Para a minha mãe e para o meu pai.
Obrigado.
7
A rapariga corria com neve pelos joelhos, ofegante,
deixando um rasto de vapor branco que pairava no ar.
Conseguia ouvir os sons de perseguição atrás dela, de-
masiado próximos, o ladrar e o rosnar dos cães e os
gritos roucos dos homens que seguiam os animais. Já
quase não sentia os pés descalços e a metade inferior das
pernas enquanto avançava sobre o pó gelado e fino, ro-
deada pelas árvores escuras e ancestrais da floresta que a
cercava. Vestia apenas um vestido azul-escuro de tecido
áspero, esfarrapado, que pouco a protegia do frio cortante.
No topo de uma pequena colina por onde corria, a ra-
pariga tropeçou numa pedra coberta pelo manto de neve
e caiu pela encosta abaixo. Levantando-se com dificulda-
de, avistou a silhueta difusa de uma cabana, com as suas
paredes escuras parcialmente sepultadas pelo branco
profundo. Cambaleou nessa direção, sacudindo deses-
peradamente o puxador da única porta. Estava trancada.
A rapariga cerrou os dentes e pontapeou com força a
porta de madeira, ignorando a dor no pé. Mas a porta re-
cusou ceder. Praguejou entredentes e voltou a pontapeá-la,
8
com mais força. A tranca antiga cedeu e, conforme a
porta foi projetada para dentro da casa, a rapariga en-
trou, desequilibrada. Fechou-a rapidamente atrás de si
e olhou a divisão escura em redor. Era, decerto, uma
cabana de caça. Cabeças embalsamadas de animais es-
tavam penduradas das paredes e peles cobriam o chão
e as cadeiras. Mas não havia sinais de vida. Estava tudo
coberto por uma camada espessa de pó, que a rapariga
perturbou ao procurar freneticamente algo que existisse
no piso térreo que pudesse ser usado como arma.
— O rasto termina aqui — disse o primeiro homem
em russo. — Ela está lá dentro.
— Vão buscá-la — disse o homem alto na retaguarda
do grupo. Os homens a seu lado pegaram nas metralha-
doras que traziam penduradas ao ombro e dirigiram-se
para a casa. Empurraram a porta e entraram com caute-
la. Segundos depois, ouviu-se um único tiro, algures no
interior. A seguir, o silêncio voltou a reinar na floresta
coberta de neve.
— Vasilly? Gregor? — chamou o homem alto, não
obtendo resposta. — Enviem os cães — disse, franzindo
a testa.
Dois cães corpulentos correram sobre a neve e en-
traram na cabana. Ladraram ruidosamente e, passado
um momento, ouviram-se latidos de pânico, antes de o
silêncio voltar a instalar-se.
— Que devemos fazer, Sr. Furan? — perguntou um
dos homens, olhando fixamente as janelas escurecidas
da cabana.
9
— Esperem aqui — replicou o homem alto, puxando
uma pistola do cinto. Avançou para a cabana e entrou.
— Que idade tem ela? — perguntou o primeiro tra-
tador de cães.
— Não sei — respondeu o outro. — Talvez dez, onze
anos.
— Se depender de Furan, não chegará aos doze.
De repente, ouviu-se um grito dorido vindo do inte-
rior da casa e uma das janelas estilhaçou-se, explodindo
numa chuva de vidro enquanto um banco de madeira a
atravessava. A rapariga mergulhou pelo buraco de ares-
tas irregulares e levantou-se, correndo sobre a neve em
direção às árvores. Furan cambaleou para fora da caba-
na, com sangue a escorrer por baixo da mão com que
cobria o olho direito. Ergueu a pistola e apontou cuida-
dosamente contra a rapariga fugitiva. Premiu o gatilho
e o tiro pareceu invulgarmente ruidoso no silêncio da
floresta coberta de neve.
Atingida no ombro, a rapariga rodopiou, caindo so-
bre a neve. Tentou levantar-se, mas Furan já se aproxi-
mara, golpeando-a com a pistola e fazendo-a novamente
cair ao chão, sem sentidos.
Com o olho intacto, olhou o corpo inconsciente da
rapariga pálida de cabelo escuro. O sangue fresco
manchava a neve por baixo do seu ombro. Respirava
com dificuldade. Furan manteve-se quieto durante um
momento, com sangue a escorrer do olho arruinado, pa-
recendo não saber ao certo se devia, ou não, premir nova-
mente o gatilho, acabando por baixar a arma lentamente.
10
—Não, Natalya — disse, com uma voz fria e dura.
— Seria demasiado fácil. Mas podes ter a certeza de que
não voltarás a escapar. Esta foi a tua última fuga, minha
pequena Raven.
Vinte anos depois
A noite do agente da polícia estadual Sam Fletcher
não corria bem. Percebeu que estava com azar quando
foi enviado para a velha estação de serviço na estrada
do deserto. A Sra. Trenton ligara para se queixar, como
fazia pelo menos três ou quatro vezes por mês, de ser
assediada por misteriosos objetos voadores e luzes no
céu. Sam sabia que seria uma perda de tempo, mas o
xerife insistira em que verificasse como estava a velha
louca. Vivia sozinha desde a morte recente do marido
e o xerife era amigo da família, o que explicava o facto
de Sam acabar por ser chamado ao serviço àquela hora
da noite. Sentou-se na sala da velha enquanto a ouvia
falar dos barulhos estranhos que não parava de escutar
e das luzes que não parava de ver no céu. Nessa noite
em particular, queixou-se de alguma coisa que teria voa-
do a baixa altitude sobre a casa, assustando-a enquanto
alimentava as galinhas no quintal.
Sam ouviu diligentemente o seu relato interminável
e acabou por partir, prometendo investigar e verificar se
a base local da força aérea saberia alguma coisa acerca
11
da misteriosa aeronave. Seria uma tarefa vã. Naquela
parte do Nevada, atividade aérea invulgar era frequente,
mas o tipo de aeronave testada por ali não era daque-
les que a força aérea pretendesse discutir com alguém
como Sam. O mais provável seria que algum piloto de
caças aborrecido tivesse feito um voo rasante sobre a
casa dos Trenton, violando as regras dos voos de teste.
Não seria a primeira vez que alguma coisa assim acon-
tecia, e tinha a certeza de que não iria ser última. Com
um suspiro cansado, estendeu a mão para o rádio no
tabliê e falou para o aparelho.
— Central, daqui viatura três, escuto — disse ele.
— Olá, Sam. Prendeste os homenzinhos verdes que
têm assustado a Clara? — perguntou a voz do outro
lado.
— Sim. Tenho neste momento três extraterrestres
genuínos algemados no banco de trás, Maggie — res-
pondeu ele. — Aliás… EI!
O agente guinou o volante com força para a esquerda
quando os faróis iluminaram, de repente, uma figura
desmazelada que corria no meio da estrada na sua dire-
ção. Os pneus soltaram um guincho de protesto e Sam
largou o rádio, usando as duas mãos no volante enquan-
to lutava para controlar o carro-patrulha descontrolado.
Praguejando entredentes, fez o carro parar, de repente,
na berma. Aproveitou um momento para se recompor,
libertando um longo suspiro antes de pegar na lanterna
e sair. O poderoso feixe da lanterna iluminou o homem
que Sam quase atropelara a cambalear para o carro.
12
— Fique onde está, por favor — gritou Sam, mantendo
a outra mão sobre a pistola no coldre. — Sabe a que dis-
tância esteve de ser atropelado? Importa-se de explicar
por que motivo anda a correr pelo meio da estrada a esta
hora da noite?
— Por favor, tem de me ajudar — disse o homem.
Sam não conseguiu identificar com precisão o seu sota-
que, mas parecia europeu. — Eles estão ali. Vêm atrás
de mim. Podem chegar a qualquer minuto.
O primeiro instinto de Sam disse-lhe que lidava com
um vagabundo embriagado que, por algum motivo,
se perdera no meio do nada, mas havia algo estranho
naquele homem. A sua face estava coberta com pó do
deserto, mas tinha a barba feita e o cabelo cortado com
aprumo. A sua roupa também estava coberta de pó, mas
o fato que vestia era de bom corte e os sapatos eram ca-
ros. Na verdade, quanto mais Sam o olhava, menos pare-
cia alguém que se esperaria encontrar a deambular pelo
deserto a trinta quilómetros da cidade mais próxima.
— Quem vem atrás de si? — perguntou Sam, aproxi-
mando-se lentamente do homem.
— Os Discípulos — disse o homem com um olhar
assustado. — Sei o que planeiam. Temos de travá-los…
o governo tem de ser avisado.
Não era um bêbado, era um maluco religioso, pen-
sou Sam para si mesmo.
— Como se chama? — perguntou Sam.
— Tobias Scheckter — respondeu o homem, olhando
nervosamente para o céu.
13
— Muito bem, Sr. Scheckter, pode explicar-me, ao
certo, o que faz aqui sozinho a esta hora da noite?
— Sou geólogo — replicou Scheckter. — Tenho tra-
balhado para uns homens, a fazer cálculos. É um traba-
lho puramente teórico. Ou, pelo menos, foi aquilo em
que acreditei… Oh, Deus. Preciso de encontrar um tele-
fone — continuou, frenético. — Ou um rádio. Deixe-me
usar o seu rádio.
— Tenha calma — replicou Sam. — Vamos voltar à
cidade para vermos se conseguimos resolver isto tudo.
— Não está a perceber. Não há tempo! — gritou
o homem, avançando para ele.
Sam deu um passo para o lado e usou o ímpeto do
homem contra ele, tal como aprendera a fazer, forçando
a figura cambaleante a cair, enquanto levava uma mão
às algemas presas na parte de trás do cinto.
— Receio que tenha conquistado o direito de pas-
sar a noite numa das nossas celas — disse, fechando
as algemas sobre os punhos do homem. Ergueu o es-
tranho com um puxão e empurrou-o rapidamente para
o banco traseiro do carro, sentando-se atrás do volante.
O homem murmurava qualquer coisa para si próprio
no banco de trás, numa língua estrangeira que Sam não
reconheceu. Rodou a chave na ignição e arrancou pela
estrada em direção à cidade, suspirando. A noite tinha
conseguido piorar.
14
— Conseguimos? Encontrámo-lo? — perguntou a voz
pelo altifalante montado no centro do painel de controlo.
— Sim, os dados biométricos confirmam, mas pa-
rece ter contactado com um agente da polícia local
— respondeu o homem magro sentado diante do pai-
nel. Empurrou o manípulo que segurava numa mão e a
imagem pouco nítida do carro-patrulha tornou-se mais
definida enquanto a câmara aumentava a ampliação.
— Quais são as suas ordens?
— Eliminem-no imediatamente — respondeu a voz.
— Sabe demasiado.
— Muito bem — respondeu o homem magro. Pres-
sionou um botão no painel e o carro foi rodeado por
um quadrado verde. De seguida, ergueu a cobertura de
plástico transparente que cobria um grande botão ver-
melho identificado ao lado do manípulo por uma única
palavra: ATIVAR.
— Do svidaniya, camarada — disse o homem diante
do painel esboçando um pequeno sorriso sádico.
Bem acima do deserto do Nevada, o drone esguio e
negro mergulhou em direção ao alvo. O calor do motor
do carro que seguia lá em baixo ofereceu aos computa-
dores de bordo um alvo infravermelho perfeito, contras-
tando com o frio do deserto que o rodeava. A unidade
esférica montada no nariz do drone rodou. Fixou um
laser invisível no alvo, ao mesmo tempo que uma com-
porta se abria no ventre da aeronave e um míssil era
colocado em posição de disparo. Momentos depois,
o míssil separou-se do drone, ativando o seu motor a jato
15
apenas quando se encontrava já vários metros abaixo
do ponto de lançamento. O sistema de orientação por
inércia guiou-o impecavelmente ao longo do raio laser
invisível que o drone projetava e, poucos segundos de-
pois, o tejadilho do carro-patrulha era atingido por uma
carga de oito quilos que, detonando-se, envolveu o veí-
culo numa bola de fogo. A estrada cobriu-se de frag-
mentos incandescentes, pedaços do carro caindo pelo
deserto e incendiando a escassa vegetação rasteira que
decorava a paisagem árida.
Enquanto o silêncio voltava ao deserto, os destroços
flamejantes eram o único vestígio dos dois homens que
tinham visto os seus futuros serem aniquilados e do
segredo que custara a vida a ambos.
— Quem é ela? — perguntou o Otto em voz baixa,
olhando a rapariga que se sentava sozinha num dos
sofás do átrio do seu bloco de alojamento.
— Não sei ao certo — respondeu o Wing. — A úni-
ca coisa que tenho ouvido dizer é que foi incluída no
programa Alfa.
O Otto já sabia isso, mas, pelo que conseguia perce-
ber, era algo invulgar. Os novos Alfas chegavam anual-
mente e começavam no primeiro ano. Nunca eram
admitidos num ano superior. Até hoje, aparentemente.
Decerto, havia algo naquela rapariga que era especial e
o Otto sentia-se determinado em perceber o que seria.
16
— Talvez as raparigas saibam mais pormenores
— disse o Wing com um aceno de cabeça na direção da
Laura e da Shelby, que se aproximavam no outro extre-
mo do corredor.
— Andas a perseguir a rapariga nova, Malpense?
— disse a Shelby, espetando-lhe um dedo nas costelas.
— Sabes que isso é um bocado sinistro, não sabes?
— Não é perseguição — replicou o Otto. — É vigi-
lância.
— Isso é ainda mais sinistro — disse a Shelby, fin-
gindo um arrepio.
— Alguém falou com a pobre rapariga? — perguntou a
Laura, parecendo ligeiramente irritada. — Aposto que ne-
nhum de vocês parou para pensar em como foram as coi-
sas para nós no nosso primeiro dia. Pelo menos, éramos
todos recém-chegados. Tentem imaginar como será para
ela, sozinha. A Shelby e eu vamos dizer olá. Querem vir?
— Está bem, está bem — disse o Otto, erguendo as
mãos. — Vamos convocar a comissão de boas-vindas do
H.I.V.E.
— Temos uma comissão dessas? — perguntou o
Wing, parecendo confuso.
— Anda daí, grandalhão — disse a Shelby com um
sorriso, empurrando o Wing à sua frente pelo corredor
em direção às escadas.
— Podemos sempre ver que informações o servidor
central tem acerca dela — disse o Otto, continuando a
avaliar a rapariga. — Isto é, se quiseres dar uma vista
de olhos.
17
— Acho que não precisas da minha ajuda com isso
— disse a Laura, puxando o Otto para longe da varanda.
— Não, deixa estar. Ando a tentar evitar experiências
extracorporais, para já — disse o Otto, parecendo distraído.
Nos meses anteriores, o Otto descobrira que tinha
a capacidade única de interagir à distância com dispo-
sitivos eletrónicos ou redes informáticas. Em teoria,
isso tornava-o o hacker mais eficiente do planeta, mas a
realidade era mais preocupante. Em mais do que uma
ocasião, o Otto quase se perdera no mundo eletrónico,
o que o deixava ligeiramente inseguro acerca dos bene-
fícios reais do seu talento. Tanto o Número Um, como
Sebastian Trent, tinham procurado inverter a ligação,
de modo a controlá-lo, coisa que quase conseguiram.
Depois disso, o Otto sentia-se cada vez mais preocu-
pado com a possibilidade de permitir a outra pessoa a
possibilidade de exercer influência semelhante sobre
ele.
— Além disso, tu tens um talento nato — disse o
Otto. A Laura viera para o H.I.V.E. depois de entrar
num dos primeiros sistemas de alerta do governo dos
Estados Unidos, com o objetivo de usar os seus re-
cursos para ouvir conversas de telemóvel das rapa-
rigas que lhe tinham feito a vida negra na sua escola
anterior.
— Pode não ser assim tão fácil, na verdade — disse
a Laura, franzindo a testa. — O professor Pike refor-
çou muito a rede de segurança desde que o cérebro do
H.I.V.E… bom… tu sabes.
18
O cérebro do H.I.V.E., a inteligência artificial que
controlava os sistemas informáticos do H.I.V.E., sacri-
ficara-se para ajudar a derrotar o Supremo e a salvar a
vida do Otto. Continuava a ser uma coisa em que ele
não queria realmente pensar.
— Então, achas que é mais fácil se, simplesmente,
falarmos com ela? — perguntou o Otto com um sorriso
matreiro.
— É chocante, eu sei — respondeu a Laura. — Mas,
às vezes, é melhor fazer as coisas à antiga
Desceram rapidamente as escadas e alcançaram o
Wing e a Shelby atravessando o átrio em direção ao sítio
onde a rapariga se sentava. Ergueu o olhar do dossiê
enquanto os quatro se aproximavam. O seu cabelo lon-
go, liso e negro, contrastava profundamente com a sua
pele pálida e os olhos azuis profundos. Era bonita, sem
dúvida, mas o Otto sentiu algo quando a viu. Qualquer
coisa de familiar.
— Olá, eu sou a Shelby e este borracho é o Wing
— disse a Shelby, sorrindo. — E estes são os nossos crâ-
nios residentes, a Laura e o Otto. Achámos que podias
precisar de alguém para te mostrar a escola. Se sentires
alguma coisa parecida com o que eu senti no dia em
que cheguei, deves ter um milhão de perguntas e não
muitas respostas. Acertei?
— É um bocado… avassalador — respondeu a rapariga
com um sorriso tímido. — Chamo-me Lucy. Lucy Dexter.
— É uma honra conhecê-la, menina Dexter — disse
o Wing, curvando-se numa pequena vénia.
19
— Acho que ele está a tentar dizer olá — disse o Otto
com um sorriso, enquanto aplicava uma cotovelada no
Wing.
— Sem dúvida, olá — disse o Wing, erguendo uma
sobrancelha.
— Que te parece isto? — perguntou a Laura, indi-
cando vagamente as paredes que a rodeavam.
— É… bom… suponho que a melhor palavra será…
inacreditável — respondeu a Lucy. Parecia estar em cho-
que.
— Uma escola secreta para os supervilões do futuro
escondida dentro de um vulcão, numa ilha tropical re-
mota. O que tem de tão inacreditável? — perguntou
o Otto, sorrindo.
— Para mim, parece-me perfeitamente normal,
o que, na verdade, é muito perturbador, independente-
mente da forma como olhemos para isso — acrescen-
tou a Laura.
A Lucy riu-se e apontou o dossiê que folheava.
— Fizeram-me a visita guiada e estou a ler o manual
de novos alunos que me deram, mas, para ser sincera,
nem sequer sei bem porque estou aqui. Estava em casa
a ler na cama e, de repente, acordo num helicóptero
com uma russa louca.
— Não te preocupes. Conhecemos bem a russa lou-
ca. — O Otto riu-se. — Mas dou-te um conselho: no teu
lugar, não lhe chamaria isso na cara.
— A não ser que gostes de comer por uma palhinha,
claro — disse a Shelby, sorrindo.
20
— Não acredito que a Raven atacasse uma aluna sem
um motivo válido — disse o Wing, franzindo a testa.
— Eu sei. Estava só… a exagerar porque… engra-
çado… esquece — disse a Shelby, suspirando. O Otto
esforçou-se para não rir.
— É verdade que não podemos sair daqui até ao fim
do sexto ano? — perguntou a Lucy. — Vocês ainda não
saíram da ilha, desde que chegaram?
— Tecnicamente, é verdade — disse a Laura, sentan-
do-se no sofá à frente dela. — Mas tivemos um par de…
hmm… excursões não oficiais durante esse período, e tam-
bém há a missão de treino ocasional que nos leva para fora
da ilha. Aliás, vamos ter uma dentro de uns dias. Não vais
ter de esperar muito para voltares a ver o mundo exterior.
Tudo bem que é um curso de sobrevivência no Ártico,
ou seja, o mundo exterior que vamos ver vai resumir-
-se, sobretudo, a neve e gelo intermináveis, mas, mesmo
assim, é uma mudança de cenário. Seja como for, volta-
mos sempre para aqui, de uma maneira ou de outra. Mas
porquê? Não estás já a pensar em deixar-nos, pois não?
— Não — respondeu a Lucy rapidamente, parecendo
um pouco nervosa. — Não é isso. É que… bom… este
sítio, às vezes, não parece uma prisão? — Olhou cada
um deles.
— Talvez no início, sim — respondeu o Otto. — Mas,
depois de algum tempo, começou a parecer a nossa casa.
Alguns de nós não têm grande coisa a que regressar no
mundo exterior. Além disso, este grupo ficaria comple-
tamente perdido sem mim. — O Otto sorriu.
21
— Sim, claro — disse a Laura, revirando os olhos.
— Pessoalmente, não sei o que faria se não nos colo-
casses a vida em risco, pelo menos, uma vez a cada dois
meses.
— Nada é pior do que uma vida sossegada sem pes-
soas a dispararem contra nós — disse a Shelby, deixan-
do-se cair no sofá ao lado da Laura. — Que faríamos
sem o Malpense, o íman de balas?
— Ei, isso não é justo — disse o Otto, fingindo-se
magoado. — Às vezes, são facas. Ou até bombas.
— Parece-me que os vossos anos anteriores foram
interessantes — comentou a Lucy, parecendo preocu-
pada.
— Bem-vinda ao H.I.V.E. — respondeu o Wing com
um sorriso quase impercetível.
23
O Dr. Nero estava sentado à mesa de reuniões no
lugar que lhe fora atribuído, esperando paciente-
mente que a cúpula no centro da mesa se iluminasse
com uma luz branca suave. De repente, as outras ca-
deiras à sua volta foram ocupadas por figuras que se
materializaram do nada. Algumas estavam já ocupa-
das a conversar. Aquelas novas reuniões holográficas
telepresenciais foram uma das primeiras inovações
implementadas por Diabolus Darkdoom quando assu-
miu o comando da L.U.V.A., a Liga Unitária de Vilões
Autodidatas. Fazia algum sentido, supôs o Nero, con-
tornar os riscos associados à presença de todos os
elementos do conselho administrativo no mesmo local,
mas, mesmo assim, não conseguia evitar sentir que
faltava alguma coisa. Tinha valor inequívoco a proxi-
midade física dos outros conselheiros da L.U.V.A., por
mais arriscada que fosse. Afinal, era muito mais difícil
perceber quando uma projeção holográfica mentia do
que uma pessoa sentada diante de nós, incapaz de es-
conder as gotas de suor que se formavam na sua testa.
24
— Bom dia, senhoras e senhores. — A figura de
Diabolus Darkdoom, o líder da L.U.V.A., materializou-
-se na cabeceira da mesa, imediatamente à esquerda do
Nero. — É com agrado que verifico que conseguiram
estar presentes, apesar da convocatória imprevista. Sur-
giu uma questão que exige discussão urgente. Terão,
certamente, reparado que há um lugar vazio na mesa e
foi exatamente esse facto que me forçou a convocar-vos.
O Jason Drake decidiu boicotar esta reunião por moti-
vos que não são ainda inteiramente claros. Sei bem que
expressou descontentamento com a minha liderança,
mas, aparentemente, decidiu agora que já não deseja in-
tegrar a nossa organização. A L.U.V.A. nunca tolerou a
existência de fações ou grupos dissidentes que possam
intrometer-se nos nossos objetivos e não pretendo abrir
uma exceção. O que preciso de saber, neste momento,
é se algum de vós está a par das intenções do Drake. Se
pretender fundar a sua própria organização, precisarei
de sabê-lo, de modo a tomarmos as medidas adequadas.
O Diabolus olhou cada um dos conselheiros à vol-
ta da mesa, mas nenhum pareceu disposto ou capaz
de avançar mais informações. O Nero deu consigo a
amaldiçoar novamente o facto de a baixa definição das
projeções holográficas à volta da mesa dificultar ou im-
possibilitar perceber os indícios discretos de expressão
ou linguagem corporal que poderiam revelar quais deles
sabiam mais do que estavam preparados para admitir.
— Muito bem — afirmou o Diabolus com firmeza.
— Se o Drake planear realmente fundar uma nova
25
organização, poderá abordar alguns de vós para obter
o vosso apoio. Estou certo de que não precisarei de vos
explicar quais seriam as consequências se descobrisse
que conspiravam em segredo com ele.
— O que te leva a ter tanta certeza de que se tornou
um renegado? — perguntou o Carlos Chavez, diretor
das operações sul-americanas da L.U.V.A.
— Tenho, ou melhor, tinha fontes próximas do Drake
— respondeu o Darkdoom. — Essas fontes silenciaram-
-se, mas apenas depois de me informarem do planea-
mento de algum tipo de operação com esta organização
como alvo.
— Sabemos onde pretende atacar? — perguntou a
Madame Mortis.
— Não, não sabemos — respondeu o Darkdoom.
— Sugiro que aumentem os vossos cuidados de segu-
rança. Quaisquer atividades que tenham programado
estarão vulneráveis. Talvez seja melhor que as adiem ou
cancelem. Deixo isso ao vosso critério.
— É uma figura pública, diretor de uma multinacio-
nal — disse o Barão Von Sturm. — Não pode desapare-
cer para sempre.
— Não duvido de que voltará a dar sinais de vida
— disse Darkdoom. — E, quando acontecer, o Dr. Nero
pedirá à Raven que tenha uma conversa com ele, não é
assim, Max?
— Claro — disse o Nero, acenando afirmativamente
com a cabeça. Agradou-lhe ver as expressões ligeira-
mente nervosas nas faces dos que rodeavam a mesa.
26
A Raven era a sua agente de maior confiança e, tam-
bém, a assassina mais temida em todo o mundo. Nin-
guém naquela reunião queria estar na sua lista de alvos.
— Não duvido de que tenham outros assuntos a
resolver e não vos tomarei mais tempo. Suponho que
não precisarei de vos dizer que espero ser informado
imediatamente, caso algum de vós ouça alguma coisa.
Entendido?
Os outros líderes da vilania global reunidos à volta da
mesa acenaram com a cabeça.
— Muito bem — disse o Darkdoom. — Faz ao pró-
ximo.
— Faz ao próximo — disseram os outros membros
do conselho, repetindo o lema da L.U.V.A. Uma a uma,
as imagens projetadas dos conselheiros à volta da mesa
tremeluziram e desapareceram, até restarem somente o
Nero e o Darkdoom.
— Tens alguma coisa a acrescentar, Max? — pergun-
tou o Darkdoom, parecendo irritado.
— Presumo que compreendas o perigo desta situa-
ção — afirmou o Nero calmamente.
— Claro que sim — ripostou o Diabolus antes de
inspirar fundo, recostando-se na cadeira. — Perdoa-me.
Esta situação apanhou-me de surpresa.
— Conhecias a sua insatisfação — disse o Nero.
— Todos nós a conhecíamos. Era inevitável que alguém
se sentisse insatisfeito com a tua nomeação como líder do
conselho. O Número Um pode ter pretendido trair-nos
a todos, mas isso não significa que todos discordassem
27
da forma como administrava a L.U.V.A. O Drake co-
biçava a cadeira que ocupas e não se contentaria com
o cumprimento das tuas ordens. Todos sabemos isso.
— Talvez, mas era um dos membros mais podero-
sos do conselho administrativo, em número de efetivos
e em recursos. Perdê-lo neste momento, quando ainda
estamos vulneráveis…
O Nero compreendeu o que o Darkdoom queria di-
zer. Não era fácil satisfazer as exigências tecnológicas
de uma organização como a L.U.V.A. sem a existência
de unidades fabris legítimas que pudessem ser usadas
de forma discreta para fabricar o equipamento de que
precisavam. O Jason Drake dirigia a Drake Industries e
fora responsável pelo desenvolvimento de grande parte
da tecnologia de ponta que a L.U.V.A. usava nas suas
atividades quotidianas. Perder acesso aos recursos que
tinha à sua disposição podia ser catastrófico, sem pen-
sar noutros planos que Drake pudesse levar avante para
prejudicar a organização.
— A L.U.V.A. perdurará, como sempre aconteceu
— afirmou o Nero num tom tranquilizador. — Mas te-
remos de assegurar que esta situação não evoluirá para
uma guerra civil. Pelo que conheço do Drake, começará
por tentar recrutar os membros restantes do conselho
ou voltá-los uns contra os outros. Isto, se não o tiver
feito já.
— Acreditas que poderemos ter traidores entre nós?
— perguntou o Darkdoom, apontando os lugares vazios
à volta da mesa.
28
— Nenhum membro deste conselho chegou à po-
sição que ocupa hoje por via da honra e do jogo limpo.
Nós dos dois, inclusivamente. Por isso, não deverá sur-
preender-nos que tentem perceber qual a melhor forma
de conseguirem lucrar com esta situação. Precisaremos
apenas de assegurar que não apanham de surpresa.
O Darkdoom acenou com a cabeça, pensativo.
— Obrigado, Max. Sei, pelo menos, que poderei con-
tar sempre contigo para me cobrires a retaguarda.
— Neste momento, a confiança é o mais importan-
te — replicou o Nero, olhando o Darkdoom nos olhos.
— A situação vai piorar, antes de melhorar. Disso, po-
demos ter a certeza. O Drake não teria dado um passo
destes a não ser que tivesse motivos para se sentir
a salvo da ira da L.U.V.A. O Von Sturm está certo. É
uma figura demasiado pública para desaparecer. Sabe
que terá de vir à superfície para respirar, mas receio que
isso signifique que o seu plano envolva a nossa elimi-
nação como ameaças à sua figura, antes de se ver obri-
gado a fazê-lo.
Darkdoom suspirou longamente e esfregou as têm-
poras com as mãos.
— Sabes, com todos os anos que passei escondido,
esqueci-me de como era sentar-me nesta mesa — disse,
parecendo cansado. — O Número Um fazia isto parecer
fácil.
— O Número Um era uma inteligência artificial psi-
copata — disse o Nero. — Não me parece que tivesse
grandes qualidades dignas de admiração.
29
— Não foi sempre assim, Max — disse o Darkdoom.
— Começou por ser tão humano como tu ou eu. Não
devemos esquecer o que conseguiu antes de ser cor-
rompido pelo Supremo. Fundou esta organização e
impediu que implodisse, contra tudo e contra todos,
durante muitos anos. Até agora, não compreendia a di-
ficuldade. Por vezes, penso se não teria sido mais fácil
continuar morto…
— Tem cuidado com o que desejas… — disse o Nero,
esboçando um sorriso enviesado.
O Darkdoom riu-se e encostou a cabeça à cadeira.
— Na verdade, há outro assunto que quero discu-
tir contigo. Está vagamente relacionado com o Drake.
O Couraçado terminou a sua missão de teste e está pron-
to para ativação plena. Pensei que te agradasse fazer
uma visita.
— Tu e os teus brinquedos — disse o Nero, fingindo-
-se exasperado. A construção do Couraçado fora um dos
últimos projetos concluídos pela Drake Industries para
a L.U.V.A.
— O Couraçado não é um brinquedo. É um dos veí-
culos mais sofisticados alguma vez construídos e uma
parte vital do futuro desta organização.
— Claro que sim — disse o Nero, suspirando.
— Além disso, acho que devemos encontrar-nos cara a
cara para discutir ao pormenor estes desenvolvimentos
recentes.
— De acordo — afirmou o Darkdoom, acenando
com a cabeça.
30
— Envia-me as coordenadas do Couraçado e tratarei
do transporte.
— Excelente. Vemo-nos em breve.
— Percebe-se assim que o envolvimento quântico
influencia de forma séria a implementação de técnicas
eficazes de teletransporte, mas os problemas provoca-
dos poderão ser aproveitados de forma útil, pelo menos
em teoria, no desenvolvimento de tecnologia de desin-
tegração eficiente. Partilharei mais pormenores desta
problemática na próxima semana e, até lá, espero que
estudem os primeiros três capítulos da obra crucial de
Igor Kreuzmann sobre armamento de feixes balísticos:
Não, Espero que Morras.
O professor Pike afastou-se do atril numa ponta da sala
e começou a guardar os seus papéis na sua velha pasta.
— Graças a Deus que acabou — disse a Shelby, sus-
pirando.
— Estás a falar a sério? — perguntou a Laura, pare-
cendo verdadeiramente surpreendida. — Foi fascinante.
Se conseguíssemos perceber o algoritmo da recomposi-
ção molecular… o céu seria o limite.
— Não sei — replicou o Otto, parecendo verdadei-
ramente entusiasmado. — As limitações einsteinianas
são tão específicas nestes casos que…
— Pronto, já está... — disse o Wing à Shelby e à
Lucy.
31
— Vão continuar a falar assim um com o outro
durante meia hora — resmungou a Shelby enquanto
o Otto e a Laura continuavam a conversar. — Deviam
encontrar uma forma de ligar diretamente os cérebros
deles. . Ao menos, não tínhamos de os ouvir.
— Tem cuidado com aquilo que pedes — disse o
Wing —, ou podem mesmo fazê-lo.
— Como foi o teu primeiro dia? — perguntou a Shelby
à Lucy, enquanto os alunos começavam a sair da sala de
aula para o corredor.
— Sinto-me um bocado fora do meu ambiente
— replicou a Lucy com um pequeno suspiro. — É muita
coisa para aprender ao mesmo tempo. Sinto que tenho
muita matéria para recuperar.
— Não te preocupes — disse a Shelby, sorrindo.
— Essa sensação só dura…
— Um par de anos, até agora. A contagem continua
— interrompeu o Wing.
— Ignora o grandalhão pessimista — disse a Shelby,
colocando um braço sobre os ombros da Lucy. — A ver-
dade é que, dentro de umas semanas, tudo isto te vai
parecer perfeitamente normal. E será nesse momento
que perceberás que tens um problema. Mas encon-
trei uma solução. Uma coisa que faz com que a estra-
nheza toda valha a pena. Uma coisa a que chamo…
treino de polo aquático dos rapazes do último ano.
Todas as quartas à noite… traz alguma coisa para comer
e beber.
— Parece-me bem — disse a Lucy, sorrindo.
32
— Acredita que vale a pena — respondeu a Shelby.
— Encaro aquilo como uma forma de arte. Uma forma
de arte com músculos e corpos molhados.
— Estás a fazer com que me sinta suja por partici-
par — disse a Laura, tendo terminado a discussão sobre
dinâmicas quânticas com o Otto. — Só me interessa
que o H.I.V.E. seja muito mais interessante do que
uma escola normal. Mesmo que seja um bocado mais
estranho.
— Para mim, a aula de Camuflagem e Evasão foi o
mais estranho até agora — disse a Lucy. — Não tanto a
aula, mas a professora Leon. Ela é… bom…
— Um gato? — concluiu o Otto com um sorriso ani-
mado.
— Sim… Sim, realmente, é a única forma de colo-
car a questão — disse a Lucy, parecendo ligeiramente
espantada.
— Não te preocupes. Vais habituar-te — disse a
Shelby. — Além disso, só quando aparecerem plantas
carnívoras mutantes e androides ninjas é que as coisas
ficam mesmo esquisitas.
A Lucy começou a rir, mas parou quando viu a ex-
pressão na cara dos colegas.
— Isso era uma piada, certo? — perguntou.
— Seja como for — começou o Otto, interrompendo
o silêncio desconfortável —, eu e o Wing temos de ir.
Temos aquela coisa… na biblioteca.
— Ah, sim! — disse prontamente o Wing. — A coi-
sa… sim. Temos de ir fazer essa coisa.
33
— Vemo-nos mais tarde — disse o Otto, enquanto se
lançava com o Wing por um corredor afora.
— Que coisa? — perguntou a Laura à Shelby enquanto
os dois rapazes se afastavam com passos apressados.
— Não sei — disse a Shelby com um sorriso conhe-
cedor. — Mas seria uma violação muito injusta da sua
privacidade se os seguíssemos.
— Era nisso que pensava — disse a Laura, enquan-
to seguiam os rapazes. Após alguns passos, pararam e
viraram-se.
— Vens connosco? — perguntou a Shelby à Lucy,
que se erguia no meio do corredor, parecendo um pou-
co confusa. A Lucy acenou ligeiramente com a cabeça e
acelerou o passo para as alcançar.
— Isto não me agrada nada — disse o Franz, esprei-
tando o monitor por cima do ombro do Nigel. Com um
suspiro expressivo, deixou-se cair na cama do quarto
que partilhavam.
— Sim — disse o Nigel, empurrando os óculos so-
bre o nariz. — Estou a tentar perceber o que será pior:
o curso de sobrevivência no Ártico ou o facto de o nosso
grupo ter a Raven como supervisora.
Há semanas que sabiam que o curso aconteceria e,
enquanto alguns dos Alfas, como o Wing ou a Shelby,
pareciam ansiar por ele, a maior parte deles via o cur-
so com uma mistura de apreensão e medo. Esses
34
sentimentos não eram serenados pelo facto de os alu-
nos Alfa mais velhos se referirem àquela parte especí-
fica do programa do H.I.V.E. como «o curso noventa e
três por cento», por ser essa a percentagem de alunos
que regressava com vida.
— Sou extremamente sensível ao frio — disse o
Franz. — Já tentei explicar isto ao coronel Francisco,
mas pareceu-me que não se importou.
O Nigel recordou essa conversa. Terminara com o
coronel Francisco, o instrutor tático, a dizer que o Franz
tinha de participar no curso como precaução, na even-
tualidade de alguma coisa correr mal e de a comida se
esgotar. A seguir, o coronel explicou ao resto da turma
que, em teoria, conseguiriam «sobreviver durante uma
semana comendo o Franz». O Nigel estava quase certo
de que tinha sido uma piada.
— Agora, não temos saída — disse o Nigel, suspiran-
do. — O lado positivo da questão é que vamos sair da
ilha durante uns dias. — Há muito tempo que nenhum
dos dois saía do H.I.V.E. e, sendo verdade que todas as
suas necessidades eram satisfeitas pela escola, permi-
tindo que vivessem em conforto relativo, seria simpá-
tico, ainda assim, poderem mudar de ares. De súbito,
ouviram a campainha e o Nigel levantou-se para pres-
sionar o botão que abria a porta.
— Outra vez, não — disse o Nigel quando a porta se
abriu com um silvo.
Do outro lado, erguiam-se o Block e o Tackle, que,
apesar da concorrência intensa, eram os maiores rufias
35
do programa Capanga do H.I.V.E. Os alunos dividiam-
se em quatro grupos, ou programas, distintos, cada
um englobando alunos com capacidades específicas.
Os alunos do programa Político e Financeiro vestiam
fatos-macacos cinzentos, os do programa Científico e
Tecnológico, brancos. No programa Alfa, os líderes fu-
turos das organizações de vilões, vestiam fatos-macacos
pretos. E, por fim, vinham os alunos do programa Capan-
ga. Os seus fatos-macacos azuis indicavam que o único
talento que pareciam ter era a capacidade de partir todos
os ossos do corpo de alguém no menor tempo possível.
— Que querem? — perguntou o Nigel, irritado.
— Estamos só a ver se precisas de alguma coisa
— afirmou o Block, educadamente.
— O que seja — acrescentou o Tackle.
O Nigel suspirou. Pouco tempo antes, teriam adora-
do atormentá-lo e ao Franz de alguma nova ou inventiva
maneira sádica, mas desde que o seu pai, Diabolus
Darkdoom, se tinha tornado líder do conselho adminis-
trativo da L.U.V.A., a sua atitude tinha-se alterado dras-
ticamente. O Nigel não sentia propriamente saudades
de lhe enfiarem a cabeça numa sanita antes de puxarem
o autoclismo, mas o comportamento dos dois rufias tor-
nara-se, de alguma forma, igualmente desagradável.
— Não, obrigado. Não preciso de nada — respondeu
o Nigel com um suspiro.
— A casa de banho precisa de uma limpeza — disse
o Franz atrás do Nigel, apontando com o polegar a porta
ao fundo do quarto.
36
O Block e o Tackle entreolharam-se, claramente sem
saber o que fazer.
— Não. Está tudo bem. O Franz está a brincar — disse
o Nigel, dirigindo um olhar irritado ao seu companhei-
ro de quarto.
— Estou? — replicou o Franz, ligeiramente sur-
preendido.
— Sim. Não preciso de nada por agora, mas obriga-
do por perguntarem. — O Nigel pressionou o botão ao
lado da porta e esta começou a fechar-se.
— Se houver alguma coisa… — disse o Block.
— O que seja… — acrescentou o Tackle enquanto a
porta se fechava ruidosamente.
— Pensava que já te tinha pedido que não fizesses
isso — disse o Nigel ao Franz, voltando a sentar-se à
secretária.
— Que não fizesse o quê? — perguntou o Franz, ino-
centemente.
— Sabes a que me refiro — ripostou o Nigel. — De-
pois do incidente na fila para o almoço, prometeste-
-me que não voltarias a aproveitar-te da posição do meu
pai.
— Isso foi apenas um mal-entendido — respondeu
prontamente o Franz.
— Disseste a um aluno do primeiro ano que, se não
te deixasse passar à frente na fila, o meu pai mandaria
a Raven assassiná-lo — recordou o Nigel, irritado.
— Bom… e poderia mesmo fazê-lo… — replicou o
Franz debilmente.
37
— Sabes… às vezes, gostava que as pessoas não sou-
bessem — disse o Nigel, esfregando as têmporas.
— Lamento — disse o Franz em voz baixa. — Tens
razão. Não volto a fazê-lo. Sabes que não sou teu amigo
só por saber quem é o teu pai, não é?
— Claro que sei — disse o Nigel, olhando para o
Franz. — Mas gostava de poder dizer o mesmo acerca
das outras pessoas.
— Au, au, au, au, au — gritou o Otto, saltando sobre
o pé que não lhe doía.
— Baixaste a guarda. Os teus inimigos explorarão
essa fraqueza — disse o Wing, recuando e girando o
bastão que empunhava até ficar preso sob o braço, pron-
to para um novo ataque.
— Lembra-me outra vez porque te deixei convence-
res-me a fazer isto — pediu o Otto, apoiando-se gentil-
mente sobre o seu pé dorido. Ao menos, não lhe parecia
ter nada partido. Envergavam proteções, mas isso não
significava que não doesse.
— Porque já passámos por muitas situações em que
a capacidade de defesa foi crucial, e tu próprio admitiste
que as tuas capacidades nessas áreas… deixam muito a
desejar.
Era uma fraqueza de que o Otto estava consciente,
sabendo que precisaria de dedicar tempo a resolvê-la,
mas, ao contrário do que sucedia com a maior parte das
38
suas outras capacidades únicas, a teoria não lhe serviria
de nada ali. Passara horas antes daquela sessão a ab-
sorver toda a informação que a biblioteca do H.I.V.E.
albergava acerca de defesa pessoal, mas um conheci-
mento quase absoluto de todas as formas de luta do-
cumentadas não significava que o seu corpo soubesse
pô-las em prática. Conseguia aprender a pilotar um caça
em minutos, mas isso não significava que conseguisse
desferir um pontapé rotativo, como o Wing demonstrava
claramente.
— Outra vez — disse o Wing.
— Porque não? Acho que me restam uns centíme-
tros quadrados de corpo que ainda não estão negros
— gemeu o Otto.
— Lamento — respondeu o Wing. — Vejo que os
teus lábios se movem, mas tudo o que ouço é um baru-
lho lamechas.
— Estás a adorar isto, não estás? — disse o Otto,
assumindo a mesma postura de ataque que o Wing as-
sumira.
— Isto não me dá qualquer prazer — disse o Wing,
sorrindo.
O Wing voltou a avançar e o Otto tentou recordar o
que já aprendera: mantém o equilíbrio, compreende
o teu centro de gravidade e permite que o instinto con-
trole as tuas ações, sem perder o controlo. Era fácil de
aprender, mas difícil de executar com mestria. Dobrou
as pernas e moveu o bastão em direção às costelas do
Wing. O bastão do amigo descreveu um arco, bloqueando
39
o ataque do Otto enquanto a extremidade oposta se in-
troduzia entre os seus joelhos, rodava, e lhe lançava os
pés para cima, fazendo-o cair de costas no chão. Todo o
oxigénio nos seus pulmões pareceu abandoná-lo numa
expiração explosiva.
O Wing estendeu a mão ao Otto e ajudou o seu ami-
go ofegante a erguer-se.
— Estás bem? — perguntou.
— Não consigo… falar… respirar… — gemeu o Otto,
tentando desesperadamente encher os pulmões.
— De que te esqueceste? — perguntou o Wing.
— De trazer uma pistola? — disse o Otto, pressio-
nando cuidadosamente as costelas.
— Não sei se isso te teria ajudado, se me permites
ser honesto — disse o Wing, rindo-se. — Penso que por
hoje já chega.
Dirigiram-se os dois para o vestiário, tomaram um
duche rápido e vestiram os fatos-macaco pretos. Saíram
e foram para a galeria acima da área de treino, onde
encontraram a Laura, a Shelby e a Lucy. As raparigas
irromperam em aplausos espontâneos, ao vê-los apro-
ximarem-se.
— Estavam todas a assistir? — perguntou o Otto,
encolhendo-se.
— Estás a brincar, não estás? — perguntou a Laura.
— Não perdia isto por nada deste mundo. É o melhor
espetáculo na cidade. Acho que é a combinação de
comédia e violência extrema que torna tudo tão apela-
tivo.
40
— Fiz pipocas — disse a Shelby, erguendo uma taça
de plástico meio cheia. — Queres?
— Vocês são amigos, não são? — perguntou a Lucy,
dirigindo-se ao Otto e ao Wing.
— Éramos — disse o Otto. — Antes de começarmos
estas sessões de treino privadas.
— Vá lá, Otto — começou a Laura, sorrindo —, não
tens motivos para ter vergonha. Parte do que vimos pa-
recia bailado.
— Sim — replicou a Shelby. — Mas com um pouco
mais de força bruta aplicada na cabeça e no pescoço do
que o habitual.
— Por falar em força bruta — disse a Laura —, estão
todos preparados para a nossa emocionante viagem ao
Círculo Ártico amanhã?
— Será uma excelente oportunidade para testar os
nossos limites físicos — disse o Wing, satisfeito. — Es-
tou ansioso.
— E isto sem lhe ter conseguido acertar uma única
vez na cabeça — apressou-se a dizer o Otto. — Pessoal-
mente, preferia comer um balde com vidro partido.
— Concordo com o Otto — disse a Laura, suspirando.
— Prefiro uma biblioteca aquecida e um computador
portátil.
— Então, pessoal, onde está o vosso sentido da aven-
tura? — perguntou a Shelby, sorrindo. — Vai ser
divertido.
— Enaaaa — exclamou o Otto, sarcástico. — Diver-
são gelada, solitária e mortal.
41
— Espero que não se importem com isso — disse a
Lucy —, mas pedi ao coronel Francisco para me juntar
ao vosso grupo de treino. Ele disse-me que não haveria
problema, mas que era necessário consultar a pessoa que
supervisiona o vosso grupo. Alguém chamado Raven.
— Mais conhecida como «a russa maluca» — disse
a Shelby.
— Sabem… Fiquei muito ofendido por terem posto
a Raven a orientar o nosso grupo — disse o Otto, fin-
gindo-se indignado. — É quase como se esperassem
sarilhos provocados por nós.
— Sim — disse a Laura, sorrindo. — Não provoca-
mos sarilhos. Os sarilhos acontecem naturalmente à
nossa volta.
Era frenética a atividade no hangar na cratera vul-
cânica do H.I.V.E. enquanto os grupos de alunos eram
conduzidos para as naves de transporte Manto que os
conduziriam ao treino de sobrevivência. Guardas com
fatos-macaco laranja facilmente identificáveis patrulha-
vam a área, mantendo os alunos sob vigilância constan-
te. O Dr. Nero avançou sobre a plataforma de aterragem
e os grupos de alunos silenciaram-se prontamente.
— Estou certo de que estarão todos ansiosos pela
partida para este exercício — disse o Nero com um ligei-
ro sorriso —, mas queria aproveitar a oportunidade para
vos recordar as regras da escola que regem qualquer
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deslocação ao exterior. Serão constantemente monito-
rizados pelo vosso supervisor e obedecerão às suas or-
dens sem questioná-las. Enfrentarão um dos ambientes
mais hostis do planeta e, se não seguirem as indicações
do vosso instrutor, alguns de vós poderão não sobrevi-
ver. É essa a consequência do fracasso, uma lição que
precisarão de aprender bem, se pretendem vir a ser ope-
racionais da L.U.V.A. Boa sorte e espero ver quase todos
vós aqui dentro de quatro dias. — O Nero voltou-se para
o Monroe, chefe da segurança do H.I.V.E. — Pode dar
início ao embarque.
Os guardas começaram a conduzir os grupos de Alfas
para os Mantos, enquanto as rampas de embarque
baixavam das caudas das aeronaves. O Otto, o Wing,
a Shelby, a Laura, a Lucy, o Nigel e o Franz subiram lenta-
mente pela rampa, alcançando a cabina de passageiros.
A Raven erguia-se no extremo oposto, olhando-os atenta-
mente enquanto ocupavam os seus lugares de cada lado.
— Já percebo porque me atribuíram este grupo
— disse a Raven, arqueando uma sobrancelha.
— E eu que pensava que era por teres muitas sauda-
des nossas — disse o Otto, sorrindo.
— Basta, Sr. Malpense — disse o Nero, entrando na
cabina. — Não se preocupem — continuou, ao ver as
suas expressões de surpresa. — Não terão a minha com-
panhia no exercício. Por mais apelativo que seja passar
vários dias em temperaturas abaixo de zero, limito-me
a aproveitar o transporte. Deixar-vos-ei muito antes de
chegarem ao vosso destino.
43
O Nero atravessou a cabina, acenando pelo caminho
com a cabeça à Raven e subindo a escada que conduzia
ao cockpit.
— Parece-me que o Dr. Nero foi bastante claro, mas
quero acrescentar uma coisa. — Esboçou-lhes um sor-
riso capaz de gelar o sangue. — Tentem escapar à mi-
nha supervisão e a vossa maior preocupação não será
o ambiente hostil. — Apontou várias caixas atrás dela.
— Preciso que façam uma inventariação deste equipa-
mento durante o voo. Quando tiverem terminado, dar-
-vos-ei informações mais detalhadas acerca do exercício.
Do exterior, ouviram o zumbido distinto das turbi-
nas do Manto.
— Parece que estamos prontos para partir — conti-
nuou a Raven. — Ponham os cintos e preparem-se para
descolar. Voltarei quando estivermos no ar.
A Raven subiu a escada para o cockpit, onde viu o
Nero a colocar o cinto numa das cadeiras atrás do pi-
loto, que se ocupava com as últimas verificações para
o voo.
— Sinceramente, deixe-me agradecer-lhe, uma vez
mais, por me ter atribuído este grupo — afirmou a
Raven com sarcasmo enquanto se instalava na cadeira
ao lado do Nero.
— Achei que ia gostar do desafio — disse o Nero,
com um sorriso malicioso.
— É interessante ver que acolheram a Sra. Dexter
— disse a Raven, enquanto o Manto começava a erguer-
-se para o topo da cratera.
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— Sim — replicou o Nero com voz contida. — Mas
duvido que fossem tão amigáveis se conhecessem mais
pormenores acerca do seu passado.
— Claramente, ainda não discutiu com eles esse
assunto — disse a Raven, colocando também o cinto.
— E, se tiver algum bom senso, nunca o fará.