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Título: Caros FanáticosTítulo original: Shalom Lakana’im© 2017, Amos Oz© 2018, Publicações Dom QuixoteEdição: Cecília AndradeTradução do hebraico: Lúcia Liba MucznikRevisão: Clara Joana Vitorino
Este livro foi composto em Rongel,fonte tipográfica desenhada por Mário FelicianoCapa: Rui GarridoFotografia do autor © Colin McPhersonPaginação: Leya, SAImpressão e acabamento: Guide
1.a edição: setembro de 2018ISBN: 978 -972 -20 -6581-8Depósito legal n.o 444 086/18
Publicações Dom QuixoteUma editora do Grupo LeyaRua Cidade de Córdova, n.o 22610 -038 Alfragide • Portugalwww.dquixote.ptwww.leya.com
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor.Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
Introdução 11
Caros fanáticos 13
Luzes e não uma única luz 53
Sonhos de que Israel se deve libertar rapidamente 111
Agradecimentos 137
Referências bibliográficas 139
Para os meus netos Din, Nadav, Alon e Yael com amor e consideração.
Este livrinho foi escrito em primeiro lugar e principalmente para vocês.
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�INTRODUÇÃO
O autor destes artigos não é um investigador nem um especialista, mas uma pessoa envolvida, cujos sentimen-tos são por vezes mistos.
O fio que liga os artigos é o desejo de lançar um olhar pessoal sobre questões controversas na sociedade israe-lita, algumas das quais são para mim questões de vida ou de morte.
Não é minha pretensão descrever todos os aspetos de cada polémica, identificar todos os elementos em cena nem obviamente ter a última palavra, mas acima de tudo chamar a atenção daqueles cujas opiniões diferem das minhas.
Amos Oz
Baseado numa série de conferências que dei na Universidade de Tübingen, na Alemanha, em 2002, editadas num pequeno livro, How to Cure a Fanatic, traduzido em cerca de 20 línguas [ed. portuguesa, Contra o Fanatismo, trad. de Henrique Tavares e Castro, Asa, 2007]. O artigo que aqui aparece é a tradução da primeira edição hebraica, adaptada, alargada e atualizada.
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Então, como se cura um fanático? Perseguir um bando de fanáticos armados nas montanhas do Afeganistão, nos desertos do Iraque ou nas cidades da Síria é uma coisa. Lutar contra o fanatismo em si é algo totalmente dife-rente. Não tenho nada de novo a propor no que respeita às guerras nas montanhas e nos desertos, ou às persegui-ções espalhadas pelo planeta. Limito -me a lançar aqui algumas ideias sobre a natureza do fanatismo e as vias para o travar.
Os ataques às Torres Gémeas de Nova Iorque a 11 de setembro de 2001, tal como as dezenas de atentados em centros de cidades e em locais povoados nos vários can-tos do mundo, não derivam da cólera dos pobres contra os ricos. O fosso entre a riqueza e a pobreza é uma velha injustiça, mas a nova vaga de violência não é só, nem principalmente, uma reação a esse fosso. (Se tal fosse o
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Amos Oz
caso, os ataques terroristas viriam sobretudo dos países de África – os mais pobres – e teriam como objetivo a Ará-bia Saudita e os Emiratos Árabes Unidos, os mais ricos de todos.)
A guerra em questão é uma guerra entre fanáticos convencidos de que os seus objetivos santificam todos os meios e todos os outros, para os quais a vida é um objetivo e não um meio. É uma luta entre os que afirmam que a justiça, seja o que for que eles entendem por «justiça», é mais importante do que a vida, e aqueles para os quais a própria vida tem prioridade sobre muitos outros valores.
Desde que o investigador Samuel Huntington definiu o atual campo de batalha mundial como «uma guerra de civilizações», entre principalmente o Islão e a civilização ocidental, espalhou -se em muitos lugares uma imagem racista do mundo que apresenta um confronto entre os «terroristas selvagens» orientais e as «pessoas civilizadas» do Ocidente. Não é isso que Huntington apresenta, mas foi esse o sentimento comum que as suas palavras des-pertaram.
Para o governo de Israel, por exemplo, é muito conve-niente encostar -se a esta versão western barata, porque lhe permite enfiar a luta do povo palestiniano pelo direito a libertar -se do jugo da ocupação israelita no mesmo «caixote de lixo» indigno do qual emergem sem cessar
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assassinos muçulmanos fanáticos que cometem atroci-dades em todas as partes do mundo.
Muitos esquecem que o Islão extremista não tem o monopólio do fanatismo bárbaro: a destruição das Torres Gémeas de Nova Iorque e os massacres que continuam a ser perpetrados em diversos lugares do mundo não estão necessariamente ligados a questões tais como: O Oci-dente é bom ou mau? A globalização é uma benesse ou uma monstruosidade? O capitalismo é uma abominação ou uma necessidade? O laicismo e o hedonismo são sujei-ção ou libertação? O colonialismo ocidental terminou ou limitou -se a vestir novas roupagens?
A todas estas questões é possível dar respostas dife-rentes e opostas sem que nenhuma delas seja fanática. O fanático não discute. Quando algo lhe parece mau, quando se convence que algo é mau aos olhos de Deus, o seu dever é exterminar imediatamente a abominação mesmo que para isso seja necessário matar o seu vizinho ou quem quer que se encontre a seu lado.
O fanatismo é muito mais antigo do que o Islão. Mais antigo do que o cristianismo e o judaísmo. Mais antigo do que todas as ideologias do mundo. É a essência perene da natureza humana, o «gene mau»: aqueles que fazem
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explodir clínicas onde se fazem abortos, que matam refu-giados na Europa, que assassinam mulheres e crianças em Israel, que lançam fogo a uma casa com toda uma família palestiniana lá dentro, pais e filhos, nos territórios ocu-pados por Israel, que profanam sinagogas, igrejas, mes-quitas e cemitérios, todos estes, apesar de diferentes da Al-Qaeda e do Daesh pela extensão e gravidade dos seus atos, não o são na natureza dos seus crimes. Atualmente fala -se de «crimes de ódio», mas talvez seja mais correto usar o termo «crimes de fanatismo»: crimes esses que tam-bém se cometem quase diariamente contra muçulmanos.
Genocídio, jihad, cruzadas, Inquisição, gulag, campos de morte e câmaras de gás, câmaras de tortura e atenta-dos terroristas sem distinção, nada disto é novo e quase todos antecederam em centenas de anos a ascensão do Islão extremista.
Quanto mais difíceis e complexas são as questões, maior é a necessidade que um número crescente de pes-soas tem de respostas simples, de uma palavra, respostas que apontam sem hesitações o culpado por todos os nos-sos sofrimentos, respostas que nos garantem que basta exterminar os culpados para que as nossas aflições desa-pareçam instantaneamente.
«A culpa é da globalização!», «a culpa é dos muçul-manos!», «é tudo por causa da permissividade!», ou «por causa do Ocidente!», «por causa do sionismo!», «por causa
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Caros fanáticos
dos refugiados!», «por causa do laicismo!», «por causa dos esquerdistas!» – basta eliminar o que está a mais, apontar o demónio certo para cada um de nós e depois matá -lo (juntamente com os seus vizinhos, ou quem se encontrar na vizinhança), e desse modo abrir de uma vez por todas os portões do paraíso.
Para um número crescente de pessoas o sentimento público mais forte é o de profunda rejeição: rejeição subversiva do «discurso hegemónico,» do Oriente pelo Ocidente, do Ocidente pelo Oriente, dos crentes pelos laicos, dos laicos pelos religiosos – uma rejeição genera-lizada, sem restrições, que cresce e se avoluma como o vómito das profundezas desta ou daquela miséria. A rejei-ção generalizada é uma das componentes do fanatismo seja ele qual for.
Por exemplo, a ideia que há meio século surgiu como um conceito inovador e empolgante, do multicultura-lismo e da política identitária, tornou -se rapidamente e em muitos lugares, uma política de ódio identitário: aquilo que começou como uma abertura do horizonte cultural e emocional tem vindo a degradar -se numa rea-lidade de estreitamento do horizonte, de introversão, de ódio do outro, em resumo: uma nova vaga de rejeição do outro e de fanatismo está a crescer de várias direções.
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Amos Oz
É possível que a minha infância em Jerusalém me tenha preparado para ser um especialista em fanatismo compa-rado. Nos anos quarenta do século XX havia em Jerusalém bastante gente de mente aberta e vistas largas. Mas havia igualmente imensos autoproclamados profetas, salva-dores e redentores. Até aos dias de hoje, quase um em cada dois ou três jerosolimitanos tem a sua própria versão de salvação instantânea. Muitos dizem, referindo -se a si nos termos do refrão sionista antiquado, que se encon-tram em Jerusalém a fim de «construir e ser construídos nela», mas não são poucos os que entre eles, sejam judeus, muçulmanos, cristãos, revolucionários, radicais ou bons samaritanos, vieram para Jerusalém não para «construir e ser construídos nela», antes talvez para crucificar e ser crucificados nela.
É bem conhecida a doença mental que a linguagem médica intitula de «síndrome de Jerusalém»: ao respira-rem o ar cortante dos montes «límpido como o vinho», as pessoas sentem -se impelidas a incendiar uma mes-quita, fazer explodir uma igreja ou destruir uma sinagoga, matar heréticos ou crentes, a fim de «erradicar o mal do mundo». Porém, em geral, os doentes do «síndrome de Jerusalém» contentam -se em despir as suas roupas, trepar para uma rocha e começar a pregar.
É possível que poucos acreditem nesses pregadores, mas estes são muitos, de um extremo ao outro do espectro
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político. O denominador comum a todos é a urgência em levar à prática alguma fórmula de salvação simples e, fre-quentemente também, apontar alguns malvados de cuja presença o mundo tem de ser purificado a fim de acele-rar a salvação. A salvação em si mesma, segundo a maio-ria desses pregadores, cabe facilmente numa palavra de ordem de duas ou três frases.
Na minha infância em Jerusalém também eu era um pequeno sionista -nacionalista fanático, convencido, entusiasta e doutrinado. Cego e surdo a todo e qualquer argumento que divergisse fosse no que fosse da narra-tiva judaico -sionista que quase todo o mundo adulto nos contava. Surdo a toda a razão que pusesse em causa essa narrativa. Tal como os outros miúdos do bairro de Kerem Avraham também lançava pedras aos veículos de patru-lha britânicos na nossa pequena rua. Ao mesmo tempo que lhes lançávamos pedras gritávamos quase todo o arsenal de palavras inglesas que conhecíamos: «British go home!!!» Isto acontecia no ano de 1946 ou 47, no final do mandato britânico em Jerusalém, na época da Intifada original – a nossa Intifada, dos judeus, contra a ocupação britânica. (Também esta, aparentemente, um pequeno exemplo da ironia da História.)
«Conciso, evocativo… Caros Fanáticos não é apenas um brilhante livro de pensamentos e ideias – é um retrato da luta de um homem que, durante décadas, tem insistido em manter uma perspicaz, estridente e lúcida objetividade perante o caos e em tempos de loucura.»DAV I D G R O S S M A N , vencedor do Prémio Man Booker Internacional
Este conjunto de três ensaios foi escrito a partir de um sentido de
urgência e preocupação, e na crença de que um futuro melhor ainda é
possível. O traço comum é a análise do fanatismo combinada com uma
apologia à moderação. Independentemente do tipo de fé e do contexto em
que o fanatismo – religioso, político ou cultural – se expressa, ele é, para
Amos Oz, o verdadeiro inimigo do presente. Juntamente com este tema,
Oz aborda a atual situação no Médio Oriente e o conflito israelo-árabe,
apresentando com ousadia o seu argumento da existência de dois estados
como solução para o que ele chama «a questão de vida ou de morte para
o Estado de Israel».
Sábios, provocantes, comoventes e inspiradores, estes ensaios iluminam a
discussão sobre a existência israelita, judaica e humana, lançando uma luz
clara e surpreendente sobre questões políticas e históricas vitais.
Um livro essencial, corajoso e nunca tão urgente como hoje.
«Amos Oz é a voz da sanidade emergindo da confusão, da mentira, do balbucio
histérico da retórica mundial a respeito dos conflitos atuais.»
NA D I N E G O R D I M E R , Prémio Nobel de Literatura
«[Oz] usa o seu talento de escritor para se deter sobre acontecimentos políticos e iluminar aspetos da sociedade israelita que, no geral, são tratados de maneira
esquemática e polémica.»
The New York Times
www.leya.com www.dquixote.pt
ISBN 978-972-20-6581-8
Literatura Traduzida
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