outro olhar sobre o dicionário -verli petri

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O livro apresenta uma metodologia discursiva de trabalho com o dicionário que considera a necessidade de utilização crítica desse instrumento linguístico

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  • 1

    Um outro olhar sobre o dicionrio

  • 2

    S587u Silveira, Verli Ftima Petri da

    Um outro olhar sobre o dicionrio : a produo de sentidos / Verli Petri, com a participao de Daiane Siveris, Daiane da Silva Delevati, Nina Rosa Licht Rodrigues. - 1. ed. Santa Maria : UFSM, PPGL-Editores, 2010. 120 p. ISBN 978-85-99527-22-1

    1. Lingstica 2. Anlise do discurso 3. Anlise lingustica 4. Sociolingustica 5. Estudos lingusti- cos I. Siveris, Daiane II. Delevati, Daiane da Silva III. Rodrigues, Nina Rosa Licht IV. Ttulo. CDU 801 801:316

    Ficha catalogrfica elaborada por Alenir Incio Goularte CRB-10/990 Biblioteca Central da UFSM

    Editora PPGL Programa de Ps-Graduao em Letras Universidade Federal de Santa Maria Prdio 16, CE, sala 3222 Bloco A2 Campus Universitrio Camobi 97105-900 Santa Maria, RS Brasil 55 3220 8359 www.ufsm.br/ppgletras Consulte tambm: www.ufsm.br/revistaletras

    Impresso na IMPRENSA UNIVERSITRIA UFSM - Santa Maria - RS Agosto de 2010

  • 3

    Um outro olhar sobre o dicionrio:

    A produo de sentidos

    VERLI PETRI

    com a participao de

    DAIANE SIVERIS

    DAIANE DA SILVA DELEVATI NINA ROSA LICHT RODRIGUES

    Santa Maria, 2010

    1 edio

  • 4

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA FELIPE MARTINS MLLER Reitor EDEMUR CASANOVA Diretor do Centro de Artes e Letras AMANDA ELOINA SCHERER Coordenadora do Programa de Ps-Graduao em Letras Coordenadora Geral do LabCorpus PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS Editora PR-REITORIA DE PS-GRADUAO E PESQUISA Apoio REJANE MARIA ARCE VARGAS Reviso Geral DAIANE SIVERIS DAIANE DA SILVA DELEVATI NINA ROSA LICHT RODRIGUES Reviso JUCIELE PEREIRA DIAS Editorao eletrnica e Capa

  • 5

    SUMRIO

    09 Apresentao

    15 Os dicionrios merecem que lutemos por eles

    Verli Petri

    27 O funcionamento de dicionrios no ensino de Lngua Portuguesa Nina Rosa Licht Rodrigues Verli Petri

    39 O dicionrio e a sala de aula: possveis relaes Daiane Siveris Verli Petri

    51 O uso do dicionrio na sala de aula: condies para as contradies Daiane da Silva Delevati Verli Petri

    71 Sobre as propostas de atividades prticas desenvolvidas com dicionrios

    117 Bibliografia

  • 6

  • 7

    Dedico este livro aos professores e a todos aqueles que

    acreditam que ensinar a lngua trabalhar com o sentido

    de pertencimento de um povo que constri uma identidade

    prpria reconhecendo-se nas relaes com o outro, pela

    alteridade que lhe constitutiva.

  • 8

  • 9

    APRESENTAO1

    As reflexes sobre lngua e as possibilidades de produo de

    efeitos de sentidos surgem de onde menos se espera. Por exemplo,

    estamos to acostumados a manusear, em contexto escolar,

    dicionrios, gramticas, livros didticos, entre outros, como

    instrumentos pedaggicos, que raras vezes paramos para refletir sobre

    a constituio, a institucionalizao e o funcionamento dos mesmos.

    Eis que ora apresentamos um livro que busca refletir sobre esses

    instrumentos pedaggicos, sob uma perspectiva que os toma como

    instrumentos lingusticos, objetos discursivos da maior importncia

    para a constituio dos sujeitos em relao a sua lngua. A partir de

    trabalhos de Iniciao Cientfica desenvolvidos por Nina Rosa Licht

    Rodrigues, Daiane Siveris e Daiane da Silva Delevati, sob orientao

    da professora Verli Petri, todas vinculadas UFSM, encontramos um

    olhar lanado sobre o dicionrio, um instrumento lingustico,

    resultado da revoluo tecnolgica da linguagem (Auroux, 1992).

    H que se destacar aqui a relevncia da produo de um livro que

    revela resultados de pesquisas desenvolvidas no mbito do

    1 Adotamos, nesta publicao, a nova ortografia, respeitando, contudo, as grafias originais em citaes e ttulos de obras que precedem o Acordo Ortogrfico [de 1991], vigente desde janeiro de 2009, bem como preservamos a ortografia original nos recortes submetidos anlise. * As referncias bibliogrficas de todos os artigos sero apresentadas ao trmino do livro.

  • 10

    Laboratrio Corpus, efetivando relaes entre ensino, pesquisa e

    extenso.

    As autoras tomam como base a perspectiva discursivista,

    concebendo o dicionrio como um objeto histrico, alm de se

    constituir em materialidade discursiva; a lngua no mundo com as

    maneiras de significar e no com a lngua enquanto sistema fechado.

    o dicionrio se abrindo para outras possibilidades de sentidos.

    O captulo introdutrio traz toda a histria deste projeto, traz o

    referencial terico e metodolgico que sustenta a produo do grupo e

    traz, acima de tudo, o desejo de compartilhar com diferentes grupos

    de estudiosos da lngua as reflexes empreendidas acerca do

    funcionamento do dicionrio e dos processos de produo de

    sentidos.

    Nos artigos, deparamo-nos com o movimento de desconstruir

    sentidos estabilizados, certitudes. E isso ocorre atravs da proposio

    de interpretaes outras, nas palavras de Eni Orlandi um lugar de

    interpretao no meio dos outros possveis, o que marca tambm um

    lugar de constituio identitria.

    Nina Rosa Licht Rodrigues e Verli Petri, no artigo intitulado O

    funcionamento de dicionrios no ensino de Lngua Portuguesa,

    apresentam os resultados obtidos em uma pesquisa que propunha

    como objetivo principal conhecer as prticas de utilizao e o

    funcionamento de dicionrios no Ensino Fundamental, em duas

    realidades educativas diferentes de Santa Maria, o que as motivou a

    propor atividades que apresentassem a perspectiva discursiva como

  • 11

    uma das possibilidades de trabalho do professor de Lngua

    Portuguesa em sala de aula.

    Em O dicionrio e a sala de aula: possveis relaes, Daiane

    Siveris e Verli Petri estabelecem relaes entre a constituio dos

    dicionrios e suas possibilidades de funcionamento dentro e fora da

    sala de aula, tomando-o como um importante instrumento no

    processo de ensino-aprendizagem e de constituio da identidade do

    sujeito na e pela lngua.

    Por fim, com o artigo O uso do dicionrio na sala de aula:

    condies para as contradies, Daiane da Silva Delevati e Verli Petri

    refletem sobre os sentidos, as verdades, os sujeitos e objetos donos

    das verdades. Adentram o espao escolar, a aula de Lngua

    Portuguesa, para refletir com e sobre o dicionrio, alm de buscar

    incentivar o uso desse instrumento lingustico, para que o mesmo

    passe a fazer parte do cotidiano das aulas de Lngua Portuguesa de

    modo significativo.

    Alm dos artigos, este livro apresenta, como diferencial,

    sugestes de atividades para sala de aula de lnguas. So, de fato,

    sugestes e podem ser desenvolvidas em diferentes grupos, com

    diferentes idades; bem como podem ser alteradas, conforme os

    objetivos do professor. A proposta um ponto de partida para que a

    polissemia seja contemplada em sala de aula de Lngua Portuguesa.

    Para finalizar este texto de apresentao, preciso destacar

    como este tipo de produo extremamente importante no somente

    para a formao acadmica dessas pesquisadoras, designadas como

    iniciantes, que caminham junto orientadora; mas, principalmente, da

    importncia desta experincia para a constituio identitria dessas

  • 12

    pesquisadoras que se tomam pelo desejo da pesquisa e nele se

    encontram e por ele se perdem. Retomamos, nestas linhas finais, as

    palavras de Amanda Eloina Scherer, em "As inquietudes discursivas

    de um orientador", artigo que est reeditado no livro Discurso:

    circulao, fragmentao e funcionamento, em 2006,

    Porque, para ns, o ato de pesquisar est intimamente ligado ao ato de viver. Pesquisar nos interrogarmos constantemente sobre tudo o que nos rodeia; pesquisar refletir sobre o nosso dia-a-dia. Mas pesquisar no encontra frmulas finitas de explicao fcil do que nos rodeia. Pesquisar empreender, aprender constantemente. E aprender, metaforicamente, navegar, no sentido do poeta (SCHERER, 2006, p. 18).

    Fica ento o convite leitura e para que naveguemos sempre!

    Mary Neiva Surdi da Luz

    Marcia Ione Surdi

    Chapec, SC, 05 de maio de 2010.

  • 13

    PARTE I

  • 14

  • OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES

    Verli Petri Algumas palavras

    Os anos de 2007, 2008 e 2009 foram marcados pelo

    desenvolvimento de projetos de pesquisa, ensino e extenso, sob

    minha coordenao, que investigaram a constituio, a

    institucionalizao e o funcionamento dos dicionrios, enquanto

    instrumentos lingusticos da maior importncia. Em decorrncia deste

    trabalho, desenvolvido em colaborao com minhas orientandas de

    Iniciao Cientfica, surge este livro que cumpre o papel de reunir

    nossas reflexes e de colocar em circulao os saberes que

    mobilizamos durante as atividades realizadas.

    O primeiro projeto, que funcionou como gerador dos demais,

    foi intitulado Lngua, sujeito e histria: o gacho no processo de

    dicionarizao da Lngua Portuguesa no/do Brasil1, a partir do qual

    passamos a investigar trs elementos que so de nosso interesse h

    bastante tempo: a constituio do sujeito (gacho ou no), os

    instrumentos lingusticos (dicionrios e/ou gramticas), as relaes

    entre lngua e histria. Todos estes elementos sendo observados luz

    da perspectiva discursivista filiada ao materialismo histrico. Este

    1 Que recebeu apoio do FIPE/UFSM nos anos de 2007, 2008 e 2009 bem como do PIBIC/CNPq/UFSM em 2008 e 2009.

  • VERLI PETRI

    16

    primeiro projeto restringia-se a uma pesquisa bibliogrfica, o que logo

    se tornou consistente e, ao mesmo tempo, insuficiente, pois dava conta

    da constituio e da institucionalizao dos dicionrios, mas no

    abrangia os modos de funcionamento do instrumento lingustico em

    questo. E ver o funcionamento dos dicionrios passou a ser uma

    necessidade, vindo a resultar em dois outros projetos que se agregam

    ao primeiro: O lugar do dicionrio como instrumento didtico-pedaggico

    no ensino da Lngua Portuguesa2 e O dicionrio como instrumento didtico-

    pedaggico no ensino da Lngua Portuguesa: da pesquisa prtica de sala de

    aula3. Ainda na esteira desta temtica, preparamos o projeto de

    pesquisa A constituio de imagens de sujeito gacho na lngua e pela

    histria: um estudo dos dicionrios de regionalismos gachos produzidos no

    sculo XX, que promoveria a continuidade do primeiro que aborda

    dicionrios do final do sculo XIX, enquanto o segundo faz emergir

    dicionrios do final do sculo XX (e at do incio do sculo XXI).

    O desenvolvimento desses projetos nos conduziu a formar uma

    equipe de trabalho que passa a dar conta da investigao da

    constituio, da institucionalizao e do funcionamento de

    dicionrios, integrando, sob a gide da Iniciao Cientfica, trabalhos

    de pesquisa, ensino e extenso. Os textos tericos foram

    compartilhados por todas; as relaes com as escolas fizeram parte

    das atividades de todas; a preparao e a aplicao de atividades

    prticas tambm mobilizaram todo o grupo. Resultados parciais

    2 Que recebeu apoio do Prolicen/UFSM nos anos de 2007 e 2008. 3 Que recebeu apoio do FIEX/UFSM em 2008.

  • OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES

    17

    desses trabalhos foram sendo apresentados em eventos4 da rea de

    Letras pelo pas, bem como foram sendo publicados em anais e

    peridicos da rea. Os trabalhos foram orientados nessa direo,

    porque a produo e a circulao do conhecimento que nos fazem

    avanar; bem como entendemos que pesquisa, ensino e extenso so

    indissociveis, guardadas as especificidades de cada uma, so

    importantes que as experincias sejam compartilhadas com vistas

    formao de jovens pesquisadores, professores e extensionistas.

    O livro , portanto, construdo a partir dos resultados obtidos

    atravs do desenvolvimento dos projetos supramencionados e rene

    artigos escritos em parceria com as bolsistas5 que integraram a equipe

    nesses trs anos: Daiane Siveris, Nina Rosa Licht Rodrigues6 e Daiane

    da Silva Delevati. importante destacar que nosso interesse

    crescente e que muito temos ainda para investigar, nossas pesquisas

    seguem a pleno vapor.

    A proposta deste livro a de levar nossas reflexes a todos os

    que se interessam pelos estudos da linguagem; mas, em especial, aos

    acadmicos de graduao e de ps-graduao em Letras, bem como

    4 Merecem especial destaque as apresentaes realizadas em Encontro do GPAD - Uberlndia (MG); ABRALIN - Belo Horizonte (MG); GEL So Paulo; JIED Maring (PR); CELSUL e SEAD Porto Alegre (RS), e diversos eventos realizados em Santa Maria nestes ltimos dois anos. 5 Elisabeth da Silveira Gonalves (Bolsista FIEX/2008) e Vanessa Dinifer Lopes Paula (Atualmente acadmica de mestrado e bolsista CAPES/CNPq) participaram da aplicao das atividades nas escolas; bem como, Martina da Silva Schaedler (Bolsista Pibic/CNPq 2009-2010) e Vanessa Bianchi Gatto (Bolsista FIEX/2009) participaram da primeira reviso desse livro. 6 Atualmente acadmicas do Curso de Mestrado em Letras/Estudos Lingusticos (UFSM-PPGL) sob minha orientao.

  • VERLI PETRI

    18

    aos professores de Lngua Portuguesa ou estrangeira, que se deparam

    com o funcionamento/no funcionamento dos instrumentos

    lingusticos na rotina das aulas de lngua. Alm das reflexes que

    tentam coadunar teoria e prtica, apresentamos tambm sugestes de

    atividades que mobilizam os dicionrios e que promovem o seu

    funcionamento enquanto objeto discursivo a partir do qual so

    produzidos mltiplos sentidos. E, para finalizar, apresentamos

    sugestes de leituras na Bibliografia para aqueles que querem um

    aprofundamento sobre as temticas aqui desenvolvidas.

    Sobre esse outro olhar e a produo dos sentidos

    A realidade de sala de aula dos professores de Lngua

    Portuguesa, na maioria das vezes, assolada por uma sobrecarga de

    horas-aula, de cadernos e redaes a corrigir, um currculo

    ultrapassado, entre outras questes. Entendemos que essa realidade

    ofusca muitos sonhos e ideais do professor de lngua, dificultando a

    produo de um outro olhar sobre os objetos de que dispem para

    ensinar. No caber neste trabalho tratarmos das desiluses do

    professor ou da remisso ao discurso das lamentaes, trata-se de

    partir de uma realidade inegvel que nos incomoda e nos move na

    direo de fazermos o que est a nosso alcance para movimentar um

    pouco esse quadro. O livro que ora apresentamos no tem a pretenso

    de trazer algo novo aos professores e estudiosos da linguagem, mas

    prope que se lance um outro olhar sobre os instrumentos lingusticos,

    especialmente sobre os dicionrios. Acreditamos que, ao olhar de

  • OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES

    19

    modo diferente os discursos que constituem nossa prtica docente,

    poderemos tambm trabalhar com a formao de sujeitos diferentes,

    sujeitos que faam da aprendizagem de lngua um caminho para a

    constituio de sua identidade e para o exerccio da cidadania.

    Se, por um lado, sabemos que a utilizao de dicionrios

    (gramticas e livros didticos) uma prtica cotidiana nas aulas de

    Lngua Portuguesa (e, s vezes, tambm, de outras disciplinas); por

    outro lado, observamos, na prtica, que o funcionamento desses

    instrumentos lingusticos fica muito aqum do que eles podem

    proporcionar. com o intuito de retirar do estatuto de subutilizao

    os dicionrios, que propomos desconstruir a imagem de lugar de

    interdito da dvida, ao qual o dicionrio vinculado, j que no se

    pode tom-lo apenas como objeto de consulta da ortografia, pois isso

    seria reproduzir uma estrutura sem refletir sobre a lngua ali

    veiculada. Da mesma forma, entendemos que a busca de sinnimos e

    definies para as palavras desconhecidas tambm uma prtica

    que no trabalha com a produo de sentidos, pois tenta estabelecer

    uma relao direta entre as palavras e as coisas, o que, na vida de um

    sujeito falante da lngua, de fato, no ocorre.

    Se tomarmos, ento, o dicionrio como uma materialidade

    discursiva, na qual possvel observar diferentes formas de nomear e

    de definir as coisas do nosso mundo, prevendo mltiplas

    possibilidades de funcionamento deste ou daquele sentido,

    poderemos explicitar aos olhos de nossos alunos quais e quantas so

    as possibilidades de uso de regras que estabelecem o lugar imaginrio

    do certo e do errado. Explicitamos esta dicotomia para, justamente,

  • VERLI PETRI

    20

    dizer que no trabalhamos com ela; pois, historicamente, ela separa os

    sujeitos que sabem dos que no sabem sua lngua, pressupondo,

    ento, que s sabe Lngua Portuguesa aquele que capaz de mobilizar

    a variedade culta da lngua, excluindo os/as demais7. Essa prtica, em

    segunda instncia, promove o aprofundamento de um abismo que se

    estabelece entre o sujeito que fala a lngua e os instrumentos

    lingusticos apresentados na e pela escola, haja vista a pejorativa

    expresso que por muito tempo circulou como definio de dicionrio:

    o amansa burros. preciso desmitificar o dicionrio, dando a ele a

    visibilidade que de fato passa a ter, enquanto resultado da revoluo

    tecnolgica da linguagem (Auroux, 1992).

    Partimos do pressuposto de que a humanidade vive em

    constante transformao e de que os avanos tecnolgicos no param

    de acontecer, mas isso no especificidade das reas mdicas ou

    industriais, pois as lnguas tambm sofrem transformaes, via

    tecnologia. H dois marcos importantes na histria da humanidade

    que dizem respeito especialmente s questes de linguagem: o

    primeiro a inveno da escrita e o segundo a gramatizao das

    lnguas. O primeiro marca o incio da Histria, enquanto o segundo

    explicita as formas de sistematizao das lnguas, enquanto resultado

    da Revoluo Tecnolgica. Na esteira desse raciocnio, cabe salientar

    que tomamos o dicionrio (e a gramtica) como importante

    instrumento lingustico resultante da Revoluo Tecnolgica, da

    gramatizao, que, conforme explicita Auroux (1992, p. 65), o

    7 Cf. Mariani, 2008.

  • OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES

    21

    processo que conduz a descrever e a instrumentar uma lngua na base

    de duas tecnologias, que so ainda hoje os pilares do nosso saber

    metalingstico: a gramtica e o dicionrio.

    Na verdade, nosso objetivo adentrar o espao de

    constituio/institucionalizao da Lngua Portuguesa para

    questionar as evidncias construdas nos e pelos instrumentos

    lingusticos, propondo outras interpretaes, desconstruindo sentidos

    estabilizados. Estamos refletindo sobre o lugar do sujeito na

    gramatizao da lngua, pois esse sujeito fala, constitui sua identidade

    na e pela lngua, esse sujeito constri muitos saberes e uma histria

    prpria na e pela lngua. Cabe a ns explicitar, diante de nossos

    alunos, como se d o processo de produo de sentidos quando se tem

    um sujeito que acredita ser a fonte de seu dizer e que acredita poder

    controlar os sentidos do que diz, pela forma dos esquecimentos

    nmero 1 e nmero 2 (Pcheux, 1995). O sujeito vive essas duas

    iluses para poder ocupar um lugar e falar/escrever; mas, de fato, est

    tomando a palavra de um outro lugar (j-l na memria discursiva)

    para ressignific-la diante de seus interlocutores. Da mesma forma

    que no poder controlar os sentidos sobre a palavra ou expresso que

    produziu, pois a lngua est sujeita ao equvoco, e os sentidos podero

    ser outros (no previstos por aquele que fala/escreve). porque o

    sujeito faz uso de palavras e expresses que j fazem parte de uma

    memria coletiva que seus interlocutores o entendem, mas tambm

    por no controlar os sentidos sobre suas palavras que o sujeito est

    sempre diante da possibilidade de um mal-entendido. a noo de

    sujeito, dotado de inconsciente e afetado pela ideologia, que nos

  • VERLI PETRI

    22

    proporciona refletir sobre a lngua e a histria - na produo dos

    sentidos -, enquanto condies indispensveis para que se estabeleam

    relaes de pertencimento entre um sujeito e a nao que representa e

    pela qual representado.

    De fato, inegvel que a lngua uma questo nacional, e que,

    por isso, interessa ao Estado uma homogeneizao pedagogicamente

    instituda para que se possa ensinar e aprender a lngua nacional,

    apagando-se as diversidades. No entanto, o Dicionrio de Lngua

    Portuguesa, designado como instrumento lingustico que oficializa o

    uso de uma lngua padro, coexiste com inmeros outros saberes,

    tambm oficializados e institudos pelo uso local, regional e especfico.

    Dentre esses instrumentos lingusticos, no faremos distino entre os

    mais utilizados e conhecidos e aqueles que possam ter um

    funcionamento marginal, por estarem ocupando a margem e no o

    centro das atenes, j que revelam a heterogeneidade e a gama de

    possibilidades de sentidos na e pela lngua. A diversidade lingustico-

    cultural nos interessa porque introduz o diferente no interior do

    mesmo, e o sujeito se depara com esse novo no interior do velho e, de

    diferentes formas, trabalha no movimento entre a manuteno e a

    atualizao dos sentidos; o sujeito fica entre o que est contido e o que

    no est contido no dicionrio, como sujeito dividido que e como

    sujeito que conhece sua lngua muito antes de viver a fase de

    escolarizao, de sistematizao do saber sobre a lngua. Enfim, o

    sujeito chega escola com sua lngua, o que atesta que o professor

    no recebe o aluno como uma pgina em branco sobre a qual seria

    possvel delinear aspectos da lngua culta: o aluno chega escola

  • OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES

    23

    pleno de sentidos. Eis a importncia do papel do professor de lngua;

    ele, em especial, no interior da escola, quem trabalha questes de

    identidade e de alteridade, via lngua. pela lngua que o sujeito

    passa a compreender as diferenas e as semelhanas entre o eu e o

    outro, percebendo que os discursos so produzidos por sujeitos e

    que os livros podem/devem ser lidos de forma crtica, pela

    incompletude que lhes prpria (nem tudo vai caber neles) e por sua

    equivocidade constitutiva (o sentido pode ser outro).

    Sendo o dicionrio um objeto discursivo, ele nos suscita

    diferentes leituras. preciso ler as materialidades que fazem parte da

    rotina de aulas de lngua. No dicionrio temos, por exemplo, a forma

    de apresentao, seja pela apresentao de terceiros (editores, crticos,

    etc.); seja pelo prefcio produzido pelos prprios autores; e temos a

    gama de verbetes, suas definies, descries, sinonmias, etc.. Quem

    de ns l o que est no prefcio do dicionrio? Quem de ns reflete

    sobre a proposta do(s) autor(es)? Quem de ns se incomoda com as

    definies imprecisas ou insuficientes trazidas no dicionrio? Quem

    de ns convida os alunos para refletir sobre isso? O levantamento

    dessas questes est no princpio de tudo, pois, em geral, no fazemos

    isso e nem paramos para pensar sobre isso. A fim de que possamos

    lanar um outro olhar sobre o dicionrio e para que possamos

    trabalhar, de fato, com a produo de sentidos, precisamos exercer

    nosso direito de crtica e defender o direito de nossos alunos de terem

    acesso s metforas. O homem que capaz da metfora mais do

    que um mero reprodutor de ideias, ele trabalha no espao possvel da

    transformao, espao no qual os sentidos podem ser outros.

  • VERLI PETRI

    24

    Sobre a lngua e o dicionrio

    Acreditamos na importncia de se tomar o dicionrio como

    discurso, pois podemos ver como se projeta nele uma representao

    concreta da lngua, em que encontramos indcios do modo como

    sujeitos como seres histrico-sociais, afetados pelo simblico e pelo

    poltico sob o modo do funcionamento da ideologia produzem

    linguagem (Orlandi, 2002, p. 105).

    J lngua, na perspectiva discursivista qual nos filiamos,

    funciona como um observatrio de discursos que nos oferece

    diversas possibilidades de visualizao, dentre as quais selecionamos

    para este trabalho o ponto de vista que estabelece relaes entre o que

    est posto na lngua (o saber do falante) e o que passa a ser

    institucionalizado pela lngua (o saber constante no dicionrio). no e

    pelo uso que se faz da Lngua Portuguesa que esses dois saberes

    entram em relao, revelando contradies, distanciamentos e

    aproximaes. J no se pode mais aceitar o dicionrio como um lugar

    que abarca verdades absolutas, preciso pensar que a lngua est

    viva, em constante movimento e nem tudo apreendido pelo sujeito,

    muito menos estar no dicionrio. Como sugerem Collinot e Mazire

    (1997), o dicionrio deve ser tomado como um prt parler,

    emprico e social.

    O dicionrio, embora represente o lugar de certeza e do

    interdito da dvida (Oliveira, 2006), deve representar tambm um

    instrumento em funcionamento, sujeito a transformaes,

    deslocamentos, e at a falhas na produo dos sentidos. Interessamo-

  • OS DICIONRIOS MERECEM QUE LUTEMOS POR ELES

    25

    nos, especialmente, por esse lugar marcado pela evidncia de certeza,

    pela acumulao do saber sobre, pela seriedade que uma suposta

    verdade revelaria. Enfim, o dicionrio marcado pela

    responsabilidade de guardar os sentidos das palavras. No entanto,

    entendemos que os sentidos so aves, eles migram; so aves

    ariscas, no se deixam aprisionar; so aves que cantam, seu canto

    ressoa de diferentes maneiras. E, como todas as canes, estas

    provocam diferentes reaes nos sujeitos.

    Precisamos tomar o dicionrio, enquanto constitutivo do

    espao imaginrio de certitude, sustentado pela acumulao e pela

    repetio, onde possvel observar os modos de dizer de uma

    sociedade e os discursos em circulao em certas conjunturas

    histricas (Nunes, 2006, p. 11); mas no podemos ficar nisso, pois os

    discursos clamam por sentidos, sentidos que esto em movimento

    dentro e fora do dicionrio, como nmades que podem migrar a

    qualquer momento para outro lugar. Enfim, tomar o dicionrio como

    objeto para anlise implica, conforme Nunes (2006), em conceb-lo

    como uma alteridade para o sujeito falante, alteridade que se torna

    uma injuno no processo de identificao nacional, de educao e de

    divulgao de conhecimentos lingsticos (p. 43).

    Sendo assim, os dicionrios ganham outro papel em sala de

    aula de lngua, eles passam a estabelecer relaes entre os sujeitos e o

    saber, ou seja, h nestes instrumentos lingusticos tambm o

    desenvolvimento do processo de interlocuo, de produo de

    sentidos. J existem outros trabalhos que tomam o dicionrio como

    objeto discursivo, destacamos aqui a experincia da Professora Mariza

  • VERLI PETRI

    26

    da Silva (2003) que relata, em artigo, o trabalho realizado em sala de

    aula, com alunos de Letras, no qual se props a observar como

    funciona essa gesto dos sentidos no interior de uma mesma lngua,

    pela seleo, organizao, distribuio e controle das formas

    significantes (p. 110). E, nesse trabalho de anlise do discurso, foi

    considerada a estruturao dos verbetes e do prprio dicionrio, o que

    revelou a evidente construo imaginria de uma unidade que produz

    o efeito de apagamento das relaes de incluso/excluso ou de

    conflito/confronto, entre outras, inerentes lngua.

    Isso nos remete reflexo acerca de duas concepes de lngua

    discutidas por Orlandi e Souza (1988)8: lngua fluida e lngua

    imaginria. Para as autoras, a histria da primeira feita de fartura e

    movimento e nela convivem processos muito diferentes, portanto, a

    lngua fluida a que no pode ser contida no arcabouo dos sistemas e

    frmulas, o que est vinculado, ento, lngua do uso, do coloquial,

    do que suscetvel de erro, da ordem da oralidade. Enquanto a lngua

    imaginria a que os analistas fixam na sua sistematizao, enquanto

    lngua da norma, do padro, do correto e da escrita (p. 34). Nossa

    proposta de estar em movimento entre o que prprio da lngua

    fluida e o que prprio da lngua imaginria, deslocando sentidos que

    pareciam estagnados, explicitando que essa lngua fluida no est

    totalmente separada da lngua imaginria e que o sujeito falante est

    no entremeio das duas, colocando em funcionamento lnguas que

    trabalham na e para a produo de sentidos e de sujeitos.

    8 Cf. tambm Orlandi (2009).

  • O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA

    Nina Rosa Licht Rodrigues1

    Verli Petri2 Introduo

    O presente artigo revela resultados parciais de um projeto que

    teve incio em 2007, quando foi direcionado e desenvolvido em uma

    escola pblica do centro da cidade de Santa Maria (RS), numa turma

    de oitavo ano. A partir do trabalho desenvolvido, surgiu a

    possibilidade de uma segunda aplicao, em outro contexto escolar,

    vale dizer, em uma escola na periferia de Santa Maria3, tambm em

    uma turma de oitavo ano. O objetivo principal foi o de conhecer as

    prticas de utilizao e o funcionamento de dicionrios no Ensino

    Fundamental, em duas realidades educativas diferentes de Santa

    Maria, o que nos motivou a propor atividades que apresentassem a

    perspectiva discursiva como uma das possibilidades de trabalho para

    o professor de Lngua Portuguesa em sala de aula. Selecionamos para

    1 Bolsista de Iniciao Cientfica Prolicen/2008. Atualmente mestranda em Letras/Estudos Lingusticos (UFSM/PPGL/CNPq), vinculada ao projeto de pesquisa da linha Lngua, Sujeito, Histria. 2 Prof. Dr. Responsvel pelo projeto. 3 Projeto Prolicen/UFSM (2008) intitulado O lugar do dicionrio como instrumento didtico-pedaggico no ensino da Lngua Portuguesa.

  • NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI

    28

    este texto a discusso dos resultados do trabalho desenvolvido em

    2008.

    A escolha do instrumento discursivo-pedaggico: os dicionrios

    Estudamos os dicionrios a partir do suporte terico da Anlise

    do Discurso (AD) de linha francesa, tal como foi concebida por Michel

    Pcheux e como est sendo estudada hoje, no Brasil.

    De acordo com os preceitos tericos da Anlise do Discurso, os

    sentidos so concebidos em relao a (Orlandi, 2005), isto quer dizer

    que o sujeito se constitui a partir do seu contexto social, histrico,

    ideolgico e que tudo que diz ou pensa foi concebido anteriormente

    por outros dizeres j presentes na sociedade. Nesse sentido, preciso

    levar em conta que h um processo de produo de efeitos e sentidos

    em pleno funcionamento e que nessas relaes entre lnguas e

    sujeitos que o dicionrio se efetiva de fato.

    Logo, se a Anlise do Discurso parte do saber de que o sujeito

    no a origem de seu dizer, pois ele est sendo afetado a todo instante

    pelo exterior, ento, como se constituem os sentidos no interior dos

    instrumentos lingustico-educativos como os dicionrios, por

    exemplo? Podemos pensar, ser, que os dicionrios so instrumentos

    lingusticos abertos, constitudos de outros dizeres, onde os sentidos

    no se completam, no se unificam e que eles tambm so passveis de

    falhas?

    Com isso, levamos alguns questionamentos acerca do corpus de

    nossa pesquisa para a sala de aula, a fim de que os alunos pudessem

  • O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA

    29

    refletir sobre as atividades4 aplicadas: Quem produz os dicionrios? Esse

    sujeito que produz os dicionrios o profissional (lexicgrafo)? um cidado

    como qualquer outro? Esse sujeito, que produz os dicionrios, est imune a

    fatores externos? Ser que ele se baseou em outras definies de outros

    dicionrios para produzir o seu? As definies dos dicionrios so nicas?

    No as encontramos em nenhum outro dicionrio? Os sentidos tambm so

    nicos? As definies contidas nos dicionrios so completas? possvel

    existir completude?

    Em vista disso, propomos observar/trabalhar o dicionrio no

    como o senso comum da prtica escolar utiliza, isto , como um

    instrumento restrito ao domnio frasal ou textual, visto que

    entendemos que os sentidos verificados nos dicionrios esto

    dispersos, o que nos faz observar, principalmente, que ele no o

    detentor da verdade, que ele no abrange todas as palavras da Lngua

    Portuguesa e que ele um importante instrumento didtico-

    pedaggico para ser trabalhado e questionado na sala de aula quanto

    a sua incompletude. por isso que nos apoiamos nas palavras de

    Auroux (1992, p. 69): qualquer que seja a minha competncia

    lingstica, no domino certamente a grande quantidade de palavras

    que figuram nos grandes dicionrios monolnges, e sabemos que

    eles no daro conta de tudo o que a lngua pode significar na voz de

    seus falantes.

    4 As atividades esto descritas na parte final deste livro.

  • NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI

    30

    Atividades prticas em sala de aula

    Para a escolha da turma, na qual aplicaramos as atividades,

    observamos turmas de stimo, oitavo e nono anos. Ao final das

    observaes, optamos pelo oitavo ano, pois verificamos ser uma turma

    mais questionadora, embora bastante resistente no entendimento

    quanto importncia e utilizao de dicionrios para o aprendizado

    escolar.

    As atividades prticas foram previamente pensadas e

    preparadas para serem desenvolvidas em dois encontros com a turma.

    Aproveitamos o momento scio-histrico, vale destacar, as eleies

    municipais, e exploramos palavras/verbetes bastante recorrentes na

    mdia e no cotidiano dos jovens.

    Assim, as etapas das duas atividades so as seguintes:

    1 encontro:

    a) A turma foi distribuda em trs grupos aleatoriamente;

    b) Os alunos responderam pergunta: qual a importncia dos

    dicionrios?

    Nessa etapa, verificamos diferentes respostas5, dentre as quais

    destacamos:

    5 Optamos por manter a ortografia dos alunos.

  • O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA

    31

    ... para saber mais o significado das palavras (Aluna A); ... eu acho que importante para decifrar palavras difceis (Aluno G); ... importante para que possamos tirar dvidas, saber as palavras que no conhecemos (Aluna Da); ... eu acho que o dicionrio importante para ns aprendermos melhor as palavras e at aprender a escrever melhor (Aluna V); ... eu no utilizo dicionrio em casa, no colgio sim, s vezes utilizamos (Aluna AP).

    De acordo com as respostas, verificamos que h um

    direcionamento dos sentidos, apontando para o dicionrio como um

    objeto de consulta, de forma que, caso haja dvidas o utilizaremos; no

    entanto, se no houver, ficar esquecido, subutilizado. Assim, ele tem

    um estatuto de objeto de consulta, e no de aprendizado, pois no

    propicia discusses, reflexes, trabalhado apenas imerso nos

    sentidos que pode conter em seu interior. E as outras possibilidades de

    sentidos no expressas nos dicionrios? Para onde vo? E o que no

    est no dicionrio? Onde est? H, ainda, os alunos que, por no

    considerarem os dicionrios como instrumentos de aprendizado, uma

    vez que deveriam proporcionar esse aprendizado, no o consideram

    importante e, por conseguinte, raramente o utilizam.

    c) Foi solicitado aos alunos que definissem, por escrito, o que

    entendiam por poltico, poltica e partido; coube a cada grupo um

    verbete.

    Nessa etapa, o grupo do verbete poltica destacou:

  • NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI

    32

    ... muitos roubos, muitas promessas no cumpridas (Aluna N); ... modo de eleger algum, atravs do povo e das urnas (aluno C); ... muito roubo de dinheiro publico (aluno T); ... poltica uma vergonha, nas pocas de eleio, tem muitos papeis nas ruas. Poltica um lugar onde trabalha os vereadores, prefeitos, governadores, etc. (aluna L).

    O grupo do verbete poltico manifestou:

    ... aquele que promete, promete, mas nunca cumpre. aquele que s pensa em ser votado pelo povo e, muitas vezes, tenta comprar o voto deles (aluna M); ... ser poltico ter responsabilidade com sua cidade, fazer o possvel para melhorar nossa cidade (aluna AP); ... uma pessoa que se elege a vereador, governador, prefeito, deputado, ser poltico ter carter com sua palavra (aluna A); ... poltico ladro, no so honestos a grande maioria, mas tambm tem uns que so muito bons, pois prometem as coisas e cumprem (aluno V).

    O grupo do verbete partido escreveu:

    ... eu acho que vem de dividir e de compartilhar as coisas (aluna V); ... vrios sentidos, partido de poltica, de Igreja (aluna A); ... partido para mim algumas pessoas que se unem para trabalhar (aluna J); ... partido so varias pessoas trabalhando em grupo (aluno De).

  • O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA

    33

    Podemos constatar, em primeiro lugar, que um mesmo verbete

    pode significar de diferentes maneiras, tanto positivamente, quanto

    negativamente, como ocorre, principalmente, nos verbetes poltica e

    poltico. Somando a essas variedades de sentidos para os trs verbetes

    destacados, esto, tambm, as respostas das entrevistas realizadas

    pelos alunos.

    d) Os alunos tiveram a tarefa de entrevistar, individualmente,

    fora da sala de aula, uma pessoa de suas relaes que falasse sobre o

    significado das palavras j trabalhadas (poltico, poltica e partido).

    Para o verbete poltica, houve as seguintes definies:

    ... quando as pessoas de mais gabarito ou sabedoria sentam para discutir coisas sobre nosso pas (A, 53 anos); ... um conjunto de pessoas escolhidas pelo povo, atravs do voto, para representar e escolher o que de melhor para nossa cidade (S, 17 anos); ... um jogo de poder (E, 39 anos);

    Para o verbete poltico, os entrevistados disseram:

    ... aquele que nasce com o dom de saber tudo (A, 53 anos); ... um cidado que se filia a um partido para tentar melhorar nossa cidade (S, 17 anos); ... algum que deveramos confiar para nos representar, levando nossas dificuldades at o poder (E, 39 anos).

  • NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI

    34

    Para o verbete partido, os entrevistados destacaram:

    ... o partido uma sigla que demarca e te adota pra ti chamar eu sou do partido tal (A, 53 anos); ... um grupo que Prefeito, Vereadores so filiados como: PT, PTB, PFL e etc. (S, 17 anos); ... So grupos que seguem suas idias para a melhoria do povo (E, 39 anos).

    Tanto nas definies feitas pelos alunos, quanto nas definies

    dos entrevistados constatamos que os sentidos escapam; no esto

    contidos de modo comportado como no interior do dicionrio. Os

    sentidos no so nicos, se complementam. Assim, reiteramos a

    necessidade de se questionar acerca das incompletudes, das faltas e

    das saturaes dos sentidos contidas nas palavras.

    No 2 encontro, trabalhou-se com as respostas que eles

    trouxeram, relacionando-as com o que os dicionrios propunham. Tais

    respostas foram sendo apresentadas pelos alunos e anotadas no

    quadro. As trs palavras foram procuradas pelos respectivos grupos

    em dicionrios. Nessa etapa, pedimos que os alunos fossem aos

    dicionrios e pesquisassem as definies de seus verbetes, pela razo

    de observarmos se possvel haver sentidos outros, alm dos

    apresentados.

    Desse modo, as definies destacadas dos dicionrios Gama

    Kury (2001), Cegalla (2005), Caldas Aulete (2004 ) e Houaiss (2008)

    so:

  • O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA

    35

    Poltica: habilidade no trato com pessoas humanas, tendo em vista obteno de algo, cortesia, astcia, esperteza. Poltico: quem revela polidez, diplomacia, interesseiro, fino, astuto. Partido: que se partiu; pessoas casadouras, posicionamento, convices ideolgicas.

    Na sequncia, realizamos a comparao entre as respostas que

    os alunos deram acerca da importncia dos dicionrios [item b], as

    entrevistas [item d] e as definies nos dicionrios [ltimo item acima

    apresentado]; e foi retomada a pergunta sobre a importncia dos

    dicionrios. Respostas dos alunos:

    ... serve para esclarecer dvidas, mas nem sempre o dicionrio vai dizer o que a gente pensa, cada um tem uma opinio diferentes do que acha das palavras (aluna An); ... Eu acho que o dicionrio s ajuda ns a saber um pouco mais as coisas tipo ajuda ns saber o que quer dizer alguma palavra mas cada coisa tem um sentido nem sempre so iguais a do dicionrio (aluna V); ... A importncia do dicionrio que ele nem sempre diz aquilo que verdade (aluno L); ... na minha opinio, os dicionrios tem que ser mais completo (aluno De); ... importante para a gente descobrir o significado d cada palavra, mesmo que a gente tenha uma opinio e o dicionrio tenha outro (aluno E.); ... a importncia que a gente pode comparar o significado com aquilo que a gente pensa (aluno C).

  • NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI

    36

    Nessas anlises que realizamos junto aos educandos, levamos

    em conta a interferncia da ideologia nos elementos determinantes nas

    relaes sociais entre os interlocutores, unindo-se a ela de modo

    especial por meio das condies de produo do discurso, que so

    histricas, j que as ideologias no so feitas de idias, mas de

    prticas (Pcheux, 1995).

    Certamente, propor atividades que envolvam dicionrios via

    questionamentos de sentidos deveria exceder os limites de duas

    escolas, atingindo todo o sistema educativo. Nossa proposta a de

    levar outras possibilidades de trabalho com dicionrios, que viabilize

    o aprendizado e no apenas um lugar na prateleira da biblioteca,

    enquanto objeto de consulta, para que o ensino no mais se limite s

    barreiras gramaticaleiras e memorizveis, como estamos

    acostumados a presenciar e/ou a ensinar.

    Das expectativas s concluses

    Ao trmino das atividades, julgamos que os alunos

    compreenderam nossos objetivos e eles prprios chegaram s

    concluses esperadas. Entretanto, no podemos afirmar

    categoricamente que eles tenham aceitado ou que passem a questionar

    junto aos educadores os saberes compreendidos a partir de nosso

    trabalho. difcil ou, talvez, impossvel com to pouco tempo (em

    torno de trs meses), querer ter a pretenso de desconstruir saberes

    desde sempre institucionalizados no s pelo corpo docente como

  • O FUNCIONAMENTO DE DICIONRIOS NO ENSINO DE LNGUA PORTUGUESA

    37

    tambm pelo sistema educacional. Mas a experincia demonstra que

    possvel mudar e que isso desperta o interesse dos alunos, pois se

    antes eram desatentos e agitados, no momento das atividades por ns

    desenvolvidas, mostraram-se interessados e participativos.

    Alm disso, com o surgimento das novas tecnologias (os

    dicionrios eletrnicos, sites de pesquisas como Google, Wikipdia,

    wikcionrio), cada vez mais os alunos deixam de manusear livros

    didticos, gramticas, dicionrios, instrumentos lingusticos de papel e

    tinta, por vezes pesados e desconfortveis para se apalpar e/ou

    carregar, para adentrar o universo virtual, prtico, rpido da internet.

    Ento, fica complicado querer propor atividades que envolvam

    interesses antigos de uma educao tradicional junto aos alunos

    plenos de interesses atuais.

    Percebemos que as metodologias maantes e desestimulantes de

    alguns professores, que insistem em enxergar os dicionrios apenas

    via formalidades lingusticas, desprestigiam essa materialidade

    lingustica, afastando os educandos da aprendizagem da Lngua

    Portuguesa escrita. possvel perceber a desmotivao dos alunos por

    exerccios ortogrficos e de acentuao ou exerccios sobre sinnimos

    de palavras. Trabalhar com esse instrumento didtico-pedaggico vai

    alm do ensino de regras e excees, pois deve, sobretudo, contribuir

    para a formao de um aluno reflexivo, questionador, sabedor de que

    o dicionrio pode e deve ser explorado por meio da prtica discursiva

    (questionando os diversos sentidos que os verbetes/palavras

  • NINA ROSA LICHT RODRIGUES & VERLI PETRI

    38

    possuem) e no mais como um instrumento restrito ao domnio

    lexical, frasal ou textual.

    Com tudo isso, consideramos que nosso trabalho/pesquisa

    tenha superado as expectativas. Isso porque conseguimos fazer com

    que os alunos, assim como os professores (re)pensassem o material

    didtico com que estavam trabalhando e desconstrussem o saber

    aprendido de que esse instrumento lingustico o detentor da

    verdade, do sentido nico, absoluto, sem falhas e sem equvocos.

    Concordamos, para finalizar esta reflexo, com o que Nunes

    (2006, p. 25): aponta como j dito: a elaborao de um dicionrio

    consiste em um trabalho sobre o j-dito, um trabalho de seleo,

    reformulao, retomada, ruptura. Assim, at mesmo os dicionaristas

    esto influenciados por dizeres preconcebidos/definidos na

    elaborao de seu instrumento de consulta-aprendizado; portanto,

    precisam ser lidos e questionados.

  • O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES

    Daiane Siveris1

    Verli Petri2

    ... tambm se fundam sentidos onde outros sentidos j se instalaram. No h ritual sem falhas, (...) por isso possvel

    a ruptura. Instaurao de uma nova ordem de sentidos Eni P. Orlandi (2003, p. 13).

    Introduo

    O presente trabalho visa a apresentar resultados gerais sobre o

    projeto de pesquisa intitulado Lngua, sujeito e histria: o gacho no

    processo de dicionarizao da Lngua Portuguesa no/do Brasil. Esse projeto

    teve por objetivo investigar a constituio/instituio do instrumento

    lingustico dicionrio, observando as especificidades de duas

    modalidades, a de cunho geral/nacional e a de cunho

    especfico/regional, enquanto constitutivos da Histria das Ideias

    Lingusticas no/do Brasil, estabelecendo as devidas relaes entre o

    sujeito brasileiro/gacho, a lngua e a histria.

    Alm disso, faremos algumas relaes entre a constituio dos

    dicionrios e suas possibilidades de funcionamento dentro e fora da

    1 Aluna do curso de Letras da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista da Fundao de Incentivo Pesquisa (FIPE UFSM/ 2007-2009). Atualmente, mestranda em Letras/Estudos Lingusticos (UFSM-PPGL) ), vinculada ao projeto de pesquisa da linha Lngua, Sujeito, Histria. 2 Prof. Dr. Responsvel pelo projeto.

  • DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI

    40

    sala de aula, tomando-o como um importante instrumento no

    processo de ensino-aprendizagem e de constituio da identidade do

    sujeito na e pela lngua. E ao encontro disso que vem a epgrafe

    acima, ou seja, embora j se tenha sentidos cristalizados, dados como

    j ditos, j institudos, no dicionrio; acreditamos que a sala de aula

    seja um espao de fundao de novos e outros sentidos possveis,

    rompendo, talvez, com o que j est posto, com o que da ordem da

    evidncia e da certeza, da ordem do institudo e do dicionarizado.

    Sobre como foi feito o trabalho

    A metodologia de nossa pesquisa consistiu, inicialmente, no

    levantamento e seleo de dicionrios nacionais e regionais

    produzidos no sculo XIX que atendiam nossos objetivos de pesquisa.

    Em seguida, foi feita a leitura dos textos de

    apresentao/prefcio/nota dos autores/nota dos editores, presentes

    em cada obra selecionada. Num terceiro momento, passamos anlise

    do verbete gacho, o que nos conduziu a analisar tambm os

    verbetes homem e brasileiro, estabelecendo as devidas relaes

    entre eles, a fim de inferir sentidos sobre o processo de constituio

    dos sujeitos.

    Nossas anlises e reflexes tm embasamento em textos tericos

    referentes Anlise de Discurso, de linha francesa e Histria das

    Ideias Lingusticas. a perspectiva histrico-discursivista que norteia

    nossas reflexes. A partir das leituras, construmos nosso dispositivo

    de anlise, buscando sempre relacionar teoria e prtica. Foram eleitos

  • O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES

    41

    para anlise os instrumentos lingusticos nacionais: Dicionrio

    Contemporneo da Lngua Portuguesa (1881), de Caldas Aulete; Novo

    Diccionrio Universal Portuguez (1891), de Francisco de Almeida; Novo

    dicionrio da Lngua Portuguesa (1899), de Cndido de Figueiredo; e

    regional Vocabulrio sul-rio-grandense (1964), que uma compilao de

    dicionrios do sculo XIX e XX, feita por Walter Spalding.

    Compreende os dicionrios Coleo de Vocbulos na Provncia do Rio

    Grande do Sul (1852), de Pereira Coruja; Vocabulrio Sul-rio-grandense

    (1898), de Romaguera Corra; Vocabulrio Gacho (1926), de Roque

    Callage e Vocabulrio Sul-rio-grandense (1935), de Moraes.

    As primeiras anlises realizadas foram as dos prefcios, nos

    quais observamos a posio do sujeito autor/produtor de cada

    dicionrio. Foi possvel observar que h diferenas entre os dicionrios

    nacionais e os regionais quanto a esse aspecto. Os dicionrios

    nacionais revelam que o sujeito lexicgrafo integrante da Academia

    e preocupa-se com a produo do instrumento lingustico, procurando

    isentar-se da sua posio de falante da lngua. Nos dicionrios

    regionais, o sujeito dicionarista e/ou produtor no tem

    necessariamente formao acadmica para elaborar o dicionrio. No

    entanto, assim como o sujeito lexicgrafo, o sujeito dicionarista

    tambm determinado pela exterioridade e inscreve-se em

    determinada formao discursiva (doravante FD), que determina o

    que pode ou no ser dito. Essa FD heterognea e sujeita, portanto, a

    falhas e equvocos.

    Aps analisar os prefcios, partimos para a anlise dos verbetes.

    Inicialmente, analisamos o verbete gacho tanto nos dicionrios

  • DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI

    42

    nacionais quanto nos regionais. Pudemos observar que, em geral,

    definido como o homem gil, de valor, referente ao sujeito habitante

    do Rio Grande do Sul e da Regio do Prata. Alm disso, esse sujeito

    falante da Lngua Portuguesa; representa, assim, o local/regional, mas

    tambm o geral/nacional.

    Tendo em vista a presena do termo homem constantemente,

    buscamos analisar tambm esse verbete. Ele aparece definido como o

    ser distinto das demais espcies, que constitui e constitudo pela

    histria, ou seja, na relao que ele estabelece com a lngua e com a

    histria que ocorre sua constituio enquanto sujeito.

    O verbete brasileiro foi analisado para estabelecermos relao

    com o verbete gacho, sendo que um representa o nacional, o geral

    e o outro o regional, o local. definido como o sujeito nascido no

    Brasil ou o portugus que residiu no Brasil e volta a Portugal com

    muitas riquezas da colnia.

    Dessa forma, podemos pensar a constituio do dicionrio

    como um espao de incompletude, sujeito a falhas, a equvocos, a

    deslizes. Ser que brasileiro pode ser definido somente como aquele

    que nasceu e/ou que residiu no Brasil? No poderamos ter uma

    definio que esteja relacionada ao sujeito falante/aprendiz de Lngua

    Portuguesa? Contudo, o sujeito falante/aprendiz de Lngua

    Portuguesa busca a unidade lingustica que torna possvel legitimar

  • O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES

    43

    essa lngua e apagar, talvez, outra que esteja em funcionamento na

    sociedade3.

    Refletimos, brevemente, sobre a colonizao europeia no Brasil.

    Tomemos como referncia no os portugueses que aqui chegaram,

    mas os alemes e os italianos. Quando chegaram, a lngua desses

    sujeitos no era a portuguesa. Eram falantes de alemo e de italiano.

    Aos poucos, foram tomando a Lngua Portuguesa como sua. Assim,

    no decorrer dos anos, das geraes, a lngua que estava em

    funcionamento nas regies colonizadas pelos imigrantes foi sendo

    silenciada, mas no apagada, para dar espao Lngua Portuguesa, a

    qual, para os sujeitos que se estabeleceram no Brasil, era o novo, o

    diferente. Isso nos leva a crer que uma lngua interferiu na outra,

    promovendo alteraes e constituindo sujeitos outros que no o ideal.

    As condies de produo4

    Analisar um dicionrio requer o conhecimento de suas

    condies de produo, ou seja, ponto indiscutivelmente importante

    em qualquer discursividade, porque compreende os sujeitos e a

    situao, o sujeito situado na histria e no espao que ocupa nessa

    histria. preciso considerar os fatores extralingusticos para que se

    efetue a compreenso dos discursos, isto , a formao do objeto

    discursivo se d na articulao do lingustico com o histrico. Dessa

    3 Estamos nos referindo aqui s lnguas indgenas, africanas e, posteriormente, s lnguas dos imigrantes italianos, alemes, etc. 4 Esta noo ser retomada em outros artigos que compem este livro.

  • DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI

    44

    forma, podemos falar em funcionamento discursivo no qual

    observamos a relao da lngua com a exterioridade e, por

    consequncia, observar a constituio identitria de quem fala essa

    lngua que regional e que nacional.

    Falar em exterioridade leva-nos a pensar que, segundo Horta

    Nunes (2006, p.19), as condies de produo esto relacionadas com

    as formaes sociais e os lugares que os sujeitos a ocupam. Tais

    lugares funcionam nos processos discursivos como formaes

    imaginrias. Isso significa que os sujeitos que falam/escrevem e os

    que ouvem/leem, enquanto interlocutores, atribuem a si e ao outro

    uma imagem que eles fazem do seu lugar e do lugar do outro. Sendo

    assim, a relao entre o sujeito e o real exterior no direta, mas sim

    mediada pelas representaes imaginrias. por meio do imaginrio

    que os sujeitos significam o real no discurso (Nunes, 2006, p.20).

    Pensando no dicionrio, dessa forma, podemos afirmar que as

    condies de produo, em sentido estrito, revelam as circunstncias

    da enunciao: o contexto imediato. E se as considerarmos em

    sentido amplo, as condies de produo incluem o contexto scio-

    histrico, ideolgico (Orlandi, 2005, p. 30).

    Considerando esses dois sentidos (estrito e amplo), temos, de

    acordo com Horta Nunes (2006, p.20), no contexto imediato, as

    circunstncias enunciativas relacionadas ao discurso lexicogrfico a

    posio do lexicgrafo aparece como aquela que apresenta o

    dicionrio a seus leitores em determinadas situaes. No contexto

    amplo, temos a conjuntura histrica e ideolgica em que essas

    situaes tm lugar. Dessa forma, os dicionrios nacionais do sculo

  • O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES

    45

    XIX, objetos de anlise de nossa pesquisa, foram elaborados a partir de

    uma FD especfica, que visa instrumentalizao de uma populao

    que necessita consultar, principalmente, o lxico da lngua em casos

    de dvida sobre a escrita e/ou sobre a pronncia. Pensando no

    funcionamento dos dicionrios em sala de aula de Lngua

    Portuguesa5, em pleno sculo XXI, deparamo-nos com a reproduo

    da estrutura primeira, qual seja: o dicionrio continua sendo tomado

    como aquele que contm o saber sobre a lngua. Ainda tratamos o

    dicionrio como lugar onde sanamos dvidas de escrita e/ou de

    pronncia.

    Isso bastante complicado, sobretudo, porque os sujeitos vivem

    sob outras circunstncias, so outros os paradigmas que regem a arte

    de educar, de ensinar. Quando nos remetemos aos dicionrios do

    sculo XIX, estamos levando em conta que foram publicados em

    Portugal, pois, no Brasil, nesse perodo que comea a autonomia em

    relao aos instrumentos de gramatizao. Enfim, estamos

    reproduzindo ainda o eco de um passado de colonizao lingustica.

    Os dicionrios regionais, por sua vez, foram compilados tendo

    em vista as realidades locais/regionais, apontando as peculiaridades

    sociais, culturais e at lingusticas, no nosso caso, gachas. O

    funcionamento de tais dicionrios diferenciado, mas pouco

    explorado em sala de aula de lngua. Os dizeres regionais j foram

    naturalizados em nosso discurso e no entram no espao da lngua

    culta ensinada na escola. Este dicionrio vem servir como apoio

    5 Referimo-nos s experincias desenvolvidas a partir das atividades descritas neste

  • DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI

    46

    para estudos literrios regionalistas, o que nos parece insuficiente, j

    que no se discute a questo da diversidade lingustica e as mltiplas

    possibilidades de discurso.

    O dicionrio enquanto discurso

    Conforme nos apresenta Horta Nunes (2006, p. 13), a

    Lingstica no sculo XX (...) produziu um silncio em relao aos

    dicionrios, considerados como instrumentos normativos, objetos

    fossilizados que no correspondiam lngua falada. Contudo,

    atualmente, j percebemos que esses instrumentos cumprem um outro

    papel, funcionando como lugares eficazes de descrio das lnguas.

    O dicionrio j no pode ser visto como um instrumento

    lingustico detentor do saber, da certeza, sem espao para dvidas,

    pois, numa perspectiva discursivista, colocamos os dicionrios em

    questo tomando-os como um discurso, ou seja, estamos afirmando

    que o instrumento lingustico em questo tem uma ordem prpria,

    que se realiza e se materializa na lngua. Portanto, ele tem uma

    histria, constri e atualiza uma memria, reproduz e desloca

    sentidos (Nunes, 2006, p. 18). A partir disso, h lugar para falhas e

    equvocos, para diferentes interpretaes e sentidos outros.

    tambm considerado resultado de prticas sociais e do

    processo de gramatizao que est sempre relacionado a uma

    transferncia de tecnologia de uma lngua para outras lnguas

    (Auroux, 1992, p.74). Alm disso, podemos tomar o dicionrio como

    livro.

  • O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES

    47

    um instrumento que permite acessar os saberes de outras pocas e

    como objeto discursivo que pe em relao lngua, sujeito e histria.

    Tudo isso perpassa o trabalho com o dicionrio em sala de aula de

    Lngua Portuguesa.

    O dicionrio na aula de Lngua Portuguesa

    Cada vez mais necessrio pensar/repensar o processo de

    ensino/aprendizagem nas escolas, tendo em vista formar cidados e

    educar para a vida com liberdade e responsabilidade, princpios

    fundamentais encontrados em grande parte dos Projetos Polticos

    Pedaggicos (PPP) das escolas da rede pblica de ensino. A Lngua

    Portuguesa torna-se necessria e fundamental, levando em conta que

    ela traz questes de leitura, interpretao, reflexo e produo,

    inerentes s demais disciplinas do currculo.

    Para isso, pensando do ponto de vista da Anlise de Discurso,

    questionamos a produo de sentidos a partir dos dicionrios, os quais

    no devem ser somente institudos e cristalizados, mas, antes de tudo,

    devem ser pensados como possveis de interpretao outra. E isso

    que foi proposto no desenvolvimento de outro projeto6, cujas

    atividades aplicadas em sala de aula podem ser observadas nas

    sugestes de atividades que constam neste livro. Quer dizer, ao

    propor ao aluno que ele atribua sentidos a uma palavra sem a ajuda

    6 O dicionrio como instrumento didtico-pedaggico no ensino de Lngua Portuguesa: da pesquisa prtica de sala de aula.

  • DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI

    48

    de um dicionrio, somente a partir de sua memria discursiva,

    propomos desconstruir o sentido nico de uma palavra, muitas vezes,

    j cristalizado no dicionrio.

    A partir do momento em que o aluno atribui sentidos a uma

    palavra e, em seguida, vai ao dicionrio para comparar o que est l

    j-dito, j posto, ele pode se deparar com sentidos que ele (e seu grupo

    social) atribui, mas que no esto presentes ali, no dicionrio, espao

    tomado no senso comum como o detentor de todo saber, ou seja, tem-

    se a a incompletude que constitutiva da linguagem. Isso nos leva a

    pensar numa interpretao outra, pois, segundo Grigoletto e,

    conforme a Anlise de Discurso (AD) postula, nenhum dizer capaz

    de completar os sentidos de um discurso nem de apontar para a sua

    origem, j que os sentidos se constituem sempre na relao do

    lingstico com o histrico (1999, p. 68).

    Tomando o dicionrio como instrumento lingustico, podemos

    dizer que ele pouco tem sido abordado nas salas de aula. Porm,

    quando utilizado, tem sido tomado por educadores

    predominantemente como um documento da histria tradicional

    (Souza, 1995, p. 113), ou seja, nele est contido o saber que deve ser

    transmitido aos alunos, como se fosse o lugar nico da certeza, no

    qual possvel somente uma interpretao aquilo que est j posto,

    j l.

    O dicionrio, diferente do Livro Didtico (LD), ainda no tem

    seu lugar legitimado nas aulas de LP, apesar de acreditarmos que nele

    est depositado um saber a ser decifrado que traz aspectos referentes

    a nossa lngua. Coracini (1999) afirma que a legitimao do LD - e

  • O DICIONRIO E A SALA DE AULA: POSSVEIS RELAES

    49

    acrescentaramos tambm do dicionrio - se d na escola a partir do

    momento em que construdo o imaginrio discursivo da sociedade

    que v os valores, interesses e necessidades dos alunos (p. 33-34). No

    entanto, no caso do dicionrio, no podemos consider-lo o centro do

    ensino-aprendizagem, assim como o LD, pois no vemos, nas salas

    de aula, o seu efetivo uso e funcionamento.

    Pensar o funcionamento do dicionrio lembrar que

    alm de no termos controle sobre os sentidos, eles nos afetam e se representam de muitas maneiras, sendo a dicionarizao um lugar importante onde isto se d, ou seja, lugar em que a trama da linguagem se impe aos sujeitos de um lngua nacional (ORLANDI, 2002, p. 117 - 118).

    Com isso, pensemos no papel do professor, como educador, e

    no do aluno, como educando/aprendiz, para refletirmos sobre o que

    prope Orlandi (2003, p. 11) referente construo dos sentidos.

    Segundo a autora, no momento dessa construo, devemos levar em

    conta o apagamento dos sentidos pelo j-dito, a resistncia quanto ao

    apagamento e tambm quanto produo de outros sentidos, bem

    como o retorno de sentidos que haviam sido excludos pelo

    apagamento. E dessa forma que pensamos ao adentrar a sala de aula

    para desenvolver as atividades propostas sobre o dicionrio. Como

    atribuir sentidos sem o dicionrio? Que sentidos so possveis? Quais

    os sentidos apagados, esquecidos, cristalizados? Como estes sentidos

    entram/no entram no espao do dicionrio?

    Desse modo, a partir do desenvolvimento da pesquisa,

    observamos as relaes entre lngua nacional e lngua regional, ou

    seja, a lngua do gacho e a lngua do brasileiro que tambm a

  • DAIANE SIVERIS & VERLI PETRI

    50

    lngua do gacho, pois ele a toma como sua. nessa relao que o

    sujeito se constitui, vale dizer, na relao entre lngua e histria.

    atravs da Lngua Portuguesa que o sujeito se significa. na lngua,

    no dicionrio, no nosso caso, que temos a materializao do discurso,

    cujo sentido sempre pode ser outro, pois no exercemos controle sobre

    os sentidos. necessria a incompletude do dicionrio, para que

    mobilizemos a nossa memria discursiva, a nossa rede de significados

    que nos leva a diferentes interpretaes, mobilizando o dito e o no

    dito, o novo e o velho.

    Nesse sentido, privar os alunos do dicionrio (e da gramtica),

    em prol de uma educao facilitada pelo livro didtico, privar o

    falante da lngua de conhecer seus instrumentos lingusticos legtimos

    - sempre incompletos e sujeitos a falhas, mas ainda assim legtimos -

    pois so resultados do processo de gramatizao da lngua. No se

    pode negar a histria de uma lngua, no se pode negar ao sujeito o

    direito de conhecer e ajudar a escrever essa histria.

  • O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES

    Daiane da Silva Delevati1

    Verli Petri2

    ... os sentidos no se fecham, no so evidentes, embora paream ser. Alm disso, eles jogam

    com ausncia, com os sentidos do no-sentido (Orlandi, 1996, p.9).

    Introduo

    A epgrafe acima sintetiza, em parte, o modo como olhamos

    para os sentidos que esto postos no dicionrio: em cada verbete, em

    cada prefcio, a cada apresentao do dicionarista. Alm disso,

    tambm se relaciona com os princpios que nortearam nossas prticas

    em sala de aula; no modo como decidimos lidar com o dicionrio nas

    experincias que relatamos neste livro. Olhar, discutir, questionar: os

    sentidos, as verdades, os sujeitos e objetos donos das verdades.

    Refletir com e sobre o dicionrio foi nosso propsito ao adentrarmos o

    espao da sala de aula de Lngua Portuguesa, alm de buscarmos

    incentivar o uso desse importante instrumento lingustico, para que

    1 Aluna bolsista do projeto Lngua, sujeito e histria: o gacho no processo de dicionarizao da lngua portuguesa no/do Brasil.

    2 Prof. Dr. Responsvel pelo projeto.

  • DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI

    52

    esse passe a fazer parte do cotidiano das aulas de Lngua Portuguesa -

    especialmente, de forma mais significativa.

    Mas por que questionarmos o dicionrio? No nele, pois, que

    as palavras so transparentes; o sentido correto, preciso e objetivo,

    l onde no h o que interpretar, nem do que duvidar (Silva, 1996,

    p. 151)? No trabalho em sala de aula, os alunos participantes da

    pesquisa, ao escreverem sobre como percebem o dicionrio,

    confirmaram essa aura de um espao de certitude, de um espao

    sem falhas, que esse instrumento carrega consigo, como podemos

    conferir nos excertos3 abaixo:

    1) o dicionrio para mim uma coisa muito importante, pois l sabemos o significado de cada palavra, das mais diferentes, e das mais conhecidas... (T.S).

    2) eu costumo usar o dicionrio quando estou com alguma

    dvida em alguma palavra... (N.B). 3) para mim o dicionrio um livro cheio de palavras

    interessantes que a gente no sabe o significado... (L.H). 4) eu acho que o dicionrio muito importante porque ele

    significa sabedoria... (N.S). 5) o dicionrio importante para vrias coisas at mesmo para

    procurar nomes difceis... e tambm para saber o significado de cada palavra (L.C.).

    3 Resultado do trabalho de pesquisa do programa Fiex: O dicionrio como instrumento didtico-pedaggico no ensino de Lngua Portuguesa: da pesquisa prtica de sala de aula; realizado no ms de setembro de 2008 com alunos de 6 e 7 sries, em escola particular da zona perifrica de Santa Maria.

  • O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES

    53

    7) para mim o dicionrio um livro muito importante, pois ali encontramos todos os sinnimos das palavras... (L.R).

    Para desconstruir, um pouco, essa aura do dicionrio como o

    detentor do saber sobre a lngua, aproximando-o do sujeito falante,

    usurio da lngua, nos apoiamos na Anlise de Discurso (AD) de

    Linha Francesa, fundada por Michel Pcheux e na Histria das Ideias

    Lingusticas, tal como a entende Sylvain Auroux, bem como essas

    reas vm sendo desenvolvidas no Brasil atualmente. Dessa forma,

    buscamos entender como se deu o processo de gramatizao da

    Lngua Portuguesa, atravs de leituras de textos tericos de Jos Horta

    Nunes e Mariza Vieira da Silva, pesquisadores brasileiros, que se

    interessam pela histria e o prprio funcionamento discursivo do

    dicionrio. Para este trabalho, tambm selecionamos outros autores,

    que discutem questes sobre lngua e sua relao com os processos de

    ensino-aprendizagem, como Francisco da Silva Borba e Carlos Alberto

    Faraco.

    O dicionrio na aula de Lngua Portuguesa: como tem funcionado essa

    prtica e como pode passar a funcionar?

    Para Jos Horta Nunes, que investiga a histria e o

    funcionamento do dicionrio no Brasil - desde as primeiras listas de

    palavras elaboradas pelos jesutas no sculo XVI, at os dicionrios

    mais contemporneos -, o dicionrio constitui uma forma de discurso.

    E como todo discurso, o dicionrio tem uma histria, ele constri e

  • DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI

    54

    atualiza uma memria, reproduz e desloca sentidos, inscrevendo-se

    no horizonte dos dizeres historicamente constitudos (2006, p. 18).

    Desse modo, aquela suposta neutralidade do dicionrio que envolve

    o imaginrio dos sujeitos (usurios do dicionrio) comea a ser

    questionada, pois h um processo de construo desse instrumento

    que deve ser levado em conta.

    Esse processo chama-se, na AD, condies de produo: que esto

    relacionadas com as formaes sociais e os lugares que os sujeitos a

    ocupam. Nunes, citando Michel Pcheux, continua: Tais lugares

    funcionam nos processos discursivos como formaes imaginrias que

    designam o lugar que A [produtor] e B [destinatrio] se atribuem

    cada um a si e ao outro a imagem que eles se fazem de seu prprio

    lugar e do lugar do outro (2006, p.19). Para entendermos melhor esse

    conceito, utilizaremos recortes de trs dicionrios4:

    a edio desse dicionrio, elaborado por Mestre Aurlio Buarque de Holanda e sua

    equipe de assistentes e colaboradores, eleva e justifica um esforo editorial voltado

    para a difuso da cultura nacional e da lngua portuguesa em todo mundo

    (nota do editor do Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa - Aurlio, edio de

    1975)

    4 Esses recortes constituem parte do trabalho de pesquisa que resultou na apresentao de Comunicao e Painel no Salo de Iniciao Cientfica da UFRGS, em outubro de 2008, intitulado: Gacho: que identidade essa que os dicionrios revelam no discurso?

  • O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES

    55

    ... essa a compilao coordenada dos mais valiosos vocabulrios sul-rio-

    grandenses de autores consagrados (...) surge agora ste vocabulrio nico,

    rico de interpretaes e completado pela coleta mltipla de trmos usados no

    Rio Grande do Sul

    (prefcio do Vocabulrio Sul-Rio-Grandense, organizado por Walter

    Spalding, de 1964)

    ... um livro despretensioso...

    (apresenta apresentao do Minidicionrio da Lngua Portuguesa -

    Aurlio, edio de 1977)5

    Voltemo-nos, agora, para os excertos transcritos acima, na

    introduo, dos alunos participantes da pesquisa. E nos perguntemos:

    seriam os alunos, os destinatrios dos discursos recortados dos trs

    dicionrios que citamos? Se a resposta positiva, isso, ento, nega a

    suposta neutralidade do discurso dicionarstico. Vejamos, como se d

    a construo do imaginrio acerca do dicionrio como o lugar da

    transparncia, da certitude, da neutralidade, de todos os sentidos

    possveis para uma palavra. Prestemos ateno, tambm, nas

    formaes imaginrias que designam o lugar que A [produtor] e B

    5 Grifos nossos. Cabe ressaltar que, em relao aos recortes dos dicionrios, no nos deteremos nas questes de ortografia vigente na poca, mas to somente ao discurso dicionarstico.

  • DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI

    56

    [destinatrio] se atribuem cada um a si e ao outro: um como o dono do

    saber (mestres, autores consagrados) e o outro como aquele que no

    sabe, que est ali para receber o saber (com ele ns aprendemos

    palavras novas). Faamos um contraponto6:

    A [produtor]: elaborado por Mestre Aurlio Buarque de Holanda e sua

    equipe

    B [destinatrio]: eu costumo usar o dicionrio quando estou com

    alguma dvida em alguma palavra...

    A [produtor]: eleva e justifica um esforo editorial voltado para a

    difuso da cultura nacional e da lngua portuguesa em todo mundo

    B [destinatrio]: o dicionrio importante para vrias coisas at

    mesmo para procurar nomes difceis ...e tambm para saber o

    significado de cada palavra

    A [produtor]: essa a compilao coordenada dos mais valiosos

    vocabulrios sul-rio-grandenses de autores consagrados

    B [destinatrio]: eu acho que o dicionrio muito importante porque

    ele significa sabedoria...

    A [produtor]: ... um livro despretensioso...

    ... coleta mltipla de trmos usados no Rio Grande do Sul...

    6 Toda vez que citamos A [produtor] e B [destinatrio], referimo-nos, respectivamente, s citaes j apresentadas dos dicionrios e s citaes dos alunos participantes das atividades.

  • O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES

    57

    B [destinatrio]: o dicionrio para mim uma coisa muito

    importante pois l sabemos o significado de cada palavra, das mais

    diferentes, e das mais conhecidas...

    A [produtor]: surge agora ste vocabulrio nico, rico de

    interpretaes...

    B [destinatrio]: o dicionrio... muito bom, porque com ele ns

    aprendemos palavras novas...

    Acompanhamos acima um imaginrio de dicionrio que se

    configura enquanto espao de neutralidade - um livro

    despretensioso por parte de seu autor, e um espao dotado de

    completude, que guarda todos os sentidos - saber o significado de

    cada palavra, das mais diferentes, das mais conhecidas- por parte de

    seu interlocutor. No entanto, essas imagens no esto divididas de

    forma to dogmtica, to absoluta, quanto apresentamos aqui, mas

    entrecruzam-se, dialogam entre si; resultam do movimento da histria

    e da ideologia, do movimento dos sujeitos e dos sentidos.

    Para Francisco da Silva Borba, tambm estudioso de

    dicionrios, no existe texto neutro quanto ideologia, ou seja,

    quem fala ou escreve pretende sempre colocar [sugerir, propor,

    impor, inculcar], mesmo que implicitamente seu modo de ver e sentir

    o universo (2003, p. 307). Foi o que verificamos acima, pois temos

    discursos de dicionaristas e sobre dicionaristas produzidos h mais de

    30 e 40 anos que continuam se impondo sobre o imaginrio dos

  • DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI

    58

    leitores/usurios dos dicionrios, nos tempos atuais. Porm, para esse

    mesmo autor,

    quem recebe o texto pode aceitar ou discutir o que recebe como tambm pode captar totalmente, parcialmente ou mesmo nulamente o que est implcito. Para isso preciso no apenas ter um certo lastro de informaes, mas ainda um certo traquejo em manejar idias e conceitos, ou seja um certo grau de conscincia de cidadania (Id., Ibid, p. 307).

    E justamente a isso que nos propomos nas experincias que

    realizamos em sala de aula: desestabilizar conceitos, discutir o que

    dado como certo ou errado, aproximar o dicionrio do sujeito falante,

    pois, como vimos anteriormente, esse instrumento est distante do

    usurio/aluno: o dicionrio para mim uma coisa muito importante, pois

    l sabemos o significado de cada palavra, das mais diferentes, e das mais

    conhecidas (Aluno T. S.). Esse discurso do falante nos mostra o

    dicionrio cumprindo um papel ideologicamente determinado,

    separando quem sabe (l), de quem no sabe, de quem detm o

    saber (o dicionarista/ o mestre) e daquele que deve receber o

    saber, no caso da sala de aula de Lngua Portuguesa, o

    aluno/educando.

    Os sentidos da cidade real versus os sentidos estabilizados: e por que

    no os dois?

    O uso do dicionrio em sala de aula tem se efetivado de um

    modo, um tanto acomodado, que se resume ou a procurar nomes

    difceis, ou a busca do significado de cada palavra, como se o

  • O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES

    59

    dicionrio pudesse dar conta de todos os sentidos que uma palavra

    possa ter; como se pudesse abarcar todas as palavras. Desse modo, a

    consulta no dicionrio se realiza sem nenhuma discusso sobre as

    outras possibilidades de sentidos que poderiam estar registradas nesse

    instrumento e no esto, mas que, no dia a dia, significam para os

    usurios da lngua e constituem sentidos. Sobre o modo como o

    dicionrio tem sido usado em nossas salas de aula, Mariza Vieira da

    Silva, nos chama a ateno:

    o trabalho com o dicionrio nas interpretaes de textos na escola e na universidade reflete, quase sempre, uma representao do conhecimento lingstico, enquanto disciplina escolarizvel, quer dizer passvel de ser apreendida e dominada, e marcada pela homogeneidade, pela identificao com a certeza e a verdade, pela naturalizao dos sentidos e pelo estabelecimento de uma relao direta entre as palavras e as coisas (2003, p. 115).

    Isso pode ser observado na voz dos alunos que so, antes de

    tudo, falantes da lngua: para mim o dicionrio um livro muito

    importante, pois ali encontramos todos os sinnimos das palavras.. (Aluno

    R. S.).

    Nesse caso, deparamo-nos com mais um imaginrio que se

    constri no entorno do dicionrio, aquele que estabelece a sinonmia

    como espao de completude e de totalidade; ou seja, o falante busca os

    sentidos no dicionrio.

    Mariza Vieira da Silva nos sugere uma alternativa, para

    tornarmos o uso do dicionrio em sala de aula, um tanto mais

    dinmico, menos passvel por parte do sujeito falante, para que essa

  • DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI

    60

    prtica v alm de uma simples consulta - por algum que no sabe,

    no domina, no conhece a lngua - a um livro cheio de sabedoria,

    que sabe tudo de tudo, dono da verdade e da neutralidade. Segundo a

    autora, necessrio

    desenvolver uma prtica de leitura do dicionrio na instncia da formulao do sentido, da produo do imaginrio, trabalhar o logicamente estabilizado de forma a produzir rupturas; situar o sujeito nessa rede discursiva, que produz o efeito de completude, de estabilidade, de imobilidade das lnguas, trabalhar a autoria do sujeito escolarizado (Id., Ibid., p. 114).

    Concordamos com a autora e propomos a anlise dos seguintes

    fragmentos7:

    Poltico uma pessoa que trabalha com a poltica. Ele tem a habilidade de governar e

    convencer pessoas que sigam seus ideais e objetivos, sempre visando o bem comum da

    maioria, isto , ser um poltico srio, voltado tanto para um estado, municpio ou uma

    empresa.

    OBS:

    Infelizmente no bem isto que acontece em nosso pas devido aos maus polticos que

    s querem fazer politicagem8.

    Notemos que, na primeira parte da resposta, o que o autor

    considera poltico se aproxima muito do que encontraremos nos

    7 Resposta de um motorista, de 50 anos, durante entrevista, para a pergunta: O que poltico? Resultado de entrevista que alunos do ensino fundamental realizaram s vsperas das Eleies Municipais de 2008, relativa segunda experincia desenvolvida por ns, vinculada ao projeto Prolicen. 8 Grifo nosso.

  • O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES

    61

    dicionrios para esse verbete, tomemos como exemplo o verbete

    poltico do Mni Houaiss - Dicionrio da Lngua Portuguesa, edio de 2008:

    Poltico: 1 relativo a poltica 2 relativo a negcios pblicos privado 3 que exerce

    influncia administrativa em nveis federal, estadual, municipal etc. 4 relativo a

    cidadania 5 quem trata ou se ocupa da poltica apoltico 6 quem revela polidez,

    diplomacia impoltico 7 quem revela diplomacia ou astcia para conduzir

    acontecimentos ou pessoas 8 aquele que exerce cargo pblico ou atua indiretamente na

    poltica.

    No entanto, o entrevistado vai mais alm, coloca uma

    observao, abaixo da definio de poltico, afirmando que esse

    poltico da definio, no h no Brasil. No dicionrio, conforme

    acompanhamos acima, o que poltico diferente, contrrio, ao que

    impoltico, ao que apoltico. No dicionrio, uma coisa no pode ser

    outra: porque l, no dicionrio, o bom distinto do ruim... as

    palavras referem-se, sempre, a uma nica e mesma coisa, todas s

    vezes que l vamos buscar informaes e tirar dvidas (Id. 1996, p.

    151). E no poderia ser diferente, porque esse instrumento um

    mundo construdo pela cincia da linguagem com a prpria

    linguagem (Id. , p.151). O dicionrio, no pode, ento, misturar o que

    poltico quilo que no poltico.

    Mas, a lngua em funcionamento esta que a minha lngua, a

    do falante, a do leitor desse texto, a do entrevistado pelo aluno l na

    escola -, essa se movimenta, extrapola o que est posto como certo,

    como nico, e, ento, as palavras passam a tomar sentidos novos nas

  • DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI

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    prticas sociais: poltico, no Brasil, para os brasileiros, tem outro

    sentido, que no est no dicionrio: politicagem! Um sentido novo, que

    se relaciona com corrupo, com falsas promessas, que faz parte da

    vida poltica brasileira de forma to explcita, to intrnseca, que

    impossvel, para um brasileiro, falar de poltica sem falar de

    politicagem. Ento, aquilo que no se relaciona no dicionrio, que

    significa o oposto de algo (), justamente o que faz sentido para o

    falante da lngua, o que no pode deixar de ser dito, um sentido que

    est intimamente significando com outro. Dessa forma, aquilo que no

    , que no nomeia, no caracteriza, no significa, que no pode

    significar, justamente o que passa a ser, o que passa a significar

    quando a lngua entra em funcionamento, em movimento. O sentido

    de verdade se perde. Se h poltica, essa poltica do Brasil de outra

    natureza, ela pe em falso o que est no dicionrio, indo alm dos

    sentidos dicionarizados. O falante da lngua produz os sentidos sob

    determinadas condies de produo, ele vive a poca das eleies e

    por isso seu dizer historicizado; no h como conter isso na definio

    de um verbete de um dicionrio que se pretende atemporal e, s

    vezes, a-histrico.

    Se entrarmos em sala de aula e no atentarmos para essa lngua

    que se movimenta e desestabiliza os conceitos que esto postos como

    nicos e imutveis, como o caso dos saberes do dicionrio, se no

    atentarmos para os outros discursos que circulam, ento, o fazer

    pedaggico perder a graa, para quem aprende e tambm para

    quem ensina e, portanto, estaremos apenas cumprindo com o papel

  • O USO DO DICIONRIO NA SALA DE AULA: CONDIES PARA AS CONTRADIES

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    ideolgico da escola, de reproduzir: sentidos, sujeitos e lugares para

    esses sujeitos ocuparem...

    Orlandi, ao discutir as relaes entre a cidade e a escola, prope

    que a escola seja um espao onde se crie condies para as

    contradies. Para ela, a escola deve ir para a rua, de modo que

    venha fazer o sujeito experimentar os sentidos da cidade real (2002,

    p. 255). Esse foi, tambm, o propsito de nosso trabalho em sala de

    aula: estabelecer relaes, propor contradies, fazer emergir

    contradies, que existem sim, mas so, em geral, apagadas pela

    escola, pelo ensino, silenciadas pelos instrumentos de ensino. Eis

    algumas contradies que surgiram durante a primeira9 experincia

    realizada em sala de aula:

    Enunciados dos entrevistados:

    Sou idoso porque eu j vivi muita coisa nessa vida. Ser idoso ter a responsabilidade de ser o patriarca da famlia, o mais experiente (A, 68 anos). Sou idoso porque j trabalhei muito e hoje estou aposentado. Idoso ser o conselho e alertar os mais novos (H, 82 anos).

    9 Referimo-nos aqui a primeira experincia realizada pelo grupo, no ano de 2007, que motivou as outras duas experincias realizadas em 2008 (Ver relato de atividades1). Nesse espao, as crianas entrevistaram pessoas da comunidade, para depois relacionar os resultados com o que estava posto no dicionrio

  • DAIANE DA SILVA DELEVATI & VERLI PETRI

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    Enunciados nos dicionrios10:

    Sobre idoso: quem tem muitos anos de vida; que tem muita idade; velho. Velho: desusado, antiquado. Desusado: que esta fora de uso, que no aproveitado; antiquado. Antiquado: que esta fora de moda; ultrapassado.

    Aps a leitura dos enunciados acima, os alunos, ento, apontam

    as diferenas entre o que est institucionalizado no dicionrio e o que

    est no social da lngua, ou seja, os sentidos da cidade real:

    ... depois procuramos no dicionrio, mas na verdade no constava a mesma opinio. Tambm descobrimos que o dicionrio muitas vezes no est certo (C). Eu no concordo e no acho legal o que pensam sobre idosos (M). Eu acho que no esto fora de moda, e desuso, eu acho que muito pejorativo

    (H)11.

    Para Orlandi, ao ir para a rua, a escola ficaria sensvel

    transformao: expor-se-ia ao fora dela. O que torna, segundo a

    10 Reproduzindo o efeito palavra puxa palavra, prprio do dicionrio. Esses enunciados referem-se aos minidicionrios que foram util