    por foras de dominao e poder que atuam em diversos espaos sociais, com grande relevo no

    prprio aparelho de Estado e administrao pblica. Se entendermos que um equipamento

    cultural pblico (teatro, museu, etc.) representa a materializao histrica de um certo tipo de

    instituio cultural (material e simblica, espacial e semitica) - to antiga como o thatron grego

    podemos afirmar que tudo o que anteriormente referimos se aplica com maior acuidade ao

    sector cultural. Porqu? Porque importa reconhecer a indubitvel importncia da dimenso

    cultural (simblica) nos processos de individuao psicolgica e coletiva, certamente com

    diferentes nuances ao longo da histria, mas com um maior grau de complexidade nas atuais

    sociedades ditas do conhecimento e da informao.

    sabido que o capitalismo ps-fordista reveste-se de um investimento generalizado na

    flexibilidade dos processos, dos produtos, dos padres de consumo, dos mercados e da

    organizao do trabalho. Nesta situao, a crescente mercadorizao da cultura sob a gide do

    capitalismo tardio globalizado vem determinando a capitulao incondicional da cultura face aos

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

  • imperativos do capital global, numa lgica de comercializao generalizada de todos os aspetos da

    vida e do conjunto das relaes sociais.

    Sob estas condies, o cidado tratado simultaneamente como consumidor e como

    produto, como empreendedor que se explora a si mesmo de modo a produzir mais valias para o

    capital. Como Debord vaticinou, o espectculo o capital a um tal grau de acumulao que se

    torna imagem, e a imagem um objeto mediador das relaes sociais, o que significa que as

    relaes sociais mediadas pela cultura (imagens, artes, conhecimentos, etc.) ficam capturadas pela

    mesma lgica de mercantilizao infinita, que nos seus aspetos fundamentais significa:

    privatizao dos servios pblicos, precariedade generalizada, aumento da misria e pobreza...

    No horizonte do Capitalismo Cognitivo, Franco Berardi Bifo avana com o conceito de

    Cognitarian Subjectivation (Bifo, 2010) apropriando-se da noo de intelecto geral delineada por

    Marx no manuscrito Grundrisse. Actualizando a concepo inicial de Marx, Bifo incide a sua anlise

    nos excessos do trabalho semitico em torno da linguagem, do conhecimento e da informao,

    i.e., na produo daquilo que designa como info-mercadoria ou semiocapital: O semiocapital

    apropria-se das energias neuro-psquicas e coloca-as ao seu servio, submetendo-as s velocidades

    maqunicas e compelindo a atividade cognitiva a seguir o ritmo da produtividade das redes

    telemticas. (idem, traduo nossa).

    Tal como os peixes num aqurio dependem da qualidade da gua em que esto imersos,

    ns dependemos da atmosfera cultural existente a cada momento e daquela que soubermos

    produzir. As instituies devem por isso zelar pela boa qualidade da vida cultural, pela qualidade

    da vida mental e espiritual dos cidados, ou seja, pela defesa de um meio-ambiente cultural

    revitalizante, criativo, crtico e emancipador. Mas que processos de subjetivao individual

    (individuao psquica) e coletiva podem ocorrer no contexto do capitalismo cultural?

    Questionando de outro modo, qual o papel das instituies culturais num ambiente globalmente

    dominado pela ditadura dos mercados?

    Numa outra dimenso da cultura formas da religio -, a ideologia financeira apropriou-se

    e incutiu sobre os povos do sul (catlicos) a ideia de que a dvida pblica equivale a um pecado

    cometido contra o deus dinheiro, a anlise de Walter Benjamin em torno do Capitalismo como

    Religio esclarecedora, o capitalismo provavelmente o primeiro exemplo de um culto que no

    expiatrio (entshnenden), mas culpabilizador, evocando a ambiguidade da palavra alem

    Schuld, que significa ao mesmo tempo dvida e culpa. Neste sentido, o que o capitalismo tem de

    historicamente indito que, enquanto religio, no representa a ideia crist de salvao, mas

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

  • antes, a de runa do ser humano.

    Ainda que as instituies culturais forneam os meios (espao, tempo, pessoas, tecnologias,

    etc.) que possibilitam a interao social-simblica e a experincia esttica, tal funo no est

    isenta da sujeio aos mltiplos poderes e violncias simblicas que operam condicionamentos

    individuais e coletivos. Convm por isso ter um entendimento da instituio cultural (material:

    espao fsico ou intangvel -comunicao-) enquanto dispositivo sociotcnico transdutor, ou seja,

    enquanto ecossistema produtor de equilbrios meta-estveis (nem estveis, nem instveis) e

    interface por onde circulam as codificaes e as descodificaes das palavras-de-ordem e dos

    textos, em sentido lato.

    em interao com este meio-ambiente-cultural (o tal aqurio semitico) e espao de

    socializao secundria, que em parte se modulam as formas de pensar e agir dos indivduos, a

    individualidade e auto-identidade (self). A profundidade desta interao transdutiva, sabe-se hoje,

    no apenas entre individuo e ambiente, mas alcana o estrato neuronal e alteraes na

    neuroplasticidade induzidas pela intensa imerso em ambientes tecnolgicos. O homem assim o

    nico animal, diz Berardi Bifo, que desenvolve ambientes que por sua vez moldam o crebro

    humano.

    pois legitimo afirmar que as instituies culturais so co-responsveis pela qualidade das

    transaes, das interaes e das experincias, no podendo por isso demitir-se do seu papel

    mobilizador dos agenciamentos crticos que permitam a auto-reflexo individual e coletiva, em

    especial em pocas de crise e desorientao como aquelas que vivemos. Caso contrrio perdem

    valor institucional e no servem (ou pouco servem) funo de contribuir para o desenvolvimento

    e aperfeioamento das capacidades humanas e florescimento do bem-estar, solidariedade,

    liberdade, justia, democracia, etc.

    Se as instituies culturais pblicas, inerentes categoria do comum, no (re)agirem s

    dinmicas coercivas lanadas na sociedade - dinmicas que assumem contornos cognitivos,

    emocionais, afectivos e simblicos, mas que promovem igualmente a despolitizao de largas

    camadas da populao-, recriando novos paradigmas de interao e mediao cultural, ficam

    refns dos sistemas de dominao e controlo (mercados e governao).

    O reposicionamento das instituies culturais dever partir do reconhecimento dos

    problemas existentes a cada momento: para alm dos problemas locais, a questo da

    economia/hipertrofia da ateno, hipermediatizao, despolitizao, exausto psicolgica,

    precariedade laboral, angstia social, depresso econmica, alteraes climticas, guerra infinita,

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

  • etc, etc, etc. S reconhecendo, agindo e comunicando a partir da problematizao criativa dos

    problemas concretos que as instituies culturais validam a sua pertinncia junto dos pblicos

    emancipados os que potenciam a comunidade que vem.

    A comunicao assume assim a condio prvia de toda a participao e tambm da

    formao dos pblicos. O pblico neste contexto , na esteira do pragmatismo de John Dewey, um

    pblico poltico no sentido forte e associativo. No sendo um grupo ou comunidade naturalizado e

    dado antecipadamente, o pblico co-emerge atravs das interaes e transaes, e por isso

    mesmo no preexiste s condies e situaes que provocam essa emergncia. Ou seja, os

    pblicos so plurais e dinmicos, no so uma identidade cristalizada, existem em potncia,

    podendo ter existncia real caso se verifiquem as condies e os contextos necessrios interao.

    Por outro lado, as pessoas que integram esses pblicos - todos ns na medida em que

    somos simultaneamente leitores e produtores de textos - requerem um quadro de interao e

    participao, bem como delineiam um horizonte de expectativas que exige ateno e dedicao

    genuna por parte das instituies culturais. Os pblicos no so actores neutros e incapazes, antes

    pelo contrrio, transportam consigo toda um patrimnio de conhecimentos e capacitaes

    adquiridas ao longo da vida que lhes permitir averiguar e avaliar o valor das instituies. E o facto

    de estarmos hoje mais afastados da participao cvica e da interao social-simblica diz muito

    acerca do fracasso das instituies e do seu contributo para a vitalidade social e urbana.

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

  • CRTICA INSTITUCIONAL / PRTICAS INSTITUINTES

    Anger is an Energy.

    John Lydon

    Artistic freedom today should be tied to a different ideological project: an exploration

    of a principled fundamental democracy in which the imaginative force of art is

    a primary tool do defy rather than secure democratist monopolies of power.

    Jonas Staal

    [ Thomas Hirschhorn, Gramsci Monument (2013)]

    No decurso das primeiras vanguardas, designadamente do dadasmo, desenvolveram-se

    prticas artsticas sustentadas pela vontade de transformar as estruturas sociais, aproximando arte

    e vida num mesmo plano atravs de estratgias de arte crtica e poltica. A histria da arte

    contempornea prolixa na diversidade e intensidade de aes e processos que visam alterar a

    correlao de foras e poder no campo artstico e social. Joseph Beuys criou a Universidade Livre

    fundada sobre princpios de autonomia e autogesto. Hans Haacke vem trabalhando

    subversivamente por dentro das instituies, desconstruindo formas de dominao financeira e

    ideologias totalitrias. Mais recentemente, artistas como Christoph Schlingensief (1960-2010) ou

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

  • colectivos como Rimini Protocol criaram projectos que provocam instabilidade na perceo de

    fenmenos sociais, econmicos e polticos. Outros criam instituies e movimentos

    verdadeiramente implicados em problemticas sociais como Filip Noterdaeme e o seu Homeless

    Museum of Art, o Institute For Human Activities de Renzo Martens, a Church of Stop Shopping do

    Reverendo Billy ou o Imigrant Movement Internacional impulsionado por Tania Bruguera.

    Na vertente da Crtica Institucional so os artistas quem desencadeia as aes numa luta de

    tomada de posies na esfera das artes contemporneas, no combate contra a mercadorizao

    absoluta ou privatizao do valor artstico pelo mercado. A instalao GERMANIA de Hans

    Haacke para o pavilho alemo da Bienal de Veneza de 1993 considerada paradigmtica pela

    maneira como exps as relaes entre ideologia, histria e instituies de arte.

    O pensamento e a ao crtica relevam do questionamento da obedincia absoluta e da

    submisso dos sujeitos s formas autoritrias de governao. Nesse sentido a crtica requer uma

    prtica autocrtica que produza a transformao das subjetividades, implica por isso uma vontade

    de no querer ser governado atravs de polticas injustas e ilegtimas, mas tambm recusar as

    verdades ou as narrativas impostas de forma autoritria.

    Uma das linhas de interveno neste campo o denominado artivismo, cujas prticas vm

    sendo implementadas dentro e foras das instituies culturais, tornando-se muitas das vezes

    aliadas dos protestos cvicos ocorridos nas cidades. Em 2014 Rui Mouro criou mltiplas

    performances artivistas no confronto direto com instituies culturais pblicas, designadamente

    no Museu de Arte Contempornea - Museu do Chiado com a exposio Os Nossos Sonhos No

    Cabem nas Vossas Urnas! Apesar de nas ltimas dcadas o activismo artstico performativo estar

    praticamente desaparecido da rua, o colectivo Felizes da F (1985) trouxe entre os anos 80 e 90

    uma forma peculiar de provocar a ordem burguesa conservadora ligada ao regime de Cavaco Silva.

    No sector das artes visuais portuguesas, apesar de serem escassas as exposies com

    abordagens crticas e interventivas, a recente exposio O Tempo e o Modo, para um Retrato da

    Pobreza em Portugal, afirma que o pensamento cultural e artstico deve contribuir para uma

    reflexo e observao do estado da Pobreza, analisando a sua evoluo histrica, de forma a

    permitir um entendimento esclarecido e crtico da mesma, que seja til sociedade e aos

    cidados...numa proposta clara de pensamento como interveno. (Emlia Tavares e Paulo

    Mendes, 2014).

    A prtica crtica, seja em que campo for, no emana automaticamente de uma pressuposta

    liberdade inata da alma, nem fruto da espontaneidade individual, pelo que a sua existncia de

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

  • facto s vivel em contextos culturais propcios reflexo e interrogao das formas de poder,

    anlise dos discursos e das prticas de governao, ou desordenao das regras institucionais de

    produo e distribuio de conhecimento. Agir criticamente no actual contexto requer um

    entendimento de que os mecanismos de coero e condicionamento do capitalismo tardio e da

    tecnopoltica (biopoltica, biopoder, neuropoder,...) so hoje substancialmente distintos e

    atravessam integralmente os corpos e as mentes humanas, como Foucault, Deleuze ou Guattri

    souberam demonstrar. A passagem da sociedade disciplinar (Foucault) a uma sociedade de

    controle (Deleuze) introduziu novos dispositivos tcnicos que estendem as possibilidades de

    vigilncia ao infinito e aceleram as ligaes ao mundo virtual e tecnolgico. O controle hoje um

    dispositivo global contnuo e ilimitado, baseado na rapidez e no curto prazo, ao passo que a

    disciplina era administrada na longa durao. O homem ps-moderno j no exclusivamente

    disciplinado pelas estruturas hierrquicas de poder, mas passou a ser tambm o homem

    endividado pela fluidez abstracta do capitalismo.

    Na nossa atualidade ps-poltica, em que o discurso dominante tenta obstruir a prpria

    possibilidade de uma alternativa ordem atual (there is no alternative, j dizia a baronesa

    Margaret Thatcher em 1970), todas as prticas que possam contribuir para a subverso e a

    desestabilizao do consenso neoliberal hegemnico so certamente bem-vindas. isso que

    Chantal Mouffe advoga quanto se questiona acerca da conceo de estratgias artsticas na

    poltica e estratgias polticas na arte, mas tambm sobre o tipo de relao a ser estabelecida com

    as instituies: devem as prticas artsticas crticas estar envolvidas com as atuais instituies, com

    o objetivo de transform-las ou devem abandon-las por completo?

    O conceito de prticas instituintes, permite-nos reformular as relaes ente crtica e

    instituio cultural, vendo na crtica uma condio necessria aos processos de gesto, produo e

    mediao cultural, e na possibilidade de re-instituir a partir da intensificao da democracia e da

    participao. Desde logo isto significa, tal como referido anteriormente, partir do reconhecimento,

    anlise e problematizao criativa dos problemas concretos que afetam sociedades e grupos

    sociais concretos. Debater os problemas e elaborar estratgias e narrativas alternativas, construir

    vises contra-hegemnicas que favoream as transformaes desejadas.

    Diramos ento que a passagem de um paradigma fundado no protagonismo e iniciativa do

    artista (Crtica Institucional) para uma outra viso mais abrangente onde o artista, o activista entre

    outros actores sociais colaboram na construo de imaginrios sociais alternativos ou na

    democratizao das instituies (Prticas Instituintes), se deve necessidade de reagir a um

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]

  • agravamento global das condies de vida e intensificao complexa das crises no decurso da

    histria catastrfica do capitalismo. A mobilizao da imaginao radical (imaginar desde a raiz

    dos problemas) atravs de aes que convoquem a participao da arte na esfera sociopolitica e

    na vida comum. A imaginao radical, diz Max Haiven, surge na maioria das vezes de forma mais

    vibrante em quem encontra a maior ou a mais aguda opresso e explorao, e muitas vezes

    atrofiada e diluda em quem goza de maiores privilgios.

    O fundamental na ideia de prticas (artsticas/culturais) instituintes a confrontao com o

    democratismo, que por um lado representa o dispositivo global de manuteno de monoplios

    de poder (poltico, militar, financeiro) sob uma aparncia superficial (meditica) de democracia

    cada vez mais exposta nas suas verdadeiras intenes de dominao e controle; e por outro, est

    incorporado nos nosso habitus e estruturas de pensamento individuais e colectivas. Trata-se

    portanto de abrir espaos glocais de crtica e criao, momentos constituintes da democracia

    fundamental (Jonas Staal), logo, da democratizao de todos os campos, da ecologia, economia,

    poltica, arte, etc. Algumas dessas novas prticas instituintes tero passado, para alm de noutros

    territrios, tambm por aqui:

    Truth is Concrete um acontecimento que durou 24 horas/7 dias, e que reuniu mais de 200

    artistas, ativistas e tericos para produzir e discutir estratgias e tticas em arte e poltica.

    Beyond Allegories um debate no qual participaram 250 artistas, polticos, representantes

    sindicais, professores universitrios, dramaturgos, representantes de organizaes de refugiados e

    ONGs, jornalistas e estudantes. Reuniram durante sete horas na Cmara Municipal de Amesterdo

    para discutir o papel da arte no mbito da governana, mobilizao poltica e ao .

    Artist Organisations International rene mais de vinte representantes de organizaes

    fundadas por artistas cujo trabalho enfrenta as actuais crises na poltica, economia, educao,

    migrao e ecologia. Apresenta igualmente uma agenda sociopolitica que liga o campo da tica

    com a esttica. No sendo apenas um meio de "questionamento" e "confrontao", a organizao

    situa-se no campo da luta poltica diria.

    ECLETIS (European Citizens' Laboratory for Empowerment: Cities Shared) um projeto de

    cooperao entre diversas estruturas artsticas e culturais europeias, visando a implementao de

    processos para favorecer a integrao dos cidados na tomada de decises urbanas, valorizao da

    diversidade europeia, o dilogo intercultural e as novas tecnologias como fontes para estimular a

    criatividade e novas prticas.

    Rui Matoso 2015 | http://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | [email protected]