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R IMBAUD-VERLA INEO ESTRANHO CASAL

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Rimbaud e Verlaine em Bruxelas, 1873

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RIMBAUD-VERLAINEO ESTRANHO

CASAL

congeminado e traduzido por

Aníbal Fernandes

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© SISTEMA SOLAR, CRL

RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA

tradução © ANÍBAL FERNANDES, 2016

NA CAPA: FONTIN-LATOUR, COIN DE TABLE, 1872 (PORMENOR)

REVISÃO: ANTÓNIO D’ANDRADE

1.ª EDIÇÃO, JUNHO DE 2017

ISBN 978-989-8833-12-9

————————

DEPÓSITO LEGAL 426400/17

ESTE LIVRO FOI IMPRESSO NA ACDPRINT

RUA MARQUESA DE ALORNA, 12-A

2620-271 RAMADA

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Que estranho casal!A. Rimbaud (Une Saison en Enfer)

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Rimbaud criança (Ernest Delahaye)

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os sete narradores:

Arthur Rimbaud (16 anos de idade em 1870): Meteoro.Riscou a literatura francesa como um prodígio. Entre os dezasseis eos vinte anos de idade escreveu tudo o que hoje incita à maior es-tupefacção. Viveu e brigou com Verlaine. Depois, quase lhe nãobastou o mundo: corria através dele com «solas de vento», impará-vel até ao exílio de Harar. Fez uma Abissínia em prosa, com tráficode armas e talvez de escravos. Um tumor canceroso num joelho de-volveu-o a Marselha, onde morreu em 1891. Ao todo, 37 anos deidade.

Paul Verlaine (26 anos de idade em 1870): Um tempes-tuoso drama, fermentado com violência verbal e tiros, nasce napalavra e na inocência de algumas cartas. Tinha havido deambu-lações a dois — apaixonadas e complicadas com absinto: Paris,Bruxelas e Londres. O grande poeta estragava já um casamento edispunha-se a coleccionar uma boa dose de hospitais e prisões.(Com Rimbaud muito longe, atrás de um silêncio inquebrável,feito pelo maior desprezo perante a literatura.) Os últimos anos fo-ram vividos num Paris de sombra, dividido pelo álcool, por amoresefémeros e pela devoção do terço. Quando lhe pediram um apon-tamento autobiográfico, meteu lá dentro isto: A sua mãe, que ou-tro filho não tinha, quis fazer dele advogado ou engenheiro.Deu em poeta. Teria ela razão?

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Apre s en ta ç ão

Ernest Delahaye (17 anos de idade em 1870): O maioramigo de Rimbaud desde os tempos de colégio em Charleville, maistarde professor e vigilante de liceus, ainda mais tarde funcionáriodo Ministério da Instrução. Interlocutor privilegiado de um génio,vê-se obrigado a escrever Rimbaud, o Artista e o Ser Moral; Re-cordações Familiares sobre Rimbaud, Verlaine, Germain Nou-veau etc. Pertence-lhe a primeira e malograda tentativa de publi-cação do poeta. Entre Rimbaud e Verlaine dissuadiu tempestades,acalentou dias de sol. Morreu velho em 1930: cheio de memóriase entrevistas.

Mathilde Verlaine (17 anos de idade em 1870): Mui-tas seriam as dificuldades num casamento com Verlaine, apesardas elegias de La Bonne Chanson. Mathilde vive porém os seustumultos como heroína de um romance negro, não poupa ne-nhuma sombra ao retrato de Rimbaud que sairá mais tarde de en-tre as páginas deMémoires de Ma Vie (1935). Em 1874 está se-parada, em 1885 divorciada. Mas apesar de já ser Mme Delporte,não se esquece de que foi um dia Mme Verlaine: sempre que podeescreve, fala, recorda, retoca até mais não poder a imagem do anjoatraído à cova dos leões. Quando só fala de si, os olhares distraem--se: do seu livro extenso hoje são lidos com atenção dois ou três ca-pítulos — a breve passagem pelos braços de Verlaine, a humilhaçãoperante a ditadura de um obstinado «rival».

Mme Rimbaud (45 anos de idade em 1870): Viúva de ummarido vivo, dirige a barca dos seus quatro filhos com leme de aço,pede ao catolicismo severidades, dissolve amores de mãe numamargo fel. Mal compreende aquele Arthur que foge de Charleville

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Apre s en ta ç ão

para todos os lugares do mundo, que vive «uma desgraça» comVerlaine. Grande poeta? Isto o que é, à sombra das suas batalhasde vida em Charlevilie, da contabilidade sofrida desde sempresoldo a soldo?

Mme Verlaine (58 anos de idade em 1870): Adiantadano casamento, consegue ter um filho. Paul habituou-se a ver trêsfetos que o vigiavam em grandes frascos de éter, guardados pelamorbidez materna numa prateleira como testemunho de umdrama em três fracassos que o precedeu. (O poeta virá a parti-losmuito mais tarde, num ataque de fúria.) Viúva abastada com400 000 francos de renda, nem por isso desistiu de coleccionar:restos de comida, roupas no fio, dinheiro que ia fugindo aos so-bressaltos, com as exigências de um filho boémio. No fim da vidaestava quase arruinada. Costumava dizer-me durante as nossascenas, escreve Verlaine nas Confissões: «Vais ver, tantas me fazesque um dia vou-me daqui sem nunca mais saberes onde estou. Efoi de Arras descida pela janela de uma casa de portas estreitas,morta. Desapareceu! E o resto do meu sonho perde-se na angústiacrescente de uma infinita e vã procura…»

Isabelle Rimbaud (10 anos de idade em 1870): De cincofilhos a mais nova; mas (devido à morte da sua irmã Vitalie) ape-nas com dois irmãos, Frédéric e Arthur, e uma irmã Vitalie «se-gunda», poderá dizer-se, porque lhe coube por baptismo repetir onome da irmã defunta. Virá a mostrar-se com energias de tempe-ramento herdadas da sua mãe. Em momentos difíceis arregaça asmangas. Quando o seu irmão Arthur regressa das Áfricas ator-mentado por um joelho com uma ferida neoplásica, é incansável.

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Apre s en ta ç ão

E depois da sua morte sente-se gestora de uma grande obra literá-ria. Escreveu a editores, a homens de letras, e sentiu-se capaz debiografar o irmão retocando-o com os branqueamentos pedidospela sua moralidade conservadora e cristã. Em 1895, com umrasgo de grande lucidez intelectual, autoriza o impuro Verlaine aprefaciar as Poésies Complètes do seu irmão.

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1 .PRÓLOGO BARROCO

(maio de 1870-setembro de 1871)

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Rimbaud, por Carjat, 1871

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(Em Maio de 1870, Rimbaud já se encontra há cincomeses sob a influência de Georges Izambard, o jovem professorque vem leccionar um ano em Charleville e o inicia na mo-derna poesia francesa. Rimbaud tem 17 anos de idade, Izam-bard 22, diferença que ora se esbate, ora se afirma nessaaliança que traz ao adolescente da província as mensagens deParis.

Os poetas vivem todos em Paris e Rimbaud, já poeta, so-nha com Paris.

Quando começam as férias desse ano lectivo, Izambardregressa a Douai, sua terra natal. Mais solitário em Charle-ville, Rimbaud sobretudo escreve. Escreve a Théodore deBanville, poeta da segunda geração romântica com influên-cia sobre o editor Lemerre, figura do Parnasse Contempo-rain, e manda-lhe Sensation, Ophélie, Credo in unam,naquela época o melhor que tinha1.)

1 E Banville responde-lhe. Mas… o quê? O que diria ele a Rimbaud nessacarta irremediavelmente perdida?

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R imb aud -Ve r l a i n e

ARTHUR RIMBAUD:

Charleville (Ardenas), 24 de Maio de 1870.

Caro Mestre,Estamos nos meses de amor; tenho dezassete anos. A idade

das esperanças e das quimeras, como costuma dizer-se — eacontece que comecei, criança tocada pelo dedo da Musa —desculpe, se for banal — a falar das minhas boas convicções,minhas esperanças, minhas sensações, todas estas coisas dospoetas — chamo a isto Primavera.

Se lhe envio alguns desses versos — isto passando por cimade Alph. Lemerre, o bom editor — é porque amo todos ospoetas, todos os bons parnasianos — já que o poeta é um par-nasiano — apaixonados pela beleza ideal; é que amo em si,com bastante ingenuidade, um descendente de Ronsard, umirmão dos nossos mestres de 1830, um verdadeiro romântico,um verdadeiro poeta. Eis então porquê. — Tolo, não é ver-dade? Mas enfim…

Dentro de dois anos, talvez dentro de um ano, estarei emParis.

-— Anch’io1, senhores do jornal, serei parnasiano! — Nãosei o que tenho aqui… com vontade de vir ao de cima… — Juro,caro mestre, adorar sempre as duas deusas Musa e Liberdade.

Não faça muito má cara ao ler estes versos: … Pôr-me-ialouco de alegria e esperança, caro Mestre, se quisesse querer

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1 «Também eu», em italiano.

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O E s t r a n h o C a s a l

arranjar ao poema Credo in unam um pequeno lugar entre osparnasianos… Eu apareceria na última série do Parnasse: issofuncionaria como o Reconhecimento dos poetas!… — Ambi-ção! Ó Louca!

ARTHUR RIMBAUD

E se estes versos encontrassem lugar no Parnasse contempo-rain? — Não serão a fé dos poetas?

— Não sou conhecido; o que importa? Os poetas são ir-mãos. Estes versos crêem; amam; esperam: e é tudo.

— Meu muito caro mestre: eleve-me um pouco: sou jo-vem: estenda-me a sua mão…

(E escreve a Izambard:)

Charleville, 25 de Agosto de 1870

Senhor,É feliz, o senhor, por já não morar em Charleville! — A

minha cidade natal é superiormente idiota entre as pequenascidades da província. Quanto a isto, imagine, já não tenho ilu-sões. Por estar ao lado de Mézières — uma cidade como não seencontra — por ver peregrinar nas suas ruas duzentos ou tre-zentos magalas, esta beata população gesticula, espadachinaprudhommescamente, de forma bem diferente das vítimas docerco de Metz e Estrasburgo! É assustador, os merceeiros refor-mados voltarem a vestir farda! É pasmoso como têm o seu quê

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de cio os notários, os vidraceiros, os cobradores de impostos,os marceneiros e todos os ventres que fazem de espingarda aoombro patrulhiatismo às portas de Mézières; a minha pátrialevanta-se!… Eu cá gosto mais de vê-la sentada; nada de mexeras botas! É o meu princípio!…

Estou aqui deslocado, doente, furioso, parvo, arrasado; es-perava banhos de sol, passeios infinitos, repouso, viagens, aven-turas, boemices enfim; esperava sobretudo jornais, livros…Nada! Nada! O correio já não manda mais nada aos livreiros;Paris troça que se farta de nós; nem um livro novo! É a morte!À míngua de jornais, eis-me reduzido ao digno Courrier desArdennes — proprietário, gerente, director, chefe de redacção eredactor único: A. Pouillard! Este jornal resume as aspirações,os votos e as opiniões da população: julgai assim! Pode lá acei-tar-se!… Estarmos exilados na nossa pátria!!!

Por sorte, tenho o seu quarto: — Lembre-se da autorizaçãoque me deu. — Já fui buscar metade dos seus livros! Levei Le Diable à Paris1. E diga-me lá se alguma vez houve coisa maisidiota do que os desenhos de Grandville! — Tenho comigo Costal l’Indien, tenho La Robe de Nessus, dois romances interes-santes2. Além disto, o que dizer-lhe?… Li todos, todos os seuslivros; faz três dias desci ao Epreuves, e depois ao Glaneuses3 —sim! Este último volume reli-o! — E depois, pronto!… Maisnada; a sua biblioteca, minha tábua de salvação, estava esgo-tada!… Apareceu-me o Dom Quixote, ontem estive duas horasa passar em revista as gravuras de Doré: agora, acabou-se!

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1 De George Sand.2 De Gabriel Ferry e Amédée Achard, respectivamente.3 De Sully Prudhomme e Paul Demeny, respectivamente.

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Mando-lhe versos; leia-os de manhã ao sol, como eu osfiz: espero que já não seja agora professor!………………………………………………………………

Tenho o Fêtes Galantes de Paul Verlaine, um lindo in-12écu. É muitíssimo estranho, bem brejeiro; mas realmente ado-rável. Por vezes grandes licenças como esta:

Et la tigresse epouvantable d’Hyrcanie

é um verso deste volume. Compre, aconselho-o, La BonneChanson, um pequeno volume de versos do mesmo poeta;acaba de aparecer no Lemerre; não o li: aqui nada chega masvários jornais dizem muito bem dele.

Até mais ver, mande-me uma carta de 25 páginas — postarestante — e muito depressa!

A. RIMBAUD

P.S.: Dentro em breve revelações sobre a vida que vou fazerdepois… das férias…

GEORGES DELAHAYE:

Ele parte em 29 de Agosto. É Paris, o que traz debaixo deolho. Neste foco de revoluções e artes pretende viver o queacaba de rimar um vigoroso soneto sobre os mortos de 92; levana pasta os seus primeiros poemas e fará jornalismo. Prevenidos

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da sua resolução, Georges Izambard e Léon Deverrière (outroamigo seu) tentam inutilmente dissuadi-lo. Embora Rimbaudlhes prometa renunciar ao projecto, não renuncia… e de talforma procede, que é preso quando chega a Paris. Passa umanoite na cela, comparece perante um juiz de instrução que eledesconcerta e desagrada com respostas altivas, é mandado paraMazas e ali permanece alguns dias pedindo por carta a Izambardnessa altura em Douai, na casa da sua família, que vá buscá-lo.

ARTHUR RIMBAUD:

Paris, 5 de Setembro de 1870

Caro Senhor,Foi feito, o que me aconselhou a não fazer: saindo da casa

materna, vim até Paris! Dei este passeio a 29 de Agosto.Preso ao descer da carruagem por não ter um tostão e de-

ver treze francos aos caminhos-de-ferro, fui conduzido à pre-feitura e hoje estou à espera do meu julgamento em Mazas!Oh! — tenho tanta esperança em si como na minha mãe; o se-nhor sempre foi para mim como um irmão: peço-lhe encareci-damente esta ajuda que me oferece. Escrevi à minha mãe, aoprocurador imperial, ao comissário da polícia de Charleville;se até quarta, antes do comboio que vem de Douai a Paris, nãotiver a meu respeito nenhuma nova notícia, tome esse comboio,venha aqui reclamar-me mediante carta ou apresentando-se aoprocurador, suplicando, respondendo por mim, pagando a minha

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Continua a ser frustrante a incompreensão que nos é impostaquando tentamos olhar para o Arthur Rimbaud poeta e prodígio,capaz de barcos embriagados, de épocas no inferno, de ilumina-ções, e de repente todo ao contrário da literatura, da poesia, mer-gulhado numa vida levada pela vertigem das suas solas de vento, acorrer por um mundo com extensões que nunca bastam à vã pro-cura do que nem ele próprio sabe o que é e onde está, a fazer contasde mercador numa Abissínia de calor e pó.

O Verlaine católico, esse, não resistirá a apaixonar-se por umjovem aluno Lucien Létinois mais e menos oculto em muitos poe-mas, que o deixará enlouquecido de dor com a sua morte prema-tura. Em 1892 Claude Debussy põe em música versos das suas Fê-tes Galantes e ao mesmo tempo Gabriel Fauré passa para canto epiano seis poemas de La Bonne Chanson; em 1894 a França con-sagra-o chamando-lhe «Príncipe dos poetas»; mas há, ao lado des-tes reconhecimentos, o homem que desce degraus de uma decadên-cia do físico e dos costumes, que se abriga em quartos de bairrosmiseráveis, que se encharca nas más bebedeiras do absinto. Em 8 de Janeiro de 1896 (cinco anos depois da morte de Rimbaud)Verlaine não resiste aos desgastes da sua vida forçada por Deus epelo corpo. Enterram-no no cemitério Des Batignolles.

Estavam também esgotados os dezasseis anos em que Rimbaudsó foi movido pela força das suas solas de vento. E é difícil escolher

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o essencial nas voltas do seu complicado desenho. Digamos, no en-tanto, que tudo começou em 1875, em Estugarda, quando lá foipara aprender alemão; e que atravessou a Suíça para chegar a Mi-lão; que pediu a um consulado francês para ser repatriado; e queno ano seguinte estava em Viena. Rimbaud não contava que umapolícia austríaca, tão amante de operetas, fosse simultaneamenteimplacável para com o simpático romantismo de um jovem vadiosem bagagem, e o largasse ao deus-dará de uma fronteira bávara.Por estradas e aldeias, o ex-poeta anda a pé e chega a França.

Logo depois em Bruxelas, alista-se na Legião Estrangeira ho-landesa. O começo desta aventura não lhe parece má; metido nobarco Prins van Orange, vê Gibraltar, Nápoles, o Suez, Aden e aBatávia. Mas aos do seu destacamento está reservado um navioque os leva a Samarang para começarem a viver a Legião «a sério»,aquela que não vai agradar-lhe e inspira uma imediata deserção.Rimbaud desertor instala-se escondido em Salitaga, e vai a seguirpara Java onde um navio escocês o aceita para seu marinheiro.Volta a ter a sensação de mar, mas de um mar de porto a portonum barco que não se embriaga e só lhe mostra, sem poesia nemalucinação, a Cidade do Cabo, as ilhas de Ascensão e Santa He-lena (já lá não estava Napoleão), os Açores (teria Rimbaud pas-seado nas ruas de Angra do Heroísmo, de Santa Cruz da Graciosa,de Velas?), para o desembarcar na Irlanda do Norte.

É por Cork e Liverpool que ele volta a Charleville e à suamãe com olhos de incompreensão para o seu filho de vocação tãoloucamente itinerante.

Numa passagem por Brême, pede ao consulado dos EstadosUnidos para ser aceite como elemento da marinha americana.Mas não; acontece-lhe é arranjar trabalho no circo Loisset e ir pa-

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rar a Estocolmo. E se desce depois deste circo até Copenhaga, é pararesolver passear na Noruega.

Um novo regresso a Charleville não é mais do que passagempara Hamburgo, e a Suíça, e depois Milão, e depois Génova. Saida Itália seduzido pelos mitos de uma velha Alexandria, mas asua chateza moderna não lhe demora a resolução de se instalar emChipre, onde o ex-Rimbaud capaz do Bateau Îvre pode afinal serchefe de um estaleiro e dirigir cerca de sessenta homens que efec-tuam escavações.

Mas adoece; e de tal forma é abalado pelas dificuldades físicasde uma febre tifóide, que lhe parece melhor reaturar a sua mãe emCharleville. Quando chega o Inverno sente melhoras e que nãodeixou esgotadas as potencialidades de Alexandria e Chipre, ondevai permanecer como chefe de outro estaleiro, desta vez para aconstrução de uma luxuosa moradia do governador da ilha; masnão tarda que se considere pago a salário baixo e que a solução,para isto, é despedir-se.

Começa então a sua África do Mar Vermelho. Rimbaud pro-cura sem grandes êxitos um trabalho em Djedda, Souakim, Mas-saouah, Hodeldah, e a correr por faltas de dinheiro e inquietaçõesencontra o agente de uma firma (Mazeran, Viannay, Bardley etCie) com sede em Aden, que vai metê-lo na Abissínia dos seus úl-timos anos: é contratado para uma sucursal que acaba de abrirem Harar. Rimbaud não quer porém chegar lá por vias cómodas ede pouca aventura; integra-se numa caravana, e entre bossas decamelo passa por Zellah, antes de atravessar os quatrocentos quiló-metros que vão deixá-lo em Harar.

A pacatez de Harar não tardará a fazê-lo ansiar pelos encan-tos um tanto perigosos da penetração em desconhecidos interiores

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do país onde há marfim aos pontapés. E levado neste impulso é queele chega a Boubassa, visto ali como animal raro por ser o primeirohomem de raça branca a fazer-lhe uma visita. Mas, hélàs!, todaesta vivência muito agreste, todo este exotismo poeirento, não che-gam para lhe evitar as frases de um desanimado tédio: o clima é«embirrento e húmido», lê-se numa carta sua, o seu trabalho «em-brutecedor» e as condições de vida «de um modo geral absurdas».

Quer isto dizer-nos que Rimbaud vai sair de Harar, e «paranunca mais lá pôr os pés», julga ele; e lhe parece agora bom darum salto até Zanzibar. Mas não; Zanzibar não é o que ele pen-sava, e terá de regressar a Aden e àquele trabalho que o põe «com-pletamente idiota», o obriga a «esfalfar-se como um burro». Teráde conformar-se com um regresso a Harar, suavizado pela promessade um trabalho menos duro.

A guerra com o Egipto, a falência da firma com poucos negó-cios nesta nova conjuntura, constroem uma instabilidade que de-mora um pouco a ser ultrapassada. No entanto a firma renasce einstala-o desta vez em Aden, no centro de negócios de café a queele acrescenta emoções do tráfico de borracha, incenso, penas deavestruz, marfim… O ex-prodigioso poeta só é agora um prosaicocomerciante de insaciáveis ambições; as que chocam com outras,mais comedidas, da firma que o emprega e conduzem a tumul-tuosos desentendimentos.

Este Rimbaud posto à solta em ambiente de guerra é seduzidopelo tráfico de armas: conduz a primeira caravana que em Tad-joura embarcará armas para alimentar os combates do rei do Choacom o imperador da Abissínia. Arranja dois sócios, mas um morrede cancro e o outro de congestão. É como único branco numa cara-vana de trinta camelos que vai entregar duas mil armas e setenta

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mil cartuchos ao rei do Choa. atravessando durante quatro mesesregiões que lhe mostram «o presumido horror dos países lunares».O rei do Choa, porém, foi vencido numa batalha com o emir deHarar, e está exilado em Entotto.

E se ele fosse a Entotto, na companhia do explorador francêsJules Borelli? É uma hipótese sem garantias de êxito. E por issovende todo o seu material bélico em Harar, que está também emguerra e a necessitar de munições. Esta inesperada folga materialincita-o a uma viagem de cinco semanas ao Cairo, de onde mandaartigos que serão publicados em jornais franceses. E tem ali, na ci-dade das pirâmides, as primeiras dores no joelho esquerdo, aquelasa que ele começará por chamar «reumáticas».

É a coxear que promove, instalado novamente em Aden, umembarque de armas clandestinas que se destinam a Ambadou. E étambém ali que a sua recente veia jornalística o incita a escreverartigos destinados a jornais franceses, onde se diverte a fazer cons-tar artificiosas mentiras sobre a situação política da Abissínia.

O joelho doente aconselha-o a andar a cavalo. E assim per-corre os seiscentos quilómetros que o separam de Zeilah, com o in-tuito de fazer chegar a Harar três mil espingardas e quinhentosmil cartuchos. Mas o humilhante fracasso que rodeia esta vendafá-lo desistir do tráfico de armas.

A energia deste homem com um cancro no joelho ainda chegapara lhe permitir criar uma agência comercial e estabelecer privi-legiadas relações com a firma onde já trabalhou. Mas aquelas do-res… mais fortes do que o máximo suportável pela sua coragem…Rimbaud deixa de poder ir à sua agência e sujeita-se a dar ordensdistantes, gritadas da janela do seu quarto. Não só o joelho es-querdo o atormenta mas a perna direita, com uma rigidez que lhe

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tirou toda a capacidade de fazer flexões. Os médicos de Harar aba-nam a cabeça, porque o caso parece ultrapassar as limitações doshospitais etíopes e bem melhor estará com a medicina da França.Rimbaud vai de padiola para Zellah; e chega depois a Aden, ondeembarcará para Marselha.

É amputado no hospital de la Conception, e tratado até ao dia23 de Julho de 1891. Parte depois para a herdade de Roche, per-tencente à sua família. Anos antes tinha lá escrito Une Saison enEnfer, e no seu texto uma frase profética: As mulheres sangram es-tes ferozes enfermos regressados dos países quentes. A sua irmãIsabelle e Mme Rimbaud assumem-se como enfermeiras de boas emás vontades. Durante vinte e oito dias os três Rimbauds interpre-tam uma cruel peça à huis-clos. Mãe e filha disputam a preferên-cia do paciente que se arrasta com as muletas exigidas pela pernaamputada. E palavras ásperas não faltam, a cruzarem-se nas frasesresmungadas pelos três intérpretes. A criativa Isabelle procura acal-mar-lhe as dores com um romântico chá de papoilas trazido da li-teratura, mas em Agosto já a herdade de Roche não atende, comeste chá, às necessidades clínicas de Arthur Rimbaud. Aos cuidadosda sua irmã é restituído em comboios que param, em comboios quese revezam, a Marselha e ao hospital de la Conception. E desta vez,porque anda ligado a mais fortes ecos de uma situação militar equí-voca e àquela traficância de armas na Etiópia, acha a sua famíliaprudente registá-lo com o nome Jean Rimbaud.

Verlaine teria gostado de saber que Arthur se fez no mês deOutubro católico; que veio um padre confessá-lo e perdoar-lhe to-dos aqueles velhos pecados do estranho casal. Dando por certas aspalavras de uma carta de Isabelle à sua mãe, ficamos a saber queeste padre saiu da confissão encantado: «O seu irmão tem fé; o que

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16.«TENHO MAIS QUE FAZER»

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Monumento a Rimbaud em Charleville

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Um filho ex-poeta que Mme Rimbaud nunca pôde compreen-der, transformado num «solas de vento» de incansáveis agitaçõesgeográficas, e depois num longínquo traficante de coisas mais emenos confessáveis lá nas Áfricas, só conseguia abastecer de maisfel os seus azedumes de viúva áspera perante as branduras da vida.

O seu filho, morto em Marselha, voltou para Charleville emcaixão de chumbo e corpo de «negociante» (como foi escrito na au-torização de transporte). Mme Rimbaud apressou-se a querer im-pedir que a sua obra poética fosse publicada. Ficaram escritas estaspalavras: «Vou opor-me […] mandarei apreender […] e se numperíodo mais ou menos longo eu me decidir a deixar reimprimirqualquer coisa, ela terá de ser revista e modificada. […] Poder-se--ia avaliar com falsidade este nobre carácter, fazendo a leitura dealgumas elucubrações poéticas que eclodiram numa idade em queo julgamento de um homem jovem ainda não se encontra total-mente formado.» Afastada porém desta querela literária pelos seusdois filhos Isabelle e Frédéric, a publicação dos textos de Rimbaudfoi autorizada e proibida ao vento das sensibilidades destes dois ir-mãos. Isabelle chegou mesmo ao esforço de surgir como biógrafacorrectora, branqueadora e inventora da má imagem que o seu ir-mão poderia ter junto dos leitores da sua obra.

No dia 8 de Junho de 1899, Arthur Rimbaud aparece aMme Rimbaud em plena missa e com ela ajoelhada; quando er-

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gue olhos que se tinham baixado por devoção, vê o seu filho apro-ximar-se de muletas; o outro mundo não tinha sabido reconsti-tuir-lhe a perna esquerda. «A mesma estatura, a mesma idade, omesmo rosto, a pele de um branco acinzentado, nenhuma barbamas um pequeno bigode.» O seu relato acrescenta que ele a olhou«com extraordinária simpatia». Mme Rimbaud desatou a soluçar,fossem embora soluços perturbados por uma extrema felicidade.

Isto fê-la reflectir. O seu filho não merecia continuar emcampa rasa, e devia integrar o jazigo da família. Em Junho de1900, depois de o poeta estar desde há nove anos debaixo de terra,Mme Rimbaud mandou afastar a golpes de picareta e martelo to-dos os estorvos físicos que dificultassem a obtenção de mais um es-paço entre os que já dormiam no jazigo subterrâneo e não visitá-vel da família. As obras de escavação e a exumação dos corposforam vistas a olhar frio por esta mulher que enfrentava com forçaidêntica os vivos e os mortos. Há, numa carta sua, esta curiosaprecisão acerca do seu pai: «Estava com os ossos muito bem con-servados, a cabeça completa, a boca, as orelhas, o nariz os olhos;nada danificado.» Pondo dois corpos na intimidade de um mesmotúmulo, arranjar-se-ia espaço para o Arthur. Mas antes de tudoficar outra vez fechado, quis Mme Rimbaud fazer questão de vi-sitar o local, não tivessem os operários confundido as suas ordenssobre quem devia ficar onde era lógico que devesse ficar; pediuportanto ajuda para uma complicada descida à cripta; que aagarrassem pelos pés e pelos ombros, e a deixassem cair na cavi-dade dos túmulos. Naquela escuridão, conseguiu Mme Rimbaudpregar na parede uma cruz e um ramo bento de buxo. A ascensãoà luz das Ardenas foi mais difícil mas, acompanhada por gemidose respirações ofegantes, não impossível.

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Aconteceu também que velhos amigos de Rimbaud em Char-leville, com evidência maior Ernest Delahaye, se esforçavam desdehá muito por erguer ali um monumento que o deixasse afirmadocomo nobre filho da terra. À custa de subscrições pôde construir-se oplinto com lira, rematá-lo com um busto feito a partir de um pro-jecto do seu cunhado Paterne Berrichou, marido de Isabelle Rimbaud,e inaugurá-lo no dia 21 de Julho de 1901 na praça da Estação.Caía sobre Charleville uma violenta tempestade mas o poeta conse-guiu, ainda assim, ter para si homens e mulheres bem trajados, queouviam de guarda-chuvas abertos e cabelos ao vento bonitas fraseslidas em discursos sobre o ilustre ardenês.

Notou-se a ausência de Mme Rimbaud.(Ficou a saber-se que tinha sido convidada e o portador ou-

vido, saída com presteza da sua secura, esta resposta:«Tenho mais que fazer.»)

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Verlaine, por Eugène Carriére, 1893

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CHAVE

1. Prólogo Barroco (cartas de Rimbaud a Banville, Izambard e Demeny;excertos de Rimbaud, de Ernest Delahaye; carta de Mme Rimbaud aIzambard; excerto de Arthur Rimbaud, Chronique, de Paul Verlaine).

2. O Intruso (excertos do Cap. XVII da Segunda Parte de Confessions dePaul Verlaine; de Nouvelles Notes sur Rimbaud, de Paul Verlaine; doCap. VI de Mémoires de Ma Vie, de Ex-Mme Paul Verlaine).

3. Escândalo no «Vilains Bonshommes» (excerto do Prefácio a ArthurRimbaud — Ses Poésies Complètes, de Paul Verlaine).

4. A Expulsão do Intruso (excertos do Cap. VI de Mémoires de Ma Vie,de Ex-Mme Paul Verlaine).

5. Caro Rimbe (3 cartas de Verlaine a Rimbaud).6. O Regresso do Intruso (excertos do Cap. VI de Mémoires de Ma Vie,

de Ex-Mme Paul Verlaine; carta de Rimbaud a Delahaye).7. Uma Prisão Falhada (Cap. III de Mes Prisons, de Paul Verlaine).8. O Fracasso de Bruxelas (excerto do Cap. VII de Mémoires de Ma Vie,

de Ex-Mme Paul Verlaine).9. Ventanias, Acalmias (excertos de Séjour en Angleterre, de Paul Verlaine;

do Cap. VII de Mémoires de Ma Vie, de Ex-Mme Paul Verlaine; cartade Rimbaud a Delahaye; carta de Verlaine a Rimbaud).

10. O Esposo Infernal (excertos do Cap. VII de Mémoires de Ma Vie, deEx-Mme Paul Verlaine; cartas de Verlaine a Rimbaud e a Matuszewicz;duas cartas de Rimbaud a Verlaine; carta de Mme Rimbaud a Verlaine).

11. «L’amigo» (Cap. IV deMes Prisons, de Paul Verlaine).12. O Processo (deposição de Mme Verlaine ao comissário da polícia; in-

terrogatório de Verlaine pelo juiz de instrução; deposição de Rimbaudperante o juiz de instrução; peritagem dos médicos sobre Verlaine;

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acto de renúncia de Rimbaud; sentença da audiência de 8 de Agostode 1873).

13. O «Loiola» (excerto de Rimbaud, de Ernest Delahaye; excertos de duascartas de Rimbaud a Delahaye; carta de Verlaine a Delahaye; últimacarta de Verlaine a Rimbaud).

14. O «Solas de Vento» (notas de Isabelle Rimbaud sobre os derradeirosmomentos do seu irmão.)

15. O Poeta Maldito (excertos de Les Poètes maudits e «Arthur Rimbaud— 1884» de Paul Verlaine.)

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ÍNDICE

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

1. Prólogo barroco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

2. O intruso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

3. Escândalo no Vilains Bonshommes . . . . . . . . . . . . . 47

4. A expulsão do intruso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

5. Caro Rimbe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

6. O regresso do intruso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

7. Uma prisão falhada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83

8. O fracasso de Bruxelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

9. Ventanias, acalmias. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

10. O esposo infernal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

11. «L’amigo» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

12. O processo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133

13. O «Loiola» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

14. O «Solas de Vento». . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

15. O poeta maldito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

16. «Tenho mais que fazer». . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173

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Os génios, seguido de Exemplos, Victor Hugo

O senhor de Bougrelon, Jean Lorrain

No sentido da noite, Jean Genet

Com os loucos, Albert Londres

Os manuscritos de Aspern (versão de 1888), Henry James

O romance de Tristão e Isolda, Joseph Bédier

A freira no subterrâneo, com o português de Camilo Castelo Branco

Paul Cézanne, Élie Faure, seguido de O que ele me disse…, Joachim Gasquet

David Golder, Irene Nemirowsky

As lágrimas de Eros, Georges Bataille

As lojas de canela, Bruno Schulz

O mentiroso, Henry James

As mamas de Tirésias — drama surrealista em dois actos e um prólogo,

Guillaume Apollinaire

Amor de perdição, Camilo Castelo Branco

Judeus errantes, Joseph Roth

A mulher que fugiu a cavalo, D.H. Lawrence

Porgy e Bess, DuBose Heyward

O aperto do parafuso, Henry James

Bruges-a-Morta — romance, Georges Rodenbach

Billy Budd, marinheiro (uma narrativa no interior), Herman Melville

Histórias da areia, Isabelle Eberhardt

O Lazarilho de Tormes, anónimo do século XVI e H. de Luna

Autobiografia, Thomas Bernhard

Bubu de Montparnasse, Charles-Louis Philippe

Greco ou O segredo de Toledo, Maurice Barrès

Cinco histórias de luz e sombra, Edith Wharton

Dicionário filosófico, Voltaire

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A papisa Joana — segundo o texto de Alfred Jarry, Emmanuel Rhoides

O raposo, D.H. Lawrence

Bom Crioulo, Adolfo Caminha

O meu corpo e eu, René Crevel

Manon Lescaut, Padre Prévost

O duelo, Joseph Conrad

A felicidade dos tristes, Luc Dietrich

Inferno, August Strindberg

Um milhão conta redonda ou Lemuel Pitkin a desmantelar-se, Nathanael West

Freya das sete ilhas, Joseph Conrad

O nascimento da arte, Georges Bataille

Os ombros da marquesa, Émile Zola

O livro branco, Jean Cocteau

Verdes moradas, W.H. Hudson

A guerra do fogo, J-H. Rosny Aîné

Hamlet-Rei (Luís II da Baviera), Guy de Pourtalès

Messalina, Alfred Jarry

O capitão veneno, Pedro Antonio Alarcón

Dona Guidinha do Poço, Manoel de Oliveira Paiva

Visão invisível, Jean Cocteau

A liberdade ou o amor, Robert Desnos

A maçã de Cézanne… e eu, D.H. Lawrence

O fogo-fátuo, Drieu la Rochelle

Memórias íntimas e confissões de um pecador justificado, James Hogg

Histórias aquáticas — O parceiro secreto, A laguna, Mocidade, Joseph Conrad

O homem que falou (Un de Baumugnes), Jean Giono

O dicionário do diabo, Ambrose Bierce

A viúva do enforcado, Camilo Castelo Branco

O caso Kurílov, Irène Némirowsky

A costa de Falesá, Robert Louis Stevenson

Nova Safo — tragédia estranha, Visconde de Vila-Moura

Gaspar da noite — fantasias à maneira de Rembrandt e Callot, Aloysius Bertrand

O estranho casal, Rimbaud-Verlaine

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