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38 HERANÇA. A BATALHA PELA FORTUNA DO FUNDADOR DO SPORTING A VIDA SECRETA VISCONDE DE AL A luta pela herança de Alfredo Holtreman suscitou várias perguntas: a criada obrigou-o a mudar o testamento? Seria ele capaz de abusar de uma rapariga? E teria um filho bastardo? Estes oito postais com versos, alegadamente enviados a uma amante 50 anos mais nova, serviram de prova em tribunal. Por Pedro Jorge Castro Destaque

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HERANÇA.A BATALHA PELA FORTUNA DO FUNDADOR DO SPORTING

AVIDASECRETAVISCONDEDEALA luta pela herança de Alfredo Holtreman suscitou várias perguntas: a criadaobrigou-o a mudar o testamento? Seria ele capaz de abusar de uma rapariga?E teria um filho bastardo? Estes oito postais com versos, alegadamente enviadosa uma amante 50 anos mais nova, serviram de prova em tribunal. PorPedroJorgeCastro

Destaque

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DOVALADE

gO visconde de Alvalade, Alfredo Holtreman, e os versosdos postais não assinados que alegadamente terá enviadoa Armanda do Carmo Vital, uma inquilina de 17 anos,(50 anos mais nova), por quem se apaixonou e de quemteve um filho. Nas rimas, abundam os jogos com as iniciaisA, de Alvalade e Armanda, e V, de visconde e Vital

ARQUIVONACIO

NALTORREDOTOMBO

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Destaque

Quando o mais velho advogado deLisboa entrou num cartório para re-gistar a última versão do seu testa-mento, restavam-lhe quatro mesesde vida. Foi a 29 de Janeiro de 1920.Aos 82 anos, o visconde de Alvaladee trisavô de personalidades como Jo-

sé Maria Ricciardi e José Roquette, tinha pelo menostrês medos.

Primeiro, o pânico de ser enterrado vivo. De tal formaque deixou nesse documento instruções claras para oevitar: “Não tenham pressa em fechar o caixão, nãodeitem cal sobre a cara, deixem passar 48 horas, só fe-chem o caixão quando começar a decomposição cada-vérica, manifestada pelo mau cheiro.”

Depois, o receio de que qualquer parte da fortuna pu-desse vir a ser de alguma forma gerida pelo marido oupelo sogro da neta mais velha: Julieta Holtreman era ca-sada com Luís Ricciardi, filho de Vincenzo Ricciardi, res-pectivamente avô e bisavô de José Maria Ricciardi. Am-bos deviam ser excluídos do conselho de família: “Sãojogadores de jogos de azar e têm outros vícios que lhestiram a indispensável confiança”, justificou.

Por fim, o temor de que alguém tentasse prejudicar asua criada: o testamento deixava claro o desejo de queFausta Lopes, 48 anos mais nova, ficasse financeira-mente independente. Foi por ele descrita como “a pes-

soa mais cuidadosa, mais caridosa, mais inteligente,com a maior paciência e abnegação que pode desejar--se para tratamento de doentes e crianças, uma verda-deira irmã de caridade”. A empregada era elogiadapela forma como tratou o neto do Visconde, José deAlvalade (que deu nome ao estádio do Sporting), fale-cido em 1918 de gripe pneumónica; pela forma comocuidava dos bisnetos que ficaram órfãos, José (pai deJosé Roquette) e Alfredo; e, talvez mais importante,pela forma como tratava o visconde.

Ultimato:ouaempregadaoueu!Fausta Lopes tinha trabalhado como empregada naQuinta do Lumiar em 1909, quando a primeira mulher dofundador do Sporting ainda era viva – foi aliás ela que adespediu quando “a surpreendeu fazendo festas na bar-

A NAMORA-DA DE JOSÉALVALADE

TRABALHOUCOMO

EMPREGADAEM CASA DEARMANDA,A AMANTE

DO AVÔ

“Voupedirdinheiro ao meu avô e eleme dará dinheiro para fundar um outro clube”,anunciou José Alvalade quando abandonou oCampo Grande Foot-Ball Club, em 1906, pordiscordar da estratégia da instituição. Assim foi:além de o financiar, o avô cedeu o espaço naquinta do Lumiar para os primeiros jogos defutebol, escreveu os estatutos e tornou-se oprimeiro presidente do Sporting. Mas o pa-pel mais activo caberia ao neto, que tambémviria a ser presidente. O visconde ainda assistiuà morte de José, em 1918, vítima da gripepneumónica. Um mês antes de morrer, fez otestamento, entregando metade dos bens àsua namorada, Matilde Oliveira, que tinha sidoempregada na casa de Armanda, a amante dovisconde. Deixou-lhe o usufruto do seu prédioem Lisboa, além de toda a mobília, roupa e va-lores no recheio dessa casa. Mas havia umacondição: Matilde só seria herdeira se acompa-nhasse José até à hora da sua morte, “dispen-sando-lhe os seus cuidados e carinho”.

JosédeAlvaladetambémseapaixonouporumaempregadaE, como o avô, deixou-lhe parte da fortuna

iJosé Alvalade (àesquerda), numafoto de infânciacom os irmãos

Gavazzo, que tam-bém ajudaram a

fundar o Sporting

OpaiAntónio Holtre-man (1812-1890)foi um advoga-do tão ou maisilustre do queo filho Alfredo

HISTÓRIA

DOSP

ORTIN

G/M

ARIN

ATAVARESDIAS

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riga do visconde”, como contou mais tarde uma visitahabitual da casa, no tribunal, durante a batalha judicialpela herança do visconde. Outra criada foi mais directa etestemunhou que a patroa despediu Fausta por ter des-coberto que ela era amante do marido. O visconde en-viuvou em 1912 e dois anos depois convenceu a neta Luí-sa, que ainda vivia em sua casa, a voltar a contratar a an-tiga empregada. Segundo a versão das netas em tribunal,“Fausta entendeu que se servia bem a si, amancebando-se, como se amancebou, com o falecido e passando des-de então a dominá-lo, pondo e dispondo de tudo”.Terá mesmo convencido o visconde a retirar a “direc-ção doméstica” da casa à sua neta Luísa, que lançouum ultimato ao avô: ou ela ou Fausta. O avô escolheu aempregada e a neta saiu de casa.

Na última versão do testamento, o visconde deixou àcriada o usufruto vitalício da vasta quinta de Alvalade,onde viviam. Atribuiu-lhe ainda o rendimento anual de220 acções de cinco grandes bancos, todo o dinheiro emóveis que houvesse em casa, 30 litros de azeite e 260litros de “bom vinho”, todos os anos, da sua quinta noPedrógão, e um jazigo no Cemitério dos Prazeres – queacabou por nunca ser usado.

AnovaviscondessaQuatro meses depois de ter escrito este testamento de26 páginas, o velhinho visconde preparou-se para ca-sar e registou uma escritura antenupcial onde previa aseparação de bens, mas elogiava a honestidade dasua noiva e justificava este gesto: “Entendeu dever ca-sar com ela para que fosse de todas as honras e direi-to sua mulher.” A noiva aproveitou a ida ao registopara formalizar a mudança de estatuto: “Depois decasada, assinará Fausta d’Anunciação Correia Lopes(viscondessa) ou só Fausta (viscondessa).”

DIAS DEPOISDE ANTÓNIO

RICCIARDINASCER, OS

PAIS EN-FRENTARAMUM PEDIDODE ARRESTO

DOS BENS

jJosé Alvalade,neto do viscondee principal impul-sionador da cria-ção do Sporting, éo 4.º em pé a con-tar da direita, nes-ta foto com os ou-tros fundadores,em 1906

O casamento ocorreu a 23 de Maio, na quinta doLumiar, e foi testemunhado por quatro padrinhos:um médico, um industrial, um sargento e uma do-méstica. Mas nem durou o tempo de uma lua-de-mel. Apenas 11 dias depois, às 22h30 do dia 4 de Ju-nho de 1920, Alfredo Holtreman morreu em sua casa,vítima de icterícia grave, doença que provoca o ama-relecimento da pele.

O País mal se apercebeu da morte, noticiada em cur-tas linhas. No dia seguinte, a viúva chamou a sua casa oregedor da freguesia do Lumiar para ser lido o testa-mento. As duas netas do visconde, Julieta e Luísa Hor-tense, acharam arriscado esperar pelo enterro do avô epediram logo a um tribunal que, “com a máxima urgên-cia”, fossem colocados selos nos bens do visconde, deforma a ficarem arrolados judicialmente. No própriodia 5, menos de 24 horas após a morte, um juiz, ummagistrado responsável pelos menores (designado “cu-rador geral dos órfãos”), o advogado e o solicitador dasnetas do visconde foram ao escritório do falecido, noLargo Camões, em Lisboa, onde colocaram selos e umafita com dois pingos de lacre na porta. Seguiram para aresidência, na Quinta do Lumiar, onde uma caixa-forteintroduzida na parede e dois cofres foram também se-lados. O mesmo aconteceu com a sala de jantar, com asala de visitas e com dois armários de louça.

Fausta Lopes foi acusada pelas netas do visconde epelos seus maridos, Luís Ricciardi e António Casano-vas, de ter orquestrado o chamado “golpe do baú”, fa-cilitado pela alegada perda de consciência do avô:“Desde o começo de 1919, o estado de fraqueza mentaldo falecido agravou-se velozmente, tornando-se ele

um verdadeiro joguete nas mãos de Fausta”, lê-senas centenas de páginas de documentação judicial,nunca antes divulgadas, e consultadas pela SÁBA-DO na Torre do Tombo. As netas consideravam queo visconde “se encontrava num perfeito estado dedemência senil” quando fez o testamento e pedi-ram ao tribunal que o anulasse.

A viscondessa continuou a viver na Quinta de Alvala-de, mas deixou de beneficiar dos bens do marido, queestavam arrolados. Enquanto não se resolvia a litigân-cia, o tribunal concedeu-lhe uma pensão mensal de500 escudos, paga pelos rendimentos da herança.Acabou por ficar a neta mais velha, Julieta Ricciardi,como cabeça-de-casal: competia-lhe gerir o patrimó-nio e elaborar uma lista dos bens do visconde, para se-rem avaliados um a um.

OherdeiroinesperadoNo testamento, Alfredo Holtreman fez uma referência àsinquilinas de um dos seus apartamentos: o que ficavapor cima do seu escritório, na Calçada do Carmo, entreo Largo do Carmo e a estação de comboios do Rossio.Vivia aí Armanda do Carmo Vital, com a mãe, Maria doRosário, e o filho, Alfredo. Alegou que elas lhe tinham vi-giado o escritório, “evitando que os gatunos ali entras-sem”, e deixou-lhes duas pequenas benesses: os au-mentos da renda não poderiam ser superiores a 50%;

Ocartãodo advogadoAlfredo Holtre-man, com umacoroa por cimado título. Foi oRei D. Carlosque o fez vis-conde de Alva-lade em 1898,atendendo aosseus “mereci-mentos e quali-dades”, após opagamento de“1 conto e 200mil reis de direi-tos de mercê” Q

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Destaque

e podiam atrasar-se um pouco nos pagamentos semserem alvo de despejo.

Poucos meses depois da morte do visconde, a inqui-lina Armanda pediu assistência judiciária por não terdinheiro para gastar em tribunais e fez um pedido deinvestigação de paternidade ilegítima, alegando que oseu filho Alfredo, nascido em 1910, fora o fruto das re-lações que mantinha com o visconde, seu amante en-tre 1904 e 1918. Nesta queixa, Armanda deu a sua ver-são sobre a forma como terá começado a relação. Ovisconde era o senhorio da casa onde vivia com a mãee aos 15 anos terá começado a assediá-la, visitando-afrequentemente. Também se encontravam em casa deuma madrinha de Armanda, que chegou a ser outraamante do fundador do Sporting.

No dia 19 de Maio de 1904, quando Armanda tinha 17anos, poderá ter sido vítima de um crime, assim de-nunciado pelo seu advogado: “O referido visconde (…)aproveitando a ausência da mãe dela de casa, estu-prou-a, pedindo-lhe depois para guardar segredo do

que se tinha passado e prometendo que lhe daria tudoquanto ela necessitasse e não mais a abandonaria.” Orelato continua: “Depois do estupro, em virtude dasprovas de amizade e do interesse por parte do viscon-de de Alvalade”, a mãe da jovem foi “consentindo porfim que ele visitasse” a filha em sua casa e que “aí am-bos tivessem relações”.

A defesa de Armanda considerou que a primeira re-lação se tratou de “sedução praticada com abuso deautoridade e confiança”. É impossível, 111 anos depois,confirmar ou refutar definitivamente a alegação deque o visconde tenha abusado de uma rapariga de 17anos. Não houve um julgamento relativamente a essaquestão. O caso foi suscitado no âmbito da disputa daherança e, além do depoimento da vítima, mais duastestemunhas relataram que tinham tido conhecimentoindirecto do caso, porque a mãe e o irmão de Armandalhes tinham contado. E houve a correspondência ane-xada ao processo por Armanda, para provar a relação.As cartas e os postais não estão assinados, nem foi re-

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querido qualquer exame para determinar se a caligra-fia correspondia à do visconde. Mas os advogados dasnetas e da viúva não quiseram pedir essa perícia, pos-sivelmente com receio de que se confirmasse que oautor era mesmo Alfredo Holtreman. O juiz de 1ª ins-tância e vários desembargadores do Tribunal da Rela-ção consideraram provável e credível que as cartas te-nham mesmo sido escritas pelo visconde.

Na correspondência, há pelo menostrês alusões do autor ao encontro ondeterá ocorrido o suposto abuso, em Maiode 1904. Seis dias depois, enviou uma

carta que se estende por 17 páginas, mas cujo papel sedanificou numa extremidade, o que impede a leitura devárias linhas. Mesmo assim, é possível ler vários excer-tos relevantes:

1. Assumiu que se declarou neste dia àjovem Armanda, filha da sua inquilina:“Esta paixão que me devora, esta dedica-ção que por ti tenho há muito tempo emais se enraizou e fortificou em meu co-ração quando no dia 19 tive o ensejo e oprazer de sinceramente ta manifestar.”

2. Admitiu a ambição de “possuir umamor puro, são e dedicado, de uma mu-lher que ainda não tivesse amado e quenem o seu corpo nem a sua alma tivessepertencido a outro homem”.

3 . Apelou ao secretismo, referindo quea relação “teria de permanecer oculta (…)porque as conveniências e as circunstân-cias assim o exigiriam”.

4 . Confirmou que fez chorar a jovemde 17 anos: “É só com as minhas lágri-mas ardentes e sinceras que posso sua-vizar o grande desgosto que tenho de teter feito chorar, de ter feito com que dosteus lindos e divinos olhos corressem lágrimas de tris-teza. (…) O meu egoísmo consistia em que tu por tua li-vre vontade, por dedicação, por amizade e por amorquisesses ser minha e só minha, e que eu fosse o teumais humilde escravo.”

5. Prometeu moderação física, o que indicia que nãoterá sido o caso da semana anterior: “Podes estar certaque apenas te apertaria a mão, e sem a tua expressapermissão não me aproximaria de ti; nem te faria nemdiria coisa alguma que te fosse desagradável; queria sópedir-te perdão de ter sido o causador de chorares.”

Numa carta com data de 30 de Maio, o autor voltou a

referir-se ao encontro, ocorrido 11 dias antes: “Nesse dia,oh com que saudade o recordo!!, houve um momentosolene em que senti como que um fluido magnético queme fez rejuvenescer (…) um fluido magnético suave edoce, e tu, meu anjo, também o sentiste pois Deus quisque eu rapidamente o percebesse, um fluido divino quenos atraiu um para o outro, e que então uniu as nossasalmas num só suspiro.”

Há uma certa obsessão com a vontade divina. Numacarta, justificou a relação como resultado de um podersuperior: “E porque se deu esse momento de supremaventura e de imensa felicidade? Foi decerto porqueDeus assim o quis, porque o nosso bondoso e misericor-dioso Deus que vela por nós nos quer felizes.” Católicoconvicto, como se definiu no testamento, Alfredo Hol-treman era ainda casado – a primeira mulher, que con-siderou uma “santa” quando redigiu a última vontade,morreu em 1912, pelo que terá sido traída nos últimosoito anos de vida.

Foi depois do início deste relacionamento que o vis-conde decidiu mudar o escritório para o edifício onde vi-via aquela que se transformou na sua jovem amante,para facilitar os encontros. Visitou-a uns 15 anos, até ficar“impossibilitado de sair de casa pela doença de que veioa falecer”, segundo Armanda. Pelo meio, mobilou-lhetoda a casa, dava-lhe mesadas e pagou a uma professora

para lhe dar aulas de piano e de francês.

A“impaciênciaprópriadumpai”No dia 7 de Agosto de 1910, a jovem deuà luz um dos últimos bebés nascidos namonarquia. Foi o visconde que contra-tou o médico para ir fazer o parto a casa,uma extracção a fórceps que durou atéàs 7h, assistindo a tudo “com a impa-ciência própria dum pai”, segundo o re-lato da amante e o depoimento do mé-dico em tribunal. Pagou o enxoval e obaptizado; colocou dois títulos de dívidapública, de 1.000 escudos cada, emnome do bebé; comprava-lhe roupa doGrandella, no Chiado; escolheu-lhe ocolégio e ia lá levá-lo na sua carruagemnos dias de chuva. Embora o rapaz te-nha ficado com o visconde de Alvaladecomo padrinho e tenha herdado o seunome próprio (Alfredo), foi registado

como tendo pai incógnito.Armanda procurava demonstrar que o pai tinha sido o

visconde, garantindo que “nunca até aí tivera relaçõesnem mesmo namoro com outro homem sendo pública enotória a sua boa reputação”.

O advogado das netas do fundador do Sporting con-siderou esta acção judicial “uma tentativa de espolia-ção e assalto aos bens deixados pelo falecido viscon-de”, asseverou que a amante não era Armanda, massim a sua mãe, e garantiu que, pela avançada idade,Alfredo Holtreman “estava impossibilitado fisicamen-te” de ser o pai do rapaz nascido em 1910, “por im-

[O VISCON-DE] ERA OSENHORIO

DA CASAONDE AR-MANDA VI-VIA COM AMÃE. TERÁ

COMEÇADOA ASSEDIÁ-

-LA QUANDOELA TINHA

15 ANOS

Q

LumiarOctávia

Stromp a jogarténis nos terre-nos do viscon-de – em 1913,esta imagemencheu uma

capa da Ilustra-ção Portuguesa

ILUST

RAÇÃOPORTUGUESA

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Destaque

q “Não quero coroas, nem fitas, nem floresartificiais, e só algumas flores do meu jardimse as houver”q “Não se fazem anúncios nem convites parao enterro, que será muito simples e modesto”q “O meu corpo no caixão da urna será condu-zido em carro de colunas preto simples e mo-desto”q “Quero ser depositado no jazigon.º 1.089 no cemitério ocidental(Prazeres) no lugar que está vagoe tenho reservado para mim, paraficar ao pé de minha santa mulhere dois anjos minhas filhas”q “Quero ser amortalhadona minha toga de advogado”

Funeral:asinstruçõesdoviscondeNo testamento, deixou cinco pedidosrelacionados com o seu enterro

UMA TESTE-MUNHA FA-LOU DE UM

CÓDIGO: UMPANO À JA-NELA PARAOS HOMENS

SABEREMQUE PODIAM

SUBIR

hOs dois avôs deJosé Maria Ricciardinum torneio deténis em 1932,22 anos antes de elenascer: Luís Ricciar-di, à esquerda, eRicardo EspíritoSanto, de gravata

potência e atrofia dos órgãos sexuais”. Depois ata-cou a reputação de Armanda, considerando o seucomportamento “péssimo, imoral e desonesto” e acu-sando-a de ter tido “relações sexuais com inúmeroshomens”, a quem alugava quartos em sua casa. Dedu-ção do advogado: “Não admira que ainda hoje sejasolteira, pois dada a sua vida imoral e devassa não lhedeve ser fácil encontrar marido!”

O defensor de Fausta, a viúva, seguiu um raciocíniosemelhante e acusou-a de ter tido relações com diver-

sos homens “e até de diversas nacionalidades, com co-nhecimento e até aprazimento de sua mãe, parteiraconhecida como albergueira de mulheres de vida fácile respectivos amantes”. Argumentou também que em1904 o falecido já tinha 67 anos, logo “era fisicamenteimpossível estuprar uma mulher”. Esta questão foidesmontada em tribunal por um médico de 60 anos,José Roberto, chamado pela viscondessa, mas queacabou por beneficiar a parte contrária. Declarou nãohaver “limite de idade para a procriação masculina...”e a prova que apresentou parecia irrefutável: conheceuum homem que tinha gerado um bebé aos 81 anos,“não podendo haver dúvida de que o filho fosse deleporque apareceu com dois dedos do pé pegados umao outro, como o pai tinha...”

Ao todo foram ouvidas 14 testemunhas. Na impossibi-lidade de usar métodos científicos para determinar seAlfredo Vital era ou não filho do visconde, estava emcausa o conceito jurídico da “posse de estado”: tinha dese provar que o visconde reputava e tratava o menorcomo filho e que os vizinhos e outras pessoas próximastambém o reputavam como filho do falecido.

O inquilino que vivia no piso de baixo do prédio deArmanda relatou como o visconde lhe pagou uma in-demnização para ele se mudar em Maio de 1905 (umano depois do início do relacionamento), para poderali instalar o seu escritório – e ficar mais perto da jo-vem amante.

Uma criada que trabalhou em casa de Armanda – eque viria a ser namorada do neto do visconde, José Al-valade – relatou que o advogado idoso abria a porta dacasa, e que logo a mãe de Armanda, o pequeno Alfredoe ela própria se retiravam para o terceiro andar, paradeixarem os amantes a sós no piso onde ficava “o quar-to de cama da D. Armanda”. Mais: “Quando o viscon-

“DEPOIS DOESTUPRO (...)

A MÃE DAJOVEM FOI

CONSENTIN-DO POR FIMQUE ELE AVISITASSE”

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Destaque

Foiopróprio advogado do bisavô deJosé Maria Ricciardi que admitiu que oseu cliente era viciado no jogo, em1909, em resposta a um processo emque uma empresa francesa lhe exigiuque devolvesse 27 mil francos. O dinhei-ro resultaria de dívidas contraídas no Casi-no de Vichy, “onde [Vincenzo] perdeu – arrepen-dido o confessa – quantias avultadas”. Dez anosmais tarde, em 1919, o seu filho Luís e a nora, Ju-lieta, que recuperava do parto de António Ricciar-di, enfrentaramumpedidodearrestodeto-dososbens, feito por um credor que lhes tinhaemprestado dinheiro. Foram mesmo ouvidastrês testemunhas, uma das quais declarou queLuís Ricciardi viveu desde muito novo com “o ví-cio do jogo” e que “nunca se entregou ao exercí-cio de qualquer profissão, indústria ou trabalho lí-cito”. Outra testemunha acrescentou que o casalvivia em circunstâncias críticas, “precisando de

recorrer a casas de penhores”. O pai deLuís, Vincenzo, depositou 10 contos (65mil euros a preços actuais) na Caixa Ge-ral de Depósitos para ser levantado o ar-resto e evitar o embaraço. António Ric-ciardi indicou através de um assessor doGrupo Espírito Santo que não iria prestardeclarações para este artigo.

ProcessospelovíciodocasinoTanto Vincenzo Ricciardi como o seu filho Luístiveram problemas com dívidas de jogo

gJulieta Ricciardinum convívionos jardins dacasa do viscon-de, o seu avô

hAs imediações daQuinta do Lumiar,onde vivia o vis-conde, no iníciodo século XX

de chegava, ouvia o filho chamar-lhe pai (…) e dava--lhe a mão a beijar.” Outra empregada confirmou que“dentro da casa da mãe nunca [o visconde] se poupou atratar o pequeno por filho”.

Um dos empregados do escritório do visconde, incum-bido de cobrar as rendas, disse que nunca recebeu deArmanda nem da sua mãe, pelo que deduziu que elasestavam de graça na casa. Também recordou que o ad-vogado lhe pediu para passar a limpo uma carta “na qualse pretendia desviar a paternidade do menor Alfredo dopai que era o visconde para outra pessoa residente forade Lisboa, um brasileiro qualquer”. A credibilidade dessatese do pai brasileiro foi logo derrubada devido a estaforma desconfiada como a testemunha a apresentou.

Umsinalparachamarhomens?A primeira testemunha apresentada pela viscondessa foiuma cozinheira brasileira analfabeta, que trabalhara emcasa do ex-Presidente Bernardino Machado. Garantiuque o visconde era amante da mãe de Armanda, quechegou a pedir-lhe que preparasse “coisas extravagan-tes tais como amêijoas, ostras e outros mariscos” paraoferecer ao advogado, como se tivesse sido ela a cozi-nhá-los; por outro lado, asseverou que Armanda tinhatido outros homens, descrevendo quatro desses relacio-namentos, aventando o que lhe parecia ser um códigosecreto: “A D. Armanda costuma pôr na sua janela umpaninho ou toalha para o lado da estação e já ouviu di-zer que aquilo era sinal para homens” – ou seja, alega-damente para saberem se podiam ir lá a casa. E deu oseu bitaite sobre a fisionomia: achava que o rapaz nãose parecia com o visconde, e sim com um dos amantes,“sendo mesmo as ventas dele”. A credibilidade do de-poimento foi reduzida, por a cozinheira estar de rela-ções cortadas com Armanda, com quem trocou insultose cuspidelas, e por ser inquilina de Julieta.

O outro eventual trunfo da viúva do visconde era Vic-tor Hugo Vital, funcionário dos CTT, que aceitou deporcontra a irmã, Armanda, mas o seu depoimen-to não foi autorizado por ter sido apresentadofora de prazo. Victor escreveu, então a pedidode Julieta Ricciardi, uma carta de três páginasao tribunal, a dizer que o sobrinho não era fi-lho do visconde, mas de um dos quatro aman-tes da sua irmã, com quem admite que se zan-gou devido à forma como tratou a mãe de am-bos, internada “como indigente no manicómioBombarda”. Vários juízes acharam desprezívelesta intervenção para prejudicar a irmã.

OsapateadonaescadaNenhuma das testemunhas terá sido tão maisdecisiva nesta fase do que um empregado doescritório de Alfredo Holtreman. Descreveu deforma soberba o estranho ritual do patrão quando saíapara subir a casa da amante no segundo andar: “Faziaum grande sapateado na escada como se fosse a descerpara os empregados se persuadirem que ele descia, masindo estes à janela não o viam sair e percebiam que ele,

em vez de descer, subia a escada.” Mas depois,questionado sobre se tinha a convicção de queo pequeno Alfredo era filho do advogado, res-pondeu estar “na dúvida”.

Foi nesta resposta que o juiz de primeira ins-tância pegou para rejeitar o pedido de Armanda, em1928. Mas ela não desistiu: voltou a pedir assistência judi-ciária, recorreu para a Relação e, no ano seguinte, já es-tavam cinco juízes desembargadores a analisar o proces-so. O primeiro, que foi também o relator, considerou

O VISCONDEAFASTOU DA

HERANÇALUÍS E

VINCENZORICCIARDI,

JUSTIFICAN-DO: “SÃO

JOGADORESDE JOGOSDE AZAR”

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ARQUIVOMIN

ICIPALDELISB

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Destaque

1Em Setembro de1945, o então te-nente da MarinhaAntónio Ricciardicasou-se com Ve-ra Espírito Santo.Luís Ricciardi estáao lado da noiva;Julieta surge aolado do filho

2O banqueiroRicardo EspíritoSanto e a mulher,Mary, no dia emque a segunda fi-lha mais velha secasou com o bis-neto do visconde

3A certidão do se-gundo casamentodo visconde,11 dias antesde morrer,perantequatropadrinhos

VincenzoRicciardi, natural de Nápoles, ca-sou-se com uma portuguesa e instalou-se na Bai-xa de Lisboa, onde se dedicava ao comércio. De-pois de anos lucrativos entre 1904 e 1910, a suaempresa abriu falência cincomesesapósa Im-plantaçãodaRepública.Mas um dos fornece-dores, uma empresa italiana que lhe tinha vendidoarroz para comercializar em Portugal, processou--o, considerando que se tratava de uma falênciafraudulenta, e atacou a sua conduta, assim: “Asdespesas avultadas em mulheres e jogo que o ar-ticulante faria eram assaz conhecidas de toda a

população de Lisboa.” O MinistérioPúblico acompanhou o credor ita-liano nesta tentativa de provar quea falência “proveio de incúria” e re-sultou de “ter consumido, o falido,no jogo de azar uma grande partedo seu património”.A justiça não chegou a tomar

uma decisão sobre a substânciada acusação, por entender que aqueixa dos italianos foi interpostajá fora do prazo.

AfalênciadobisavôRicciardiEm 1912, um fornecedor italiano de arrozacusou Vincenzo de falência fraudulenta

que não havia provas suficientes de que o falecido tra-tasse o rapaz como seu filho. O segundo desembargadorconcordou. A partir daqui, bastava apenas que mais umdos três restantes magistrados alinhasse com estes cole-gas, para que a causa ficasse definitivamente perdida.

O terceiro juiz desembargador reanalisou os argu-mentos, valorizou os depoimentos das testemunhas deforma diferente e deu como provado que o viscondetratava o menor como filho, pelo que defendeu a revo-gação da sentença. O quarto juiz alinhou com o ante-rior, empatando a decisão. E o quinto magistrado, o

decisivo, consumou a reviravolta no processo (3 a 2):“Creio que não deve haver receio de levar para a famí-lia do visconde quem a ela não pertença (…). Excluí-loé que me parecia menos justo.”

A viúva e as netas do visconde consideraram a decisão“obscura” e pediram ao Tribunal da Relação para sepronunciar novamente. Resultado: 5 a 0. Todos os de-sembargadores consideraram que Alfredo devia serconsiderado filho ilegítimo do visconde e ter acesso àherança. Seguiu-se novo recurso para o Supremo Tribu-nal de Justiça, onde os conselheiros validaram a decisãoda Relação, através de um acórdão de Outubro de 1932.

ApartilhadafortunaA família do Visconde passou assim a ter mais um ele-mento: Alfredo Vital, 22 anos – a idade do bisneto maisvelho do pai. A divisão da fortuna foi rápida. Os bisnetos,José e Alfredo Roquette, encontraram-se com o novomembro da família num cartório na R. da Conceição, em

Janeiro de 1933, e entregaram-lhe 222 contos (cer-ca de 206 mil euros). Em troca, Alfredo Vi-tal abdicou dos direitos sobre a herança. Afortuna do visconde foi avaliada em 1.363contos (1,26 milhões de euros a preços ac-tuais). As netas, Luísa e Julieta, ficaram com225 contos cada; a cada um dos bisnetos, Josée Alfredo Roquette, coube 250 contos (antesde pagarem os 222 contos ao filho ilegítimo dobisavô); e a viscondessa ficou com uma fortunaavaliada em 340 contos.Mesmo assim, o diferendo entre a viscondessa

e Julieta Ricciardi ainda se arrastou alguns anos.Só em Julho de 1930 a neta do Visconde apresentou ascontas da gestão da herança, que levaram o tribunal a de-cidir que teria de pagar à viscondessa 26 contos. Mas nemaíse entenderam. Como Julieta nunca mais pagava, emJunho de 1931 a viúva do visconde conseguiu que penho-rassem as rendas que Julieta recebia de quatro prédios.

Foi preciso esperar até Julho de 1935, para que Fausta eJulieta Ricciardi chegassem a acordo. Tinham decorrido15 anos desde a noite em que o visconde morreu e am-bas assumiram com frontalidade o que as levou a ceder:“Pelas grandes necessidades de dinheiro e para fazeremface a pagamentos imediatos.” W

O VISCONDEFAZIA UM“GRANDE

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