para a minha mãe e para o meu pai. obrigado. · rapariga pálida de cabelo escuro. o sangue fresco...

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Para a minha mãe e para o meu pai.

Obrigado.

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A rapariga corria com neve pelos joelhos, ofegante,

deixando um rasto de vapor branco que pairava no ar.

Conseguia ouvir os sons de perseguição atrás dela, de-

masiado próximos, o ladrar e o rosnar dos cães e os

gritos roucos dos homens que seguiam os animais. Já

quase não sentia os pés descalços e a metade inferior das

pernas enquanto avançava sobre o pó gelado e fino, ro-

deada pelas árvores escuras e ancestrais da floresta que a

cercava. Vestia apenas um vestido azul-escuro de tecido

áspero, esfarrapado, que pouco a protegia do frio cortante.

No topo de uma pequena colina por onde corria, a ra-

pariga tropeçou numa pedra coberta pelo manto de neve

e caiu pela encosta abaixo. Levantando-se com dificulda-

de, avistou a silhueta difusa de uma cabana, com as suas

paredes escuras parcialmente sepultadas pelo branco

profundo. Cambaleou nessa direção, sacudindo deses-

peradamente o puxador da única porta. Estava trancada.

A rapariga cerrou os dentes e pontapeou com força a

porta de madeira, ignorando a dor no pé. Mas a porta re-

cusou ceder. Praguejou entredentes e voltou a pontapeá-la,

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com mais força. A tranca antiga cedeu e, conforme a

porta foi projetada para dentro da casa, a rapariga en-

trou, desequilibrada. Fechou-a rapidamente atrás de si

e olhou a divisão escura em redor. Era, decerto, uma

cabana de caça. Cabeças embalsamadas de animais es-

tavam penduradas das paredes e peles cobriam o chão

e as cadeiras. Mas não havia sinais de vida. Estava tudo

coberto por uma camada espessa de pó, que a rapariga

perturbou ao procurar freneticamente algo que existisse

no piso térreo que pudesse ser usado como arma.

— O rasto termina aqui — disse o primeiro homem

em russo. — Ela está lá dentro.

— Vão buscá-la — disse o homem alto na retaguarda

do grupo. Os homens a seu lado pegaram nas metralha-

doras que traziam penduradas ao ombro e dirigiram-se

para a casa. Empurraram a porta e entraram com caute-

la. Segundos depois, ouviu-se um único tiro, algures no

interior. A seguir, o silêncio voltou a reinar na floresta

coberta de neve.

— Vasilly? Gregor? — chamou o homem alto, não

obtendo resposta. — Enviem os cães — disse, franzindo

a testa.

Dois cães corpulentos correram sobre a neve e en-

traram na cabana. Ladraram ruidosamente e, passado

um momento, ouviram-se latidos de pânico, antes de o

silêncio voltar a instalar-se.

— Que devemos fazer, Sr. Furan? — perguntou um

dos homens, olhando fixamente as janelas escurecidas

da cabana.

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— Esperem aqui — replicou o homem alto, puxando

uma pistola do cinto. Avançou para a cabana e entrou.

— Que idade tem ela? — perguntou o primeiro tra-

tador de cães.

— Não sei — respondeu o outro. — Talvez dez, onze

anos.

— Se depender de Furan, não chegará aos doze.

De repente, ouviu-se um grito dorido vindo do inte-

rior da casa e uma das janelas estilhaçou-se, explodindo

numa chuva de vidro enquanto um banco de madeira a

atravessava. A rapariga mergulhou pelo buraco de ares-

tas irregulares e levantou-se, correndo sobre a neve em

direção às árvores. Furan cambaleou para fora da caba-

na, com sangue a escorrer por baixo da mão com que

cobria o olho direito. Ergueu a pistola e apontou cuida-

dosamente contra a rapariga fugitiva. Premiu o gatilho

e o tiro pareceu invulgarmente ruidoso no silêncio da

floresta coberta de neve.

Atingida no ombro, a rapariga rodopiou, caindo so-

bre a neve. Tentou levantar-se, mas Furan já se aproxi-

mara, golpeando-a com a pistola e fazendo-a novamente

cair ao chão, sem sentidos.

Com o olho intacto, olhou o corpo inconsciente da

rapariga pálida de cabelo escuro. O sangue fresco

manchava a neve por baixo do seu ombro. Respirava

com dificuldade. Furan manteve-se quieto durante um

momento, com sangue a escorrer do olho arruinado, pa-

recendo não saber ao certo se devia, ou não, premir nova-

mente o gatilho, acabando por baixar a arma lentamente.

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—Não, Natalya — disse, com uma voz fria e dura.

— Seria demasiado fácil. Mas podes ter a certeza de que

não voltarás a escapar. Esta foi a tua última fuga, minha

pequena Raven.

Vinte anos depois

A noite do agente da polícia estadual Sam Fletcher

não corria bem. Percebeu que estava com azar quando

foi enviado para a velha estação de serviço na estrada

do deserto. A Sra. Trenton ligara para se queixar, como

fazia pelo menos três ou quatro vezes por mês, de ser

assediada por misteriosos objetos voadores e luzes no

céu. Sam sabia que seria uma perda de tempo, mas o

xerife insistira em que verificasse como estava a velha

louca. Vivia sozinha desde a morte recente do marido

e o xerife era amigo da família, o que explicava o facto

de Sam acabar por ser chamado ao serviço àquela hora

da noite. Sentou-se na sala da velha enquanto a ouvia

falar dos barulhos estranhos que não parava de escutar

e das luzes que não parava de ver no céu. Nessa noite

em particular, queixou-se de alguma coisa que teria voa-

do a baixa altitude sobre a casa, assustando-a enquanto

alimentava as galinhas no quintal.

Sam ouviu diligentemente o seu relato interminável

e acabou por partir, prometendo investigar e verificar se

a base local da força aérea saberia alguma coisa acerca

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da misteriosa aeronave. Seria uma tarefa vã. Naquela

parte do Nevada, atividade aérea invulgar era frequente,

mas o tipo de aeronave testada por ali não era daque-

les que a força aérea pretendesse discutir com alguém

como Sam. O mais provável seria que algum piloto de

caças aborrecido tivesse feito um voo rasante sobre a

casa dos Trenton, violando as regras dos voos de teste.

Não seria a primeira vez que alguma coisa assim acon-

tecia, e tinha a certeza de que não iria ser última. Com

um suspiro cansado, estendeu a mão para o rádio no

tabliê e falou para o aparelho.

— Central, daqui viatura três, escuto — disse ele.

— Olá, Sam. Prendeste os homenzinhos verdes que

têm assustado a Clara? — perguntou a voz do outro

lado.

— Sim. Tenho neste momento três extraterrestres

genuínos algemados no banco de trás, Maggie — res-

pondeu ele. — Aliás… EI!

O agente guinou o volante com força para a esquerda

quando os faróis iluminaram, de repente, uma figura

desmazelada que corria no meio da estrada na sua dire-

ção. Os pneus soltaram um guincho de protesto e Sam

largou o rádio, usando as duas mãos no volante enquan-

to lutava para controlar o carro-patrulha descontrolado.

Praguejando entredentes, fez o carro parar, de repente,

na berma. Aproveitou um momento para se recompor,

libertando um longo suspiro antes de pegar na lanterna

e sair. O poderoso feixe da lanterna iluminou o homem

que Sam quase atropelara a cambalear para o carro.

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— Fique onde está, por favor — gritou Sam, mantendo

a outra mão sobre a pistola no coldre. — Sabe a que dis-

tância esteve de ser atropelado? Importa-se de explicar

por que motivo anda a correr pelo meio da estrada a esta

hora da noite?

— Por favor, tem de me ajudar — disse o homem.

Sam não conseguiu identificar com precisão o seu sota-

que, mas parecia europeu. — Eles estão ali. Vêm atrás

de mim. Podem chegar a qualquer minuto.

O primeiro instinto de Sam disse-lhe que lidava com

um vagabundo embriagado que, por algum motivo,

se perdera no meio do nada, mas havia algo estranho

naquele homem. A sua face estava coberta com pó do

deserto, mas tinha a barba feita e o cabelo cortado com

aprumo. A sua roupa também estava coberta de pó, mas

o fato que vestia era de bom corte e os sapatos eram ca-

ros. Na verdade, quanto mais Sam o olhava, menos pare-

cia alguém que se esperaria encontrar a deambular pelo

deserto a trinta quilómetros da cidade mais próxima.

— Quem vem atrás de si? — perguntou Sam, aproxi-

mando-se lentamente do homem.

— Os Discípulos — disse o homem com um olhar

assustado. — Sei o que planeiam. Temos de travá-los…

o governo tem de ser avisado.

Não era um bêbado, era um maluco religioso, pen-

sou Sam para si mesmo.

— Como se chama? — perguntou Sam.

— Tobias Scheckter — respondeu o homem, olhando

nervosamente para o céu.

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— Muito bem, Sr. Scheckter, pode explicar-me, ao

certo, o que faz aqui sozinho a esta hora da noite?

— Sou geólogo — replicou Scheckter. — Tenho tra-

balhado para uns homens, a fazer cálculos. É um traba-

lho puramente teórico. Ou, pelo menos, foi aquilo em

que acreditei… Oh, Deus. Preciso de encontrar um tele-

fone — continuou, frenético. — Ou um rádio. Deixe-me

usar o seu rádio.

— Tenha calma — replicou Sam. — Vamos voltar à

cidade para vermos se conseguimos resolver isto tudo.

— Não está a perceber. Não há tempo! — gritou

o homem, avançando para ele.

Sam deu um passo para o lado e usou o ímpeto do

homem contra ele, tal como aprendera a fazer, forçando

a figura cambaleante a cair, enquanto levava uma mão

às algemas presas na parte de trás do cinto.

— Receio que tenha conquistado o direito de pas-

sar a noite numa das nossas celas — disse, fechando

as algemas sobre os punhos do homem. Ergueu o es-

tranho com um puxão e empurrou-o rapidamente para

o banco traseiro do carro, sentando-se atrás do volante.

O homem murmurava qualquer coisa para si próprio

no banco de trás, numa língua estrangeira que Sam não

reconheceu. Rodou a chave na ignição e arrancou pela

estrada em direção à cidade, suspirando. A noite tinha

conseguido piorar.

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— Conseguimos? Encontrámo-lo? — perguntou a voz

pelo altifalante montado no centro do painel de controlo.

— Sim, os dados biométricos confirmam, mas pa-

rece ter contactado com um agente da polícia local

— respondeu o homem magro sentado diante do pai-

nel. Empurrou o manípulo que segurava numa mão e a

imagem pouco nítida do carro-patrulha tornou-se mais

definida enquanto a câmara aumentava a ampliação.

— Quais são as suas ordens?

— Eliminem-no imediatamente — respondeu a voz.

— Sabe demasiado.

— Muito bem — respondeu o homem magro. Pres-

sionou um botão no painel e o carro foi rodeado por

um quadrado verde. De seguida, ergueu a cobertura de

plástico transparente que cobria um grande botão ver-

melho identificado ao lado do manípulo por uma única

palavra: ATIVAR.

— Do svidaniya, camarada — disse o homem diante

do painel esboçando um pequeno sorriso sádico.

Bem acima do deserto do Nevada, o drone esguio e

negro mergulhou em direção ao alvo. O calor do motor

do carro que seguia lá em baixo ofereceu aos computa-

dores de bordo um alvo infravermelho perfeito, contras-

tando com o frio do deserto que o rodeava. A unidade

esférica montada no nariz do drone rodou. Fixou um

laser invisível no alvo, ao mesmo tempo que uma com-

porta se abria no ventre da aeronave e um míssil era

colocado em posição de disparo. Momentos depois,

o míssil separou-se do drone, ativando o seu motor a jato

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apenas quando se encontrava já vários metros abaixo

do ponto de lançamento. O sistema de orientação por

inércia guiou-o impecavelmente ao longo do raio laser

invisível que o drone projetava e, poucos segundos de-

pois, o tejadilho do carro-patrulha era atingido por uma

carga de oito quilos que, detonando-se, envolveu o veí-

culo numa bola de fogo. A estrada cobriu-se de frag-

mentos incandescentes, pedaços do carro caindo pelo

deserto e incendiando a escassa vegetação rasteira que

decorava a paisagem árida.

Enquanto o silêncio voltava ao deserto, os destroços

flamejantes eram o único vestígio dos dois homens que

tinham visto os seus futuros serem aniquilados e do

segredo que custara a vida a ambos.

— Quem é ela? — perguntou o Otto em voz baixa,

olhando a rapariga que se sentava sozinha num dos

sofás do átrio do seu bloco de alojamento.

— Não sei ao certo — respondeu o Wing. — A úni-

ca coisa que tenho ouvido dizer é que foi incluída no

programa Alfa.

O Otto já sabia isso, mas, pelo que conseguia perce-

ber, era algo invulgar. Os novos Alfas chegavam anual-

mente e começavam no primeiro ano. Nunca eram

admitidos num ano superior. Até hoje, aparentemente.

Decerto, havia algo naquela rapariga que era especial e

o Otto sentia-se determinado em perceber o que seria.

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— Talvez as raparigas saibam mais pormenores

— disse o Wing com um aceno de cabeça na direção da

Laura e da Shelby, que se aproximavam no outro extre-

mo do corredor.

— Andas a perseguir a rapariga nova, Malpense?

— disse a Shelby, espetando-lhe um dedo nas costelas.

— Sabes que isso é um bocado sinistro, não sabes?

— Não é perseguição — replicou o Otto. — É vigi-

lância.

— Isso é ainda mais sinistro — disse a Shelby, fin-

gindo um arrepio.

— Alguém falou com a pobre rapariga? — perguntou a

Laura, parecendo ligeiramente irritada. — Aposto que ne-

nhum de vocês parou para pensar em como foram as coi-

sas para nós no nosso primeiro dia. Pelo menos, éramos

todos recém-chegados. Tentem imaginar como será para

ela, sozinha. A Shelby e eu vamos dizer olá. Querem vir?

— Está bem, está bem — disse o Otto, erguendo as

mãos. — Vamos convocar a comissão de boas-vindas do

H.I.V.E.

— Temos uma comissão dessas? — perguntou o

Wing, parecendo confuso.

— Anda daí, grandalhão — disse a Shelby com um

sorriso, empurrando o Wing à sua frente pelo corredor

em direção às escadas.

— Podemos sempre ver que informações o servidor

central tem acerca dela — disse o Otto, continuando a

avaliar a rapariga. — Isto é, se quiseres dar uma vista

de olhos.

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— Acho que não precisas da minha ajuda com isso

— disse a Laura, puxando o Otto para longe da varanda.

— Não, deixa estar. Ando a tentar evitar experiências

extracorporais, para já — disse o Otto, parecendo distraído.

Nos meses anteriores, o Otto descobrira que tinha

a capacidade única de interagir à distância com dispo-

sitivos eletrónicos ou redes informáticas. Em teoria,

isso tornava-o o hacker mais eficiente do planeta, mas a

realidade era mais preocupante. Em mais do que uma

ocasião, o Otto quase se perdera no mundo eletrónico,

o que o deixava ligeiramente inseguro acerca dos bene-

fícios reais do seu talento. Tanto o Número Um, como

Sebastian Trent, tinham procurado inverter a ligação,

de modo a controlá-lo, coisa que quase conseguiram.

Depois disso, o Otto sentia-se cada vez mais preocu-

pado com a possibilidade de permitir a outra pessoa a

possibilidade de exercer influência semelhante sobre

ele.

— Além disso, tu tens um talento nato — disse o

Otto. A Laura viera para o H.I.V.E. depois de entrar

num dos primeiros sistemas de alerta do governo dos

Estados Unidos, com o objetivo de usar os seus re-

cursos para ouvir conversas de telemóvel das rapa-

rigas que lhe tinham feito a vida negra na sua escola

anterior.

— Pode não ser assim tão fácil, na verdade — disse

a Laura, franzindo a testa. — O professor Pike refor-

çou muito a rede de segurança desde que o cérebro do

H.I.V.E… bom… tu sabes.

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O cérebro do H.I.V.E., a inteligência artificial que

controlava os sistemas informáticos do H.I.V.E., sacri-

ficara-se para ajudar a derrotar o Supremo e a salvar a

vida do Otto. Continuava a ser uma coisa em que ele

não queria realmente pensar.

— Então, achas que é mais fácil se, simplesmente,

falarmos com ela? — perguntou o Otto com um sorriso

matreiro.

— É chocante, eu sei — respondeu a Laura. — Mas,

às vezes, é melhor fazer as coisas à antiga

Desceram rapidamente as escadas e alcançaram o

Wing e a Shelby atravessando o átrio em direção ao sítio

onde a rapariga se sentava. Ergueu o olhar do dossiê

enquanto os quatro se aproximavam. O seu cabelo lon-

go, liso e negro, contrastava profundamente com a sua

pele pálida e os olhos azuis profundos. Era bonita, sem

dúvida, mas o Otto sentiu algo quando a viu. Qualquer

coisa de familiar.

— Olá, eu sou a Shelby e este borracho é o Wing

— disse a Shelby, sorrindo. — E estes são os nossos crâ-

nios residentes, a Laura e o Otto. Achámos que podias

precisar de alguém para te mostrar a escola. Se sentires

alguma coisa parecida com o que eu senti no dia em

que cheguei, deves ter um milhão de perguntas e não

muitas respostas. Acertei?

— É um bocado… avassalador — respondeu a rapariga

com um sorriso tímido. — Chamo-me Lucy. Lucy Dexter.

— É uma honra conhecê-la, menina Dexter — disse

o Wing, curvando-se numa pequena vénia.

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— Acho que ele está a tentar dizer olá — disse o Otto

com um sorriso, enquanto aplicava uma cotovelada no

Wing.

— Sem dúvida, olá — disse o Wing, erguendo uma

sobrancelha.

— Que te parece isto? — perguntou a Laura, indi-

cando vagamente as paredes que a rodeavam.

— É… bom… suponho que a melhor palavra será…

inacreditável — respondeu a Lucy. Parecia estar em cho-

que.

— Uma escola secreta para os supervilões do futuro

escondida dentro de um vulcão, numa ilha tropical re-

mota. O que tem de tão inacreditável? — perguntou

o Otto, sorrindo.

— Para mim, parece-me perfeitamente normal,

o que, na verdade, é muito perturbador, independente-

mente da forma como olhemos para isso — acrescen-

tou a Laura.

A Lucy riu-se e apontou o dossiê que folheava.

— Fizeram-me a visita guiada e estou a ler o manual

de novos alunos que me deram, mas, para ser sincera,

nem sequer sei bem porque estou aqui. Estava em casa

a ler na cama e, de repente, acordo num helicóptero

com uma russa louca.

— Não te preocupes. Conhecemos bem a russa lou-

ca. — O Otto riu-se. — Mas dou-te um conselho: no teu

lugar, não lhe chamaria isso na cara.

— A não ser que gostes de comer por uma palhinha,

claro — disse a Shelby, sorrindo.

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— Não acredito que a Raven atacasse uma aluna sem

um motivo válido — disse o Wing, franzindo a testa.

— Eu sei. Estava só… a exagerar porque… engra-

çado… esquece — disse a Shelby, suspirando. O Otto

esforçou-se para não rir.

— É verdade que não podemos sair daqui até ao fim

do sexto ano? — perguntou a Lucy. — Vocês ainda não

saíram da ilha, desde que chegaram?

— Tecnicamente, é verdade — disse a Laura, sentan-

do-se no sofá à frente dela. — Mas tivemos um par de…

hmm… excursões não oficiais durante esse período, e tam-

bém há a missão de treino ocasional que nos leva para fora

da ilha. Aliás, vamos ter uma dentro de uns dias. Não vais

ter de esperar muito para voltares a ver o mundo exterior.

Tudo bem que é um curso de sobrevivência no Ártico,

ou seja, o mundo exterior que vamos ver vai resumir-

-se, sobretudo, a neve e gelo intermináveis, mas, mesmo

assim, é uma mudança de cenário. Seja como for, volta-

mos sempre para aqui, de uma maneira ou de outra. Mas

porquê? Não estás já a pensar em deixar-nos, pois não?

— Não — respondeu a Lucy rapidamente, parecendo

um pouco nervosa. — Não é isso. É que… bom… este

sítio, às vezes, não parece uma prisão? — Olhou cada

um deles.

— Talvez no início, sim — respondeu o Otto. — Mas,

depois de algum tempo, começou a parecer a nossa casa.

Alguns de nós não têm grande coisa a que regressar no

mundo exterior. Além disso, este grupo ficaria comple-

tamente perdido sem mim. — O Otto sorriu.

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— Sim, claro — disse a Laura, revirando os olhos.

— Pessoalmente, não sei o que faria se não nos colo-

casses a vida em risco, pelo menos, uma vez a cada dois

meses.

— Nada é pior do que uma vida sossegada sem pes-

soas a dispararem contra nós — disse a Shelby, deixan-

do-se cair no sofá ao lado da Laura. — Que faríamos

sem o Malpense, o íman de balas?

— Ei, isso não é justo — disse o Otto, fingindo-se

magoado. — Às vezes, são facas. Ou até bombas.

— Parece-me que os vossos anos anteriores foram

interessantes — comentou a Lucy, parecendo preocu-

pada.

— Bem-vinda ao H.I.V.E. — respondeu o Wing com

um sorriso quase impercetível.

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O Dr. Nero estava sentado à mesa de reuniões no

lugar que lhe fora atribuído, esperando paciente-

mente que a cúpula no centro da mesa se iluminasse

com uma luz branca suave. De repente, as outras ca-

deiras à sua volta foram ocupadas por figuras que se

materializaram do nada. Algumas estavam já ocupa-

das a conversar. Aquelas novas reuniões holográficas

telepresenciais foram uma das primeiras inovações

implementadas por Diabolus Darkdoom quando assu-

miu o comando da L.U.V.A., a Liga Unitária de Vilões

Autodidatas. Fazia algum sentido, supôs o Nero, con-

tornar os riscos associados à presença de todos os

elementos do conselho administrativo no mesmo local,

mas, mesmo assim, não conseguia evitar sentir que

faltava alguma coisa. Tinha valor inequívoco a proxi-

midade física dos outros conselheiros da L.U.V.A., por

mais arriscada que fosse. Afinal, era muito mais difícil

perceber quando uma projeção holográfica mentia do

que uma pessoa sentada diante de nós, incapaz de es-

conder as gotas de suor que se formavam na sua testa.

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— Bom dia, senhoras e senhores. — A figura de

Diabolus Darkdoom, o líder da L.U.V.A., materializou-

-se na cabeceira da mesa, imediatamente à esquerda do

Nero. — É com agrado que verifico que conseguiram

estar presentes, apesar da convocatória imprevista. Sur-

giu uma questão que exige discussão urgente. Terão,

certamente, reparado que há um lugar vazio na mesa e

foi exatamente esse facto que me forçou a convocar-vos.

O Jason Drake decidiu boicotar esta reunião por moti-

vos que não são ainda inteiramente claros. Sei bem que

expressou descontentamento com a minha liderança,

mas, aparentemente, decidiu agora que já não deseja in-

tegrar a nossa organização. A L.U.V.A. nunca tolerou a

existência de fações ou grupos dissidentes que possam

intrometer-se nos nossos objetivos e não pretendo abrir

uma exceção. O que preciso de saber, neste momento,

é se algum de vós está a par das intenções do Drake. Se

pretender fundar a sua própria organização, precisarei

de sabê-lo, de modo a tomarmos as medidas adequadas.

O Diabolus olhou cada um dos conselheiros à vol-

ta da mesa, mas nenhum pareceu disposto ou capaz

de avançar mais informações. O Nero deu consigo a

amaldiçoar novamente o facto de a baixa definição das

projeções holográficas à volta da mesa dificultar ou im-

possibilitar perceber os indícios discretos de expressão

ou linguagem corporal que poderiam revelar quais deles

sabiam mais do que estavam preparados para admitir.

— Muito bem — afirmou o Diabolus com firmeza.

— Se o Drake planear realmente fundar uma nova

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organização, poderá abordar alguns de vós para obter

o vosso apoio. Estou certo de que não precisarei de vos

explicar quais seriam as consequências se descobrisse

que conspiravam em segredo com ele.

— O que te leva a ter tanta certeza de que se tornou

um renegado? — perguntou o Carlos Chavez, diretor

das operações sul-americanas da L.U.V.A.

— Tenho, ou melhor, tinha fontes próximas do Drake

— respondeu o Darkdoom. — Essas fontes silenciaram-

-se, mas apenas depois de me informarem do planea-

mento de algum tipo de operação com esta organização

como alvo.

— Sabemos onde pretende atacar? — perguntou a

Madame Mortis.

— Não, não sabemos — respondeu o Darkdoom.

— Sugiro que aumentem os vossos cuidados de segu-

rança. Quaisquer atividades que tenham programado

estarão vulneráveis. Talvez seja melhor que as adiem ou

cancelem. Deixo isso ao vosso critério.

— É uma figura pública, diretor de uma multinacio-

nal — disse o Barão Von Sturm. — Não pode desapare-

cer para sempre.

— Não duvido de que voltará a dar sinais de vida

— disse Darkdoom. — E, quando acontecer, o Dr. Nero

pedirá à Raven que tenha uma conversa com ele, não é

assim, Max?

— Claro — disse o Nero, acenando afirmativamente

com a cabeça. Agradou-lhe ver as expressões ligeira-

mente nervosas nas faces dos que rodeavam a mesa.

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A Raven era a sua agente de maior confiança e, tam-

bém, a assassina mais temida em todo o mundo. Nin-

guém naquela reunião queria estar na sua lista de alvos.

— Não duvido de que tenham outros assuntos a

resolver e não vos tomarei mais tempo. Suponho que

não precisarei de vos dizer que espero ser informado

imediatamente, caso algum de vós ouça alguma coisa.

Entendido?

Os outros líderes da vilania global reunidos à volta da

mesa acenaram com a cabeça.

— Muito bem — disse o Darkdoom. — Faz ao pró-

ximo.

— Faz ao próximo — disseram os outros membros

do conselho, repetindo o lema da L.U.V.A. Uma a uma,

as imagens projetadas dos conselheiros à volta da mesa

tremeluziram e desapareceram, até restarem somente o

Nero e o Darkdoom.

— Tens alguma coisa a acrescentar, Max? — pergun-

tou o Darkdoom, parecendo irritado.

— Presumo que compreendas o perigo desta situa-

ção — afirmou o Nero calmamente.

— Claro que sim — ripostou o Diabolus antes de

inspirar fundo, recostando-se na cadeira. — Perdoa-me.

Esta situação apanhou-me de surpresa.

— Conhecias a sua insatisfação — disse o Nero.

— Todos nós a conhecíamos. Era inevitável que alguém

se sentisse insatisfeito com a tua nomeação como líder do

conselho. O Número Um pode ter pretendido trair-nos

a todos, mas isso não significa que todos discordassem

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da forma como administrava a L.U.V.A. O Drake co-

biçava a cadeira que ocupas e não se contentaria com

o cumprimento das tuas ordens. Todos sabemos isso.

— Talvez, mas era um dos membros mais podero-

sos do conselho administrativo, em número de efetivos

e em recursos. Perdê-lo neste momento, quando ainda

estamos vulneráveis…

O Nero compreendeu o que o Darkdoom queria di-

zer. Não era fácil satisfazer as exigências tecnológicas

de uma organização como a L.U.V.A. sem a existência

de unidades fabris legítimas que pudessem ser usadas

de forma discreta para fabricar o equipamento de que

precisavam. O Jason Drake dirigia a Drake Industries e

fora responsável pelo desenvolvimento de grande parte

da tecnologia de ponta que a L.U.V.A. usava nas suas

atividades quotidianas. Perder acesso aos recursos que

tinha à sua disposição podia ser catastrófico, sem pen-

sar noutros planos que Drake pudesse levar avante para

prejudicar a organização.

— A L.U.V.A. perdurará, como sempre aconteceu

— afirmou o Nero num tom tranquilizador. — Mas te-

remos de assegurar que esta situação não evoluirá para

uma guerra civil. Pelo que conheço do Drake, começará

por tentar recrutar os membros restantes do conselho

ou voltá-los uns contra os outros. Isto, se não o tiver

feito já.

— Acreditas que poderemos ter traidores entre nós?

— perguntou o Darkdoom, apontando os lugares vazios

à volta da mesa.

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— Nenhum membro deste conselho chegou à po-

sição que ocupa hoje por via da honra e do jogo limpo.

Nós dos dois, inclusivamente. Por isso, não deverá sur-

preender-nos que tentem perceber qual a melhor forma

de conseguirem lucrar com esta situação. Precisaremos

apenas de assegurar que não apanham de surpresa.

O Darkdoom acenou com a cabeça, pensativo.

— Obrigado, Max. Sei, pelo menos, que poderei con-

tar sempre contigo para me cobrires a retaguarda.

— Neste momento, a confiança é o mais importan-

te — replicou o Nero, olhando o Darkdoom nos olhos.

— A situação vai piorar, antes de melhorar. Disso, po-

demos ter a certeza. O Drake não teria dado um passo

destes a não ser que tivesse motivos para se sentir

a salvo da ira da L.U.V.A. O Von Sturm está certo. É

uma figura demasiado pública para desaparecer. Sabe

que terá de vir à superfície para respirar, mas receio que

isso signifique que o seu plano envolva a nossa elimi-

nação como ameaças à sua figura, antes de se ver obri-

gado a fazê-lo.

Darkdoom suspirou longamente e esfregou as têm-

poras com as mãos.

— Sabes, com todos os anos que passei escondido,

esqueci-me de como era sentar-me nesta mesa — disse,

parecendo cansado. — O Número Um fazia isto parecer

fácil.

— O Número Um era uma inteligência artificial psi-

copata — disse o Nero. — Não me parece que tivesse

grandes qualidades dignas de admiração.

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— Não foi sempre assim, Max — disse o Darkdoom.

— Começou por ser tão humano como tu ou eu. Não

devemos esquecer o que conseguiu antes de ser cor-

rompido pelo Supremo. Fundou esta organização e

impediu que implodisse, contra tudo e contra todos,

durante muitos anos. Até agora, não compreendia a di-

ficuldade. Por vezes, penso se não teria sido mais fácil

continuar morto…

— Tem cuidado com o que desejas… — disse o Nero,

esboçando um sorriso enviesado.

O Darkdoom riu-se e encostou a cabeça à cadeira.

— Na verdade, há outro assunto que quero discu-

tir contigo. Está vagamente relacionado com o Drake.

O Couraçado terminou a sua missão de teste e está pron-

to para ativação plena. Pensei que te agradasse fazer

uma visita.

— Tu e os teus brinquedos — disse o Nero, fingindo-

-se exasperado. A construção do Couraçado fora um dos

últimos projetos concluídos pela Drake Industries para

a L.U.V.A.

— O Couraçado não é um brinquedo. É um dos veí-

culos mais sofisticados alguma vez construídos e uma

parte vital do futuro desta organização.

— Claro que sim — disse o Nero, suspirando.

— Além disso, acho que devemos encontrar-nos cara a

cara para discutir ao pormenor estes desenvolvimentos

recentes.

— De acordo — afirmou o Darkdoom, acenando

com a cabeça.

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— Envia-me as coordenadas do Couraçado e tratarei

do transporte.

— Excelente. Vemo-nos em breve.

— Percebe-se assim que o envolvimento quântico

influencia de forma séria a implementação de técnicas

eficazes de teletransporte, mas os problemas provoca-

dos poderão ser aproveitados de forma útil, pelo menos

em teoria, no desenvolvimento de tecnologia de desin-

tegração eficiente. Partilharei mais pormenores desta

problemática na próxima semana e, até lá, espero que

estudem os primeiros três capítulos da obra crucial de

Igor Kreuzmann sobre armamento de feixes balísticos:

Não, Espero que Morras.

O professor Pike afastou-se do atril numa ponta da sala

e começou a guardar os seus papéis na sua velha pasta.

— Graças a Deus que acabou — disse a Shelby, sus-

pirando.

— Estás a falar a sério? — perguntou a Laura, pare-

cendo verdadeiramente surpreendida. — Foi fascinante.

Se conseguíssemos perceber o algoritmo da recomposi-

ção molecular… o céu seria o limite.

— Não sei — replicou o Otto, parecendo verdadei-

ramente entusiasmado. — As limitações einsteinianas

são tão específicas nestes casos que…

— Pronto, já está... — disse o Wing à Shelby e à

Lucy.

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— Vão continuar a falar assim um com o outro

durante meia hora — resmungou a Shelby enquanto

o Otto e a Laura continuavam a conversar. — Deviam

encontrar uma forma de ligar diretamente os cérebros

deles. . Ao menos, não tínhamos de os ouvir.

— Tem cuidado com aquilo que pedes — disse o

Wing —, ou podem mesmo fazê-lo.

— Como foi o teu primeiro dia? — perguntou a Shelby

à Lucy, enquanto os alunos começavam a sair da sala de

aula para o corredor.

— Sinto-me um bocado fora do meu ambiente

— replicou a Lucy com um pequeno suspiro. — É muita

coisa para aprender ao mesmo tempo. Sinto que tenho

muita matéria para recuperar.

— Não te preocupes — disse a Shelby, sorrindo.

— Essa sensação só dura…

— Um par de anos, até agora. A contagem continua

— interrompeu o Wing.

— Ignora o grandalhão pessimista — disse a Shelby,

colocando um braço sobre os ombros da Lucy. — A ver-

dade é que, dentro de umas semanas, tudo isto te vai

parecer perfeitamente normal. E será nesse momento

que perceberás que tens um problema. Mas encon-

trei uma solução. Uma coisa que faz com que a estra-

nheza toda valha a pena. Uma coisa a que chamo…

treino de polo aquático dos rapazes do último ano.

Todas as quartas à noite… traz alguma coisa para comer

e beber.

— Parece-me bem — disse a Lucy, sorrindo.

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— Acredita que vale a pena — respondeu a Shelby.

— Encaro aquilo como uma forma de arte. Uma forma

de arte com músculos e corpos molhados.

— Estás a fazer com que me sinta suja por partici-

par — disse a Laura, tendo terminado a discussão sobre

dinâmicas quânticas com o Otto. — Só me interessa

que o H.I.V.E. seja muito mais interessante do que

uma escola normal. Mesmo que seja um bocado mais

estranho.

— Para mim, a aula de Camuflagem e Evasão foi o

mais estranho até agora — disse a Lucy. — Não tanto a

aula, mas a professora Leon. Ela é… bom…

— Um gato? — concluiu o Otto com um sorriso ani-

mado.

— Sim… Sim, realmente, é a única forma de colo-

car a questão — disse a Lucy, parecendo ligeiramente

espantada.

— Não te preocupes. Vais habituar-te — disse a

Shelby. — Além disso, só quando aparecerem plantas

carnívoras mutantes e androides ninjas é que as coisas

ficam mesmo esquisitas.

A Lucy começou a rir, mas parou quando viu a ex-

pressão na cara dos colegas.

— Isso era uma piada, certo? — perguntou.

— Seja como for — começou o Otto, interrompendo

o silêncio desconfortável —, eu e o Wing temos de ir.

Temos aquela coisa… na biblioteca.

— Ah, sim! — disse prontamente o Wing. — A coi-

sa… sim. Temos de ir fazer essa coisa.

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— Vemo-nos mais tarde — disse o Otto, enquanto se

lançava com o Wing por um corredor afora.

— Que coisa? — perguntou a Laura à Shelby enquanto

os dois rapazes se afastavam com passos apressados.

— Não sei — disse a Shelby com um sorriso conhe-

cedor. — Mas seria uma violação muito injusta da sua

privacidade se os seguíssemos.

— Era nisso que pensava — disse a Laura, enquan-

to seguiam os rapazes. Após alguns passos, pararam e

viraram-se.

— Vens connosco? — perguntou a Shelby à Lucy,

que se erguia no meio do corredor, parecendo um pou-

co confusa. A Lucy acenou ligeiramente com a cabeça e

acelerou o passo para as alcançar.

— Isto não me agrada nada — disse o Franz, esprei-

tando o monitor por cima do ombro do Nigel. Com um

suspiro expressivo, deixou-se cair na cama do quarto

que partilhavam.

— Sim — disse o Nigel, empurrando os óculos so-

bre o nariz. — Estou a tentar perceber o que será pior:

o curso de sobrevivência no Ártico ou o facto de o nosso

grupo ter a Raven como supervisora.

Há semanas que sabiam que o curso aconteceria e,

enquanto alguns dos Alfas, como o Wing ou a Shelby,

pareciam ansiar por ele, a maior parte deles via o cur-

so com uma mistura de apreensão e medo. Esses

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sentimentos não eram serenados pelo facto de os alu-

nos Alfa mais velhos se referirem àquela parte especí-

fica do programa do H.I.V.E. como «o curso noventa e

três por cento», por ser essa a percentagem de alunos

que regressava com vida.

— Sou extremamente sensível ao frio — disse o

Franz. — Já tentei explicar isto ao coronel Francisco,

mas pareceu-me que não se importou.

O Nigel recordou essa conversa. Terminara com o

coronel Francisco, o instrutor tático, a dizer que o Franz

tinha de participar no curso como precaução, na even-

tualidade de alguma coisa correr mal e de a comida se

esgotar. A seguir, o coronel explicou ao resto da turma

que, em teoria, conseguiriam «sobreviver durante uma

semana comendo o Franz». O Nigel estava quase certo

de que tinha sido uma piada.

— Agora, não temos saída — disse o Nigel, suspiran-

do. — O lado positivo da questão é que vamos sair da

ilha durante uns dias. — Há muito tempo que nenhum

dos dois saía do H.I.V.E. e, sendo verdade que todas as

suas necessidades eram satisfeitas pela escola, permi-

tindo que vivessem em conforto relativo, seria simpá-

tico, ainda assim, poderem mudar de ares. De súbito,

ouviram a campainha e o Nigel levantou-se para pres-

sionar o botão que abria a porta.

— Outra vez, não — disse o Nigel quando a porta se

abriu com um silvo.

Do outro lado, erguiam-se o Block e o Tackle, que,

apesar da concorrência intensa, eram os maiores rufias

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do programa Capanga do H.I.V.E. Os alunos dividiam-

se em quatro grupos, ou programas, distintos, cada

um englobando alunos com capacidades específicas.

Os alunos do programa Político e Financeiro vestiam

fatos-macacos cinzentos, os do programa Científico e

Tecnológico, brancos. No programa Alfa, os líderes fu-

turos das organizações de vilões, vestiam fatos-macacos

pretos. E, por fim, vinham os alunos do programa Capan-

ga. Os seus fatos-macacos azuis indicavam que o único

talento que pareciam ter era a capacidade de partir todos

os ossos do corpo de alguém no menor tempo possível.

— Que querem? — perguntou o Nigel, irritado.

— Estamos só a ver se precisas de alguma coisa

— afirmou o Block, educadamente.

— O que seja — acrescentou o Tackle.

O Nigel suspirou. Pouco tempo antes, teriam adora-

do atormentá-lo e ao Franz de alguma nova ou inventiva

maneira sádica, mas desde que o seu pai, Diabolus

Darkdoom, se tinha tornado líder do conselho adminis-

trativo da L.U.V.A., a sua atitude tinha-se alterado dras-

ticamente. O Nigel não sentia propriamente saudades

de lhe enfiarem a cabeça numa sanita antes de puxarem

o autoclismo, mas o comportamento dos dois rufias tor-

nara-se, de alguma forma, igualmente desagradável.

— Não, obrigado. Não preciso de nada — respondeu

o Nigel com um suspiro.

— A casa de banho precisa de uma limpeza — disse

o Franz atrás do Nigel, apontando com o polegar a porta

ao fundo do quarto.

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O Block e o Tackle entreolharam-se, claramente sem

saber o que fazer.

— Não. Está tudo bem. O Franz está a brincar — disse

o Nigel, dirigindo um olhar irritado ao seu companhei-

ro de quarto.

— Estou? — replicou o Franz, ligeiramente sur-

preendido.

— Sim. Não preciso de nada por agora, mas obriga-

do por perguntarem. — O Nigel pressionou o botão ao

lado da porta e esta começou a fechar-se.

— Se houver alguma coisa… — disse o Block.

— O que seja… — acrescentou o Tackle enquanto a

porta se fechava ruidosamente.

— Pensava que já te tinha pedido que não fizesses

isso — disse o Nigel ao Franz, voltando a sentar-se à

secretária.

— Que não fizesse o quê? — perguntou o Franz, ino-

centemente.

— Sabes a que me refiro — ripostou o Nigel. — De-

pois do incidente na fila para o almoço, prometeste-

-me que não voltarias a aproveitar-te da posição do meu

pai.

— Isso foi apenas um mal-entendido — respondeu

prontamente o Franz.

— Disseste a um aluno do primeiro ano que, se não

te deixasse passar à frente na fila, o meu pai mandaria

a Raven assassiná-lo — recordou o Nigel, irritado.

— Bom… e poderia mesmo fazê-lo… — replicou o

Franz debilmente.

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— Sabes… às vezes, gostava que as pessoas não sou-

bessem — disse o Nigel, esfregando as têmporas.

— Lamento — disse o Franz em voz baixa. — Tens

razão. Não volto a fazê-lo. Sabes que não sou teu amigo

só por saber quem é o teu pai, não é?

— Claro que sei — disse o Nigel, olhando para o

Franz. — Mas gostava de poder dizer o mesmo acerca

das outras pessoas.

— Au, au, au, au, au — gritou o Otto, saltando sobre

o pé que não lhe doía.

— Baixaste a guarda. Os teus inimigos explorarão

essa fraqueza — disse o Wing, recuando e girando o

bastão que empunhava até ficar preso sob o braço, pron-

to para um novo ataque.

— Lembra-me outra vez porque te deixei convence-

res-me a fazer isto — pediu o Otto, apoiando-se gentil-

mente sobre o seu pé dorido. Ao menos, não lhe parecia

ter nada partido. Envergavam proteções, mas isso não

significava que não doesse.

— Porque já passámos por muitas situações em que

a capacidade de defesa foi crucial, e tu próprio admitiste

que as tuas capacidades nessas áreas… deixam muito a

desejar.

Era uma fraqueza de que o Otto estava consciente,

sabendo que precisaria de dedicar tempo a resolvê-la,

mas, ao contrário do que sucedia com a maior parte das

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suas outras capacidades únicas, a teoria não lhe serviria

de nada ali. Passara horas antes daquela sessão a ab-

sorver toda a informação que a biblioteca do H.I.V.E.

albergava acerca de defesa pessoal, mas um conheci-

mento quase absoluto de todas as formas de luta do-

cumentadas não significava que o seu corpo soubesse

pô-las em prática. Conseguia aprender a pilotar um caça

em minutos, mas isso não significava que conseguisse

desferir um pontapé rotativo, como o Wing demonstrava

claramente.

— Outra vez — disse o Wing.

— Porque não? Acho que me restam uns centíme-

tros quadrados de corpo que ainda não estão negros

— gemeu o Otto.

— Lamento — respondeu o Wing. — Vejo que os

teus lábios se movem, mas tudo o que ouço é um baru-

lho lamechas.

— Estás a adorar isto, não estás? — disse o Otto,

assumindo a mesma postura de ataque que o Wing as-

sumira.

— Isto não me dá qualquer prazer — disse o Wing,

sorrindo.

O Wing voltou a avançar e o Otto tentou recordar o

que já aprendera: mantém o equilíbrio, compreende

o teu centro de gravidade e permite que o instinto con-

trole as tuas ações, sem perder o controlo. Era fácil de

aprender, mas difícil de executar com mestria. Dobrou

as pernas e moveu o bastão em direção às costelas do

Wing. O bastão do amigo descreveu um arco, bloqueando

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o ataque do Otto enquanto a extremidade oposta se in-

troduzia entre os seus joelhos, rodava, e lhe lançava os

pés para cima, fazendo-o cair de costas no chão. Todo o

oxigénio nos seus pulmões pareceu abandoná-lo numa

expiração explosiva.

O Wing estendeu a mão ao Otto e ajudou o seu ami-

go ofegante a erguer-se.

— Estás bem? — perguntou.

— Não consigo… falar… respirar… — gemeu o Otto,

tentando desesperadamente encher os pulmões.

— De que te esqueceste? — perguntou o Wing.

— De trazer uma pistola? — disse o Otto, pressio-

nando cuidadosamente as costelas.

— Não sei se isso te teria ajudado, se me permites

ser honesto — disse o Wing, rindo-se. — Penso que por

hoje já chega.

Dirigiram-se os dois para o vestiário, tomaram um

duche rápido e vestiram os fatos-macaco pretos. Saíram

e foram para a galeria acima da área de treino, onde

encontraram a Laura, a Shelby e a Lucy. As raparigas

irromperam em aplausos espontâneos, ao vê-los apro-

ximarem-se.

— Estavam todas a assistir? — perguntou o Otto,

encolhendo-se.

— Estás a brincar, não estás? — perguntou a Laura.

— Não perdia isto por nada deste mundo. É o melhor

espetáculo na cidade. Acho que é a combinação de

comédia e violência extrema que torna tudo tão apela-

tivo.

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— Fiz pipocas — disse a Shelby, erguendo uma taça

de plástico meio cheia. — Queres?

— Vocês são amigos, não são? — perguntou a Lucy,

dirigindo-se ao Otto e ao Wing.

— Éramos — disse o Otto. — Antes de começarmos

estas sessões de treino privadas.

— Vá lá, Otto — começou a Laura, sorrindo —, não

tens motivos para ter vergonha. Parte do que vimos pa-

recia bailado.

— Sim — replicou a Shelby. — Mas com um pouco

mais de força bruta aplicada na cabeça e no pescoço do

que o habitual.

— Por falar em força bruta — disse a Laura —, estão

todos preparados para a nossa emocionante viagem ao

Círculo Ártico amanhã?

— Será uma excelente oportunidade para testar os

nossos limites físicos — disse o Wing, satisfeito. — Es-

tou ansioso.

— E isto sem lhe ter conseguido acertar uma única

vez na cabeça — apressou-se a dizer o Otto. — Pessoal-

mente, preferia comer um balde com vidro partido.

— Concordo com o Otto — disse a Laura, suspirando.

— Prefiro uma biblioteca aquecida e um computador

portátil.

— Então, pessoal, onde está o vosso sentido da aven-

tura? — perguntou a Shelby, sorrindo. — Vai ser

divertido.

— Enaaaa — exclamou o Otto, sarcástico. — Diver-

são gelada, solitária e mortal.

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— Espero que não se importem com isso — disse a

Lucy —, mas pedi ao coronel Francisco para me juntar

ao vosso grupo de treino. Ele disse-me que não haveria

problema, mas que era necessário consultar a pessoa que

supervisiona o vosso grupo. Alguém chamado Raven.

— Mais conhecida como «a russa maluca» — disse

a Shelby.

— Sabem… Fiquei muito ofendido por terem posto

a Raven a orientar o nosso grupo — disse o Otto, fin-

gindo-se indignado. — É quase como se esperassem

sarilhos provocados por nós.

— Sim — disse a Laura, sorrindo. — Não provoca-

mos sarilhos. Os sarilhos acontecem naturalmente à

nossa volta.

Era frenética a atividade no hangar na cratera vul-

cânica do H.I.V.E. enquanto os grupos de alunos eram

conduzidos para as naves de transporte Manto que os

conduziriam ao treino de sobrevivência. Guardas com

fatos-macaco laranja facilmente identificáveis patrulha-

vam a área, mantendo os alunos sob vigilância constan-

te. O Dr. Nero avançou sobre a plataforma de aterragem

e os grupos de alunos silenciaram-se prontamente.

— Estou certo de que estarão todos ansiosos pela

partida para este exercício — disse o Nero com um ligei-

ro sorriso —, mas queria aproveitar a oportunidade para

vos recordar as regras da escola que regem qualquer

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deslocação ao exterior. Serão constantemente monito-

rizados pelo vosso supervisor e obedecerão às suas or-

dens sem questioná-las. Enfrentarão um dos ambientes

mais hostis do planeta e, se não seguirem as indicações

do vosso instrutor, alguns de vós poderão não sobrevi-

ver. É essa a consequência do fracasso, uma lição que

precisarão de aprender bem, se pretendem vir a ser ope-

racionais da L.U.V.A. Boa sorte e espero ver quase todos

vós aqui dentro de quatro dias. — O Nero voltou-se para

o Monroe, chefe da segurança do H.I.V.E. — Pode dar

início ao embarque.

Os guardas começaram a conduzir os grupos de Alfas

para os Mantos, enquanto as rampas de embarque

baixavam das caudas das aeronaves. O Otto, o Wing,

a Shelby, a Laura, a Lucy, o Nigel e o Franz subiram lenta-

mente pela rampa, alcançando a cabina de passageiros.

A Raven erguia-se no extremo oposto, olhando-os atenta-

mente enquanto ocupavam os seus lugares de cada lado.

— Já percebo porque me atribuíram este grupo

— disse a Raven, arqueando uma sobrancelha.

— E eu que pensava que era por teres muitas sauda-

des nossas — disse o Otto, sorrindo.

— Basta, Sr. Malpense — disse o Nero, entrando na

cabina. — Não se preocupem — continuou, ao ver as

suas expressões de surpresa. — Não terão a minha com-

panhia no exercício. Por mais apelativo que seja passar

vários dias em temperaturas abaixo de zero, limito-me

a aproveitar o transporte. Deixar-vos-ei muito antes de

chegarem ao vosso destino.

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O Nero atravessou a cabina, acenando pelo caminho

com a cabeça à Raven e subindo a escada que conduzia

ao cockpit.

— Parece-me que o Dr. Nero foi bastante claro, mas

quero acrescentar uma coisa. — Esboçou-lhes um sor-

riso capaz de gelar o sangue. — Tentem escapar à mi-

nha supervisão e a vossa maior preocupação não será

o ambiente hostil. — Apontou várias caixas atrás dela.

— Preciso que façam uma inventariação deste equipa-

mento durante o voo. Quando tiverem terminado, dar-

-vos-ei informações mais detalhadas acerca do exercício.

Do exterior, ouviram o zumbido distinto das turbi-

nas do Manto.

— Parece que estamos prontos para partir — conti-

nuou a Raven. — Ponham os cintos e preparem-se para

descolar. Voltarei quando estivermos no ar.

A Raven subiu a escada para o cockpit, onde viu o

Nero a colocar o cinto numa das cadeiras atrás do pi-

loto, que se ocupava com as últimas verificações para

o voo.

— Sinceramente, deixe-me agradecer-lhe, uma vez

mais, por me ter atribuído este grupo — afirmou a

Raven com sarcasmo enquanto se instalava na cadeira

ao lado do Nero.

— Achei que ia gostar do desafio — disse o Nero,

com um sorriso malicioso.

— É interessante ver que acolheram a Sra. Dexter

— disse a Raven, enquanto o Manto começava a erguer-

-se para o topo da cratera.

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— Sim — replicou o Nero com voz contida. — Mas

duvido que fossem tão amigáveis se conhecessem mais

pormenores acerca do seu passado.

— Claramente, ainda não discutiu com eles esse

assunto — disse a Raven, colocando também o cinto.

— E, se tiver algum bom senso, nunca o fará.

Page 40: Para a minha mãe e para o meu pai. Obrigado. · rapariga pálida de cabelo escuro. O sangue fresco manchava a neve por baixo do seu ombro. Respirava com dificuldade. Furan manteve-se