para citar esse documento: teixeira, aline dos santos ... · autonomia, as partes do corpo são...
TRANSCRIPT
Para citar esse documento:
TEIXEIRA, Aline dos Santos. Esculturas dinâmicas: um doálogo entre corpo e imagem a partir da obra de Hans Bellmer. Anais do V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança. Natal: ANDA, 2017. p. 1233-1250.
www.portalanda.org.br
1234
ESCULTURAS DINÂMICAS:
UM DIÁLOGO ENTRE CORPO E IMAGEM A PARTIR DA OBRA DE HANS BELLMER
Aline dos Santos Teixeira (UFRJ)*1
RESUMO: Esta pesquisa iniciou-se centrada em questões relativas ao corpo e suas possíveis configurações a partir do olhar de duas áreas de conhecimento, as Artes Visuais e a Dança. Estimulada pela representação do corpo feminino na obra do artista alemão Hans Bellmer, que criou uma anatomia fantástica baseada em novas possibilidades de arranjos entre as partes do corpo de suas bonecas, definiu-se como principal objetivo levantar questões relativas à fragmentação corporal que pudessem alimentar um processo criativo, friccionando as finas fronteiras entre corpo e imagem. Organizou-se a pesquisa a partir da criação de um projeto chamado Corpo Estranho composto por alunos dos cursos de bacharelado em dança e comunicação/design, todos da UFRJ. Ao grupo, foram propostos laboratórios de criação gestual e audiovisual, leituras referentes ao tema proposto, entre outros. O recorte aqui apresentado elenca as principais motivações e estratégias que envolveram o processo de construção do trecho coreográfico Esculturas Dinâmicas. PALAVRAS-CHAVE: Fragmentação Corporal. Imagem. Dança.
DYNAMIC SCULPTURES: A DIALOGUE BETWEEN THE BODY AND IMAGE FROM HANS BELLMER'S
WORK
ABSTRACT: This research began focusing on issues relating to the body and its possible configurations from the look of two areas of knowledge, the Visual Arts and Dance. Stimulated by the representation of the female body in the work of the German artist Hans Bellmer, who created a fantastic anatomy based on new possibilities of arrangements between the parts of the body of his dolls, it was defined as main objective to raise questions related to the corporal 1 Professora Assistente dos Cursos de Graduação em Dança da UFRJ. Mestre em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ. Coordenadora do Projeto Corpo Estranho. Pesquisa questões referentes a fragmentação e deformação da imagem do corpo na dança. Email: [email protected]
1235
fragmentation that could feed a Creative process, rubbing the thin boundaries between body and image. The research was organized from the creation of a project called Strange Body, composed of students of the bachelor's degree in dance and communication/design, all of UFRJ. To the group, laboratories of gestural and audiovisual creation, readings referring to the proposed theme, among others, were proposed. The cut presented here lists the main motivations and strategies that involved the process of construction of the choreographic excerpt Dynamic Sculptures. KEYWORDS: Body Fragmentation. Image. Dance.
O que se entende por fragmentação? Como abordar esse tema a partir
do corpo que dança? Que tipos de relação podem ser estabelecidos entre
corpo e imagem fragmentados? Através de quais meios podem ser
exploradas? O que se quer construir com isso?
Encontramos especificidades no conceito de fragmentação na Biologia,
na Física, na Psicologia, na linguagem informática, entre outras áreas. Porém,
interessa-nos aqui, conceitos de fragmentação encontrados, principalmente,
nas artes que se distanciam de uma representação fiel da realidade e que
tratem especialmente da fragmentação do corpo humano. Entre muitos
aspectos que podem estar na origem da fragmentação da figura humana na
Arte, destaca-se a quebra de um compromisso com a verossimilhança e a
possibilidade de uma não representação da realidade como é usualmente
conhecida, além de fatores históricos e culturais relevantes como as duas
grandes guerras mundiais, que refletiram, na época, na fragmentação da
consciência e dos valores da sociedade.
1236
A imagem do corpo fragmentado pode suscitar diversas interpretações,
como a ideia de inacabamento e incompletude e paradoxalmente de totalidade
e autonomia. Segundo Jeudy (2002), “o isolamento da parte e o
reconhecimento de sua auto-suficiência fazem esquecer a própria ideia de
desmembramento”. Em contrapartida, a imagem do corpo mutilado traz em si a
ideia de um corpo que perdeu sua integridade: um corpo anteriormente
“completo” em sua estrutura e mostrado não por partes, mas sem partes, ou
ainda um corpo em processo de transformação, ainda inacabado. É nesse
contexto paradoxal que desenvolvemos esta pesquisa, buscando imagens de
um corpo estranho, retorcido e deformado, que afastem o corpo de uma
configuração humanamente reconhecível. Esse corpo fragmentado, encontrado
principalmente na Arte aparece, segundo Francisco Ortega (2008), “como um
antimodelo, uma forma de resistência ao ideal de corporeidade fechada e
intacta, encarnado na figura ideal e normativa do corpo belo (idealschöner
Körper) da arte classicista do início do século XIX”.
Ao longo dessa pesquisa, observamos dois diferentes modos de
compreender a fragmentação. No primeiro modo, a partir da ideia de
autonomia, as partes do corpo são tratadas como estruturas íntegras,
independentes de um todo. No segundo modo, com a ideia de dissociação, o
corpo é reorganizado em sua estrutura, e suas partes podem ser suprimidas,
multiplicadas e deslocadas, afastando-o da imagem do corpo humano como
normalmente o conhecemos. Esses modos foram percebidos nos trabalhos de
alguns artistas, que, por exemplo, dedicam maior atenção às partes,
aproximando e detalhando pedaços do corpo, ou enfocam a possibilidade de
1237
alteração da figura humana, em processos de transformação de sua estrutura,
trazendo à tona imagens de corpos ilusórios, fantásticos.
Hans Bellmer e o corpo reconfigurado O nome de Hans Bellmer destaca-se entre os artistas europeus, que nas
primeiras décadas do século XX voltaram-se para o projeto de decomposição
da figura humana. Hans Bellmer criou a sua primeira boneca em 1933. A
boneca, construída à imagem de uma menina adolescente possuía um tronco
rígido e membros intercambiáveis que foram combinados e fotografados em
vários estágios de sua montagem e organizados em uma pequena publicação.
La Poupée contava com 10 fotografias da boneca e um texto introdutório de
Bellmer chamado Memories of the doll theme. Posteriormente foram publicadas
na revista surrealista Minotaure com o título Variations sur le montage d’une
mineure articulée, com mais oito fotos adicionadas às dez primeiras.
A segunda boneca de Bellmer ganhou mobilidade com a inserção de
uma articulação esférica no ventre para conectar suas partes, foram
combinadas incessantemente e fotografadas em diferentes contextos. Nesta
segunda boneca, não só as estruturas arredondadas como seios, nádegas e
barriga se confundem, mas os membros são dissociados do corpo, suprimidos
ou multiplicados. Como se tivessem sido desmontadas e depois reconstruídas
sem obedecer à ordem estrutural do corpo humano, traziam simultaneamente a
semelhança e a diferença, o real e os artifícios da imaginação, fazendo
coincidir, a inocência de uma menina com a frieza de um autômato.
Apesar das bonecas serem esculturas tridimensionais, Bellmer escolheu
a fotografia como meio principal de apresentação de sua obra, talvez por estar
menos interessado na produção de bonecas e mais nas imagens que seus
1238
corpos fragmentados e distorcidos podiam criar. A fotografia trazia também a
imagem da boneca exatamente de acordo com o ponto de vista do artista e
possibilitava uma visão mais voyeurística por parte do espectador. As imagens
propostas por Bellmer informam em seu contexto referências temporais, cenas
que trazem a impressão de serem desfechos de acontecimentos prévios ou
cenas de ‘um provável próximo capítulo’. A exemplo da primeira, a segunda
boneca contou também com uma pequena publicação. Les Jeux de la Poupée
continha 14 fotografias, cada uma ilustrada por um pequeno poema de Paul
Éluard e com um ensaio introdutório de Bellmer chamado Notes on the Subject
of the Ball Joint. Figura 1 – Hans Bellmer. “Les Jeux de la poupée”1938.
Fonte: LICHTENSTEIN, Therese. Behind close doors: the art of Hans Bellmer. London, England: University of California press, 2001.
A obra de Hans Bellmer é composta pelas bonecas ‘esculpidas’ e
fotografias provenientes delas, além de uma produção textual e gráfica
1239
extremamente elaborada. Para ele, interessava as possibilidades provenientes
de uma relação mais imediata entre imaginação e realidade do que a distinção
entre os meios de expressão. Sendo assim, “é impossível determinar se a mão
que escreve está a serviço da mão que desenha, ou se os desenhos são
simplesmente o desenvolvimento e a demonstração visual das ideias
expressas na escrita”. (WEBB e SHORT, 2006, p.103).
Fruto de uma tensão que elabora mentalmente a representação de um
objetivo esperado, o desejo na obra de Bellmer funciona como uma mola
propulsora que direciona suas criações. O corpo do desejo é assim, o corpo do
sonho que transita entre consciente e inconsciente, revelando os artifícios da
imaginação.
Ao analisar as imagens criadas por Bellmer, percebe-se que a boneca
em sua forma plástica consistia em um objeto dotado de infinitas possibilidades
de transformação, porém, desenhá-las possibilitou a criação de posturas
corporais ‘simultâneas’ que a versão plástica não permitia acontecer. Percebe-
se, principalmente nos desenhos, como um corpo delineado pelo desejo se
sobrepõe a um corpo ‘natural’ esgarçando suas possibilidades expressivas.
Segundo Robert Short (2006, P. 73, 74), “a série de trabalhos que datam
de 1938 a 1939 é a primeira expressão gráfica completa da sua ideia do corpo
como anagrama”. A associação a esse termo linguístico traduz a exata atitude
de Bellmer com relação às partes do corpo de suas bonecas, já que no
anagrama as letras de uma palavra podem ser rearranjadas, criando palavras
com diferentes significados. Nesse sentido, Bellmer cria os anagramas do
corpo que, mais do que jogos combinatórios, representam um método de
1240
exploração de novas configurações corporais. As metamorfoses possibilitadas
a partir da dissociação e posterior reconstrução do corpo de suas bonecas
tiveram suas capacidades aumentadas com sua equivalência gráfica. A
liberdade proporcionada pelos desenhos através da simultaneidade, de
sobreposições, multiplicações e subtrações das partes, permitia a visualização
do interior e do exterior do corpo, ao mesmo tempo. Como se fosse possível,
ter uma visão de todos os ângulos da boneca de uma só vez. Figura 2 - Hans Bellmer. Ilustração para ‘A Anatomia da Imagem’, 1957.
Fonte: WEBB, Peter, SHORT, Robert. Death, desire and the doll: the life and art of Hans Bellmer. New York: Solar Books, 2006. Dança e Fragmentação Corporal
Neste recorte, é proposta uma reflexão sobre as possibilidades de
construção gestual na dança a partir da ideia de autonomia, tendo como
principal fonte de investigação a análise e a conscientização das partes do
1241
corpo e suas potencialidades expressivas pelo viés dos Fundamentos da
Dança de Helenita Sá Earp2.
Ao longo da história da dança, percebe-se uma grande recorrência de
padrões estéticos que valorizam, principalmente, o belo e as formas
proporcionais. Por isso, quando se pensa no corpo que dança é ‘quase’ sempre
natural imaginar um corpo íntegro movendo-se de maneira leve e harmoniosa.
Quando se parte, porém, do pressuposto de uma dança contemporânea,
marcada desde a sua origem pela valorização da singularidade dos corpos,
pelo compromisso com a pesquisa e a experimentação e pela diversidade das
práticas envolvidas, entre outros fatores, a potencialidade imaginativa acerca
das possibilidades estéticas aumenta consideravelmente. Pensar na
fragmentação do corpo que dança, após um estranhamento inicial que talvez
suscite em imagens de um corpo desmembrado ou deformado, pode se
desdobrar em experiências distintas que vão desde o convívio ‘artístico’ entre
dançarinos deficientes físicos e não deficientes, até artifícios tecnológicos que
criam a ilusão da fragmentação do corpo. Dessa maneira, percebe-se que a
fragmentação corporal na dança não se trata de um tema inédito, embora
pouco recorrente. Atualmente, temos na dança contemporânea, práticas que
permitem diálogos com as mais distintas áreas do conhecimento, artísticas ou
não, ampliando assim, seu campo de atuação.
Os ‘Fundamentos da Dança’, concebidos pela Professora Helenita Sá
Earp e estudados nos Cursos de Graduação em Dança da UFRJ, visam à
construção de um corpo consciente apoiado em princípios que desvelam 2 Professora Emérita da UFRJ, primeira professora de Dança em universidades brasileiras, responsável pela inserção da dança nos currículos universitários.
1242
diferentes técnicas pautado nos processos de investigação criativa do corpo.
Não se atendo, portanto, a modelos pré-estabelecidos que enfatizam a
reprodução do movimento através de uma lógica do ‘passo de dança’ mas do
conhecimento do corpo. Com intenções artístico-pedagógicas, esses
fundamentos são organizados em Parâmetros Diversificadores da Ação
Corporal: Movimento, Espaço, Forma, Dinâmica e Tempo e, dessa maneira,
através de um enfoque seletivo, auxiliam no entendimento dos fatores que
envolvem o movimento dançado. Tendo o corpo como referencial, propõe um
entrosamento entre esses parâmetros que auxiliam na estruturação de um
vocabulário corporal consistente e calcado na investigação criativa de seus
movimentos. A separação do estudo em parâmetros distintos visa sublinhar
especificidades contidas em cada um deles, mas compreende-se que eles
estão em constante relação, por exemplo: um movimento possui uma forma,
está em relação com o seu espaço de atuação e é realizado com a aplicação
de determinada intensidade da força em um intervalo de tempo, ou seja, cada
movimento do nosso corpo perpassa todos os parâmetros.
Não pretendemos, entretanto, aprofundar cada um dos parâmetros
mencionados. Aqui, daremos atenção principalmente ao Parâmetro Movimento,
por acreditar que este aproxima a fragmentação por dissociação através do
movimento sucessivo.
O Parâmetro Movimento responsabiliza-se pelo estudo estrutural do
corpo, compreendendo partes e todo, apoiado nos estudos anatômicos que
determinam os movimentos de cada parte/segmento do corpo humano e deste
como um todo. Faz analogia aos movimentos do universo, translação e
rotação, definindo os movimentos básicos do corpo por translações
1243
(deslocamentos) e rotações (giros em torno de um eixo fixo). Focaliza cada
parte do corpo a fim de entender melhor seu funcionamento e explora as
possibilidades dos movimentos serem executados de maneira isolada (um
movimento e/ou uma parte) e combinada (mais de um movimento e/ou parte).
Determina duas maneiras de combinar os movimentos: sucessivamente,
quando um movimento é executado por vez em uma série encadeada e
simultaneamente, quando mais de um movimento é executado por vez.
Estabelece ainda dois estados corpóreos: o primeiro, denominado Liberado,
caracteriza-se pelo deslocamento das partes e/ou do corpo como um todo no
espaço, onde o fluxo de movimentos é perfeitamente visível; o segundo,
denominado Potencial, caracteriza-se pela pausa, pela imobilidade, mas, no
corpo, existe um movimento latente, pulsante, imperceptível a olho nu, mas a
espreita de um devir. Dessa maneira, a pausa é percebida pela não
visualização de movimentos liberados.
O Parâmetro Movimento fornece assim, ferramentas para investigar as
possibilidades do corpo a partir dos movimentos das partes, mas também do
corpo como um todo. Helenita denominou ‘Famílias da Dança’ os movimentos
de translação e rotação do corpo como um todo e agrupados de acordo com
aspectos específicos. Transferência, Locomoção, Voltas, Saltos, Quedas,
Elevações, caracterizam ações, determinadas por sua própria nomeação, onde
o corpo atua de forma global.
Percebe-se, assim a importância deste Parâmetro na presente pesquisa,
visto a sua proposição de uma investigação detalhada que abarca tanto os
pedaços como o corpo em sua inteireza.
1244
Pensando no conceito de fragmentação por dissociação das partes do
corpo (dissociar como separar), na dança podemos utilizar o termo dissociação
para os movimentos das partes do corpo que acontecem de maneira
sucessiva. Isolando cada parte do corpo nos movimentos articulares que cada
uma pode executar, a dissociação acontece com a “separação” na execução
dos movimentos. Pode-se assim denominar movimentação fragmentada aquela
que se dá pelo movimento sucessivo das/entre partes do corpo.
Visualmente, essa movimentação fragmentada aparece como se entre
cada movimento sucessivo existisse uma pausa no tempo, uma micro-parada
na trajetória do movimento executado. Essa pausa, porém, não
necessariamente interrompe o fluxo do movimento, que pode ser mantido, não
só se a pausa for a um tempo curto, mas se o corpo todo estiver integrado na
execução do movimento, trazendo uma ligação da energia aplicada ao mesmo.
Sendo assim, o movimento fragmentado pode ter interrupção em nível da sua
trajetória visual, mantendo a continuidade na aplicação da energia.
Nesse contexto, compreende-se que fragmentação por dissociação
acontece com a execução sucessiva das/entre partes do corpo, exigindo uma
grande consciência de seus movimentos e estimulando suas possibilidades
motoras criativas, sendo explorada como possibilidade estética e pedagógica.
Dissociação e autonomia na construção gestual e visual Para a construção do trecho coreográfico denominado Esculturas
Dinâmicas explorou-se a fragmentação por dissociação, não só como forma de
separar as partes do corpo, mas também como possibilidade de recombinar
1245
essas partes, propondo outros arranjos em sua composição. Para isso
começou-se por utilizar entre três intérpretes-criadores, uma estratégia de velar
e desvelar das partes do corpo, como principal procedimento no processo de
construção gestual.
Figura 3 - Aline Teixeira. Experimento trio, 2012.
Fonte: Acervo pessoal
Para a realização da projeção que dialoga com a estrutura coreográfica,
ccomeçou-se por capturar imagens de partes do corpo de maneira isolada
elegendo-se primeiramente as mãos. As imagens das mãos geradas
primeiramente por movimentos improvisados foram editadas: cortadas,
multiplicadas e organizadas em um vídeo e posteriormente projetadas, nos
corpos dos intérpretes-criadores.
1246
No vídeo, utiliza-se a ideia de independência das partes do corpo como
estímulo gerador de imagens, onde, no caso, as mãos parecem ter vida própria
e poder de escolha nas ações por elas realizadas. Longe de querer enfatizar
uma possível dicotomia mente-corpo, busca-se na autonomia das partes do
corpo, o impulso gerador do movimento, propondo uma não hierarquização do
corpo com a ideia do cérebro fora do comando. Para isso busca-se encarar
cada pedaço do corpo humano como um todo, salientando não a percepção de
partes que compõe esse todo, mas identificando em cada parte uma entidade
autônoma, íntegra. Para Jeudy, “somos levados a crer que a parte possa ser
tomada pelo Todo, mas a visão do corpo desmembrado impõe o fato de que a
parte é em si – e já – um Todo.” É isso, segundo ele, que nos ensinam os
artistas. “Uma parte do corpo tem sua beleza própria; ela pode fazer parte de
um conjunto composto ou existir soberanamente em seu isolamento” (2002, p.
98).
A cena resulta assim, em três corpos compondo uma espécie de
escultura dinâmica, misturando suas partes em uma estrutura única que se
mantém estática por alguns momentos, mantendo apenas o fluxo de
movimentos das mãos que dialogam com a imagem das mãos projetadas.
Esse corpo escultórico desloca-se lentamente por um espaço reduzido
compondo outras configurações formais, rearranjando seus pedaços. As
imagens das mãos tateiam, deslizam, exploram esse território corpóreo
revolvendo-o e misturando-se a ele em um diálogo imaginário entre mãos reais
e virtuais.
1247
Figura 4 – Aline Teixeira. Esculturas Dinâmicas, 2013
Fonte: Acervo pessoal.
Nesta mesma experimentação, conta-se ainda com a imagem sombra
do corpo escultórico. “A imagem fugaz da sombra, a deformar implacavelmente
a silhueta humana...” (MORAES, 2002, p.97) As sombras, mas principalmente
a desconfiança sobre sua natureza, habitou o imaginário artístico entre o final
do século XIX e meados do século XX. Em suas formas instáveis e efêmeras,
as silhuetas de corpos e objetos exploravam um universo sombrio, misterioso
causando desconfiança sobre um improvável desgarrar autônomo da sombra
com relação a sua fonte originária. Nesta experiência, a sombra surge como
uma silhueta descarnada, em diálogo com o corpo físico e suas imagens
projetadas, promovendo diferentes camadas de visualização a partir de uma
mesma origem, o corpo.
Considerações Finais Pesquisar a obra de um artista é praticamente um mergulho na
superfície. Ficamos à margem, recolhendo indícios, pistas de seu percurso
criativo, com o intuito de aproximar-nos da realidade própria do seu trabalho.
1248
Bellmer nos faz conhecer um universo singular, regido por leis próprias, criadas
em um processo minucioso e íntimo entre o artista e sua obra no percurso de
seu projeto poético. Sugere outras maneiras de perceber o mundo através de
um filtro que passa pela imaginação, afastando-se das representações fixas
que reduzem o olhar a limites e medidas. Por fim, desnuda-nos de nossos
conceitos pré-concebidos fazendo-nos revelar nossos desejos mais íntimos,
aqueles que escondemos, mesmo nos sonhos.
Nesta pesquisa, perseguiu-se o tema da fragmentação corporal,
alimentado por inúmeras referências imagéticas e conceituais que
atravessaram esse processo criativo, que assim como os trabalhos de Hans
Bellmer e as atuais obras da arte contemporânea, não se definem pelo meio o
qual as representa. O processo criativo é acompanhado de um grande
exercício de escuta e observação no qual o artista deve estar atento às
escolhas que a própria obra faz e lhe impõe. Ao artista não resta apenas
obedecer. Há que abrir o canal sensível de entendimento e comunhão com a
obra a fim de deixá-la vir à tona a partir do meio mais propício para o seu
transbordamento.
As possibilidades de relacionar corpo e imagem a partir da associação
entre as áreas da Dança, e das Artes Visuais apontaram um terreno fértil ainda
não explorado totalmente. Esta pesquisa, dessa forma, revelou um caminho,
ainda desconhecido de desdobramentos possíveis, que visam legitimar a
interdisciplinaridade na criação de trabalhos artísticos, onde as fronteiras se
tornem cada vez mais tênues.
1249
Acredita-se que a arte acontece nesses ‘entre lugares’, onde as forças
se atraem, se repelem e por vezes se esbarram, criando cacos de
possibilidades que se arremessam sem direção carregando a potencialidade de
sua concretização.
Concluímos essa pesquisa acreditando que a fragmentação corporal
evidencia a consciência que temos do corpo, que se dá aos pedaços e que
somos seres incompletos. A inteireza que buscamos não existe, não como
aspecto que integre o homem em todos os âmbitos de sua existência, em sua
totalidade. Somos inacabados e assim, continuaremos...
Referências Bibliográficas BELLMER, Hans. The Doll. London: Atlas Press, 2005. EARP, Ana Célia de Sá. Princípios de conexões dos movimentos básicos em suas relações anátomo cinesiológicas na dança segundo Helenita Sá Earp. In: VI Congresso de pesquisa e pós-graduação em artes cênicas 2010 (ABRACE). JEUDY, Henry-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. LICHTENSTEIN, Therese. Behind close doors: the art of Hans Bellmer. London, England: University of California press, 2001. MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2009. MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Editora SENAC, 2008. MORAES, Eliane Robert. Os devaneios anatômicos de Hans Bellmer. in: GREINER, Christine, Org.; AMORIM, Claudia, Org.; Leituras do sexo, São Paulo: Annablume, 2006.
1250
--------------. O corpo impossível: a decomposição da figura humana de Lautréamont à Bataille. São Paulo: Iluminuras/FAPESP, 2002. MOTTA, Maria Alice Monteiro. Teoria Fundamentos da Dança – Uma abordagem Epistemológica à Luz da Teoria Das Estranhezas. Dissertação de Mestrado em Ciência da Arte. Instituto de Arte e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2006. ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Guaramond, 2008. SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado – Processo de criação artística. 2 ed. São Paulo: Annablumme/FAPESP: 2004. TEIXEIRA, Aline dos Santos. A construção de um corpo aos pedaços. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. WEBB, Peter, SHORT, Robert. Death, desire and the doll: the life and art of Hans Bellmer. New York: Solar Books, 2006.