para a minha amiga annelise platt tusind tak · há mais de 20 anos. parece que foi ontem que...

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Para a minha amiga Annelise PlattTusind tak

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

1 Porque estás a correr? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

2 Quem é aquele homem?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22

3 Onde está a Sra. Hirsch? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

4 Vai ser uma longa noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .38

5 Onde arranjou a morena?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

6 Está bom tempo para ir à pesca? . . . . . . . . . . . . . .59

7 A casa à beira ‑mar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

8 Morreu uma pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .74

9 Porque estás a mentir? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

10 Vamos abrir o caixão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

11 Voltaremos a ver ‑te em breve, Peter? . . . . . . . . . . .95

12 Onde estava a mamã? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

13 Corre! O mais rápido que conseguires! . . . . . . . . 107

14 No carreiro escuro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

15 Os meus cães farejam carne! . . . . . . . . . . . . . . . . 119

16 Vou contar ‑te só um pouquinho . . . . . . . . . . . . . 126

17 Todo este tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134

POSFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139

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INTRODUÇÃO

Mal posso acreditar que escrevi O Número das Estrelas há mais de 20 anos. Parece que foi ontem que atendi o telefone numa nevosa manhã de janeiro e me anuncia‑ram que o livro tinha recebido a Medalha Newbery1 do ano 1990.

A maioria dos livros publicados há já tanto tempo acaba por ganhar uma agradável e pacífica reforma nas prateleiras empoeiradas das bibliotecas, ou então torna‑‑se ocasionalmente tema de algum trabalho de investiga‑ção. Mas O Número das Estrelas parece ter adquirido uma longa e dinâmica vida própria; todos os dias sou aborda‑da por leitores apaixonados pelo livro — alguns deles já pais que se lembram de o ter lido durante a infância e que agora o releem com os filhos.

Julgo que os leitores, independentemente da ida‑de, se comparam com os protagonistas dos livros de que mais gostam. «Será que eu teria feito o mesmo?»,

1 Atribuída todos os anos desde 1922 pela Associação de Serviços Biblio‑tecários para Crianças dos Estados Unidos, a Medalha Newbery é um importante prémio que distingue obras literárias destinadas ao público infantojuvenil. [N. do T.]

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perguntam ‑se, à medida que acompanham a persona‑gem de um romance. «Qual teria sido a minha escolha?»

E os 10 anos — idade de Annemarie em O Número das Estrelas e idade aproximada da maioria dos leitores deste livro — são uma altura da vida em que os jovens come‑çam a desenvolver uma sólida moldura ética. Querem ser pessoas honradas. Querem fazer o que é certo. Além disso, começam a perceber que o mundo em que vivem é um sítio onde fazer o correto é muitas vezes difícil, por vezes perigoso e frequentemente impopular.

Assim, acompanham uma história sobre uma rapari‑ga da sua idade que, ao ver ‑se numa situação assustadora, tem de tomar decisões. Ela poderia optar pelo caminho mais fácil. Poderia voltar costas à amiga. (À medida que vão envelhecendo e lendo outros livros sobre o Holocausto, os leitores de O Número das Estrelas acabam por descobrir que muitas pessoas noutros países que não a Dinamarca fizeram precisamente isso.) Os leitores mais jovens exul‑tam quando Annemarie respira fundo, entra na floresta, confronta o perigo, enfrenta o inimigo e por fim triunfa.

Quando o livro foi publicado, encontrou o seu lugar nas mãos e nos corações de crianças que já tinham lido sobre a guerra mas que nunca a haviam vivido. Hoje em dia, infelizmente, sei de jovens leitores que perde‑ram um pai ou um irmão mais velho no Iraque ou no Afeganistão. Todos sabemos como é fácil — e inútil — censurar e odiar.

Penso que a história da Dinamarca tem muito para nos ensinar.

Este livro já foi publicado em vários países, traduzido para inúmeras línguas, desde o húngaro até ao hebraico.

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Crianças em todo o mundo ainda leem sobre a integrida‑de que um pequeno povo escandinavo mostrou há quase 70 anos. Tenho a certeza de que os livros mudam as nos‑sas vidas, e muitos foram os leitores que me disseram que O Número das Estrelas mudou a deles quando eram mais novos por tê ‑los feito refletir acerca da crueldade e da coragem. «Ajudou a forjar a minha noção de como as pessoas devem ser tratadas», escreveu ‑me recentemente uma jovem, ao recordar a sua experiência quando leu o livro no 4.0 ano.

A amiga dinamarquesa que me contou a história da sua infância em Copenhaga em 1943 — e que se tornou o modelo da personagem Annemarie — hoje já é idosa. Tal como eu. Ambas gostamos de pensar nas crianças que leem esta história nos dias que correm, descobrindo‑‑a pela primeira vez e percebendo que houve uma altura, durante um curto tempo e num pequeno território, em que um grupo de pessoas livres de preconceitos honrou a humanidade de toda a gente.

Lois Lowry

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Porque estás a correr?

— Ellen, vamos ver quem chega primeiro à esquina! — Annemarie ajeitou a mochila de couro grosso que levava às costas de modo que os manuais se mantives‑sem equilibrados. — Estás pronta? — Olhou para a me‑lhor amiga.

Ellen fez uma careta.— Não — respondeu, a rir ‑se. — Sabes bem que não

consigo vencer ‑te, pois as minhas pernas não são tão compridas quanto as tuas. Será que não podemos ape‑nas andar, como pessoas civilizadas? — Com 10 anos, Ellen era baixa e forte, ao contrário de Annemarie, que era alta e magra.

— Temos de treinar para a competição de sexta ‑feira. Tenho a certeza de que vou ganhar a corrida feminina esta semana. Na semana passada fiquei em segundo lu‑gar, mas tenho treinado todos os dias. Anda lá, Ellen — pediu Annemarie, calculando a distância até à próxima esquina daquela rua de Copenhaga. — Por favor?

Ellen hesitou, mas lá acabou por assentir e ajustar a mochila aos ombros.

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— Oh, está bem. Pronta? — perguntou.— Agora! — gritou Annemarie, e as duas raparigas

saíram disparadas, correndo pelo passeio de uma rua cheia de casas. O cabelo loiro ‑claro de Annemarie voava atrás dela, e as tranças escuras de Ellen chocavam ‑lhe contra os ombros.

— Esperem por mim! — queixou ‑se a pequena Kirsti, que ficara para trás, mas as duas raparigas não a ouvi‑ram.

Annemarie rapidamente ganhou a dianteira, apesar de os atacadores de um dos seus sapatos se terem de‑satado enquanto ela corria pela rua Østerbrogade, pas‑sando pelas pequenas lojas e cafés do bairro, situado no nordeste de Copenhaga. Rindo ‑se, ultrapassou uma se‑nhora idosa vestida de preto que levava um saco de com‑pras feito de corda. Uma mulher jovem que empurrava um carrinho de bebé desviou ‑se para a deixar passar. A esquina já estava perto.

Annemarie olhou para cima, a arfar, assim que che‑gou à esquina. Deixou logo de se rir. Por segundos, o seu coração pareceu ter parado.

— Halte! — ordenou o soldado, num tom implacável.Aquela palavra alemã era ‑lhe tão familiar quanto

assustadora. Annemarie já a ouvira muitas vezes, mas nunca lhe tinha sido dirigida até àquele momento.

Atrás dela, Ellen também abrandou e parou. Mais atrás, a pequena Kirsti arrastava ‑se pesadamente, com um ar amuado, pois as raparigas não haviam esperado por ela.

Annemarie olhou atentamente para cima. Eram dois. Isso significava dois capacetes, dois pares de olhos

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gélidos fixos nela e quatro botas compridas e brilhantes firmemente plantadas no passeio, bloqueando ‑lhe o ca‑minho para casa.

E significava também duas espingardas nas mãos dos soldados. Primeiro, ela olhou para as armas. Depois, en‑carou o soldado que a mandara parar.

— Porque estás a correr? — perguntou ele, num tom severo. O seu dinamarquês era muito mau. Três anos, pensou Annemarie com desdém. Há três anos que estão no nosso país e ainda não sabem falar a nossa língua.

— Estava a competir com a minha amiga numa cor‑rida — respondeu ela, educadamente. — Temos compe‑tições na escola todas as sextas ‑feiras, e quero sair ‑me bem, por isso eu… — A sua voz perdeu ‑se, deixando a frase por acabar. Não fales tanto, disse a si mesma. Limita ‑te a responder ‑lhes, só isso.

Lançou um olhar para trás. Ellen estava imóvel no passeio, a alguns metros de distância. Mais atrás, Kirsti ainda se mostrava amuada, caminhando lentamente na direção da esquina. Ali perto, à porta de uma loja, tinha surgido uma mulher que, em silêncio, se pôs a observar a cena.

Um dos soldados, o mais alto, aproximou ‑se. Anne‑marie reconheceu ‑o: era aquele a quem ela e Ellen sem‑pre chamavam, aos sussurros, Girafa, devido à sua altura e ao comprido pescoço que lhe saía do rígido colarinho. Ele e o colega andavam sempre por aquela esquina.

Ele encostou a coronha da espingarda à lateral da mo‑chila dela. Annemarie pôs ‑se a tremer.

— Que levas aí? — perguntou ele, ruidosamente. Do canto do olho, ela viu a senhora da loja a regressar

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discretamente para as sombras da entrada do estabeleci‑mento, desaparecendo da vista.

— Livros da escola — respondeu ela, com sinceri‑dade.

— És boa aluna? — indagou o soldado, que parecia estar a zombar.

— Sou.— Como te chamas?— Annemarie Johansen.— A tua amiga… também é boa aluna? — Olhava por

cima dela, para Ellen, que ainda não se tinha movido.Annemarie voltou ‑se para trás e viu que Ellen, de fa‑

ces habitualmente rosadas, estava pálida, com os olhos escuros esbugalhados.

Ela acenou com a cabeça.— Melhor do que eu — afirmou.— Como se chama?— Ellen.— E quem é esta? — lançou ele, olhando para o lado

de Annemarie. De súbito, Kirsti aparecera ali, fazendo cara feia a toda a gente.

— A minha irmã mais nova. — A rapariga tentou alcançar a mão de Kirsti, mas esta, sempre teimosa, re‑cusou o gesto e levou as mãos às ancas numa pose de desafio.

O soldado inclinou ‑se para a frente e acariciou os caracóis curtos e emaranhados da irmã mais nova de Annemarie. Fica quieta, Kirsti, ordenou Annemarie em silêncio, rezando para que, de alguma forma, a obstina‑da criança de 5 anos recebesse a mensagem.

Mas Kirsti levantou a mão e afastou o soldado.

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— Não — disse ela, ruidosamente.Ambos os soldados começaram a rir ‑se. Falaram en‑

tre si num alemão tão veloz que Annemarie não conse‑guiu perceber.

— Ela é bonita, tal como a minha filhinha — declarou o mais alto, num tom mais agradável.

Annemarie tentou sorrir educadamente.— Agora vão todas para casa. Vão estudar os vossos

livros. E não corram. Parecem crianças vadias quando se põem a correr.

Os dois soldados viraram costas. Rapidamente, Anne‑marie voltou a inclinar ‑se e agarrou a mão da irmã antes que Kirsti pudesse opor ‑se. Apressando a menina, do‑braram a esquina. Em segundos, Ellen já estava ao seu lado. Caminharam rapidamente, em silêncio, com Kirsti entre as duas, na direção do grande prédio de aparta‑mentos onde as famílias de ambas viviam.

Estavam quase a chegar quando Ellen murmurou de repente:

— Tive tanto medo.— Também eu — sussurrou em resposta Annemarie.Quando se preparavam para entrar no edifício, as

duas raparigas obrigaram ‑se a olhar em frente, para a porta. Fizeram ‑no porque não queriam chamar a aten‑ção de outros dois soldados armados que ali estavam. Kirsti precipitou ‑se a passar a porta à frente delas, taga‑relando sobre o desenho que trouxera do infantário para mostrar à mamã. Para Kirsti, os soldados não eram mais do que parte da paisagem, algo que sempre estivera ali, em cada esquina, tão triviais quanto os postes de ilumi‑nação, ao longo de toda a sua vida.

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— Vais contar à tua mãe? — perguntou Ellen a Annemarie enquanto subiam as penosas escadas. — Eu não. A minha mãe haveria de ficar zangada.

— Não. Também não vou contar. De certeza que a mamã ia ralhar comigo por andar a correr na rua.

Annemarie despediu ‑se de Ellen no segundo andar, onde a amiga vivia, e continuou a subir até ao tercei‑ro, treinando mentalmente uma saudação alegre para a mãe: um sorriso, a descrição do teste de ortografia que fizera naquele dia, no qual se tinha saído bem.

Mas chegou demasiado tarde. Kirsti já lá estava.— E ele encostou a arma à mochila da Annemarie, e

depois agarrou ‑me o cabelo! — Kirsti palrava enquanto tirava a camisola de lã no meio da sala. — Mas não tive medo. A Annemarie sim, e a Ellen também. Mas eu não!

A Sra. Johansen ergueu ‑se rapidamente da cadeira junto à janela onde estava sentada. A Sra. Rosen, mãe de Ellen, também ali estava, na cadeira em frente. Tinham estado a tomar café, como faziam em diversas tardes. Claro que não era café de verdade, apesar de as duas mães chamarem àquilo «tomar café». Deixara de haver café em Copenhaga desde o início da ocupação nazi. Assim como chá verdadeiro. As duas senhoras beberica‑vam água quente aromatizada com ervas.

— O que se passou, Annemarie? Do que é que a Kirsti está a falar? — perguntou a mãe, cheia de ansiedade.

— Onde está a Ellen? — quis saber a Sra. Rosen, que tinha um ar assustado.

— A Ellen já está em casa. Ela não sabia que a senho‑ra estava aqui — explicou Annemarie. — Não precisam de se preocupar. Não se passou nada de especial. Foram

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os dois soldados que costumam estar na esquina da rua Østerbrogade; de certeza que já os viram. Sabem o mais alto e de pescoço comprido? Aquele que se parece com uma girafa tonta? — Annemarie relatou então o inci‑dente à mãe e à Sra. Rosen, tentando torná ‑lo engraçado e insignificante. Mas o ar de preocupação de ambas as mulheres não desapareceu.

— Eu empurrei a mão dele e gritei ‑lhe — declarou Kirsti, cheia de si.

— Não é verdade, mamã — tranquilizou Annemarie. — Ela está a exagerar, como sempre.

A Sra. Johansen dirigiu ‑se à janela e olhou para a rua, lá em baixo. Aquele bairro de Copenhaga era sossegado e naquele momento mostrava ‑se como habitualmente: pessoas a entrar e a sair de lojas, crianças a brincar, sol‑dados nas esquinas.

A Sra. Johansen dirigiu ‑se à mãe de Ellen num tom de voz baixo:

— Devem andar nervosos por causa dos últimos inci‑dentes com a Resistência. Leste no De Frie Danske sobre as explosões em Hillerød e Nørrebro?

Embora fingisse estar concentrada na tarefa de tirar os livros da mochila, Annemarie estava à escuta e sabia ao que se referia a mãe. De Frie Danske (Os Dinamarqueses Livres) era um jornal ilegal; Peter Neilsen costumava levar ‑lhes um exemplar, cuidadosamente dobrado e es‑condido entre livros e jornais normais, e a mamã sem‑pre o queimava depois de ela e o papá o terem lido. Mas Annemarie ouvia a mamã e o papá conversarem, por vezes durante a noite, acerca das notícias que recebiam dessa forma: informações sobre ações de sabotagem

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contra os nazis, bombas escondidas que explodiam em fábricas que produziam material de guerra e linhas de caminho de ferro que eram danificadas de modo que os carregamentos não chegassem ao destino.

E ela sabia o que significava «Resistência». O papá ex plicara ‑lho quando ela ouvira acidentalmente a pa‑lavra e perguntara do que se tratava. Os elementos da Resistência eram dinamarqueses — ninguém sabia quem, pois havia muito sigilo à sua volta — que estavam determinados a prejudicar os nazis de qualquer forma que conseguissem. Danificavam os camiões e carros ale‑mães e explodiam ‑lhes as fábricas. Eram muito corajo‑sos. Às vezes, eram apanhados e assassinados.

— Tenho de ir falar com a Ellen — anunciou a Sra. Rosen, dirigindo ‑se para a porta. — Amanhã vão para a escola por um caminho diferente. Promete, Annemarie. E vou pedir à Ellen que mo prometa também.

— Esteja descansada, Sra. Rosen. Mas para quê fazer isso? Há soldados alemães em todas as esquinas.

— Eles vão recordar ‑se das vossas caras — retorquiu a Sra. Rosen, já de saída. — É importante ser um anónimo na multidão, sempre. Ser um de muitos. Certifica ‑te de que eles nunca têm razões para se recordar da tua cara. — Caminhou para o patamar e fechou a porta atrás de si.

— Mamã, ele há de lembrar ‑se da minha cara — anunciou alegremente Kirsti — porque disse que eu me pareço com a filhinha dele. E disse que eu era bonita.

— Se ele tem uma menina tão bonita assim, porque é que não volta para ela como qualquer bom pai faria? — murmurou a Sra. Johansen, afagando uma bochecha de Kirsti. — Porque não volta ele para o seu país?

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— Mamã, há alguma coisa para comer? — perguntou Annemarie, esperando fazer com que a mãe deixasse de pensar nos soldados.

— Há pão. Dá um pedaço à tua irmã.— Com manteiga? — arriscou Kirsti, cheia de espe‑

rança.— Sem manteiga — retorquiu a mãe. — Sabes bem

disso.Kirsti suspirou enquanto Annemarie foi buscar pão

à cozinha.— Apetecia ‑me comer um cupcake — declarou.

— Um cupcake grande e amarelo, com cobertura cor‑‑de ‑rosa.

A mãe riu ‑se.— Para uma menina tão nova tens uma memória

bem longa — disse a Kirsti. — Há já muito tempo que não temos manteiga ou açúcar para cupcakes. Um ano, pelo menos.

— Quando poderemos voltar a comer cupcakes?— Quando a guerra acabar — respondeu a Sra.

Johansen, que, pela janela, observou a esquina onde es‑tavam os soldados, com os seus rostos impassíveis sob os capacetes de metal. — Quando os soldados se forem embora.

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Quem é aquele homem?

— Conta ‑me uma história, Annemarie — implorou Kirsti, aconchegando ‑se ao lado da irmã na grande cama que partilhavam. — Um conto de fadas.

Annemarie sorriu e abraçou a irmã mais nova no es‑curo. Todas as crianças dinamarquesas cresciam a ouvir contos de fadas. O próprio Hans Christian Andersen, o mais célebre autor dessas histórias, era dinamarquês.

— Queres que te conte a da Pequena Sereia? — Aque‑la sempre fora a história preferida de Annemarie.

Mas Kirsti disse que não.— Prefiro uma que comece com um rei e uma rai‑

nha. E que depois tenha uma linda princesa.— Muito bem. Era uma vez um rei… — começou

Annemarie.— … e uma rainha — sussurrou Kirsti. — Não te es‑

queças da rainha.— … e uma rainha. Os dois viviam num palácio ma‑

ravilhoso e…— O palácio chamava ‑se Amalienborg? — perguntou

Kirsti, bastante ensonada.

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— Chiu! Não te ponhas a interromper constantemen‑te, ou então nunca hei de chegar ao fim da história. Não, não se chamava Amalienborg. Era um palácio que não existe.

Annemarie prosseguiu, inventando a história de um rei, de uma rainha e da sua bela filha, a princesa Kirsten; embelezou ‑a com bailes de cerimónia, fabu‑losos vestidos de enfeites dourados e festins de cup‑cakes com cobertura cor ‑de ‑rosa, até que a respiração de Kirsti, profunda e regular, lhe indicou que a irmã adormecera.

Interrompeu ‑se e esperou um pouco, como se à es‑pera de que Kirsti murmurasse: «E então, o que aconte‑ceu?» Mas a irmã manteve ‑se imóvel. Os pensamentos de Annemarie voltaram ‑se para o verdadeiro rei, Cristiano X, e para o verdadeiro palácio, Amalienborg, onde ele vivia, no coração de Copenhaga.

Como o povo da Dinamarca amava o rei Cristiano X! Ele não era como os reis dos contos de fadas, que pare‑ciam estar sempre em varandas a dar ordens aos súbdi‑tos, ou que se mostravam em tronos dourados exigindo que os distraíssem e escolhendo os melhores maridos para as filhas. O rei Cristiano X era um verdadeiro ser humano, um homem de rosto sério e gentil. Annemarie via ‑o frequentemente quando era mais nova. Todas as manhãs ele saía do palácio no seu cavalo, chamado Jubileu, e cavalgava sozinho pelas ruas de Copenhaga, saudando o povo. Por vezes, quando Annemarie ainda era pequena, a sua irmã mais velha, Lise, levava ‑a à rua para que pudesse acenar ao rei Cristiano X. Houve altu‑ras em que ele lhes retribuiu o cumprimento e sorriu.

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«Agora serás especial para sempre», dissera ‑lhe Lise, «porque um rei te saudou.»

Annemarie virou a cabeça na almofada e, através das cortinas entreabertas da janela, observou aquela som‑bria noite de setembro. Pensar em Lise, a sua irmã séria e amorosa, deixava ‑a sempre triste.

Por isso, direcionou os pensamentos de volta para o rei, que ainda se encontrava vivo, ao contrário de Lise. Lembrou ‑se de uma história que o papá lhe contara após o início da guerra, pouco tempo depois de a Dinamarca ter capitulado e os soldados terem chegado de um dia para o outro ocupando os seus lugares em todas as esquinas.

Uma noite, o papá contou ‑lhe que horas antes estivera a tratar de uns recados perto do escritório. Encontrava ‑se numa esquina à espera de atravessar a rua quando o rei Cristiano X passou por ele no seu passeio matinal. Um dos soldados alemães virou ‑se subitamente e fez uma pergunta a um adolescente que ali andava.

— Quem é aquele homem que passa por aqui todas as manhãs no seu cavalo? — indagou ele.

O papá disse que sorrira por dentro, divertido com a ignorância do soldado alemão. E acabou por ouvir a resposta do rapaz.

— É o nosso rei — informou o adolescente. — É o rei da Dinamarca.

— Onde estão os guardas dele? — quisera o soldado saber.

— E sabes o que disse o rapaz? — perguntou o papá a Annemarie, que estava no seu colo. Ainda era pequena, tinha apenas 7 anos. Ela abanou a cabeça, à espera de ouvir a resposta.

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— O rapaz encarou o soldado e lançou: «Os seus guardas são todos os dinamarqueses.»

Annemarie até se arrepiara. Parecia uma resposta cheia de coragem.

— É verdade, papá? — quis ela saber. — Aquilo que o rapaz disse?

O papá pensou por alguns segundos. Sempre refle‑tia cuidadosamente antes de responder a qualquer per‑gunta.

— Sim — respondeu ele por fim. — É verdade. Qual‑quer cidadão dinamarquês daria a vida para proteger o rei Cristiano X.

— Tu também, papá?— Sim.— E a mamã?— A mamã também.Annemarie voltou a arrepiar ‑se.— Então eu também o faria, papá. Caso fosse preciso.Ficaram em silêncio por momentos. A mamã obser‑

vava Annemarie e o papá do outro lado da sala, a sor‑rir. A mamã fazia croché naquela noite de há três anos: o debrum de renda de uma fronha, parte do enxoval de Lise. Os seus dedos moviam ‑se rapidamente, passando o finíssimo fio branco por um remate intrincado e estrei‑to. Naquela altura Lise já era uma rapariga de 18 anos e estava prestes a casar ‑se com Peter Neilsen. Quando Lise e Peter ficaram noivos, a mamã disse que Annemarie e Kirsti haviam ganhado o seu primeiro irmão.

— Papá — acabou por dizer Annemarie, quebrando o silêncio. — Às vezes pergunto ‑me porque é que o rei não conseguiu proteger ‑nos. Porque não lutou contra

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os nazis para evitar que eles viessem para a Dinamarca com as suas armas?

O papá suspirou.— Somos um país tão pequenino… — respondeu ele.

— E eles são um inimigo tão poderoso. O nosso rei foi sábio. Ele sabia que a Dinamarca tinha poucos soldados. E sabia que muitos, muitos dinamarqueses morreriam se tivéssemos combatido.

— Mas os noruegueses lutaram — salientou Anne‑marie.

O papá assentiu com a cabeça.— Os noruegueses lutaram ferozmente. Dispunham

de montanhas gigantescas para os seus soldados se es‑conderem. Mesmo assim, a Noruega foi esmagada.

Na sua cabeça, Annemarie visualizou a Noruega como se lembrava de a ver no mapa da escola, mesmo por cima da Dinamarca. A Noruega era cor ‑de ‑rosa na‑quele mapa. Imaginou a faixa cor ‑de ‑rosa a ser esmaga‑da por um punho.

— Neste momento há soldados alemães na Noruega, tal como aqui?

— Sim, há — respondeu o papá.— Na Holanda também — acrescentou a mamã, de

onde estava. — E na Bélgica e em França.— Mas não na Suécia! — exclamou Annemarie, or‑

gulhosa por saber tanto sobre o mundo. A Suécia era azul no mapa da escola, e já tinha visto a Suécia apesar de nunca lá ter estado. Nas traseiras da casa do tio Henrik, no norte de Copenhaga, ela olhara para lá da água — a parte do Mar do Norte a que se chamava Kattegat —, para a terra que existia do outro lado. «O que estás a ver

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é a Suécia», informara o tio Henrik. «Estás a olhar para outro país.»

— É verdade — confirmou o papá. — A Suécia ainda é livre.

E naquele momento, três anos depois, ainda era verda‑de. Mas muitas coisas haviam mudado. O rei Cristiano X envelhecera e ficara gravemente ferido no ano anterior depois de cair do cavalo, o velho e bom Jubileu, que o transportara por toda a cidade de Copenhaga em tantas manhãs. Durante alguns dias pensou ‑se que ele ia mor‑rer e toda a Dinamarca chorou.

Mas isso não aconteceu. O rei Cristiano X ainda es‑tava vivo.

Lise é que tinha morrido. Fora a sua linda e alta irmã quem morrera num acidente duas semanas antes de se casar. No interior de uma arca azul entalhada pos‑ta no canto do quarto — Annemarie conseguia ver os seus contornos mesmo no escuro — estavam dobradas as fronhas de Lise debruadas a renda, o seu vestido de noiva com o decote bordado à mão, intacto, e o vestido amarelo que usara e dentro do qual dançara, com a saia a rodopiar, na festa de celebração do noivado com Peter.

A mamã e o papá nunca falavam de Lise. E nunca abriam a arca. Mas Annemarie fazia ‑o às vezes quando não havia mais ninguém no apartamento; sozinha, toca‑va com delicadeza nas coisas de Lise, recordando ‑se da sua irmã tranquila e de voz suave que tanto ansiara por se casar e ter filhos.

O ruivo Peter, o noivo da irmã, não se casara com ninguém depois da morte de Lise. Tinha mudado

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profundamente. Antes era como um divertido irmão mais velho para Annemarie e Kirsti, sempre a provocá‑‑las e a fazer ‑lhes cócegas, uma constante fonte de pateti‑ces e partidas. Não deixara de ir visitá ‑los com frequência, e dirigia ‑se às meninas de forma calorosa e sorridente, mas estava sempre apressado, falando rapidamente com a mamã e o papá sobre coisas que Annemarie não con‑seguia compreender. Já não cantava as canções dispara‑tadas que outrora faziam Annemarie e Kirsti rir ‑se às gargalhadas. E já não se deixava ficar muito tempo.

O papá também tinha mudado. Parecia muito mais velho e cansado, derrotado.

O mundo inteiro mudara. Só os contos de fadas con‑tinuavam iguais.

— E viveram felizes para sempre — murmurou no escuro Annemarie, concluindo o conto para a irmã, que dormia ao seu lado, com um polegar na boca.

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