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Para Jessica Dandino Garrison

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Capítulo 1

É possível saber muitas coisas e, mesmo assim, não acre-ditar em nenhuma delas.

— Ada! Tens de beber alguma coisa! — A voz da Susan a ralhar. As mãos da Susan a empurrarem uma caneca de chá frio na minha direção.

— Não quero — respondi. — A sério que não.A Susan enrolou-me os dedos em volta da caneca.— Eu compreendo — disse ela —, mas, por favor, ao

menos tenta. É a última coisa que te vão deixar ingerir. Amanhã vais acordar com sede.

O meu pé direito era torto. Fora assim durante toda a minha vida. Os ossos do tornozelo cresceram revirados, de modo que as minhas unhas raspavam no chão e a sola do pé, que devia ficar para baixo, apontava para o céu. Caminhar era demasiado doloroso. E, apesar dos calos, a pele do pé rasgava-se e sangrava.

Esta noite no hospital, que agora vos vou contar, teve lugar no dia 16 de setembro de 1940 — há quase três anos. Era uma segunda-feira. A guerra entre Hitler e grande parte do mundo tinha começado há pouco mais de um ano. Onze anos após o início da guerra que travei com o resto do mundo.

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No dia seguinte, os cirurgiões planeavam cortar os ossos tortos do meu tornozelo e voltar a dispô-los numa coisa parecida com um pé funcional.

Encostei aos lábios à caneca de chá que a Susan me dera e obriguei-me a dar um gole. A minha garganta fechou--se. Engasguei-me. Voaram salpicos de chá para as cobertas e para o tabuleiro.

A Susan suspirou. Limpou o líquido entornado e depois fez sinal à enfermeira que andava a correr as cortinas negras para que viesse buscar o tabuleiro.

Desde o início da guerra que todas as noites tapávamos as janelas com cortinas escuras, para que os bombardeiros alemães não avistassem as luzes das nossas casas. O meu hospital não se situava em Londres que, por aqueles dias, era bombardeada todas as noites, mas isso não significava que não pudesse ser atingido. Era impossível adivinhar aquilo que os alemães seriam capazes de fazer.

— Uma carta para si, minha senhora — disse a enfer-meira, estendendo um envelope à Susan antes de pegar no tabuleiro.

— Entregue no hospital? Que estranho. — A Susan abriu-o. — É de Lady Thorton. — Desdobrou a carta. — Deve tê-la enviado antes de receber o meu recado com o endereço da pensão. Ada, tens a certeza de que não queres comer nada? Que tal uma torrada?

Abanei a cabeça. A gota de chá que engolira andava às voltas no meu estômago.

— Acho que vou vomitar.A Susan arquejou. Olhou para mim, tirou uma bacia

da prateleira inferior da mesa de cabeceira e colocou-a por baixo do meu queixo. Cerrei os dentes e segurei o vómito.

A mão da Susan tremia, assim como a bacia. Fitei-a. Empalidecera e os seus olhos estavam escuros e arregalados.

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— O que se passa? — indaguei. — O que diz a carta?— Nada — retorquiu ela. — Respira fundo. Isso mesmo.

— Pousou a bacia, dobrou a carta de Lady Thorton e guardou-a na mala.

Alguma coisa se passava. A expressão no rosto dela não enganava.

— É o Butter? — inquiri.— O quê?— Aconteceu alguma coisa ao Butter? — O Butter era o

pónei da Susan. Eu adorava-o. Permaneceria nos estábulos de Lady Thorton enquanto eu estivesse no hospital.

— Ah — disse a Susan. — Não. Quero dizer, Lady Thorton não mencionou o Butter, mas tê-lo-ia feito caso alguma coisa de errado se passasse.

— É a Maggie? — A Maggie era a filha de Lady Thorton, a minha melhor amiga.

— A Maggie está ótima — afirmou a Susan. Porém, a sua mão continuava a tremer ligeiramente e havia qualquer coisa no seu olhar. — Toda a gente da aldeia está bem.

— E o Jamie também — declarei. Era uma afirmação, não uma pergunta, porque tinha de ser verdade. O meu irmão Jamie não ficara na aldeia — estava ali, connosco. A Susan, o Jamie e o Bovril, o gato do meu irmão, encontra-vam-se instalados num quarto de uma pensão ali perto do hospital. O Jamie tinha ficado aos cuidados da proprietária da pensão.

O Jamie tinha 6 anos. Acreditáramos que tivesse 7, mas já estávamos na posse da certidão de nascimento e percebe-mos que era mais novo.

Eu tinha 11 anos. Há mais de uma semana que sabia a data verdadeira do meu aniversário, pois também já tinha a minha certidão de nascimento.

A Susan fez que sim com a cabeça.

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— O Jamie está bem.Respirei fundo.— Há alguma coisa que impeça a minha operação? —

Antes de a minha mãe ter tentado separar-nos da Susan, ela dissera-me que não podia dar autorização para a cirur-gia. Continuava sem poder fazê-lo, mas isso já não a preo-cupava. Explicou-me que, às vezes, aquilo que era correto e aquilo que era permitido eram coisas diferentes. Eu preci-sava da operação e ia fazê-la.

Parei de fazer perguntas.A Susan desviou o cabelo da minha testa. Eu afastei a

cabeça.— Não deixarei que nada te impeça de ser operada —

garantiu ela.Ainda assim, havia qualquer coisa na voz dela e na sua

expressão, e eu sabia que tinha que ver com a carta de Lady Thorton. Ela era capaz de irritar qualquer pessoa. Quando a conheci, antes de saber o seu nome, chamava-lhe a mulher da cara de ferro. Era uma pessoa dura e nunca sorria.

Ali, Lady Thorton não podia interferir na nossa vida. Havíamos perdido tudo, mas eu ainda tinha o Jamie, a Susan, o Bovril e o Butter. E amanhã teria a cirurgia. Era mais do que suficiente.

É possível saber muitas coisas e, mesmo assim, não acredi-tar em nenhuma delas.

Há pouco mais de um ano, aprendi a andar sozinha no apartamento de uma divisão, em Londres, onde vivíamos com a nossa mãe. Mantive esse acontecimento em segredo, limpando diariamente o sangue do chão antes de ela che-gar a casa. Desejava apenas poder sair do apartamento, não da cidade; mas aprender a andar salvou-me. Quando, por causa das bombas de Hitler, a minha mãe mandou o Jamie

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para longe, tal como outras mães fizeram com os seus filhos, eu aproveitei e fugi com ele. Acabámos a viver com a Susan, e com o Butter, numa aldeia costeira, em Kent.

A Susan não nos queria. Nós também não a quería-mos, mas eu queria o pónei dela, e tanto o Jamie quanto eu gostávamos da comida que ela fazia e, no final de contas, que-ríamos os três ficar uns com os outros. Claro que foi nessa altura que a nossa mãe decidiu aparecer para nos levar. E isso teve lugar há uma semana. A Susan decidiu lutar por nós, e meteu-se num comboio com destino a Londres. Graças a essa atitude, não estava ninguém em casa dela quando o bombardeiro alemão a destruiu por completo. Assim, a pior coisa que nos podia ter acontecido — o regresso da nossa mãe — tornou-se na melhor coisa que nos podia ter aconte-cido — não morrermos por causa de uma bomba.

Agora toda a gente agia como se a minha operação no dia seguinte fosse a melhor coisa de sempre, o que me levava a temer que corresse mal. A Susan argumentou que o resultado nunca podia ser mau. Disse que esperava que o meu pé fun-cionasse bem depois da operação, mas que, se isso não acon-tecesse, não fazia mal. Eu estava bem mesmo com o pé torto e ficaria bem depois da cirurgia, fosse qual fosse o resultado.

Talvez.Dependia inteiramente daquilo que cada uma de nós

entendia por bem.Continuávamos em guerra. As enfermeiras garantiam

que seriam capazes de levar rapidamente todos os doen-tes para a cave, caso soassem as sirenes. A verdade era que nunca o tinham feito, por isso quem poderia dizer se seriam de facto capazes?

A Susan inclinou-se para a frente e abraçou-me. Foi embaraçoso para ambas. Eu soprei o ar das bochechas. Continuava com o estômago às voltas.

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— Não te preocupes — disse a Susan. — Vejo-te ama-nhã de manhã. Agora dorme.

Não fui capaz de pregar olho, mas a noite passou de qual-quer maneira. De manhã, a Susan deu-me a mão enquanto a enfermeira empurrava a cadeira de rodas pelo corredor. Parámos ao lado de uma pesada porta branca. A enfermeira encarou a Susan e disse-lhe:

— A senhora não pode passar daqui.Não sabia que a Susan teria de me deixar e agarrei-me

à mão dela.— E se não resultar?Por momentos, os dedos dela apertaram os meus.— Coragem — aconselhou ela, e soltou-me a mão.

Na sala de operações, um homem com uma bata comprida aproximou-se de mim com uma máscara.

— Quando colocar isto sobre a tua boca — disse ele —, quero que contes lentamente até dez.

Depois do quatro não me lembro de mais nada.

Acordar do éter foi mais difícil. A minha perna direita estava imobilizada, presa. Não conseguia mover-me. Comecei a suar de tanto lutar para me libertar. Tinha sido apanhada num bombardeamento, estava enterrada sob escombros. Não era capaz de mexer a perna. Depois, vi-me novamente encurralada no armário húmido e frio por baixo do lava--louça, no nosso antigo apartamento de Londres. A minha mãe tinha-me fechado lá. As baratas…

— Pronto. — Era a voz da Susan, suave ao meu ouvido. — Acalma-te. Já acabou. Estás bem.

Não estava nada bem. Não no armário da cozinha, não com a minha mãe…

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Senti que alguém me prendia os braços. Que colocava um cobertor sobre o meu corpo e o enrolava bem à minha volta.

— Abre os olhos — pediu a voz da Susan num tom brando. — A operação terminou.

Abri os olhos. O rosto da Susan flutuou à minha frente num borrão.

— Estás bem — garantiu ela.Engoli a custo e contrapus:— Está a mentir.— Não estou.— Não consigo mexer a perna. A direita. A perna do pé

torto…— Não tens o pé torto — declarou a Susan. — Isso é

coisa do passado.

Recuperei totalmente a consciência a meio da noite. Havia biombos à volta da minha cama e uma luz débil atrás deles.

— Susan? — sussurrei.Uma das enfermeiras aproximou-se da cabeceira da

cama.— Tens sede? — perguntou ela. Assenti. Ela encheu-me

um copo com água e eu bebi. — E dói-te muito o pé?Não era capaz de mexer a perna direita porque os médi-

cos a tinham engessado depois da operação. Acabei por me lembrar. Sob o gesso, uma dor forte centrada em volta do tornozelo pulsava em direção ao joelho.

— Não sei — respondi. — Sempre me doeu.— Mais do que consegues suportar?Abanei a cabeça. Era capaz de suportar quase tudo.A enfermeira sorriu.— Pois é — disse ela. — A tua mãe disse que eras uma

menina corajosa. — Passou-me um comprimido para a mão. — Toma isso.

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— A Susan não é a minha mãe — informei. Felizmente. Engoli o comprimido e voltei a adormecer.

Quando abri os olhos de manhã, o rosto do Jamie estava a centímetros do meu. O cabelo dele parecia que não via um pente há semanas. Tinha os olhos vermelhos e inchados, e chorava. Em pânico, tentei sentar-me.

— O que foi?O Jamie lançou-se para cima da cama batendo no gesso.

Estremeci.— Devagar — aconselhou a Susan, puxando-o para trás.O meu irmão encostou-se a mim.Abracei-o e olhei para a Susan.— Diz-me o que se passou — pedi.— A notícia estava na carta de Lady Thorton — replicou

a Susan.Anuí. Já desconfiava.O Jamie respondeu:— A nossa mãe morreu.

É possível saber muitas coisas e mesmo assim não acredi-tar em nenhuma delas.

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Capítulo 2

Sabia que a minha mãe trabalhava à noite numa fábrica de munições, em Londres. Sabia que por aqueles dias

havia bombardeamentos brutais e medonhos na capital e que estes aconteciam todas as noites. Sabia que os alemães visavam principalmente as fábricas, e em especial as de munições. Eu própria tinha sido apanhada num bombar-deamento. Paredes de tijolo explodiram por cima da minha cabeça e, depois disso, os vidros partidos cobriram as ruas, como se fosse neve.

Por isso, sabia que a minha mãe podia morrer. Só não acreditava que isso viesse a acontecer. Apesar de todos os bombardeamentos, achava que a minha mãe viveria para sempre.

Achava que eu e o Jamie nunca seríamos livres.Abracei o meu irmão que soluçava. Voltou a bater-me

no gesso e eu lá consegui conter um grito.A Susan encaixou uma almofada entre o Jamie e a mi-

nha perna engessada. Em seguida, acomodou-se na beira da cama e esfregou-lhe as costas.

— É verdade? — indaguei.— É verdade — confirmou ela.— Verdade, verdadinha?

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— Lamento — disse a Susan.— Lamenta mesmo? — inquiri.E eu lamentava? Talvez. A minha mãe odiava-me.Nunca mais voltará a ver-nos, dissera-lhe há uma semana,

em Londres. Ela atirara de volta, Prometes?E assim seria.— Não é um final feliz — argumentou a Susan. — Não

é o pior final possível, mas não é feliz, e lamento por isso. No entanto, estou grata por ter terminado. A tua mãe já não te pode fazer mal.

— Pois não. — Não sei se a minha mãe e eu alguma vez poderíamos ter um final feliz. Sempre esperei que sim — claro, afinal, ela era minha mãe —, mas era outra das coisas na qual não acreditava totalmente. Virei-me para o Jamie. — Estás triste porquê? A mãe odiava-nos. Ela pró-pria o disse.

O Jamie chorou ainda mais.— Eu gostava dela — retorquiu.O meu irmão era uma pessoa melhor do que eu. Era

provável que amasse a nossa mãe. Eu não. Gostava de a ter amado. Sempre desejei que ela me tivesse amado.

Voltei a encarar a Susan.— E como deverei sentir-me? — Uma boa filha sentir-

-se-ia triste, presumi. Mas se a minha mãe estava morta, então eu já não era filha de ninguém.

Não me sentia triste. Nem feliz. Nem zangada. Não sen-tia nada.

A Susan apertou-me as mãos por cima das costas estrei-tas do Jamie.

— O que quer que sintas, está bem.— Existe alguma palavra para não sentir nada?— Sim — respondeu ela Susan. — Aturdida. Eu senti-

-me aturdida quando soube que a minha mãe tinha morrido.

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Fitei-a.— E a sua mãe morreu quando?— Há alguns anos. Vários meses antes da Becky.A Becky, a melhor amiga da Susan, morreu de pneumo-

nia três anos antes do início da guerra. Sabia disso. Tinham vivido juntas; a casa bombardeada da Susan pertencera pri-meiro à Becky, e havia sido ela a oferecer o Butter à Susan.

— Ambas as mortes foram duras — confessou ela. — Os sentimentos que nutria pela minha mãe eram mais complicados.

Soltei-lhe a mão.— E como foi que Lady Thorton soube da morte da

minha mãe? — Havíamos estado um ano sem saber nada da nossa mãe, apesar de todas as cartas que a Susan e eu lhe escrevemos, até que na semana anterior ela aparecera em pessoa e nos arrastara de volta para Londres.

— Eu tinha dado o novo endereço da vossa mãe ao SVF — explicou a Susan. — Um dos grupos em Londres con-tactou Lady Thorton. Suponho que estejam a controlar as listas de vítimas.

O SVF era o Serviço de Voluntariado Feminino. Realiza-vam trabalho relacionado com a guerra. A Susan fazia parte do grupo do SVF da nossa aldeia e Lady Thorton era a líder, sendo, por isso, a responsável pelas pessoas oriundas das zonas evacuadas, nos quais eu e o Jamie nos incluíamos.

A Susan tentou uma vez mais agarrar-me a mão, mas eu afastei-a. O Jamie não parava de chorar. Queria conso-lá-lo, mas sentia-me vazia por dentro. Não fazia ideia do que eu e o Jamie seríamos, agora que a nossa mãe estava morta. Poderíamos ficar com a Susan? Continuávamos a ser refugiados?

— E o que acontece agora? — quis saber.A Susan não respondeu logo.

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— Não sei — replicou. — Perguntarei a Lady Thorton sobre os preparativos que terão de ser feitos.

Pestanejei.O meu coração deu um salto.Não era a resposta que eu esperava.Não era a resposta que eu desejava.Preparativos.A palavra estava cercada de preocupação. Chegou numa

onda de pânico e aterrou no fundo do meu estômago. Onde a tinha já ouvido?

A Susan não disse, Não te preocupes. Não disse, Claro que ficarão a viver comigo. Não disse, Certificar-me-ei de que nada vos faltará.

Havia dito todas essas coisas no dia em que nos salvou da nossa mãe pela segunda vez, no dia em que a casa dela foi bombardeada. Disse que ficaríamos sempre juntos.

E eu acreditara nela.Estaria a mentir? Ou tudo teria mudado com a morte da

minha mãe?— Existe alguma palavra que signifique crianças cujos

pais morreram? — indaguei.A Susan engoliu em seco e respondeu:— Órfãos.Órfãos. Eu e o Jamie tínhamos deixado de ser refugia-

dos e passado a ser órfãos. Deixaríamos de ficar sob a pro-teção de Lady Thorton, e a Susan não poderia continuar a tomar conta de nós. Outra coisa bem diferente estava des-tinada aos órfãos.

Senti uma dor intensa por dentro, pior do que a dor no pé que sempre me acompanhara. Abracei o Jamie com força. Nunca permitiria que nos separassem.

— Em breve estarei a andar — declarei. — Nessa altura serei bastante útil.

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A Susan pestanejou.— A tua recuperação vai demorar alguns meses — disse

ela. — Sabes disso.— Sou muito trabalhadora — insisti.— Pois és — concordou a Susan. — Mas isso não fará

com que recuperes mais depressa. Não sei se te vão deixar sair do hospital, seja como for.

— E tenho de me ir embora logo? — Aquele dia estava cada vez pior.

— Não, não, claro que não. — A Susan parecia dis-traída. — Referia-me apenas ao funeral. Se houver. O que quer que se faça.

Funeral. Outra palavra que não compreendia. Mesmo depois de um ano a viver com a Susan, ainda havia muita coisa que eu não entendia. A nossa mãe nunca fora pessoa de muitas palavras e eram poucas as coisas que se conse-guia aprender a olhar pela janela de um apartamento.

Preparativos. «Encostem-se à parede», ordenara Lady Thorton há um ano, em setembro, na sua voz decidida de pessoa responsável pelo SVF. «Vamos tratar de todos os preparativos.»

Tínhamos acabado de sair do comboio que nos levara de Londres para a aldeia. Um rebanho de trinta crianças sujas e andrajosas, sendo o Jamie e eu os mais miseráveis do grupo. Eu estava quase morta do esforço de chegar até ali, o meu pé boto sangrava e doía tanto que os meus joelhos tremiam. Os aldeões foram passando, fitando-nos dos pés à cabeça.

Ao Jamie e a mim ninguém nos quis.Naquele instante estava de volta àquele lugar, mas mais

asseada e com o pé direito engessado.— É melhor ir-se embora — disse, virando as costas à

Susan. — Tem de começar a tratar dos preparativos.

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Capítulo 3

Quando a mãe me fechava em casa, ao menos podia andar pela única divisão do apartamento. Ali estava

limitada à cama do hospital, impotente, imóvel, longe do Jamie e do Butter.

Se tivesse de deixar a Susan, nunca mais veria o Butter.A Susan não gostava do Butter, pelo menos, não tanto

quanto eu. Ele era uma memória da Becky. Talvez a Susan me deixasse levá-lo emprestado, caso eu fosse parar a um lugar onde pudesse ter um pónei. De qualquer forma, era eu quem tomava conta dele.

Tapei o rosto com as mãos. As lágrimas ensoparam a almofada. Tentei não fazer barulho.

Talvez o Jamie pudesse manter o seu gato. O Bovril era um bom caçador de ratos. Até a nossa mãe teria deixado o Jamie ter um gato.

— Lamento o que aconteceu à tua mãe — sussurrou uma das enfermeiras mais jovens enquanto me entalava as cobertas.

Não respondi. A Susan ensinara-me a ser educada, mas eu não sabia o que era educado dizer quando as pessoas lamentavam a morte da nossa horrível mãe.

— O teu pai está no exército? — quis saber a enfermeira.

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Abanei a cabeça.— Está morto — sussurrei de volta. — Morreu há muito

tempo. Não teve nada que ver com a guerra. — Depois acrescentei: — Agora estamos órfãos.

A enfermeira fez uma expressão aflita.— Pobres crianças!Virei-me para a parede.— O que acontece aos órfãos? — perguntei. — Para

onde vão viver?— Para orfanatos, suponho — retorquiu a enfermeira.

— Mas de certeza que a vossa tia…— Ela não é nossa tia — esclareci.Quando, nessa tarde, a Susan regressou, eu fiz de

conta estar a dormir. Quando voltou depois da hora do lanche, trazia o Jamie consigo. Também trazia o nosso livro, The Swiss Family Robinson, o único que nos restava. Havia ficado no interior do abrigo antiaéreo quando a bomba caíra sobre a casa. Era bom saber que o abrigo sal-vara alguma coisa.

A Susan abriu na primeira página.— «O temporal já durava há vários dias» — leu. — «Por

seis vezes a escuridão se abatera…»— Não! — Tapei as orelhas com as mãos. — Por favor…

não quero…A família suíça naufragara numa bonita ilha onde tudo

lhes corria sempre muito bem. O Jamie adorava a histó-ria, ao passo que a mim sempre me desagradara. Naquele momento, detestava-a.

O Jamie e eu também tínhamos naufragado, mas afinal ninguém nos salvara. Não havíamos chegado a nenhuma ilha. Continuávamos a esbracejar para não nos afogarmos no mar revolto.

A Susan fechou o livro. Eu abracei o Jamie e chorei.

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* * *

Os dias passaram sem preparativos. Perguntei à jovem enfermeira como eram os orfanatos.

— Oh — disse ela, com uma expressão perturbada —, tenho a certeza de que alguns já devem ser lugares agradá-veis. Nada do que costumavam ser. Quero dizer, há comida suficiente e assim. Ninguém passa fome.

— E poderei ter lá um pónei? — inquiri.— Isso já não sei — replicou ela. O que significava que

não podia.

Os médicos apareciam todos os dias para apertarem e pica-rem a minha perna. Trocaram o gesso por outro gesso que parecia igualzinho ao primeiro. Não me deixavam andar de muletas. Não me autorizavam sequer a levantar da cama.

A Susan visitava-me todas as manhãs, o seu rosto sem-pre gentil e solidário. À tarde aparecia com o Jamie, assim que ele saía da escola.

Quando fomos viver com a Susan, ela arranjara-me umas muletas. Quando a minha mãe apareceu para nos levar de volta para casa, deitou-as fora. Por causa disso, o Jamie e eu fomos apanhados na rua durante o ataque aéreo a Londres. Eu não conseguira andar suficientemente depressa de modo a encontrarmos um abrigo antes de as bombas caí-rem. Ficámos na rua, encolhidos de medo sob uma sarai-vada de tijolos e vidro.

Uma das enfermeiras do turno da noite abanou-me.— Estás a gritar — disse ela. — Para.Eu tremia e estava lavada em suor.— Bombas — afirmei. — Uma parede caiu sobre a

minha perna. Não era capaz de me mexer.

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— Era um pesadelo — assegurou ela. — Acalma-te. Estás a assustar os mais pequenos.

A enfermeira afastou-se e eu fiquei a olhar para o teto. O meu coração batia a cem à hora. Senti vontade de fazer chichi, e isso implicava chamar a enfermeira e aliviar-me para uma arrastadeira, o que me lembrava os tempos em que a minha mãe me obrigava a usar o balde no nosso apar-tamento. Sabia onde ficava a casa de banho — tinha-a usado antes da cirurgia. A enfermaria estava às escuras, mas havia uma pequena luz no balcão das enfermeiras, no corredor.

Sentei-me na cama. Empurrei os lençóis e os cobertores para o lado. Dei uma pancadinha no gesso duro. O pé mal me doía. Girei as pernas para o chão.

Teria sido mais fácil com muletas, mas havia várias camas ao longo do quarto. Apoiei-me às grades de cada uma e arrastei o gesso pelo chão. Era trabalhoso, mas estava feliz por me poder mexer. Entrei na casa de banho, fiz o que tinha a fazer e saí. Já ia a meio da escurecida enfermaria quando uma voz atrás de mim bradou:

— Que diabo estás a fazer?Dei um salto, assustada, e perdi o equilíbrio. Agitei os

braços no ar, abati-me sobre a cama que estava mais pró-xima de mim e bati na sua ocupante: uma menina com a perna partida e elevada por cabos. Ela gritou. Rebolei e caí. O meu joelho direito torceu-se e senti uma dor intensa no tornozelo; o que me fez gritar também.

Toda a enfermaria acordou. Alguém acendeu as luzes. Duas enfermeiras ajudaram-me a regressar à minha cama e as outras tentaram acalmar e reconfortar a menina assustada.

— Já tens idade suficiente para saberes que não podes fazer isto! — sibilou a enfermeira chefe. — A acordar toda a gente com esta balbúrdia, e a correr um risco tão grande!

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Terás sorte se não tiveres prejudicado a tua recuperação. Espera só até a tua mãe saber disto!

— Ela não é minha mãe!A enfermeira chefe não queria nem saber.

Na manhã seguinte, o médico garantiu que não havia nada partido ou comprometido. Ainda assim, a enfermeira foi-se queixar à Susan, e esta não ficou nada satisfeita.

— Não sei o que lhe deu — resmungou a enfermeira.— Eu sei — retorquiu a Susan. Encarando-me, disse

mais suavemente: — Eu sei que é difícil, mas tens mesmo de ficar deitada até tudo ter cicatrizado. Se voltares a levantar --te, elas amarram-te à cama.

Estremeci. Foi então que vi o que a Susan trazia na mão.

— Recebeu outra carta. De Lady Thorton. — O meu estômago deu uma cambalhota. Lá vinham os preparativos.

A Susan esperou que a enfermeira se afastasse. Depois sentou-se na beira da minha cama. Tinha um ar desanimado.

— Lamento, mas não trago boas notícias — anunciou. — Dei voltas à cabeça para encontrar uma forma gentil de te dizer isto, mas não me ocorreu nada. — Tentou apertar--me a mão. Eu desviei-a.

Temia deixar de respirar a qualquer instante.Tinha de ficar com o Jamie.Tinha mesmo.— A tua mãe foi cremada — declarou a Susan. — Por

causa da guerra, porque havia demasiadas vítimas na fábrica e porque não soubemos da morte dela a tempo de reclamar o corpo. As cinzas foram colocadas numa vala comum. Não poderemos fazer um funeral. Não podere-mos enterrá-la, nem em Londres nem na nossa aldeia. Lamento muito.

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Eu não fazia a menor ideia do que ela estava para ali a falar.

— Ada? — disse a Susan. — Estás bem?Nem sabia por onde começar. A palavra funeral. Cremada.

As cinzas… Mas estava alguém a limpar a grelha da nossa mãe? O que significava tudo aquilo?

— Mas também tenho uma boa notícia — prosseguiu a Susan. — Lady Thorton emprestou-nos a casa de campo da sua propriedade. Para lá vivermos. Disse-me que é pequena, mas está mobilada.

Não era capaz de falar.— Tenho andado aflita sem saber o que haveríamos de

fazer — confessou a Susan. — O governo irá pagar-me uma indemnização pela casa da Becky, mas dizem que pode demorar anos. Não consegui encontrar nada na aldeia para arrendar. — Olhou para mim. — Estás tão calada. Bem sei que é um choque. O que me dizes?

Quando as coisas se tornavam complicadas, eu era capaz de me afastar dentro da minha cabeça, ia para um lugar onde ninguém me podia fazer mal. Ausentei-me para o pasto do Butter, para galopar no campo verde…

— Ada — chamou a Susan. Deu-me uma palmadinha no braço para me trazer de volta.

Respirei fundo.— E quando vamos para o orfanato?— O quê?— Quando é que o Jamie e eu… — Oh, meu Deus, por

favor. Deixa-me ficar com o Jamie. — Quando é que temos de ir para o orfanato?

— Orfanato? — A Susan parecia chocada, como se eu tivesse acabado de lhe dar uma bofetada. — Ada! Porque haveriam de ir para um orfanato?

Fulminei-a com o olhar.

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— Então vamos para onde?— Para lado nenhum! — exclamou a Susan. — Nada

mudou. O que te levou a pensar… Foi a tua mãe que mor-reu, eu continuo aqui!

— Disse que tinha de tratar dos preparativos!— Preparativos para o funeral!— Eu não sei o que isso significa!A Susan ficou imóvel.— Ah — disse ela. — Oh, pelo amor de Deus. Pobre de

ti. Devias estar aflita. Porque não disseste?— A Susan nunca quis crianças — retorqui. — Foi o que

nos disse. — E havia dito, vezes sem conta, logo quando che-gámos à aldeia. — E já não somos refugiados. Agora somos órfãos. Lady Thorton já não é responsável por nós, nem a Susan, e o orfanato não me vai deixar ficar com o Butter.

— Oh, Ada. — A Susan inclinou-se para a frente e abraçou -me. Eu tentei libertar-me, mas ela não se demo-veu. Era mais forte do que aparentava. — Compreendeste mal — garantiu ela num tom suave. — Vocês são órfãos, mas apenas tecnicamente. Claro que vão ficar comigo. Na verdade, até se tornou mais simples, agora que a tua mãe morreu. Não devo ter o menor problema em tornar-me vossa tutora legal. Quando falei de preparativos, era para a tua mãe. Para os seus restos mortais.

Não fazia ideia do que significava a expressão restos mor-tais. Podia até adivinhar, mas temia fazê-lo.

— Para o corpo dela — esclareceu a Susan. — Apenas isso. Tu e o Jamie ficam comigo.

Tentei dizer qualquer coisa, mas as palavras não saíram. Comecei a chorar, e a Susan embalou-me para a frente e para trás, para a frente e para trás, como se eu fosse um bebé, como se me amasse, como se sempre me tivesse amado.

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Capítulo 4

No sábado seguinte, como fazia sol, a Susan convenceu as enfermeiras a deixarem-na sair comigo na cadeira

de rodas. Era outubro, o ar estava fresco e o céu azul e bri-lhante. No ar pairava um ligeiro odor a lareira. Não se avis-tavam aviões. Nem bombardeiros. Não havia, por enquanto, nenhuma invasão.

Eu envergava um casaco de malha e um vestido que a Susan me comprara numa loja de artigos em segunda mão. Tinha um cobertor a tapar o gesso e a perna esquerda. A Susan empurrava a cadeira de rodas e o Jamie saltitava ao meu lado.

— Subimos a rua principal e tomamos um chá — disse a Susan —, mas primeiro quero mostrar-vos uma coisa. — Parou a cadeira junto a uma igreja. Era maior do que a da nossa aldeia, mas, tirando isso, era quase igual: escura e retangular, com um campanário alto e um cemitério repleto de pedras na vertical. — Falem baixo — sussurrou ela. — E não apontem, mas olhem para além. Estão a ver as pessoas, e a campa vazia… é o buraco no chão. E a caixa de madeira? A caixa chama-se caixão. Esta é a última parte de um funeral. A primeira parte tem lugar no interior da igreja. Agora vão enterrar o defunto.

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— Defunto? — perguntou o Jamie.— A pessoa morta — explicou a Susan.— Na terra? — guinchou ele.— Bem, sim — confirmou a Susan. — Onde achavam

que eram colocados?Já tinha reparado que as pedras no cemitério da nossa

aldeia tinham nomes, mas não sabia que isso significava que os corpos das pessoas estavam ali enterrados.

— Nunca tinha pensado nisso — confessei.— Esperava que pudéssemos enterrar a vossa mãe na

nossa aldeia — disse a Susan.— Porquê? — indagou o Jamie.— Para terem um lugar onde irem para pensar nela e

nas boas recordações que vos possa ter deixado.Eu teria de pensar muito para encontrar alguma boa

recordação.— Mas ela foi cremada — declarei. Era capaz de me lem-

brar das palavras, o problema era que nem sempre sabia o que queriam dizer.

— Sim — disse a Susan. — Isso significa que o corpo foi queimado até se transformar em cinza.

Virei-me para ela.— Está a brincar.Ela fez um ar ligeiramente constrangido.— Não — garantiu. — É uma maneira bastante respeitosa

de lidar com os mortos. E bastante útil em tempo de guerra.— Se não temos o corpo dela, como podemos ter a cer-

teza de que está realmente morta?— Vão receber a certidão de óbito — respondeu a Susan.

— Pelo correio. É tal e qual como a certidão de nascimento, mas pela razão contrária.

— Ah — disse eu. Guardara a minha certidão de nasci-mento numa caixa especial.

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— Quando chegar, eu entrego-ta — afirmou a Susan. — E tu poderás mantê-la segura.

Anuí. Isso seria bom.O Jamie inquiriu:— E já podemos ir tomar chá?Ela apertou-lhe a mão.— Claro.

No salão de chá, franzi o sobrolho ao ver os preços na ementa.— Se já não somos refugiados — disse eu —, o governo

não vai continuar a pagar-lhe para tomar conta de nós. Não terá dinheiro para isso. — Antes de ter sido bombardeada, a Susan tinha uma casa bastante grande e elegante, mas sempre afirmara não possuir muito dinheiro, e também não tinha emprego.

— Eu trato disso — disse a Susan. — Já te disse que dei início à papelada. Vou tornar-me a vossa guardiã legal.

Isso agradava-me. Guardiã era uma palavra forte.— Assim que sair do hospital, vou procurar trabalho

— anunciei.A Susan sorriu.— Oh, Ada — disse ela. — Por favor, relaxa. Não tens de

te preocupar com dinheiro.— Quem pagou a minha cirurgia? — quis saber. — E o

hospital e a pensão e todas as nossas coisas novas?A Susan abanou a cabeça.— Não sei se precisas de saber.— Preciso — afirmei.Ela suspirou.— Eu comprei as vossas roupas — confessou ela. —

O SVF fez uma coleta para as nossas despesas do dia a dia. — Respirou fundo. — E Lorde e Lady Thorton pagaram a operação.

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— Lady Thorton? — repeti.O Jamie deu um gole no chá.— Eles têm montanhas de dinheiro.Até tinham, mas isso não significava que eu desejasse

que o gastassem comigo.— Então agora tenho de lhe estar agradecida — disse.

— A Lady Thorton. — Nunca conhecera Lorde Thorton. Ele estava longe a trabalhar para ajudar no esforço de guerra.

— Espero que já lhe estejas grata — argumentou a Susan. — Todas as coisas que fez por ti: ajudando-te com o Butter, dando-te as roupas que já não serviam à Maggie… já para não falar na casa onde vamos viver.

O Jamie olhou para a Susan.— E deu-nos a Susan.Isso era verdade. No final, os preparativos de Lady

Thorton para o Jamie e para mim haviam sido meter-nos no seu automóvel e despejar-nos na casa da Susan. Havia sido o melhor que fizera por nós, embora na altura não o parecesse.

— Não quero ter de me sentir agradecida — declarei.A Susan abriu um sorriso.— Compreendo — disse ela. — Mas terás de o fazer.

Grata à mulher da cara de ferro. Grata por cada gesso novo na minha perna. Grata por ter sido amarrada à cama quando me apanharam, pela segunda vez, a tentar usar a casa de banho. Grata por as enfermeiras me acordarem quando os pesadelos me faziam gritar.

— Continua — disse a Susan. — A única maneira de sair disto é seguir sempre em frente. — Ela trazia-me livros da biblioteca, lã das lojas e agulhas de tricô, lápis e papel para eu ocupar o tempo. As cartas da Maggie, que

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estava longe, num colégio interno. Um jogo de damas que podia jogar com o Jamie todas as tardes. — Coragem — aconselhou.

— Isso é o mesmo que estar grato? — indaguei. Sentia--me rebelde.

A Susan fez que sim com a cabeça.— Às vezes.

Vinte e nove de novembro era o dia do sétimo aniversário do Jamie. A Susan e eu oferecemos-lhe um bolo minúsculo e um avião de brincar — um Spitfire, o mesmo tipo de caça que o irmão da Maggie, o Jonathan, pilotava.

Três dias mais tarde, o médico cortou-me o gesso. Depois, em vez de preparar a minha perna para receber um gesso novo, como sempre fazia, disse:

— Muito bem. Vamos deixar a gravidade atuar. — Colocou as mãos na minha cintura e desceu-me da marquesa.

Colocou-me de pé.No chão.A Susan sorria.O médico pediu:— Vá, coloca um pouco de peso sobre o pé.Agarrei-me à esquina da marquesa e fiz força com

a perna direita contra o chão. Senti o tornozelo direito mover-se um pouco. Doeu, mas eu já estava à espera disso. Apliquei mais peso sobre a perna direita. As minhas pernas tremeram. Já não as usava há tanto tempo…

Estava de pé. De pé. Apoiada em ambos os pés. Desviei a camisa de noite para conseguir ver. Dois pés. Dez dedos, todos a apontar para a frente; dez unhas, todas viradas para cima. O pé direito era mais pequeno e estava cheio de cicatrizes, e a pele ainda exibia o calo de quando a

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parte de cima era a de baixo, mas parecia um pé, não uma monstruosidade.

A minha mãe não teria gritado comigo se tivesse um pé como aquele.

A cirurgia tinha resultado.Eu já não tinha pé boto.Enquanto observava, o meu pé ficou desfocado, depois

voltou a ver-se com nitidez e em seguida voltou a ficar des-focado. Pesadas e grossas lágrimas caíam-me dos olhos. Os meus ombros começaram a abanar, e era capaz de ter perdido a força nas pernas se a Susan não tem lançado os braços em meu redor. Abraçou-me, tal como me abraçara na manhã em que me encontrara em Londres, após o bom-bardeamento, ainda viva.

— Não sei o que achas, mas eu começo a habituar-me a esta coisa dos abraços — sussurrou ao meu ouvido, o que me fez rir embora eu chorasse baba e ranho. Estava de pé e chorava e estava de pé e chorava e estava de pé e estava de pé e estava de pé.

Nessa tarde, o Jamie entrou na enfermaria a correr, trans-portando uma caixa de cartão.

— Mostra-me o teu pé! — pediu.Eu encontrava-me deitada na cama por cima das cober-

tas com os dois pés descalços esticados à minha frente.— Vá, podes ver — disse-lhe. Eu passara a tarde a admi-

rar o pé.O Jamie trepou para cima da cama e os seus dedos desliza-

ram sobre a grossa cicatriz em volta do meu tornozelo direito.— Uau — exclamou ele. — Agora é como um pé de

verdade.Nunca teria acreditado que o meu pé pudesse mudar

tanto. O médico avisou que o tornozelo nunca dobraria

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corretamente, e a parte interior não era normal, mas pode-ria caminhar com a parte de baixo do pé contra o solo e iria poder usar sapatos em ambos os pés. E isso era mais do que suficiente.

— Toma — disse a Susan, entregando-me a caixa que o Jamie levara. — Para comemorares.

Levantei a tampa. Era um par de sapatos. Sapatos de couro com uma tira em redor do tornozelo, como aqueles que a Maggie usava. Sapatos novos e bons que já quase não se encontravam nas lojas.

— Comprámo-los há muitas semanas. No dia antes da tua operação — contou o Jamie.

Calcei primeiro o sapato esquerdo. Em seguida alcancei o pé direito e meti os dedos dentro do sapato. Empurrei o calcanhar para baixo e apertei a fivela. O sapato do pé direito ficava um bocadinho largo. Ambos os sapatos tinham espaço na ponta. Espaço para os pés crescerem. Podia usar aqueles sapatos durante muito tempo.

Calçados, ambos os pés pareciam idênticos. Nem sequer se notava a cicatriz.

«Não passas de um monstro, com esse pé horrível.» Era o que a minha mãe costumava dizer-me. Vezes sem conta, obrigando-me a recorrer a toda a minha força de vontade para não acreditar nela.

Nunca mais teria de ouvir aquilo.De súbito, fui tomada por uma esmagadora onda de

desespero.— E era só isto que eu tinha de fazer? — disse, olhando

para a Susan. — Passar uns meses no hospital para o con-sertar? — Tinha sido infeliz durante toda a vida por causa daquele pé.

Os olhos da Susan encheram-se de lágrimas.— A tua mãe não sabia — argumentou ela.

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— Sabia — contrapus. — Ela queria uma razão para me odiar.

O Jamie olhou de mim para a Susan e de volta para mim e sussurrou:

— Pensei que fosses ficar feliz.— Oh, Jamie. — Respirei fundo. — Estou feliz. — Girei

as pernas para o chão. — Ajuda-me a andar.— Cuidado — alertou a Susan. — As tuas pernas ainda

estão fracas.— O Jamie toma conta de mim. — Estendi as mãos

e deixei que ele me ajudasse a equilibrar. Começámos a percorrer a sala. Um passo, depois outro. Pé esquerdo. Pé direito.

Anteriormente, quando caminhava sobre o pé torto, os ossos rangiam, a pele rasgava e sangrava. Cada passo doía mais do que o anterior. Agora cada passo doía menos do que o anterior. Sentia as pernas fracas e trémulas, mas estava a caminhar.

— Estás a andar! — exclamou o Jamie.Mal conseguia acreditar.— Daqui a pouco tempo — disse —, vou estar a correr,

e mais depressa do que tu.O Jamie deixou escapar um sorriso.— Eu serei mais rápido — contrapôs. — Serei sempre

mais rápido.— Nem penses.— Claro que sim!

Queria dormir com os sapatos calçados, mas, em lugar disso, as enfermeiras obrigaram-me a dormir com o pé direito num aparelho. Era por pouco tempo, garantiram. Passei mais algumas semanas no hospital, a fazer exercí-cios e a fortalecer as pernas, e depois, na terceira semana de

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dezembro, dissemos adeus às enfermeiras e aos médicos e ao aparelho do tornozelo e às muletas e a tudo. Calcei os sapatos novos por cima de umas meias grossas de inverno e fomos para casa.

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Capítulo 5

— Desenhe-me um mapa — pedi à Susan, depois de termos embarcado no comboio. Caminhei até à

estação como uma menina normal. Pé direito, pé esquerdo. Sem muletas. Quase nem coxeei. Muito diferente do que aconteceu no dia da evacuação em que o meu vizinho Stephen White teve de me levar às cavalitas. — Vamos atravessar Londres? Mostre-me onde estamos e para onde vamos. — A Susan costumava desenhar-me mapas da nossa aldeia, para que eu não me perdesse quando saía com o Butter.

— Não, não vamos atravessar Londres — respondeu ela. Os soldados desviaram-se para que pudéssemos sentar -nos os três juntos. A Susan guardou as malas no porta -bagagens da carruagem e meteu o cesto do Bovril por baixo do assento. Depois tirou um lápis e um papel da mala e desenhou. — Isto é a Inglaterra. Nós estamos aqui. Deste lado fica Londres. E aqui a nossa casa. — No final acrescentou uma linha sinuosa que mostrava o caminho do comboio até chegar a Kent.

O Jamie apontou para o espaço em branco de cada lado.— E aqui há o quê?— Dragões — replicou a Susan.

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Fitámo-la e ela riu.— Estou a brincar — esclareceu. — As pessoas cos-

tumavam desenhar dragões nas orlas dos mapas antigos. Quando o mundo ainda não era todo conhecido, os cartó-grafos imaginavam dragões a viver nos seus confins.

Nós continuávamos a olhá-la, boquiabertos.— O que são dragões? — quis saber o Jamie. Eu tam-

bém não sabia o que eram.— São enormes criaturas míticas que cospem fogo. Pode-

mos dizer que são parecidas com lagartos gigantes — explicou a Susan. — Alguns até conseguem voar.

O Jamie arregalou os olhos. Eu franzi o sobrolho. Estaria a Susan a falar a sério? Não era capaz de perceber.

— Eu não quero dragões — pediu o meu irmão.— Está bem — disse a Susan. — Vamos mantê-los

longe do nosso mapa.Em vez disso, desenhou o Canal da Mancha, o Sul da

Inglaterra e uma linha para a costa de França, no lado oposto. Por cima de França escreveu, Ocupada pela Alemanha.

— São piores do que os dragões — declarou.Eu cá duvidava. Piores do que lagartos gigantes que

sabiam voar e cuspiam fogo? Queria-me parecer que devía-mos enviar dragões atrás do Hitler.

Já era de noite quando chegámos à estação da aldeia e apa-nhámos um táxi para a nossa nova casa. O Jamie encostou a testa ao vidro da janela.

— Costumávamos viver numa casa na árvore — disse ele —, mas agora vamos viver para uma caverna. — Aquilo era, claro, do livro da família suíça.

— É isso mesmo — confirmou a Susan. — Ao início será bastante simples, mas vamos torná-la confortável. Será bem mais quente e seca do que viver naquela árvore.

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Revirei os olhos.— Não devia dar-lhe trela.Ela esboçou um sorriso.— És capaz de sugerir uma alternativa?Bem, não. Não conseguia.A casa de campo situava-se num bosque sombrio, des-

pido, agora que estávamos no inverno, melancólico e cin-zento. As suas pálidas paredes de pedra brilhavam sob o luar.

— Pensei que fosse uma casa pequena — declarei. A casa de campo era duas vezes maior do que a casa da Susan e da Becky.

A Susan pestanejou.— Também esperava uma coisa pequena. Foi dessa

forma que Lady Thorton a descreveu.Pequena em comparação com a Thorton House, que

era do tamanho de uma estação de comboios, mas não pequena quando comparada com tudo o resto.

A Susan pagou ao taxista, tirou uma enorme chave de ferro que estava debaixo de um vaso que se encontrava no degrau da entrada e introduziu-a na fechadura. A casa estava completamente às escuras, com as cortinas negras corridas. A Susan apalpou a parede à procura de um inter-ruptor e acendeu uma simples lâmpada que pendia do teto e que mal iluminava a ampla e quase despida sala. A um canto, vimos qualquer coisa que se deslocou a alta veloci-dade. Fiz figas para que fosse um rato e não uma barata ou uma ratazana. O Jamie abriu a tampa do cesto do Bovril. O gato soprou e correu na direção do ruído.

Era a primeira vez que apreciava o gato do Jamie.A casa não cheirava a humidade, contudo, as paredes

de gesso irradiavam frio. Segui a Susan enquanto ela ins-pecionava o rés do chão, acendendo as luzes à medida que

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avançava. De um dos lados da enorme sala ficava uma cozi-nha, com uma mesa instável e um conjunto de cadeiras. Atrás havia uma pequena divisão que dava para as traseiras, e que se encontrava vazia, e uma espécie de copa com um escaldador de lavandaria e um caixote repleto de carvão.

— Graças aos céus — disse a Susan, ao ver o carvão.Quando nos aproximámos das escadas, o Jamie vinha

a descê-las.— Cinco quartos! — exclamou.— Oh, que bom — exclamei. — O Bovril pode ter um

quarto só para ele.O Jamie dirigiu-me um olhar demolidor.— O Bovril e eu vamos partilhar o mesmo quarto. Tu

podes ficar com um só para ti.— Melhor ainda — afirmei.Fui ver o andar superior. Cinco quartos e uma casa de

banho. Dois dos quartos estavam vazios. Três continham camas já feitas com lençóis, cobertores e almofadas.

Era bastante atencioso da parte de Lady Thorton ter man-dado fazer as nossas camas. Um gesto deveras generoso; à semelhança do caixote cheio de carvão e da minha cirurgia.

Desci as escadas. Foi assim que o fiz: pé direito, pé esquerdo. Pé direito, pé esquerdo. De uma maneira nor-mal. Como quem caminha.

Era fantástico.O Jamie carregava um balde de carvão para a sala de

estar e a Susan preparava-se para acender a lareira.— Não precisamos de tanto espaço — comentei.— Tens razão — concordou a Susan. — Estou muito

agradecida, a sério que sim, mas teria preferido uma coisa mais pequena. Vai custar uma fortuna aquecer esta casa.

O Jamie fitou-a por entre uma madeixa do seu despen-teado cabelo.

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K i m b e r ly b r u b a K e r b r a d l e y

— Queremos uma caverna grande — disse ele. — Quando vierem as tempestades, precisamos de espaço para toda a gente.

A Susan deu-me um quarto ao cimo das escadas. Um quarto só para mim. Era amplo e espaçoso, com uma janela, papel de parede amarelo e um frio chão de madeira. Continha uma cama, mesa de cabeceira com candeeiro, uma estante e uma pequena cómoda para a roupa. Tudo o que eu podia precisar.

Descalcei os sapatos e coloquei-os na estante, onde podia vê-los caso acordasse durante a noite. Desfiz a mala, tirando as camisas de noite e a roupa interior e meias extra. Do fundo, retirei a caixa onde guardava a certidão de nas-cimento e pu-la na prateleira ao lado dos sapatos. Despi o casaco e o vestido e vesti a camisa de noite, mas senti frio e fui buscar o roupão do hospital. Apaguei a luz, abri a cor-tina negra e olhei pela janela em direção à horta que havia atrás da casa. Vi um abrigo antiaéreo perto da porta da copa e um galinheiro vazio com uma parcela de erva mais ao fundo.

Elevei a janela e meti a cabeça de fora.— Butter — sussurrei. Na antiga casa da Susan, o Butter

vivia no pasto que crescia nas traseiras. Sempre que o cha-mava ele galopava até mim, orelhas e cauda alerta. Parava mesmo à minha frente e baixava a cabeça. Nunca me der-rubou, nem mesmo ao início, quando eu era mais fraca e temerosa. — Butter — repeti, tentando segurar as lágrimas. Tinha tantas saudades dele.

A Susan entrou no quarto com um cobertor nos braços. Foi pôr-se ao meu lado à janela. As lágrimas corriam pelo meu rosto, porém, a Susan não comentou esse facto.

— É uma bela horta — disse, em vez disso.

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A G u e r r A Q u e M e e n s i n o u A V i V e r

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— Tenho saudades do Butter.A Susan fechou a janela.— Vê-lo-ás amanhã — prometeu, apertando-me os

ombros. — Agora vai dormir. Estás exausta.E estava mesmo. Não me tinha dado conta disso, mas de

súbito senti-me tão cansada que já mal me segurava de pé. Deslizei por entre os lençóis frios da cama. A Susan esten-deu outro cobertor sobre a cama e os seus lábios tocaram o cimo da minha cabeça ao mesmo tempo que eu adormecia.

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