O Arqueiro

GERALDO JORDÃO PEREIRA (1938-2008) começou sua carreira aos 17anos, quando foi trabalhar com seupai, o célebre editor José Olympio,publicando obras marcantes como

O menino do dedo verde, deMaurice Druon, e Minha vida, deCharles Chaplin.

Em 1976, fundou a EditoraSalamandra com o propósito deformar uma nova geração deleitores e acabou criando um doscatálogos infantis mais premiadosdo Brasil. Em 1992, fugindo de sualinha editorial, lançou Muitasvidas, muitos mestres, de BrianWeiss, livro que deu origem àEditora Sextante.

Fã de histórias de suspense,

Geraldo descobriu O Código DaVinci antes mesmo de ele serlançado nos Estados Unidos. Aaposta em ficção, que não era ofoco da Sextante, foi certeira: otítulo se transformou em um dosmaiores fenômenos editoriais detodos os tempos.

Mas não foi só aos livros que sededicou. Com seu desejo de ajudaro próximo, Geraldo desenvolveudiversos projetos sociais que setornaram sua grande paixão.

Com a missão de publicar histórias

empolgantes, tornar os livros cadavez mais acessíveis e despertar oamor pela leitura, a EditoraArqueiro é uma homenagem a estafigura extraordinária, capaz deenxergar mais além, mirar nascoisas verdadeiramente importantese não perder o idealismo e aesperança diante dos desafios econtratempos da vida.

Título original: A Breathe ofSnow and Ashes

Copyright © 2005 por DianaGabaldon

Copyright da tradução © 2018por Editora Arqueiro Ltda.

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro

pode ser utilizada oureproduzida sob quaisquer

meios existentes semautorização por escrito dos

editores.

tradução: Fernanda Abreu e MarianaSerpa

preparo de originais: Diogo Henriques

revisão: Ana Grillo, Ana Kronemberger,Hermínia Totti e Milena Vargas

diagramação: Valéria Teixeira

capa: Saída de Emergência

imagem de capa: Joana Kruse/ ArcangelImage

adaptação para e-book: Marcelo Morais

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NAPUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORESDE LIVROS, RJ

G111o Gabaldon, Diana

Outlander [recursoeletrônico]: um sopro de nevee cinzas/ Diana Gabaldon;tradução de Fernanda Abreu,

tradução de Fernanda Abreu,Mariana Serpa. São Paulo:Arqueiro, 2018.

recurso digital (Outlander;6)

Tradução de: A breath of snowand ashes

Sequência de: Outlander: acruz de fogo

Formato: ePubRequisitos do sistema:

Adobe Digital EditionsModo de acesso: World

Wide WebISBN 978-85-8041-806-4

(recurso eletrônico)

1. Ficção americana. 2.Livros eletrônicos. I. Abreu,Fernanda. II. Serpa, Mariana.III. Título. IV. Série.

18- CDD: 813

18-48499

CDD: 813CDU: 821.111(73)-3

Todos os direitos reservados,no Brasil, por

Editora Arqueiro Ltda.Rua Funchal, 538 – conjuntos

52 e 54 – Vila Olímpia04551-060 – São Paulo – SPTel.: (11) 3868-4492 – Fax:

(11) 3862-5818E-mail:

atendimento@editoraarqueiro.com.brwww.editoraarqueiro.com.br

Sumário

PrólogoPARTE I – Rumores de guerra

1. Uma conversa interrompida2. Chalé holandês3. Mantenha os amigos sempreperto4. Serpente no Éden5. As sombras que o fogo lança6. Emboscada7. James Fraser, agenteindígena

PARTE II – As sombras se adensam8. Vítima de um massacre

9. O limiar da guerra10. O dever chama11. Exame de sangue12. Mais mistérios da ciência13. Mãos seguras14. Povo junco15. Afogada na estaca

PARTE III – Cada coisa tem a suaestação

16. Le mot juste17. Os limites do poder18. Vrum!19. A feitura de feno20. Presentes perigosos21. Temos ignição22. Feitiço23. Anestesia

24. Não me toques25. Das cinzas às cinzas

PARTE IV – Rapto26. Um olho no futuro27. O barracão de maltagem28. Maldições29. Perfeitamente bem30. O prisioneiro31. Hora de dormir32. A forca é boa demais33. Onde a sra. Bug intervém34. As provas do caso

PARTE V – Grandes desesperanças35. Laminaria36. Lobos de inverno37. Le Maître des champignons38. Um demo no leite

39. Eu sou a ressurreiçãoPARTE VI – Na montanha

40. Primavera de pássaros41. O armeiro42. Ensaio geral43. Refugiados44. Scotchee45. Uma mácula no sangue46. Onde as coisas saem doprumo47. Abelhas e varas48. Orelha-de-judas49. O veneno do vento norte50. Arestas afiadas51. A vocação52. M-I-C...

PARTE VII – Morro abaixo

53. Princípios54. O churrasco de FloraMacDonald55. Wendigo56. Piche e penas57. A volta do pastor

PARTE VIII – O chamado58. Amar uns aos outros59. O sapo vai à corte60. O cavaleiro branco avança61. Uma epidemia nauseante62. Ameba63. Momento de decisão64. Eu sou a ressurreição, parte265. A declaração66. A escuridão se avulta

67. A última risadaPARTE IX – Os ossos do tempo

68. Selvagens69. Um estouro de castores70. Emily71. Morcela72. Traições73. Jogo duplo74. Tão romântico75. Piolhos

PARTE X – Onde está Perry Masonquando precisamos dele?

76. Correspondência perigosa77. Dezoito de abril78. A fraternidade universaldos homens79. Alertas

80. O mundo de cabeça parabaixo81. O benefício da dúvida82. Não é o fim do mundo83. Declarações84. Entre as alfaces85. A noiva roubada86. Prioridades87. A justiça é minha, diz osenhor88. No rastro de um escândalo89. Um voo ao luar90. Quarenta e seis feijões devantagem91. Um esquema bastanteperfeito92. Amanuense

93. Em que fiz as vezes dedama94. Fuga às pressas95. O cruzador96. Pólvora, complô e traição97. Pelo bem de quem a mereça

PARTE XI – No Dia da Vingança98. Para afastar um fantasma99. Velho patrão100. Viagem ao litoral101. Ronda noturna102. Anêmona103. Interrogatório104. Dormindo com um tubarão105. O pródigo106. Encontro107. Lua nova

108. A danada é alta109. Todas as notíciasadequadas para impressão110. Cheiro de luz111. Vinte e um de janeiro112. Quebrador de juramentos113. Os fantasmas de Culloden

PARTE XII – O tempo não serásempre nosso

114. Amanda115. Com o dedo no nariz116. O nono Conde deEllesmere117. Decerto a justiça e amisericórdia me acompanharão118. Arrependimento119. Relutante em partir

120. Se fosse só por mim121. Cruzando o abismo122. O guardião123. O retorno do nativo124. Propriedade do rei

Epílogo – LallybrochEpílogo II – O diabo mora nosdetalhesAgradecimentosConheça outros títulos da sérieOutlanderSobre a autoraInformações sobre a Arqueiro

Este livro é dedicado a

CHARLES DICKENSROBERT LOUIS STEVENSON

DOROTHY L. SAYERSJOHN D. MACDONALD

eP. G. WODEHOUSE

PRÓLOGO

O tempo é uma das muitas coisasque se diz que Deus é.

Há o fato de ser semprepreexistente, e o fato de não ter fim.Há o conceito de ser todo-poderoso... pois nada pode resistirao tempo, certo? Nem montanhas,

nem exércitos.E o tempo, claro, cura tudo.

Basta dar tempo suficiente aqualquer coisa e tudo se resolve:toda a dor é contida, toda adificuldade apagada, toda a perdaabsorvida.

Das cinzas às cinzas, do pó aopó. Lembra-te, homem, de que tu éspó, e ao pó voltarás.

E, se o Tempo se parece comDeus, imagino que a Memória devaser o Diabo.

P A R T E I

Rumores de guerra

1

UMA CONVERSAINTERROMPIDA

O cachorro foi o primeiro apressentir sua presença. De tãoescuro que estava, Ian Murraysentiu, mais do que viu, a cabeça deRollo se erguer de repente junto àsua coxa, as orelhas se empinarem.

Encostou a mão no pescoço do cão esentiu os pelos ali eriçados dealerta.

Os dois eram tão sintonizadosum com o outro que ele nem pensou“homens” de modo consciente, maslevou a outra mão à faca epermaneceu deitado sem se mexer,respirando. À escuta.

A floresta estava silenciosa.Faltavam horas para o amanhecer, eo ar estava parado como dentro deuma igreja, com uma névoasemelhante a incenso a se erguer

devagar do chão. Ele havia sedeitado para descansar sobre otronco caído de um gigantescotulipeiro-da-virgínia, pois preferiaas cócegas dos bichos da madeira àumidade penetrante. Manteve a mãopousada no cão e aguardou.

Rollo rosnava, um ronco baixo econstante que Ian mal conseguiaescutar, mas que podia comfacilidade sentir, e cuja vibração lhesubia pelo braço e despertava todosos nervos de seu corpo. Não estavadormindo, agora raramente dormia à

noite, mas estava tranquilo, com osolhos pregados na abóbada celeste,entretido em seu debate habitual comDeus. O movimento de Rollo tinhaposto fim a essa tranquilidade. Elese sentou devagar e dependurou aspernas na lateral do tronco meioapodrecido, o coração batendodepressa agora.

O alerta de Rollo não havia sealterado, mas sua grande cabeça semoveu, acompanhando algoinvisível. Era uma noite sem lua; Ianconseguia distinguir as débeis

silhuetas das árvores e as sombrasmoventes da noite, mas nada alémdisso.

Então os escutou. Ruídos de algopassando. A uma boa distância, mascada vez mais próximos. Levantou-se e pisou de leve na poça negradebaixo de um abeto-balsâmico. Aum estalo de sua língua, Rollo paroude rosnar e o seguiu, tão silenciosoquanto o lobo que fora seu pai.

Do local de repouso de Ian davapara ver uma trilha de caça. Oshomens que vinham por ela não

estavam caçando.Homens brancos. Isso era

estranho, e mais do que estranho.Ele não podia vê-los, mas nemprecisava: os barulhos que faziameram inconfundíveis. Índios nãoeram silenciosos quando viajavam, emuitos habitantes das Terras Altasentre os quais vivia eram capazes dese mover qual fantasmas na mata...mas ele não teve a menor dúvida.Metal, era isso. Estava ouvindo ochacoalhar de arreios, o estalo debotões e fivelas – e dos canos das

armas.Muitos. Tão próximos que

começou a sentir o cheiro deles.Inclinou-se um pouco para a frente,com os olhos fechados, para farejarmelhor qualquer pista queconseguisse.

Eles levavam peles – nessa horasentiu o cheiro de sangue seco epelo frio que decerto haviaacordado Rollo –, mas certamentenão eram daqueles que capturavamanimais com armadilhas, por seremnumerosos demais. Caçadores

andavam sozinhos ou em duplas.Homens pobres, sujos. Não

preparavam armadilhas nem eramcaçadores. Embora fosse fácil acharanimais naquela estação, eles tinhamcheiro de fome. E exalavam o suorda bebida de má qualidade.

Agora estavam perto, talvez a 3metros de onde ele estava. Rolloemitiu um leve resfolego e Ianfechou novamente a mão no pescoçodo animal, mas os homens faziambarulho demais para poderem ouvir.Contou os passos, as batidas dos

cantis e das caixas de munição,grunhidos de pés doloridos esuspiros de cansaço.

Vinte e três homens, calculou, ejunto com eles uma mula... oumelhor, duas. Pôde ouvir o rangidode alforjes cheios e aquelarespiração pesada e relutante de umamula carregada, sempre a ponto dereclamar.

Os homens jamais teriamdetectado os dois, mas algumcapricho do vento levou o cheiro deRollo até as mulas. Um relincho

ensurdecedor dominou a escuridão,e a floresta à sua frente explodiunuma algaravia de pancadas e gritosde surpresa. Ian já estava correndoquando tiros de pistola estouraramatrás dele.

– A Dhia!Algo o atingiu na cabeça e ele

caiu de bruços. Será que morreria?Não. Rollo encostou um focinho

úmido e preocupado em sua orelha.Sua cabeça zumbia feito umacolmeia, e ele via clarões brilhantesde luz diante dos olhos.

– Corra! Ruith! – disse ele,arquejante, empurrando o cachorro.– Corra para longe!

O cão hesitou e produziu umganido bem no fundo da garganta.Ian não conseguiu ver, mas sentiu ocorpanzil se projetar e se virar paratrás, indeciso.

– Ruith!Ficou de quatro para dar o

exemplo e o cão por fim obedeceu ecomeçou a correr como foratreinado.

Não havia tempo para ele

próprio correr, mesmo que tivesseconseguido ficar em pé. Ele caiu debruços, enfiou as mãos e os pés bemfundo nas folhas bolorentas e secontorceu feito um louco para seenterrar ali.

Um pé lhe deu um pisão entre asescápulas, mas o ar que ele expeliudos pulmões foi abafado pelasfolhas úmidas. Com todo o barulhoque estavam fazendo, isso não teveimportância. Quem pisou nele nempercebeu; foi apenas de raspão e ohomem passou por cima dele em

pânico, sem dúvida tomando-o porum tronco podre.

Os tiros cessaram. Os gritos não,mas ele não entendeu o que diziam.Sabia que estava deitado de cara nochão, sentindo a friagem úmida nasbochechas e o cheiro forte de folhasmortas no nariz, mas teve a sensaçãode estar muito bêbado e de que omundo girava lentamente ao seuredor. Sua cabeça não doía muitoapós a primeira explosão de dor,mas ele não parecia capaz delevantá-la.

Pensou vagamente que, semorresse ali, ninguém saberia. Suamãe acharia ruim não saber o queacontecera com o filho, pensou.

Os barulhos se fizeram maisdébeis, mais ordenados. Alguémainda berrava, mas a voz tinha umtom de comando. Eles estavam indoembora. Ocorreu-lhe de modo difusoque poderia chamá-los. Sesoubessem que ele era branco,talvez o ajudassem. Ou talvez não.

Continuou calado. Se estivessemorrendo, não havia ajuda possível.

Se não estivesse, não precisava denenhuma ajuda.

Bom, eu pedi, afinal, não foi?,pensou, retomando a conversa comDeus, tão calmo quanto se aindaestivesse deitado tranquilo no troncodo tulipeiro, com os olhos erguidospara a vastidão do firmamento lá emcima. Um sinal, falei. Só nãoesperava que o Senhor fosseatender tão depressa.

2

CHALÉ HOLANDÊS

Março de 1773

Ninguém sabia que o chalé existiaaté Kenny Lindsay ver as chamasquando estava subindo o riacho.

– Eu não teria visto nada – disseele, talvez pela sexta vez – não fosseo cair da noite. Se estivesse de dia

eu nunca teria sabido, nunca. –Correu uma das mãos trêmulas pelorosto, sem conseguir desgrudar osolhos da fileira de cadáveres quejazia na orla da floresta. – Foramselvagens, Mac Dubh? Não temninguém escalpelado, mas talvez...

– Não. – Jamie tornou a pousardelicadamente o lenço sujo defuligem sobre o rosto de olhos azuisvidrados de uma menina pequena. –Nenhum deles está ferido. Você deveter visto isso quando os tirou de lá,não?

Lindsay fez que não com acabeça, de olhos fechados, e foipercorrido por um estremecimentoconvulso. Era fim de tarde, um diagelado de primavera, mas os homenstodos suavam.

– Eu não olhei – disse eleapenas.

Minhas próprias mãos pareciamgelo, tão anestesiadas e insensíveisquanto a carne borrachuda da mulhermorta que eu estava examinando.Fazia mais de um dia que elestinham morrido; a rigidez cadavérica

já havia passado, deixando-osflácidos e gelados, mas o tempo frioda primavera na montanha ospreservara até aquele momento dasindignidades mais repulsivas daputrefação.

Mesmo assim, mantive arespiração curta; o cheiro dequeimado deixava o ar amargoso.Filetes de vapor subiam de vez emquando da ruína carbonizada dopequeno chalé. Com o canto do olho,vi Roger chutar um pedaço de lenhaali perto, em seguida se curvar e

recolher algo do chão embaixo dele.Kenny havia esmurrado nossa

porta bem antes de o dia nascer,tirando-nos de camas quentinhas.Tínhamos vindo às pressas, emborasoubéssemos que chegaríamos tardepara oferecer qualquer ajuda.Alguns dos arrendatários dasfazendas da Cordilheira dos Fraserstambém tinham vindo; Evan, irmãode Kenny, estava em pé junto comFergus e Ronnie Sinclair numpequeno grupo debaixo das árvores,conversando baixinho em gaélico.

– Sabe o que os matou,Sassenach? – De cócoras ao meulado, Jamie tinha o semblante aflito.– Aqueles debaixo das árvores,quero dizer. – Ele meneou a cabeçapara o cadáver na minha frente. – Eusei o que matou essa pobre coitada.

A longa saia da mulher esvoaçouao vento e levantou, deixando àmostra pés compridos e magroscalçados com tamancos de couro.Um par de mãos compridas jaziainerte junto às laterais do corpo. Erauma mulher alta, embora não tanto

quanto Brianna, pensei, e olhei emvolta automaticamente à procura doscabelos brilhantes da minha filha, amover-se por entre os galhos dooutro lado da clareira.

Eu tinha suspendido o avental damulher para lhe cobrir a cabeça e aparte superior do corpo. Suas mãoseram vermelhas, com os nóscalejados pelo trabalho e as palmasgrossas, mas pela firmeza das coxase a esbeltez do corpo pensei que elanão devia ter mais de 30 anos...provavelmente bem menos. Ninguém

era capaz de dizer se tinha sidobonita.

O comentário de Jamie me fezbalançar a cabeça.

– Não acho que ela tenhamorrido por causa do incêndio –falei. – As pernas e os pés estãointactos, está vendo? Ela deve tercaído dentro da lareira. Os cabelospegaram fogo, e o fogo se espalhouaté os ombros do vestido. Ela deveter caído perto o suficiente daparede ou da cobertura da chaminépara que as chamas os alcançassem,

e então o chalé inteiro pegou fogo.Jamie aquiesceu devagar, com os

olhos pregados na morta.– É, faz sentido. Mas o que foi

que os matou, Sassenach? Os outrosestão um pouco chamuscados, masninguém está queimado desse jeito.Acho que já deviam estar mortosquando o chalé pegou fogo, poisnenhum deles saiu correndo. Seráque foi uma doença mortal?

– Acho que não. Deixe-me olharos outros de novo.

Percorri lentamente a fileira de

corpos imóveis, com seus rostoscobertos de tecido, e me abaixeijunto a cada um deles para espiaroutra vez por baixo das mortalhasimprovisadas. Naqueles dias, semantibióticos e sem a possibilidadede administrar fluidos a não ser pelaboca ou pelo reto, muitas doençaspodiam ser mortais, e um simplescaso de diarreia podia matar em 24horas.

Eu via essas coisas comfrequência suficiente parareconhecê-las facilmente; qualquer

médico vê, e eu era médica haviamais de vinte anos. De vez emquando via coisas naquele séculocom as quais jamais havia medeparado no meu, em especialdoenças parasitárias horríveistrazidas dos trópicos junto com otráfico de escravos, mas não fora umparasita que causara o fim daquelaspobres almas, e nenhuma doença queeu conhecia deixava aqueles sinaisnas vítimas.

Todos os corpos, a mulherqueimada, uma outra bem mais velha

e três crianças, tinham sidoencontrados dentro da casa emchamas. Kenny os havia tirado de lápouco antes de o telhado ruir, e emseguida fora buscar ajuda a cavalo.Todos já estavam mortos antes de oincêndio começar; todos deviam termorrido praticamente ao mesmotempo, pois com certeza o fogocomeçara a arder pouco depois de amulher cair morta na lareira, ou não?

As vítimas haviam sidodispostas de forma ordenada sob osgalhos de um gigantesco espruce-

vermelho enquanto os homenscomeçavam a cavar uma cova aliperto. Brianna estava postada junto àmais nova das meninas, de cabeçabaixa. Fui me ajoelhar junto aocorpinho, e ela se ajoelhou em frentea mim.

– O que foi? – indagou,baixinho. – Veneno?

Ergui os olhos para ela,surpresa.

– Acho que sim. O que a fezpensar isso?

Ela meneou a cabeça para o

rosto matizado de azul na nossafrente. Havia tentado fechar os olhosda menina, mas estes seesbugalhavam para fora das órbitas,deixando a pequena com umaexpressão de horror e espanto. Ostraços pequeninos e duros estavamcontorcidos num ríctus de agonia, ehavia restos de vômito nos cantos daboca.

– Manual da escoteira –respondeu Brianna. Relanceou osolhos para os homens, mas ninguémestava perto o suficiente para

escutar. Sua boca tremeu e ela tirouos olhos do cadáver ao mesmotempo que estendia a mão aberta. –Nunca coma nenhum cogumeloestranho – citou. – Há muitasvariedades venenosas, e distinguiruma da outra é trabalho paraespecialistas. Roger encontrou estesbrotando em disposição de anelperto daquele pedaço de madeiraali.

Copas úmidas e carnudas, de ummarrom bem claro com pintasbrancas parecendo verrugas, as

guelras abertas e talos finos tãoclaros que pareciam quasefosforescentes à sombra do espruce.Tinham um aspecto agradável,terroso, que desmentia seu caráterletal.

– Cogumelos-pantera – falei,meio para mim mesma, e recolhi umdeles com cuidado da palma da mãode Brianna. – Agaricuspantherinus... ou pelo menos assimserão chamados quando alguém seder o trabalho de classificá-los.Pantherinus por matarem tão

depressa... como o ataque de umfelino.

Pude ver o arrepio percorrer oantebraço de Brianna, eriçando ospelos macios e dourados comreflexos avermelhados. Ela virou amão e largou no chão o resto dosfungos mortais.

– Quem, em sã consciência, iriacomer cogumelos? – indagou ela,limpando a mão na saia com um levecalafrio.

– Gente que não sabia. Genteque estava com fome, talvez –

respondi baixinho.Segurei a mão da menininha e

apalpei os ossos delicados doantebraço. O ventre pequeninoexibia sinais de inchaço, embora eunão soubesse dizer se era devido àdesnutrição ou às mudançasocorridas após a morte, mas asclavículas eram afiadas como aslâminas de uma foice. Todos oscadáveres eram magros, ainda quenão chegassem a estar emaciados.

Ergui os olhos para as sombrasazul-escuras lançadas pelo flanco da

montanha acima do chalé. Aindaestava cedo no ano para cataralimentos, mas havia comida desobra na floresta... para quemsoubesse reconhecer.

Jamie se aproximou, ajoelhou-seao meu lado e, com suavidade,pousou sua mão enorme nas minhascostas. Apesar do frio, um filete desuor escorria por seu pescoço, eseus fartos cabelos ruivos estavamescurecidos nas têmporas.

– A cova está pronta – disse ele,baixinho, como para não alarmar a

criança. – Foi isso que matou amenina?

Ele indicou com a cabeça oscogumelos espalhados pelo chão.

– Acho que sim... e os outrostambém. Você olhou em volta?Alguém sabe quem eram eles?

Jamie fez que não com a cabeça.– Não são ingleses, as roupas

estão erradas. Alemães com certezateriam ido para Salem, pois sãoalmas clânicas, sem inclinação parase assentarem sozinhas. Talvezfossem holandeses. – Ele meneou a

cabeça em direção aos tamancos demadeira talhada nos pés da velha,rachados e manchados de tanto uso.– Não sobrou nenhum livro nemnada escrito, se é que havia algoantes. Nada que possa revelar onome deles. Mas...

– Não fazia muito tempo queestavam aqui.

Uma voz baixa e rouca me fezolhar para cima. Roger havia seaproximado; agachou-se junto aBrianna e meneou a cabeça emdireção aos restos fumegantes do

chalé. Uma pequena horta havia sidodemarcada na terra ali perto, mas aspoucas plantas que neladespontavam não passavam debrotos, com as folhas tenras murchase escurecidas pela geada tardia. Nãohavia barracões, nenhum sinal deanimais, nenhuma mula ou porco.

– Emigrantes recém-chegados –continuou Roger baixinho. – Nãoeram escravos por dívida, isto aquiera uma família. Tampouco estavamacostumados com o trabalho ao arlivre: as mãos das mulheres têm

bolhas e cicatrizes recentes.Sua mão larga esfregou de

maneira distraída o joelho da calçade fabricação caseira. As palmasagora estavam tão uniformementecalejadas quanto as de Jamie, masRoger costumava ser um acadêmicode pele fina; ainda recordava a dorde se acostumar à lida.

– Fico pensando se elesdeixaram alguém para trás... naEuropa – murmurou Brianna.Afastou os cabelos louros da testada menina e tornou a pousar o lenço

sobre o rosto. Vi seu pescoço semover quando ela engoliu em seco.– Eles nunca vão saber o queaconteceu.

– Não. – Jamie se levantou dechofre. – Dizem que Deus protege ostolos... mas acho que até mesmo oTodo-Poderoso perde a paciência devez em quando. – Ele virou as costase acenou para Lindsay e Sinclair. –Procurem o homem – falou paraLindsay.

Todas as cabeças se levantarampara encará-lo.

– O homem? – repetiu Roger,então lançou um olhar abrupto paraos restos queimados do chalé e foicomeçando a entender. – É... quemconstruiu o chalé para eles?

– Podem ter sido as mulheresque construíram – disse Bree,empinando o queixo.

– Sim, você até poderia – disseRoger, e sua boca se retorceu deleve quando ele olhou de viés para aesposa.

Brianna tinha mais do que ocolorido em comum com Jamie:

media 1,83 metro sem sapatos, etinha a mesma força e os mesmosmembros esguios do pai.

– Talvez pudessem ter sido elas,mas não foram – disse Jamie,sucinto, movendo a cabeça emdireção aos escombros do chalé,onde algumas peças de mobíliaainda conservavam seus formatosfrágeis.

Enquanto eu olhava para lá, ovento da noite chegou e soprousobre a ruína, e a sombra de umbanquinho virou cinzas sem fazer

ruído, volutas de fuligem e carvão ase mover como fantasmas rente aochão.

– Como assim?Levantei-me, fui até o lado dele

e olhei para dentro da casa também.Não restava praticamente nada ládentro, embora o duto da chaminéainda estivesse de pé e houvessemsobrado pedaços irregulares dasparedes, as toras de madeiradesabadas como num jogo de pega-varetas.

– Não há nada de metal – disse

ele, meneando a cabeça para alareira empretecida onde jaziam osrestos de um caldeirão rachado porcausa do calor, seu conteúdoevaporado. – Nenhuma panela a nãoser essa daí... e ela é pesada demaispara ser transportada. Nenhumaferramenta. Nem faca, nemmachado... e dá para ver que quemconstruiu isto aqui tinha essascoisas.

Dava mesmo: as madeiras aindatinham a casca, mas os entalhes epontas exibiam as marcas nítidas de

um machado.Franzindo o cenho, Roger catou

um longo galho de pinheiro ecomeçou a revirar as pilhas decinzas e entulho à procura de algoque lhe desse certeza. KennyLindsay e Sinclair não se deram essetrabalho; Jamie tinha lhes dito paraprocurar um homem, e eles partiramsem demora para obedecer à ordem,desaparecendo mata adentro. Fergusfora com eles; Evan Lindsay, seuirmão Murdo e os McGillivraysderam início à tarefa de catar pedras

para um monumento funerário.– Se havia mesmo um homem...

será que ele as abandonou? –murmurou Brianna para mim,alternando o olhar entre o pai e afileira de corpos. – Será que essamulher pensou que eles não iriamsobreviver sozinhos?

E, portanto, tirara a própriavida, e a dos filhos, para evitar umamorte lenta de frio e de fome?

– Deixá-las aqui e levar todas asferramentas? Meu Deus, espero quenão. – Ao pensar nisso, fiz o sinal da

cruz, embora o fizesse sem muitaconvicção. – Elas não teriam saídodaqui e procurado ajuda? Mesmocom crianças... a neve já derreteuquase toda.

Somente os mais altosdesfiladeiros de montanhacontinuavam cobertos de neve, eembora as trilhas e encostasestivessem molhadas e enlameadaspor causa da neve derretida, faziapelo menos um mês que se podiapercorrê-las.

– Achei o homem – disse Roger,

interrompendo meus pensamentos.Ele falou com uma voz muito calma,mas parou para limpar a gargantacom um pigarro. – Logo... logo ali.

O dia começava a escurecer,mas pude ver que Roger haviaempalidecido. Não era de espantar:a forma encolhida que Roger haviadesencavado de baixo das madeirascarbonizadas de uma parede emruínas era medonha o bastante parafazer qualquer um se impressionar.Consumida pelo fogo até ficarinteiramente negra, com as mãos

erguidas na postura de boxeador tãocomum nas pessoas mortas pelofogo, era difícil até ter certeza deque se tratava mesmo de umhomem... embora eu tenha achadoque sim, pelo que pude ver.

Qualquer especulação relativa aesse novo cadáver foi interrompidapor um grito da orla da floresta:

– Nós os encontramos, milorde!Todos ergueram os olhos que

contemplavam o novo cadáver eviram Fergus acenando da beira damata.

Eram dois homens dessa vez.Esparramados no chão à sombra dasárvores, encontrados não juntos, masnão muito distantes um do outro,apenas a uma curta distância dacasa. E ambos, até onde eu podiaconstatar, decerto mortos apósconsumirem cogumelos venenosos.

– Este aqui não é nenhumholandês – disse Sinclair pelo quedevia ser a quarta vez, balançando acabeça acima de um dos corpos.

– Talvez seja – falou Fergus, emtom de dúvida. Coçou o nariz com a

ponta do gancho que usava no lugarda mão esquerda. – Das Índias, non?

Um dos corpos desconhecidosera de fato o de um homem negro. Ooutro era branco, e ambos vestiamroupas sem qualquer característicaespecial, de fabricação caseira,camisas e calças; apesar do frio, nãousavam casaco. E estavam os doisdescalços.

– Não. – Jamie balançou acabeça enquanto esfregava uma dasmãos distraidamente na calça, comopara se livrar do contato dos mortos.

– É, os holandeses têm escravos emBarbuda... mas estes aqui estão maisbem alimentados do que o pessoaldo chalé. – Ele empinou o queixo emdireção à fileira silenciosa demulheres e crianças. – Estes homensnão moravam aqui. Além do mais...– Vi seus olhos se fixarem nos pésdos mortos.

Os pés estavam encardidos naaltura dos tornozelos e muitocalejados, mas basicamente limpos.As solas do negro tinham um cor-de-rosa amarelado, sem marcas de lama

ou folhas soltas presas entre osdedos. Aqueles homens não haviamcaminhado descalços pela florestalamacenta, isso era certo.

– Então talvez houvesse maishomens? E quando estes daquimorreram, os companheiros tiraramseus sapatos, e qualquer outra coisade valor... – acrescentou Fergus,prático, gesticulando do chaléqueimado para os corpos descalços.– ... e fugiram.

– É, pode ser.Jamie franziu os lábios e seu

olhar se moveu devagar pela terrado quintal... mas o chão estavarevirado por vários passos, comtufos de grama soltos e inteiramentecobertos por uma fina camada decinzas e pedaços de madeiracarbonizada. O lugar parecia tersido devastado por uma manada dehipopótamos.

– Queria que o Jovem Ianestivesse aqui. Ele é o melhor dosrastreadores; talvez pelo menospudesse nos dizer o que aconteceu. –Indicou com a cabeça a mata onde

os homens tinham sido encontrados.– Quantos homens eram, quem sabe,e para onde foram.

O próprio Jamie não era um maurastreador. Mas a luz agoraesmaecia depressa; mesmo naclareira onde ficava o chaléincendiado, a escuridão já seadensava, empoçando debaixo dasárvores e escorrendo feito óleo pelaterra revirada.

Seus olhos miraram o horizonte,onde nuvens esgarçadas começavama luzir, douradas e cor-de-rosa, à

medida que o sol se punha atrásdelas, e ele balançou a cabeça.

– Enterrem-nos. Depois vamosembora.

Restava ainda uma descobertasinistra. O homem queimado era oúnico entre os mortos a não termorrido nem pelo fogo, nem porveneno. Quando eles levantaram ocadáver carbonizado das cinzas paralevá-lo até a cova, algo se soltou docorpo e aterrissou no chão com umruído breve e pesado. Briannarecolheu o objeto e o esfregou com o

canto do avental.– Acho que eles não viram isto

daqui – falou, um poucodesanimada, estendendo-o.

Era uma faca. O cabo demadeira havia sido consumido porcompleto e a lâmina estavadeformada por causa do calor.

Fazendo força para suportar ofedor espesso e acre de gordura ecarne queimadas, curvei-me acimado cadáver e examinei com cuidadoo tronco. O fogo destrói muita coisa,mas preserva as mais estranhas. O

ferimento triangular estava bemvisível, chamuscado na depressãoabaixo das costelas.

– Ele levou uma facada – falei, elimpei as mãos suadas em meuavental.

– Eles o mataram – disse Bree,me encarando. – Depois a esposa...– Ela olhou de relance para a jovemcaída no chão, com o avental a lhecobrir a cabeça. – Ela fez umguisado com os cogumelos, e todoscomeram. As crianças também.

Tirando o canto distante dos

pássaros na montanha, a clareiraestava silenciosa. Eu podia escutarmeu coração batendo dolorosamentedentro do peito. Teria sidovingança? Ou apenas desespero?

– É, pode ser – disse Jamiebaixinho. Abaixou-se para seguraruma das pontas da lona sobre a qualeles haviam deitado o morto. – Nósvamos chamar de acidente.

O holandês e sua família forampostos numa cova, os doisdesconhecidos na outra.

Um vento frio tinha se erguido

depois de o sol se pôr; o avental foisoprado para longe do rosto damulher quando eles a levantaram.Sinclair soltou um grito engasgadode choque e quase a deixou cair.

Ela não tinha mais rosto nemcabelos, a cintura fina se estreitavade maneira abrupta numa ruínacarbonizada. A carne da cabeça foraconsumida por completo, deixandoum crânio estranhamente pequeninoe enegrecido, onde os dentes searreganhavam com uma levezadesconcertante.

Eles a baixaram apressadamentepara dentro da cova rasa, com osfilhos e a mãe ao seu lado, e Briannae eu fomos encarregados deconstruir um monumento de pedrassobre o túmulo – segundo o antigocostume escocês, para marcar olugar e proporcionar proteção contraos animais selvagens – enquanto umlocal de descanso mais rudimentarera escavado para os dois homensdescalços.

Com o trabalho enfim concluído,todos se reuniram, pálidos e

calados, ao redor dos montinhosrecém-feitos. Vi Roger se postarbem ao lado de Brianna, com obraço passado de modo protetor aoredor de sua cintura. Um levecalafrio a percorreu, e senti que nãotinha nada a ver com o frio. O filhodo casal, Jemmy, era cerca de umano mais novo do que a menor dasmeninas.

– Pode dizer algumas palavras,Mac Dubh?

Kenny Lindsay olhou para Jamiecom uma expressão interrogativa ao

mesmo tempo que puxava o gorro detricô para proteger as orelhas do frioque se intensificava.

A noite estava quase caindo, eninguém queria se demorar ali.Teríamos de montar acampamentoem algum lugar bem longe do fedordo incêndio, e isso já seria difícil osuficiente no escuro. Mas Kennytinha razão: não podíamos ir emborasem pelo menos um arremedo decerimônia, alguma despedida paraaqueles desconhecidos.

Jamie fez que não com a cabeça.

– Não, deixe Roger Mac falar.Se essa gente era holandesa,provavelmente devia ser protestante.

Apesar da luz mortiça, vi o olharincisivo que Brianna lançou para opai. De fato, Roger erapresbiteriano; Tom Christie também,um homem bem mais velho cujosemblante azedo refletia sua opiniãoem relação àqueles procedimentos.Mas a questão religiosa não passavade um pretexto, e todos sabiamdisso, inclusive Roger.

Roger limpou a garganta com um

pigarro que lembrou um tecido serasgando. Aquele era sempre umbarulho dolorido. Nesse dia, haviaraiva nele também. Mas Roger nãoprotestou, e encarou Jamie aoocupar seu lugar na cabeceira dotúmulo.

Pensei que ele fossesimplesmente rezar o pai-nosso, ouquem sabe um dos salmos maisbrandos. Mas foram outras palavrasque lhe ocorreram.

– Se grito: É injustiça!, nãoobtenho resposta; clamo por

socorro, todavia não há justiça. Elebloqueou o meu caminho, e nãoconsigo passar; cobriu de trevas asminhas veredas.

Sua voz já tinha sido potente ebela. Agora estava engasgada, e nãopassava de um arremedo rascante dabeleza antiga; mas havia podersuficiente na paixão com a qual elefalava para fazer todos queescutavam baixarem a cabeça, com orosto perdido nas sombras.

– Despiu-me da minha honra etirou a coroa de minha cabeça. Ele

me arrasa por todos os lados,enquanto eu não me vou;desarraiga a minha esperançacomo se arranca uma planta.

Embora sua expressão semantivesse firme, seus olhospousaram por um desolador instanteno toco carbonizado que servira àfamília holandesa como base paracortar lenha.

– Ele afastou de mim os meusirmãos; até os meus conhecidosestão longe de mim. Os meusparentes me abandonaram e os

meus amigos esqueceram-se demim.

Vi os três Lindsays seentreolharem e todos chegaram maisperto uns dos outros, para seproteger do vento que ganhava força.

– Misericórdia, meus amigos!Misericórdia! – exclamou Roger,então sua voz se abrandou, fazendocom que fosse difícil escutá-lo como farfalhar das árvores: – Pois amão de Deus me feriu.

Brianna fez um leve movimentoao seu lado e ele tornou a pigarrear,

de modo explosivo, esticando opescoço de forma que pude entrevera cicatriz saltada que o marcava.

– Quem dera as minhaspalavras fossem registradas! Quemdera fossem escritas num livro,fossem talhadas a ferro no chumbo,ou gravadas para sempre na rocha!

Ele correu os olhos lentamentede um rosto a outro, mantendo osemblante inexpressivo, em seguidainspirou fundo para prosseguir, e suavoz se embargou com as palavras:

– Eu sei que o meu Redentor

vive, e que no fim se levantarásobre a terra. E depois que o meucorpo estiver destruído e semcarne... – Brianna estremeceuconvulsivamente e desviou os olhosdo monte de terra recente. – ... vereia Deus. Eu o verei, com os meuspróprios olhos; eu mesmo, e nãooutro!

Roger se calou e ouviu-se umbreve suspiro coletivo quando todossoltaram a respiração contida. Masele ainda não havia terminado.Estendera a mão,

semiconscientemente, para segurar ade Bree, que apertou com força.Disse as últimas palavras quasepara si mesmo, pensei, pouco seimportando com quem escutava:

– Temam a espada, porquantopor meio dela a ira lhes trarácastigo, e então vocês saberão quehá julgamento.

Estremeci, e a mão de Jamie sefechou em volta da minha, friaporém forte. Ele baixou os olhospara mim e eu o encarei. Sabia o queele estava pensando.

Estava pensando, assim comoeu, não no presente, mas no futuro.Em uma breve nota a ser publicadadali a três anos nas páginas doWilmington Gazette, datada de 13de fevereiro de 1776:

É com pesar querecebemos a notícia damorte por fogo de JamesMacKenzie Fraser e desua esposa, Claire Fraser,numa conflagração quedestruiu sua casa no

assentamento daCordilheira dos Frasers,na noite de 21 de janeiroúltimo. O sr. Fraser,sobrinho do falecidoHector Cameron daFazenda de River Run,nasceu em BrochTuarach, na Escócia. Erabastante conhecido naColônia e profundamenterespeitado; não deixafilhos vivos.

Até então fora fácil não darmuita importância a isso. Tãodistante no futuro, e com certeza nãoum futuro imutável... afinal, quemestá avisado se prepara... ou não?

Olhei de relance para omonumento de pedras raso e umcalafrio mais profundo mepercorreu. Dei um passo mais paraperto de Jamie e pousei a outra mãoem seu braço. Ele cobriu minha mãocom a sua e apertou forte para mereconfortar. Não, falou para mim emsilêncio. Não, eu não vou deixar

isso acontecer.Quando saímos da clareira

desolada, porém, não conseguiapagar da mente uma imagem vívida.Não a do chalé incendiado, dospobres cadáveres, da hortaressequida e mirrada. A imagem queme assombrou foi uma que eu viraalguns anos antes: a de uma lápidenas ruínas do Priorado de Beauly,bem no alto das Terras Altasescocesas.

Era a sepultura de uma nobredama, cujo nome estava encimado

pelo entalhe de uma caveirasorridente... muito parecida com aque havia sob o avental daholandesa. Abaixo da caveira estavagravado o seu lema:

Hodie mihi cras tibi – sictransit gloria mundi.Hoje a minha vez –

amanhã a sua. Assimpassa a glória do mundo.

3

MANTENHA OS AMIGOSSEMPRE PERTO

Retornamos à Cordilheira dosFrasers pouco antes do pôr do soldo dia seguinte e demos com umavisita à nossa espera: o majorDonald MacDonald, ex-integrantedo exército de Sua Majestade, e

mais recentemente da guarda pessoalde cavalaria leve do governadorTyron, estava sentado nos degrausdo alpendre em frente à casa, commeu gato no colo e um jarro decerveja a seu lado.

– Sra. Fraser! Seu criado,senhora – disse ele, cordial, ao mever chegar.

Tentou se levantar, mas entãosoltou um arquejo quando Adso, emprotesto contra a perda de seu ninhoaconchegante, cravou as unhas emsuas coxas.

– Pode ficar sentado, major –falei, acenando sem demora para elese sentar novamente.

Ele obedeceu com uma careta,mas com nobreza se conteve paranão jogar Adso longe no meio dosarbustos. Subi no degrau ao seu ladoe me sentei, suspirando de alívio.

– Meu marido está só cuidandodos cavalos, vai descer em seguida.Vejo que alguém já o acolheu?

Meneei a cabeça para a cerveja,que ele prontamente me ofereceucom um gesto cortês, limpando o

bico do jarro na manga.– Ah, sim, senhora – garantiu-

me. – A sra. Bug cuidou com esmerodo meu bem-estar.

Para não parecer inamistosa,aceitei a cerveja, que por sinal caiumuito bem. Jamie ficara ansiosopara voltar e estávamos em cima dasela desde a aurora, com apenas umabreve parada para comer e beber aomeio-dia.

– Excelente bebida – comentou omajor, sorrindo ao me ver suspirarapós engolir e semicerrar os olhos.

– De sua própria lavra, talvez?Fiz que não com a cabeça e

tomei outro gole antes de lhedevolver o jarro.

– Não, da lavra de Lizzie. LizzieWemyss.

– Ah, sua serva; sim, claro. Podelhe transmitir meus cumprimentos?

– Ela não está aqui?Um tanto surpresa, olhei para a

porta aberta atrás dele. Àquela horado dia, imaginava que Lizzie fosseestar na cozinha, preparando ojantar, mas ela com certeza teria nos

escutado chegar e saído. Foi entãoque percebi que não era possívelsentir cheiro de comida. Ela nãopoderia saber a que horas nosesperar, é claro, mas...

– Humm, não. Ela está... – Omajor uniu as sobrancelhas noesforço de se lembrar, e meperguntei quão cheio devia estar ojarro antes de ele começar a beber;agora restavam apenas uns 5centímetros. – Ah, sim. A sra. Bugdisse que ia à casa dosMcGillivrays com o pai. Visitar o

noivo, creio eu?– Sim, ela está noiva de Manfred

McGillivray. Mas a sra. Bug...– ... está na despensa externa –

disse ele, meneando a cabeça morroacima em direção ao pequenobarracão. – Alguma coisa a ver como queijo, acredito que tenha dito.Uma omelete foi-me graciosamenteoferecida como jantar.

– Ah...Relaxei mais um pouco, sentindo

a poeira da viagem assentar juntocom a cerveja. Era maravilhoso

chegar em casa, embora minhasensação de paz estivesseperturbada, maculada pelalembrança do chalé incendiado.

Imaginei que a sra. Bug tivessecontado ao major sobre a nossaempreitada, mas ele não fezqualquer menção ao assunto, nem aoque o tinha levado até a Cordilheira.Era natural que não: qualquerassunto importante aguardaria Jamie,como era apropriado. Por ser dosexo feminino, eu tinha direito,enquanto isso, a uma cortesia

impecável e a pequenos bocados deamenidades.

Eu sabia falar de amenidades,mas precisava estar preparada; nãoera um talento natural.

– Ah... Suas relações com meugato parecem ter melhorado umpouco – arrisquei.

Relanceei os olhosinvoluntariamente para a cabeça domajor, mas sua peruca havia sidoconsertada com perícia.

– Trata-se de um princípioaceito da política, creio eu – disse

ele, correndo os dedos pela espessapelagem prateada do ventre deAdso. – Mantenha os amigos sempreperto... mas os inimigos mais pertoainda.

– Muito sensato – comentei, comum sorriso. – Ahn... espero que osenhor não tenha esperado muito.

Ele deu de ombros, indicandoque qualquer espera era irrelevante,o que de fato era verdade. Asmontanhas tinham um tempo próprio,e um homem sábio não tentavaapressá-las. MacDonald era um

soldado experiente, viajado... mastinha nascido em Pitlochry, perto osuficiente dos cumes das TerrasAltas para conhecer seus costumes.

– Cheguei hoje de manhã – disseele. – De New Bern.

Pequenos sinos de alarmedispararam dentro da minha cabeça.Ele devia ter levado uns bons dezdias para vir de New Bern, setivesse vindo direto... e a condiçãode seu uniforme amarrotado e sujode lama sugeria ser esse o caso.

New Bern era onde havia fixado

residência o novo governador realda colônia, Josiah Martin. E o fatode MacDonald ter dito “de NewBern”, em vez de qualquer outraparada posterior na viagem, tornavarazoavelmente evidente para mimque o motivo de sua visita, fosse elequal fosse, havia se originado emNew Bern. Eu desconfiava degovernadores.

Olhei para o caminho queconduzia ao barracão, mas Jamieainda não tinha aparecido. A sra.Bug, sim: estava justamente saindo

da despensa externa. Dei-lhe umaceno, e ela gesticulou entusiasmadapara mim em sinal de boas-vindas,embora estivesse carregada comuma vasilha de leite numa das mãos,um balde de ovos na outra, um potede manteiga sob um dos braços e umgrande naco de queijo bem presosob o queixo. Efetuou com sucesso adescida íngreme e desapareceu atrásda casa, na direção da cozinha.

– Pelo visto todo mundo vaicomer omelete – observei, virando-me de volta para o major. – O

senhor por acaso passou por CrossCreek?

– Passei, sim, senhora. A tia doseu marido lhe mandou lembrançasafetuosas... bem como vários livrose jornais, que eu trouxe comigo.

Ultimamente eu também andavadesconfiada dos jornais, muitoembora os acontecimentos por elesrelatados sem dúvida houvessemocorrido várias semanas antes,quando não meses. Apesar disso,emiti ruídos de aprovação,desejando que Jamie se apressasse

para poder pedir licença. Meuscabelos estavam com cheiro dequeimado e minhas mãos aindarecordavam o contato da pele fria;eu queria muito me limpar.

– Desculpe, como disse?Eu tinha deixado escapar alguma

coisa que MacDonald estavadizendo. Ele se curvoueducadamente mais para perto demodo a repetir, então deu um trancorepentino e esbugalhou os olhos.

– Maldito gato!Adso, que vinha fazendo uma

esplêndida imitação de um pano deprato inerte, havia se levantado feitoum raio no colo do major, com osolhos acesos e o rabo todo eriçado,e silvava feito uma chaleira aomesmo tempo que cravava as unhasnas pernas do major. Não tive tempode reagir antes de ele pular por cimado ombro de MacDonald edesaparecer pela janela aberta doconsultório mais atrás, rasgando orufo da gola do major e deixandosua peruca torta ao passar.

MacDonald não parava de

praguejar, mas eu não tinha atençãode sobra para lhe dedicar. Rollovinha subindo a trilha em direção àcasa, lupino e sinistro sob a luz docrepúsculo, mas agindo de um modotão estranho que eu já estavalevantada antes mesmo de qualquerpensamento consciente poder mecolocar de pé.

O cão corria alguns passos emdireção à casa, dava uma ou duasvoltas em torno de si mesmo comose não conseguisse decidir o quefazer em seguida, então tornava a

entrar correndo na mata, virava-se, evoltava a correr em direção à casa,tudo isso ganindo de agitação, com orabo encolhido e oscilante.

– Ai, Jesus H. Roosevelt Cristo!– exclamei. – Alguma coisaaconteceu!

Desci voando os degraus e corriem direção à trilha, mal tomandoconhecimento da exclamação desurpresa do major atrás de mim.

Encontrei Ian algumas centenasde metros mais adiante, consciente,mas atordoado. Sentado no chão de

olhos fechados, ele segurava acabeça com as duas mãos paraimpedir que os ossos do crâniodesmontassem. Abriu os olhos, equando caí de joelhos ao seu ladome deu um sorriso desfocado.

– Tia – falou, rouco.Parecia querer dizer mais

alguma coisa, mas não conseguiudecidir o quê; sua boca se abriu,mas então simplesmente ficou assim,com a língua a se mover de um ladopara o outro de modo pensativo.

– Ian, olhe para mim – falei, com

a maior calma possível.Ele assim o fez... um bom sinal.

Estava escuro demais para ver sesuas pupilas estavam dilatadas, masmesmo à sombra crepuscular dospinheiros que margeavam a trilhapude perceber a palidez do seu rostoe o rastro escuro das manchas desangue em sua camisa.

Passos apressados vieram pelatrilha atrás de mim: Jamie, seguidode perto por MacDonald.

– Como você está, rapaz?Jamie o segurou pelo braço e Ian

cambaleou muito suavemente na suadireção, então baixou as mãos,fechou os olhos e relaxou nos braçosdele com um suspiro.

– Ele está mal? – indagou Jamiecom ansiedade por cima do ombrode Ian, segurando-o enquanto eu oexaminava em busca de ferimentos.

A parte de trás de sua camisaestava saturada de sangue... masseco. Os cabelos da nuca tambémestavam endurecidos de sangue, enão demorei a encontrar omachucado na cabeça.

– Acho que não. Alguma coisa oacertou com força na cabeça e tirouuma lasca do couro cabeludo, mas...

– Um tacape, você acha?MacDonald se inclinou acima de

nós, interessado.– Não – respondeu Ian, grogue,

com o rosto encostado na camisa deJamie. – Uma bala.

– Saia, cachorro – disse Jamierapidamente para Rollo, que tinhaenfiado o nariz na orelha de Ian,provocando uma exclamaçãoabafada do paciente e um levantar

involuntário de seus ombros.– Vou dar uma olhada no claro,

mas talvez não seja nada tão ruim –falei, observando a cena. – Afinal,ele caminhou um pouco. Vamoslevá-lo até a casa.

Os homens o ampararam trilhaacima, com os braços de Ian sobreseus ombros, e em poucos minutos ohaviam deitado de bruços sobre amesa do meu consultório. Ali elenos contou a história de suasaventuras, num discurso desconexopontuado por pequenos ganidos

enquanto eu limpava a ferida,cortava chumaços de cabelo comsangue coagulado e dava cinco ouseis pontos no seu couro cabeludo.

– Pensei que estivesse morto –disse Ian, e sorveu o ar por entre osdentes enquanto eu costurava asbordas do ferimento com o fioáspero. – Meu Deus, tia Claire! Sóque de manhã acordei, e no fim dascontas não estava morto... emboratenha pensado que minha cabeçaestivesse aberta e meus miolosescorrendo pelos ombros.

– Foi por pouco – murmurei,concentrando-me no trabalho. – Maseu não acho que tenha sido uma bala.

Isso chamou a atenção de todos.– Eu não levei um tiro?A voz de Ian soou levemente

indignada. Uma de suas mãosgrandes se ergueu e começou a semover em direção à parte de trás dacabeça, mas eu a afastei com umtapa leve.

– Fique quieto. Não, você nãolevou um tiro, não que isso adiantemuito. A ferida tinha bastante

sujeira, além de lascas de madeira ecasca de árvore. Se fosse para darum palpite, eu diria que um dos tirosderrubou o galho de uma árvore, evocê foi atingido na cabeça quandoo galho caiu.

– Tem certeza de que não foi umtacape?

O major também pareciadecepcionado.

Dei o último nó e cortei o fio,fazendo que não com a cabeça.

– Acho que nunca vi umferimento de tacape, mas suponho

que não seja o caso. Vê as bordasirregulares? E o couro cabeludo estábem dilacerado, mas não creio que oosso esteja fraturado.

– Segundo o rapaz, estava escurocomo breu – argumentou Jamie,coerente. – Nenhuma pessoa sensatairia lançar um tacape numa florestaescura em algo que não conseguissever. – Ele estava segurando olampião a álcool para eu podertrabalhar; aproximou-o um poucomais, de modo que pudéssemos vernão apenas a fileira irregular de

pontos, mas também o hematoma quese espalhava em volta, reveladopelos cabelos que eu havia cortado.– É, está vendo? – Jamie afastoudelicadamente com os dedos osúltimos fios de cabelo, e correu-ospor sobre vários arranhões fundosque riscavam a área machucada. –Sua tia tem razão, Ian; você foiatacado por uma árvore.

Ian entreabriu um dos olhos.– Alguém já lhe disse como o

senhor é engraçado, tio Jamie?– Não.

Ian fechou o olho.– Que bom, porque o senhor não

é.Jamie sorriu e apertou o ombro

do sobrinho.– Quer dizer que está se sentindo

um pouco melhor?– Não.– É, bom, o fato é que o rapaz

topou com algum tipo de banditti,não é mesmo? – interrompeu o majorMacDonald. – Tem motivo parapensar que pudessem ser índios?

– Não – tornou a dizer Ian, mas

dessa vez abriu por completo o olho.Estava vermelho. – Não eramíndios.

MacDonald pareceu não gostarda resposta.

– Como pode ter certeza, rapaz?– indagou ele, um tanto ríspido. – Seestava escuro como você diz...

Vi Jamie olhar de relance para omajor com um ar intrigado, mas elenão o interrompeu. Ian gemeu umpouco, em seguida suspirou:

– Senti o cheiro deles – falou. –Acho que vou vomitar –

acrescentou, quase em seguida.Erguendo-se num dos cotovelos,

ele prontamente fez o que dizia. Issoinibiu de modo eficaz qualquer outrapergunta, e Jamie conduziu o majorMacDonald em direção à cozinha,deixando-me encarregada de limparIan e acomodá-lo do modo maisconfortável possível.

– Consegue abrir os dois olhos?– indaguei, depois de limpá-lo ecolocá-lo descansando de lado, comum travesseiro sob a cabeça.

Ele os abriu, e a luz o fez piscar.

A pequenina chama azul do lampiãoa álcool se refletiu duplamente naescuridão de seus olhos, mas aspupilas encolheram na hora... e aomesmo tempo.

– Ótimo – declarei, e pousei olampião sobre a mesa. – Deixe isso,cachorro – falei para Rollo, quefarejava o cheiro estranho dolampião abastecido por uma misturade conhaque de má qualidade eterebintina. – Ian, segure meusdedos.

Estendi os indicadores e ele

lentamente fechou uma das mãosgrandes e ossudas em volta de cadaum. Fiz nele a bateria de examespara verificar danos cerebrais,mandando-o apertar, puxar,empurrar, e concluí escutando ocoração, que batia com umaregularidade tranquilizadora.

– Uma leve concussão –anunciei, endireitando-me e abrindo-lhe um sorriso.

– Ah, é? – fez ele, estreitando osolhos para mim.

– Quer dizer que a sua cabeça

está doendo e você está enjoado. Vaise sentir melhor daqui a uns dias.

– Isso eu também poderia ter lhedito – resmungou ele, tornando a serecostar.

– É, poderia – concordei. – Mas“concussão” soa bem maisimportante do que “cabeçaquebrada”, não é?

Ele não riu, mas reagiu com umdébil sorriso.

– Tia, a senhora pode darcomida a Rollo? Ele não quis medeixar no caminho; deve estar com

fome.O cão empertigou as orelhas ao

escutar o próprio nome e enfiou ofocinho na mão esticada de Ian,ganindo de leve.

– Ele está bem – falei para ocachorro. – Não se preocupe. E sim– continuei, dirigindo-me a Ian –,vou trazer alguma coisa. E você,acha que conseguiria comer umpouco de pão com leite?

– Não – respondeu ele,categórico. – Uma dose de uísque,quem sabe?

– Não – repeti, no mesmo tomcategórico, e soprei o lampião.

– Tia – chamou Ian quando euestava me virando para a porta.

– Sim?Eu havia deixado uma única vela

para lhe servir de iluminação, e àluz amarela bruxuleante ele pareceumuito jovem e muito pálido.

– Por que a senhora acha que omajor MacDonald quer que oshomens que eu encontrei na florestasejam índios?

– Não sei. Mas imagino que

Jamie saiba. Ou que, a esta altura, játenha descoberto.

4

SERPENTE NO ÉDEN

Brianna abriu a porta de seu chalécom um empurrão, atenta aotamborilar de pés de roedor ou aosussurro seco de escamas sobre opiso. Uma vez tinha entrado noescuro e pisado a poucoscentímetros de uma pequena

cascavel; embora o réptil tivesse seassustado tanto quanto ela e saídorastejando feito louco por entre aspedras da lareira, aprendera a lição.

Dessa vez não houve ruído decamundongos ou ratos-do-mato emfuga, mas alguma coisa maior tinhaestado ali e ido embora, abrindocaminho pela pele pregada em frenteà janela. O sol se punha, mas restavaluz do dia suficiente para que elavisse o cesto de grama trançada, noqual guardava amendoins torrados,derrubado de sua prateleira com as

cascas todas espalhadas pelo chão.Um farfalhar alto a fez congelar

por um instante e apurar os ouvidos.O ruído soou outra vez, seguido porum forte clangor quando algo caiu nochão do outro lado da parede dosfundos.

– Seu pestinha! – exclamou ela.– Você está dentro da minhadespensa!

Tomada por uma indignaçãojustificada, ela empunhou a vassourae partiu para dentro do anexo comum grito de diaba. Um imenso

guaxinim que mastigavatranquilamente uma truta defumadalargou o petisco ao vê-la, escapuliupor entre suas pernas e saiucorrendo feito um banqueiro gordoque tenta escapar dos credores,emitindo trinados bem altos dealarme.

Com os nervos pulsando de tantaadrenalina, ela pousou a vassoura ese abaixou para salvar o queconseguia no meio da bagunça,praguejando entre os dentes. Apesarde serem menos destruidores do que

esquilos, que conseguiam mastigar edespedaçar com desastrosoabandono, guaxinins tinham umapetite bem mais voraz.

Só Deus sabia quanto tempo elehavia passado ali dentro, pensou.Tempo suficiente para lamber toda amanteiga do molde, derrubar umfardo de peixe defumado das vigas...mas como um bicho tão gordo haviaconseguido o feito acrobático queisso exigia? Por sorte, o favo de melficava guardado em três vidrosseparados, e apenas um fora

conspurcado. Os legumes de raiz,porém, tinham sido jogados no chão,um queijo fresco quase tododevorado e o precioso jarro dexarope de bordo derrubado, fazendouma poça pegajosa encharcar a terrabatida. A visão de toda essa perdafez sua raiva brotar outra vez, e elaapertou com tanta força a batata queacabara de catar do chão que suasunhas penetraram a casca.

– Maldito, maldito, bichohorrível!

– Quem? – perguntou uma voz

atrás dela.Assustada, ela girou nos

calcanhares e atirou a batata nointruso, que se revelou ser Roger. Otubérculo o acertou em cheio natesta, e ele cambaleou e se segurouno batente da porta.

– Ai! Meu Deus! Ai! Que diaboestá acontecendo aqui?

– Um guaxinim – respondeu ela,sucinta, e deu um passo para trás,deixando a luz cada vez mais fracada porta iluminar o estrago.

– Ele pegou o xarope de bordo?

Safado! Conseguiu pegar o maldito?Com a mão pressionada na testa,

Roger se abaixou para entrar noanexo da despensa e olhou em voltaà procura de formas peludas.

Ver que o marido compartilhavatanto as suas prioridades quanto asua indignação foi algo que de certaforma tranquilizou Brianna.

– Não – respondeu ela. – Elefugiu. Você está sangrando? E ondeestá Jem?

– Acho que não – respondeuRoger, tirando a mão da testa com

cuidado e a examinando. – Ai! Quebraço esse seu, menina. Jem está nacasa dos McGillivrays. Lizzie e o sr.Wemyss o levaram para comemoraro noivado de Senga.

– É mesmo? E quem elaescolheu?

Tanto a indignação quanto oremorso foram consumidos namesma hora pelo interesse. UteMcGillivray, com uma eficiênciaalemã, havia selecionado parceirospara o filho e as três filhas segundoseus próprios critérios: terras,

dinheiro e respeitabilidade sendo ositens mais importantes, enquantoidade, aparência e charme ficavambem no final da lista. Como não erade espantar, seus filhos pensavamdiferente, mas a força dapersonalidade de Frau Ute eratamanha que tanto Inga quanto Hildahaviam desposado homensaprovados pela mãe.

Senga, porém, era a cópia damãe. Tinha opiniões igualmentefortes e uma falta de inibiçãosemelhante na hora de expressá-las.

Havia passado meses hesitandoentre dois pretendentes: HeinrichStrasse, rapaz atraente, porém pobree ainda por cima luterano, origináriode Betânia, e Ronnie Sinclair, otanoeiro, abastado pelos padrões daCordilheira e de Ute – tinha trintaanos a mais do que Senga, o que nãoera nenhum obstáculo.

A questão do casamento deSenga McGillivray era tema deintensa especulação na Cordilheirahavia muitos meses, e Brianna sabiade várias apostas nos diversos

desfechos possíveis.– Quem é o sortudo, afinal? –

repetiu ela.– A sra. Bug não sabe, o que a

está deixando louca – respondeuRoger, abrindo um sorriso. –Manfred McGillivray veio buscá-losontem de manhã, mas a sra. Bugainda não voltou da Casa Grande,então Lizzie deixou um bilhetepregado atrás da porta dizendo paraonde eles tinham ido... mas não lheocorreu dizer quem é o felizardo.

Brianna olhou rapidamente para

o sol poente: o astro já havia seescondido, mas a luz que banhava oscastanheiros ainda iluminava oquintal, deixando a grama deprimavera tão escura e macia quantoum veludo cor de esmeralda.

– Acho que vamos ter queesperar até amanhã para descobrir –disse ela com certo pesar.

A casa dos McGillivrays ficavaa uns bons 8 quilômetros. A noitecairia por completo bem antes deeles chegarem lá, e mesmo com aneve já derretida ninguém ficava

perambulando pelas montanhas noescuro sem um bom motivo, ou pelomenos um motivo melhor do que asimples curiosidade.

– É. Quer subir até a CasaGrande para jantar? O majorMacDonald está lá.

– Ah, ele.Brianna pensou por alguns

instantes. Gostaria de ouvir qualquernotícia trazida pelo major, e haviauma vantagem no fato de a sra. Bugpreparar o jantar. Por outro lado,não estava nem um pouco disposta a

se mostrar sociável após três diasdesalentadores, uma longa viagem ea conspurcação de sua despensa.

Teve consciência de que Rogerestava tomando cuidado para nãodar uma opinião. Com o braçoapoiado na prateleira onde estavaespalhado o estoque reduzido demaçãs do inverno, ele acariciava umdos frutos de maneira distraída,alisando devagar com o dedo a faceamarela arredondada. Leves econhecidas vibrações emanavamdele, sugerindo silenciosamente que

talvez houvesse vantagens em passaruma noite em casa, sem pais, semconhecidos... e sem bebê.

Sorriu para ele.– Como está sua pobre cabeça?Roger a olhou de relance, e os

últimos raios de sol pintaram dedourado o osso de seu nariz earrancaram um brilho esverdeado deum dos olhos. Ele pigarreou paralimpar a garganta.

– Acho que você poderia dar umbeijo – sugeriu ele, tímido. – Sequiser.

Ela obedeceu; ficou na ponta dospés e deu um beijo delicado,afastando os fartos cabelos pretos datesta dele. Havia um galoperceptível, embora ainda nãohouvesse sinal de hematoma.

– Melhorou?– Ainda não. É melhor você

tentar outra vez. Quem sabe umpouco mais embaixo?

Ele pousou as mãos nas curvasdo quadril dela e a puxou mais paraperto.

Brianna tinha quase a sua altura.

Ela já havia reparado antes noquanto isso ajudava no encaixe, masa mesma impressão tornou a lheocorrer de forma intensa. Ela seremexeu de leve, gostando daquilo,e Roger sorveu uma inspiraçãofunda e rascante.

– Não tão baixo assim – disseele. – Pelo menos não ainda.

– Exigente, você – falou ela,tolerante, e deu-lhe um beijo naboca. Seus lábios estavam mornos,mas ele ainda recendia a cinzaamarga e terra úmida, assim como

ela, e Brianna estremeceu um poucoe se afastou.

Roger manteve uma das mãos deleve em suas costas, mas se inclinouaté atrás dela e passou um dedo naborda da prateleira onde o jarro dexarope de bordo havia sidoderrubado. Passou o dedo de leveem seu lábio inferior, depois nopróprio, e tornou a se curvar parabeijá-la, e a ternura os dominou.

– Nem consigo me lembrar da últimavez que vi você nua.

Ela fechou um dos olhos e oencarou com ar cético.

– Faz uns três dias. Acho quenão deve ter sido assim tãomemorável.

Fora um grande alívio despir asroupas que vinha usando nos trêsúltimos dias e noites. Mesmo nua eapós uma toalete apressada, porém,ela ainda podia sentir cheiro depoeira nos cabelos e a sujeira daviagem entre os dedos dos pés.

– Ah, bem, é. Mas não foi issoque eu quis dizer... Enfim, já tem um

tempo que não fazemos amor à luzdo dia. – Deitado de costas comBrianna sentada sobre o seu corpo,ele sorriu enquanto corria a mão deleve pela curva acentuada de suacintura e pela protuberância dasnádegas. – Você não faz ideia decomo é bonita, nuinha em pelo, como sol batendo por trás. Todadourada, como se estivesse banhadaem ouro.

Ele fechou um dos olhos comose aquela visão o deixasse tonto. Elase mexeu e o sol bateu no rosto dele,

fazendo o olho aberto brilhar comouma esmeralda na fração de segundoantes de ele piscar.

– Humm.Ela estendeu a mão preguiçosa e

puxou a cabeça dele mais para pertopara beijá-lo.

Sabia do que ele estava falando.Aquilo era estranho... quaseperverso, de um jeito agradável. Namaioria das vezes os dois faziamamor à noite, depois de Jem dormir,sussurrando um para o outro nassombras lançadas pela lareira,

encontrando-se por entre as camadasfarfalhantes e secretas de mantas eroupas de dormir. E embora Jem emgeral dormisse como quem houvesselevado uma bordoada, tinhamsempre certa consciência domontinho a respirar de forma pesadasob a manta de sua cama rente aochão ali perto.

O esquisito era que ela estavaigualmente consciente de Jem agora,na sua ausência. Parecia estranhoestar longe do filho; não saber otempo todo onde ele estava, não

sentir o corpo dele como umaextensão pequena e irrequieta doseu. A liberdade era empolgante,mas a deixava com uma sensação deinquietude, como se tivesse perdidoalgo valioso.

Os dois deixaram a porta abertapara aproveitar melhor a cascata deluz e ar na pele. O sol agora, porém,havia quase se posto e, embora o arainda reluzisse feito mel, traziaconsigo uma sombra de frio.

Uma súbita rajada de ventosacudiu a pele estendida em frente à

janela e soprou para dentro doquarto, fazendo a porta bater edeixando-os de súbito no escuro.

Brianna deu um arquejo. Rogergrunhiu de susto, desceu da cama efoi abrir a porta. Abriu-a de par empar, e ela inspirou a corrente de ar esol, só então percebendo que haviaprendido a respiração quando aporta se fechara, sentindo-semomentaneamente sepultada.

Roger pareceu sentir o mesmo.Ficou parado no limiar da porta,apoiado no batente, deixando o

vento soprar os pelos escuros eencaracolados de seu corpo. Aindatinha os cabelos presos num rabo decavalo; não se dera o trabalho desoltá-los, e Brianna teve um súbitodesejo de chegar por trás dele,desamarrar a tira de couro e correros dedos por aqueles fios macios elustrosos, herança de algumespanhol distante naufragado entreos celtas.

Antes mesmo de tomar qualquerdecisão consciente, já estava de pé,tirando pequeninos amentos

amarelos e gravetos dos cachos delecom os dedos. Quer por causa doseu toque ou da sensação do ventona pele, Roger estremeceu, mas seucorpo estava quente.

– Você está bronzeado como umfazendeiro – comentou ela,levantando os cabelos de seupescoço e o beijando na nuca.

– Bem, e daí? Por acaso não soufazendeiro?

Sua pele se moveu sob os lábiosdela, como o couro de um cavalo.Seu rosto, pescoço e antebraços

haviam embranquecido durante oinverno, mas continuavam maisescuros do que a pele das costas edos ombros... e uma linha tênueainda perdurava ao redor da cintura,isolando o suave tom castanho dotronco da palidez surpreendente dasnádegas.

Ela espalmou as mãos sobreaquelas nádegas, apreciando suasolidez arredondada, e ele suspiroufundo, inclinando-se um pouco paratrás na sua direção de modo que osseios dela encostassem nas suas

costas e o queixo descansasse sobreo ombro, apontado para a frente.

Ainda restava luz, mas quasenenhuma. Os últimos raioscompridos do poente explodiam porentre os castanheiros, acendendocom um fogo frio o verde-primaverade suas folhas, que brilhavam acimadas sombras alongadas. Apesar deser quase noite, era primavera e ospássaros ainda piavam e secortejavam. Uma cotovia entoou nafloresta próxima uma mistura detrinados, sequências fluidas de notas

e estranhos lamentos que, pensouBrianna, deviam ter sido aprendidoscom o gato de sua mãe.

O ar esfriava, e a pele de seusbraços e coxas se arrepiou, mas ocorpo de Roger encostado no seuestava muito quente. Ela o enlaçoupela cintura e deixou os dedos deuma das mãos brincarem distraídoscom os pelos densos, curtos eencaracolados do peito dele.

– O que está olhando? –perguntou baixinho, pois ele tinha osolhos fixos no outro lado do quintal,

no ponto em que a trilha emergia dafloresta. Era difícil ver o começo datrilha, escondido pela sombra de umadensamento de pinheiros escuros,mas não havia ninguém ali.

– Estou vendo se avisto umaserpente trazendo maçãs –respondeu ele rindo e, em seguida,tossiu para limpar a garganta. – Estácom fome, Eva?

Roger baixou a mão e aentrelaçou à de Brianna.

– Quase. E você?Ele devia estar faminto. Os dois

haviam feito apenas um lancherápido ao meio-dia.

– Sim, estou, mas... – Ele seinterrompeu, hesitante, e apertoucom mais força os dedos dela. –Você vai pensar que eu sou maluco...mas acharia muito ruim se eu fossebuscar o pequeno Jem hoje à noite,em vez de amanhã? É que eu mesentiria um pouco melhor se eleestivesse aqui.

Ela, por sua vez, apertou a mãodele, sentindo o coração se animar.

– Vamos os dois. É uma ótima

ideia.– Pode ser, mas também são 8

quilômetros até a casa dosMcGillivrays. Vai escurecer muitoantes de chegarmos.

Mas ele estava sorrindo, e seucorpo roçou nos seios dela quandose virou para encará-la.

Algo se moveu junto ao rosto deBrianna, e ela recuou com ummovimento brusco. Uma pequeninalagarta, tão verde quanto as folhasdas quais se alimentava, e vibranteem meio aos cabelos escuros de

Roger, ergueu-se até formar um S,numa busca vã por um lugar para seproteger.

– O que foi?Roger moveu os olhos para os

lados, tentando ver o que ela via.– Achei sua serpente. Creio que

ela também esteja procurando umamaçã.

Ela catou a pequena lagarta como dedo, foi até lá fora e se agachoupara deixá-la sair rastejando poruma folha de grama do mesmo tomde verde que o seu. Só que a grama

estava na sombra. Num instanteapenas, o sol havia se posto, e afloresta não tinha mais as cores davida.

Um filete de fumaça chegou aoseu nariz; vinha da chaminé da CasaGrande, mas sua garganta se fechouao sentir o cheiro de queimado. Derepente, sua aflição aumentou. A luzse esvaía, a noite se aproximava. Acotovia havia silenciado, e a florestaparecia repleta de mistério eameaça.

Ela se levantou e passou uma

das mãos pelos cabelos.– Então vamos.– Não quer jantar primeiro?Roger a encarou com um ar de

interrogação, segurando a calça.Ela fez que não com a cabeça e

sentiu o frio lhe subir pelas pernas.– Não. Vamos logo.Nada parecia importar senão

buscar Jem e estarem reunidos outravez, uma família.

– Está bem – disse Roger comuma voz suave, espiando-a. – Masacho melhor você vestir a sua folha

de parreira primeiro. Só para o casode toparmos com um anjo de espadaflamejante.

5

AS SOMBRAS QUE O FOGOLANÇA

Abandonei Ian e Rollo ao portentode benevolência da sra. Bug; ele quetentasse dizer a ela que não queriapão e leite. Então fui me sentar commeu próprio e tardio jantar: umaomelete fresca e quentinha não só

com queijo, mas também compedaços de bacon salgado, aspargose cogumelos selvagens, e temperadacom cebolas frescas.

Jamie e o major MacDonald játinham acabado de comer, e estavamsentados junto ao fogo sob umanévoa acolhedora de fumaça detabaco vinda do cachimbo de barrodo militar. Pelo visto, Jamie acabarade concluir seu relato da medonhatragédia para o major, pois este tinhao cenho franzido e balançava acabeça em sinal de empatia.

– Pobres coitados! – lamentouele. – Está achando que foram osmesmos banditti que atacaram seusobrinho?

– Estou – respondeu Jamie. –Não gostaria de pensar que existemdois bandos como esse rondandopelas montanhas. – Ele relanceou osolhos para a janela, fechada para anoite de modo aconchegante, ereparei de repente que havia tiradosua espingarda de caçar aves decima da lareira e limpavadistraidamente o cano imaculado

com um trapo embebido em óleo. –É verdade que o senhor ouviurelatos sobre acontecimentosparecidos, a charaid?

– Três outros. Pelo menos.O cachimbo do major ameaçou

apagar e ele o sugou com força,fazendo o tabaco no fornilho luzir eestalar num lampejo vermelho.

Um leve receio fez com que eume detivesse com um pedaço decogumelo morno na boca. Apossibilidade de que uma ganguemisteriosa de homens armados

pudesse estar rondando à solta,atacando fazendas a esmo, não tinhame ocorrido até então.

Obviamente havia ocorrido aJamie; ele se levantou, tornou apendurar a caçadeira nos ganchos,tocou o fuzil pendurado acima delapara se reconfortar e em seguida foiaté o aparador, onde ficavamguardadas suas armas de fogo e oestojo com seu elegante par depistolas de duelo.

MacDonald o observava com arde aprovação, soltando lufadas de

uma fumaça azul-clara, e Jamie foidispondo de maneira metódicaarmas, bolsas de chumbinho, moldesde balas, hastes e todos os outrosimplementos de sua armariaparticular.

– Humm – fez MacDonald. –Bela peça esta aqui, coronel.

Ele indicou com a cabeça umadas armas, elegante e de cano longo,com cabo encurvado e detalhes emprata folheados a ouro.

Jamie o encarou por um breveinstante ao ouvir a palavra

“coronel”, mas quando respondeufoi com calma.

– Sim, uma bela peça. Só que amira não acerta nada a mais de doispassos. Ganhei numa corrida decavalos – acrescentou com umpequeno gesto de lamento emdireção à arma, para o caso deMacDonald o julgar tolo o bastantepara ter pago um bom dinheiro porela.

Mesmo assim, verificou apederneira, substituiu-a por outra epôs a arma de lado.

– Onde foram os acontecimentosmajor? – perguntou em tom casual,enquanto estendia a mão para pegaro molde de balas.

Apesar de ter recomeçado amastigar, eu mesma olhei para omajor com um ar interrogativo.

– Vejam bem, foi só o que ouvidizer – alertou MacDonald, tirandoo cachimbo da boca por um instante,em seguida recolocando-o depressapara mais uma tragada. – Umafazenda a certa distância de Salem,destruída por um incêndio. Um

pessoal chamado Zinzer... alemães.Ele sugou com força, e suas

bochechas se encovaram.– Foi em fevereiro, mais para o

final do mês. Então, três semanasdepois disso, uma balsa no rioYadkin, ao norte do Cais deWoram... a casa foi roubada e obalseiro, morto. O terceiro...

Nesse ponto, ele se interrompeu,pôs-se a tragar furiosamente echispou os olhos na minha direção,então tornou a olhar para Jamie.

– Pode falar, amigo – disse

Jamie em gaélico, com um arresignado. – Ela já deve ter vistomais coisas horríveis do que osenhor, de longe.

Meneei a cabeça para concordarao mesmo tempo que espetava com ogarfo outro pedaço de ovo, e omajor tossiu.

– É. Bem, com todo o respeito àsua presença, senhora... eu por acasome encontrava num, ahn... numestabelecimento em Edenton...

– Um bordel? – sugeri. – Sim,sei. Pode prosseguir, major.

Ele assim o fez, de modo umtanto apressado, com o rosto muitovermelho abaixo da peruca:

– Ahn... claro. Bem, vejam,quem me contou foi uma das, ahn...uma das moças do estabelecimento.Ela disse que tinha sido roubada emcasa por delinquentes que um diaatacaram o lugar sem aviso. Elavivia apenas com a avó idosa, efalou que eles mataram a velha equeimaram a casa com ela dentro.

– E quem fez isso, segundo ela?Jamie tinha virado seu

banquinho de frente para a lareira, ederretia aparas de chumbo numcadinho para o molde de balas.

– Ahn...O rubor de MacDonald se

acentuou, e a fumaça saiu de seucachimbo com tal ferocidade quemal consegui distinguir seus traçospor entre as sinuosas volutas.

À custa de muitas tossidas edesvios de rota, revelou-se que omajor na verdade não tinhaacreditado na moça naquelaoportunidade, ou então estava

interessado demais em provar seusencantos para prestar atenção.Tomando a história apenas por umadaquelas que as prostitutas muitasvezes contam para conseguirempatia e um copo a mais degenebra, não se dera o trabalho depedir mais detalhes.

– Mas depois, quando ouvi falarpor acaso nos outros incêndios...bem, vejam, eu tivera a sorte de serincumbido pelo governador de ficarcom as orelhas encostadas no chão,por assim dizer, nas regiões mais

afastadas da cidade, atento aqualquer sinal de perturbação. Ecomecei a pensar que naquele casoespecífico de perturbação talvez nãohouvesse tanta coincidência assimquanto a princípio poderia parecer.

Ao ouvir isso, Jamie e eu nosentreolhamos. A expressão deleestava matizada de bom humor, aminha de resignação. Ele haviaapostado comigo que MacDonald,oficial de cavalaria de meio-soldoque sobrevivia à custa de bicos, nãoapenas iria sobreviver à renúncia do

governador Tryon, como tambémconseguir cavar imediatamentealgum cargo no novo regime, agoraque Tryon fora embora para assumirum cargo mais importante comogovernador de Nova York. “Umcavalheiro de sorte, o nossoDonald”, dissera ele.

O cheiro agressivo de chumboquente começou a tomar conta dorecinto, competindo com a fumaçado cachimbo do major e superandoem muito a agradável atmosferadoméstica de pão fermentando,

comida no fogo, ervas secas, plantasusadas para limpeza e sabão de sodacáustica que em geral permeava acozinha.

O chumbo derrete de repente:num segundo, uma bala deformadaou botão torto está dentro docadinho, inteiro e distinto. Noinstante seguinte, sumiu, e umaminúscula poça de metal cintilafosca em seu lugar. Jamie despejoucom cuidado o chumbo derretidodentro do molde, desviando o rostodas emanações.

– Por que índios?– Ah. Bem, foi o que a puta de

Edenton disse. Que alguns dos quequeimaram sua casa e a roubarameram índios. Mas, como eu disse, naépoca não dei muita atenção àhistória.

Jamie produziu um ruído escocêspara indicar que entendia, emboracom ceticismo.

– E quando foi que o senhorencontrou essa moça, Donald, eouviu a história dela?

– Perto do Natal. – Sem erguer

os olhos, o major cutucou o fornilhodo cachimbo com um indicadormanchado. – Quando a casa dela foiatacada, o senhor quer dizer? Elanão disse, mas eu acho... talvez nãofizesse muito tempo. Ela estava,ahn... bastante fresca, ainda.

Ele tossiu, cruzou olharescomigo, prendeu a respiração etornou a tossir, forte, enquanto seurosto enrubescia.

A boca de Jamie se contraiu comforça e ele olhou para baixo,abrindo o molde para deixar cair

sobre a pedra da lareira uma balarecém-fundida.

Pousei o garfo; o que me restavade apetite havia sumido.

– Como? – perguntei. – Comoessa jovem foi parar no bordel?

– Ora, senhora, eles a venderam.– O rubor ainda coloria as faces deMacDonald, mas ele haviarecuperado a compostura osuficiente para me encarar. – Osbandoleiros. Venderam-na para umcomerciante fluvial, segundo ela,poucos dias depois de a terem

sequestrado. Ele a manteve consigopor um tempo, no seu barco, masentão, certa noite, um homemapareceu para fazer negócio, gostoudela e a comprou. Levou-a para olitoral, mas acho que a essa altura játinha se cansado dela...

Sem terminar a frase, tornou aenfiar o cachimbo na boca e sugoucom força.

– Entendo – falei, e senti ametade da omelete que havia comidocomo uma pequena bola dura nofundo do estômago.

“Bastante fresca, ainda.” Quantotempo devia levar, perguntei?Quanto tempo durava uma mulherpassada casualmente de mão emmão, das tábuas cheias de farpas deum convés de embarcação fluvialpara o colchão esfarrapado de umquarto alugado, comendo apenas osuficiente para se manter viva? Eramais do que possível que o bordelde Edenton tivesse lhe parecido umaespécie de porto seguro quando elachegara. Mas esse pensamento nãoaumentou minha simpatia por

MacDonald.– O senhor pelo menos se

lembra do nome dela, major? –perguntei, com gélida cortesia.

Pensei ter visto com o rabo doolho o canto da boca de Jamieestremecer, mas mantive o rostovirado para MacDonald.

O major tirou o cachimbo daboca, exalou um longo filete defumaça, então me encarou com olhosazul-claros e muito diretos.

– Na verdade, senhora, eusimplesmente chamo todas de Polly

– disse ele. – Poupa trabalho,entende?

Fui salva de responder, ou defazer coisa pior, pela reaparição dasra. Bug, que chegou trazendo umatigela vazia.

– O rapaz comeu e agora vaidormir – anunciou ela. Seus olhosargutos se moveram depressa domeu rosto para o prato esvaziadopela metade. Ela abriu a boca, como cenho franzido, mas então olhoupara Jamie e, parecendo escutar deleuma ordem muda, tornou a fechar a

boca e pegou o prato com um breve“hum!”.

– Sra. Bug – disse Jamiebaixinho. – Será que a senhorapoderia pedir a Arch para vir aquifalar comigo? E, se não for abusardemais, dar o mesmo recado aRoger Mac?

Os olhos pretos e miúdos da sra.Bug percorreram o recinto, então seestreitaram ao chegar a MacDonald,evidentemente desconfiando que, sehavia algo de estranho acontecendo,quem estava por trás era ele.

– Claro – respondeu ela, e,balançando a cabeça na minhadireção para me repreender porminha falta de apetite, pousou alouça e saiu, deixando a porta notrinco.

– Cais de Woram – disse Jamiepara MacDonald, continuando aconversa como se ela não houvessesido interrompida. – E Salem. E, seforem os mesmos homens, o JovemIan os encontrou na floresta, um diade viagem a oeste daqui. Perto osuficiente.

– Perto o suficiente para seremos mesmos? É, é, sim.

– Estamos no começo daprimavera.

Jamie olhou para a janela aodizer isso; estava escuro agora, e aspersianas tinham sido fechadas, masuma brisa fria penetrava pelasfrestas e balançava os fios nos quaiseu havia pendurado cogumelos parasecar, formas escuras e murchas quese sacudiam qual pequenosdançarinos, congeladas contra amadeira clara.

Eu sabia o que ele queria dizercom aquilo. O terreno das montanhasera impraticável durante o inverno;os altos desfiladeiros ainda estavamnevados, e as encostas mais baixashaviam apenas começado a verdejare florir nas últimas semanas. Sehouvesse mesmo uma gangueorganizada de saqueadores, talvezsó agora eles estivessem começandoa rumar para as regiões mais altas,depois de um inverno passadodiscretamente no sopé dasmontanhas.

– É verdade – assentiuMacDonald. – Cedo o bastante,quem sabe, para as pessoas estarematentas. Mas antes de os seushomens chegarem, senhor... talvezdevêssemos falar sobre o que metrouxe até aqui?

– Ah, sim? – disse Jamie,semicerrando os olhos com cuidadoenquanto despejava um filetecintilante de chumbo. – Claro,Donald. Eu deveria ter desconfiadoque nenhum assunto de pequenamonta o traria tão longe. O que é?

MacDonald sorriu como umtubarão; agora estávamos chegandoao ponto.

– O senhor fez um belo trabalhocom este seu lugar, coronel. Quantasfamílias vivem agora em suasterras?

– Trinta e quatro – respondeuJamie.

Não ergueu os olhos, mas soltoumais uma bala sobre as cinzas.

– Talvez haja lugar para maisalgumas?

MacDonald continuava a sorrir.

Estávamos cercados por milhares dequilômetros de natureza selvagem; opunhado de fazendas da Cordilheirados Frasers mal fazia uma mossanessa imensidão... e poderiadesaparecer feito fumaça. Pensei porum instante no chalé dos holandesese, apesar do fogo na lareira,estremeci. Ainda podia sentir ocheiro amargo e persistente de carnequeimada, espesso no fundo dagarganta, à espreita entre os saboresmais leves da omelete.

– Pode ser – respondeu Jamie,

calmo. – São os novos emigrantesescoceses? Lá do norte, depois deThurso?

Tanto o major MacDonaldquanto eu o encaramos.

– Como diabos o senhor sabedisso? – perguntou MacDonald. – Eumesmo só fiquei sabendo dez diasatrás!

– Encontrei um homem nomoinho ontem – respondeu Jamie,tornando a pegar o cadinho. – Umcavalheiro da Filadélfia que veio àsmontanhas coletar plantas. Ele havia

chegado de Cross Creek e os tinhavisto. – Um músculo perto de suaboca se contraiu. – Ao que parece,eles causaram certa comoção emBrunswick e não se sentiramexatamente bem-vindos, entãosubiram o rio em barcaças.

– Certa comoção? O que elesfizeram? – indaguei.

– Bem, ultimamente há muitagente chegando nos navios diretodas Terras Altas, a senhora entende– explicou o major. – Aldeiasinteiras abarrotadas nas entranhas de

um navio... e que quandodesembarcam parece mesmo teremsido cagadas. Só que não há nadapara essa gente na costa, e osmoradores das cidades têmtendência a apontar-lhes o dedo ezombar deles ao ver suas roupasesquisitas, de modo que a maioriasobe direto numa barcaça ou numachata e segue em direção a CapeFear. Pelo menos Campbelton eCross Creek têm um pessoal capazde falar com eles.

Ele sorriu para mim e limpou um

pouco da terra que sujava a saia docasaco de seu uniforme.

– O pessoal de Brunswick nãodeve estar muito acostumado comessa gente rústica das Terras Altas,já que eles só viram escocesescivilizados como o seu marido e atia dele.

Ele meneou a cabeça em direçãoa Jamie, que em troca lhe fez umaleve e irônica mesura.

– Bem, relativamente civilizados– murmurei. Não estava pronta paraperdoar MacDonald pela puta de

Edenton. – Mas...– Pelo que ouvi dizer, eles mal

falam uma palavra de inglês entre si– prosseguiu MacDonald apressado.– Farquard Campbell desceu parafalar com eles e os levou até o nortepara Campbelton, caso contrário nãoduvido que eles ainda fossem estarapinhados no litoral sem a menorideia de para onde ir ou do quefazer.

– O que Campbell fez com eles?– quis saber Jamie.

– Ah, estão distribuídos entre os

parentes dele em Campbelton, masisso não vai dar certo a longo prazo,claro, já dá para ver.

MacDonald deu de ombros.Campbelton era um pequenopovoado perto de Cross Creek,nascido a partir do bem-sucedidoarmazém de Farquard Campbell, eas terras ao redor estavamtotalmente ocupadas... em suamaioria pelos Campbells. Farquardtinha oito filhos, muitos dos quaistambém eram casados... e tão férteisquanto o pai.

– Claro – falou Jamie com ar decautela. – Mas eles são do litoralnorte. Devem ser pescadores,Donald, não fazendeiros.

– É, mas estão dispostos a mudarde vida, não? – MacDonald fez umgesto em direção à porta e à florestamais além. – Na Escócia não sobrounada para eles. Eles vieram para cá,e agora precisam tirar disso omelhor proveito possível. Comcerteza um homem pode aprender aser fazendeiro, não?

Jamie tinha um ar um tanto

cético, mas MacDonald estavainteiramente tomado peloentusiasmo.

– Já vi muitos pescadores eagricultores virarem soldados,homem, e aposto que o senhortambém. Ser fazendeiro não pode sermais difícil do que ser soldado.

Isso fez Jamie sorrir de leve: elepróprio tinha largado a vida defazendeiro aos 19 anos e passaravários anos lutando comomercenário na França antes de voltarà Escócia.

– É, bem, talvez você tenharazão, Donald. Mas, quando você ésoldado, tem alguém para lhe dizer oque fazer desde a hora em queacorda até a hora em que desaba ànoite. Quem vai dizer a esses pobrestolos de que lado ordenhar a vaca?

– No caso seria você, imagino –falei. Estiquei-me para relaxar ascostas e olhei para MacDonald. –Ou pelo menos imagino que sejanesse ponto que o senhor queirachegar, não, major?

– Seu charme só é superado pelo

seu raciocínio rápido, minha senhora– disse MacDonald, curvando ocorpo graciosamente na minhadireção. – Sim, é essa a essência.Todos vocês aqui são das TerrasAltas, senhor, e são fazendeiros. Vãoconseguir, na língua desses recém-chegados, mostrar a eles o queprecisam fazer... ajudá-los a traçarseu caminho.

– Há muitas outras pessoas nacolônia que falam gaidhlig –contrapôs Jamie. – E a maioria morabem mais perto de Campbelton.

– Sim, mas vocês aqui têm terraslivres que precisam ser desmatadas,e eles lá não.

Evidentemente achando quehavia ganhado a discussão,MacDonald se recostou e empunhousua negligenciada caneca de cerveja.

Jamie olhou para mim com asobrancelha arqueada. Era verdademesmo que tínhamos terras livres: 4mil hectares, mas a área cultivadamal chegava a 8. Era verdadetambém que a falta de mão de obraera um problema sério em toda a

colônia, e mais ainda nas montanhas,onde as terras não se prestavam nemao cultivo do tabaco nem do arroz...os tipos de lavoura adequados aotrabalho escravo.

Ao mesmo tempo, contudo...– A dificuldade, Donald, é como

assentar essa gente. – Jamie securvou para soltar mais uma balasobre a pedra da lareira e seendireitou, ajeitando uma mechasolta de cabelos ruivos atrás daorelha. – Eu tenho terras, sim, maspouco mais do que isso. Não se

pode soltar uma gente direto daEscócia na mata virgem e esperarque eles consigam sobreviver. Eunão poderia sequer lhes dar ossapatos e a muda de roupas que umescravo receberia, quanto maisferramentas. E quanto a alimentardurante o inverno todos esseshomens e suas esposas e bebês? Oulhes dar proteção?

Para ilustrar o que dizia, eleergueu o cadinho, em seguidabalançou a cabeça e jogou lá dentromais um pedaço de chumbo.

– Ah, proteção. Bem, já que osenhor falou nisso, deixe-meabordar outra pequena questãointeressante.

MacDonald se inclinou para afrente e, apesar de não haverninguém escutando, baixou a voz atéum tom confidencial.

– Eu disse que sou o homem dogovernador, não foi? Ele meencarregou de viajar pela parteoeste da colônia e manter o ouvidoencostado no chão. ExistemReguladores que ainda não

receberam o perdão, e... – Ele olhoucautelosamente para um lado e parao outro, como se achasse que umadessas pessoas pudesse pular dalareira. – ... vocês todos já devemter ouvido falar nos Comitês deSegurança?

– Um pouco.– Ainda não devem ter formado

um aqui nas montanhas.– Não que eu saiba, não.Jamie não tinha mais chumbo

para derreter, então se abaixou paracatar as balas recém-fundidas do

meio das cinzas a seus pés enquantoa luz cálida do fogo luzia vermelhano seu cocuruto. Sentei-me ao seulado no banco, peguei a bolsinha demunição em cima da mesa e aestendi aberta para ele.

– Ah – disse MacDonald com arde satisfação. – Vi que cheguei emboa hora, então.

Na esteira dos distúrbiosrelacionados à Guerra daRegulação, um ano antes, váriosdesses grupos informais de cidadãoshaviam surgido, inspirados por

grupos semelhantes em outrascolônias. Se a Coroa não era maiscapaz de garantir a segurança doscolonos, argumentavam estes, erapreciso que eles própriosassumissem a tarefa.

Não se podia mais confiar nosxerifes para manter a ordem; osescândalos que haviam inspirado omovimento dos Reguladores tinhamgarantido isso. A dificuldade, claro,era que, como os comitês eramautonomeados, não havia motivoalgum para se confiar mais neles do

que nos xerifes.Havia também outros comitês.

Os Comitês de Correspondência,associações frouxas de homens queescreviam cartas para lá e para cá,espalhando notícias e boatos entreas colônias. E era desses diversoscomitês que nasciam as sementes darebelião, sementes que naqueleexato instante germinavam em algumlugar da fria noite de primavera.

Como fazia de vez em quando, eagora com muito mais frequência,calculei o tempo que restava. Já

estávamos quase em abril de 1773, eno dia 18 de abril do ano de 75...como dizia Longfellow de modo tãosingular...

Dois anos. Mas a guerra tem opavio longo e a mecha lenta. Aquelamecha tinha sido acesa emAlamance, e as linhas brilhantes equentes do fogo que avançava pelaCarolina do Norte já podiam servistas... por quem soubesse olhar.

As pelotas de chumbo da bolsade chumbinho que eu segurava seentrechocaram e chacoalharam;

meus dedos haviam se contraído emvolta do couro. Ao perceber isso,Jamie tocou meu joelho, um toquerápido e leve, para me reconfortar,em seguida pegou a bolsinha,enrolou-a e a enfiou dentro da caixade munição.

– Em boa hora – repetiu ele,olhando para MacDonald. – O quequer dizer com isso, Donald?

– Ora, quem poderia liderar umcomitê assim senão o senhor,coronel? Foi isso que sugeri aogovernador.

MacDonald tentou parecermodesto, mas não conseguiu.

– Quanta bondade a sua, major –disse Jamie, seco, e arqueou umadas sobrancelhas para mim.

A situação do governo dacolônia devia estar ainda pior doque ele supusera, para o governadorMartin estar não apenas tolerando aexistência dos comitês... mastambém os apoiandoclandestinamente.

O ganido demorado de umbocejo canino chegou débil aos

meus ouvidos vindo do corredor, epedi licença para ir ver como Ianestava.

Perguntei-me se o governadorMartin fazia alguma ideia do queestava perdendo. Meu palpite eraque sim, e que ele estava tirandomáximo proveito de um empregoruim tentando garantir que pelomenos alguns dos Comitês deSegurança fossem comandados porapoiadores da Coroa durante aGuerra da Regulação. Mesmo assim,não conseguia controlar ou sequer

saber da existência de muitos dessescomitês. Mas a colônia estavacomeçando a fervilhar e a se agitarfeito uma chaleira à beira daebulição, e Martin não tinhasoldados oficiais sob seu comando,apenas irregulares comoMacDonald... e as milícias.

Era por isso que MacDonaldestava chamando Jamie de“coronel”, claro. O governadoranterior, William Tryon, um tanto àsua revelia, havia nomeado Jamiecoronel da milícia das montanhas

acima do Yadkin.– Humm – fez ele para si mesmo.Nem MacDonald nem Martin

eram bobos. Convidar Jamie paramontar um Comitê de Segurançasignificava que ele iria convocar oshomens que haviam servido sob seucomando na milícia, mas semcomprometer o governo a nada comrelação a pagá-los ou equipá-los, eo governador estaria a salvo dequalquer responsabilidade por seusatos, uma vez que um Comitê deSegurança não era uma corporação

oficial.Mas o perigo de aceitar uma

proposta dessas era considerável,para Jamie e para todos nós.

Estava escuro no corredor, semluz alguma exceto a que vazava dacozinha atrás de mim e a débilclaridade da única vela noconsultório. Ian dormia, mas umsono agitado, com o desconforto aenrugar de leve a pele macia entreas sobrancelhas. Rollo levantou acabeça, e seu rabo grosso searrastou de um lado para o outro do

chão para me acolher.Ian não reagiu quando eu disse o

seu nome, nem quando pousei a mãono seu ombro. Sacudi-o comdelicadeza, depois com mais força.Pude vê-lo lutar, em algum lugar sobas camadas de inconsciência, comoum homem à deriva nas correntezassubaquáticas que cede ao convitedas profundezas antes de serrepentinamente fisgado por um anzolinesperado, uma pontada de dor nacarne anestesiada pelo frio.

Seus olhos se abriram de

repente, escuros e perdidos, e eleme encarou sem entender.

– Olá – falei baixinho, aliviadapor vê-lo acordado. – Como você sechama?

Pude ver que a pergunta não fezsentido para ele de imediato, e arepeti de modo paciente. Aconsciência se agitou em algumlugar nas profundezas de suaspupilas dilatadas.

– Quem sou eu? – perguntou eleem gaélico. Disse mais alguma coisaem mohawk com uma voz arrastada,

e suas pálpebras estremeceram e sefecharam.

– Ian, acorde – falei, firme,tornando a sacudi-lo. – Diga-mequem você é.

Seus olhos tornaram a se abrir, eele os estreitou para mim, sementender.

– Tentemos algo mais fácil –sugeri, e ergui dois dedos. – Quantosdedos você está vendo aqui?

Uma centelha de consciênciasurgiu nos seus olhos.

– Não deixe Arch Bug ver a

senhora fazendo isso, tia – disse ele,grogue, e seu rosto exibiu um esboçode sorriso. – É muito grosseiro,sabe?

Bem, pelo menos ele havia mereconhecido, e também o gesto do“V”; já era alguma coisa. E, se eleestava me chamando de tia, deviasaber quem era.

– Qual é seu nome todo? – torneia perguntar.

– Ian James FitzGibbons FraserMurray – respondeu ele, um tantoirritado. – Por que está me

perguntando meu nome?– FitzGibbons? – estranhei. –

Onde diabos você arrumou essenome?

Ele grunhiu, levou dois dedos àspálpebras e fez uma careta aopressionar de leve.

– Tio Jamie me deu... ponha aculpa nele – respondeu Ian. –Segundo ele, é em homenagem a seuvelho padrinho, MurtaghFitzGibbons Fraser, mas a minhamãe não queria que eu me chamasseMurtagh. Acho que vou vomitar

outra vez – acrescentou ele, puxandoa mão de volta.

Na verdade, ele teve algunsespasmos e tossiu um pouco acimada bacia, mas não chegou a vomitar,o que era um bom sinal. Tornei adeitá-lo de lado, branco e gelado desuor, e Rollo se levantou sobre aspatas traseiras para lamber seurosto, com as dianteiras apoiadas namesa, o que o fez rir entre umgrunhido e outro e tentar empurrar ocão para longe sem muita força.

– Theirig dhachaigh, Okwaho –

falou.Theirig dhachaigh significava

“vá para casa” em gaélico, eOkwaho era evidentemente o nomede Rollo em mohawk. Ian pareciaestar tendo alguma dificuldade paraescolher entre os três idiomas nosquais era fluente, mas apesar dissoera óbvio que estava lúcido. Depoisde fazê-lo responder a mais algumasperguntas irritantemente sempropósito, enxuguei seu rosto comum pano úmido, deixei quebochechasse com um vinho bem

diluído em água e tornei a acomodá-lo na cama.

– Tia – disse ele com uma vozarrastada quando eu estava mevirando em direção à porta. – Asenhora acha que eu algum dia vouver de novo a minha mãe?

Parei, sem a menor ideia decomo responder a essa pergunta. Narealidade não foi preciso: ele haviatornado a pegar no sono do modorepentino como acontece a muitasvítimas de concussão, e antes de euconseguir encontrar qualquer

palavra já estava respirandoprofundamente.

6

EMBOSCADA

Ian despertou de modo abrupto,fechando a mão em volta do tacape.Ou do que deveria ter sido o seutacape, mas em vez disso era umpunhado de pano de calça. Por umsegundo, não teve noção alguma deonde estava e sentou-se ereto para

tentar distinguir formas no escuro.A dor lhe varou a cabeça como

um raio de fogo, fazendo-o arquejarsem emitir som algum e segurá-la.Em algum lugar na escuridão abaixodele, Rollo bufou baixinho desurpresa, uouf?

Meu Deus. Os cheirospenetrantes do consultório da tia lheatingiram a parte de trás do nariz,álcool, pavio queimado, folhasmedicinais secas e as misturasnauseabundas que ela chamava depene-silina. Ele fechou os olhos,

pousou a testa nos joelhos erguidose respirou lentamente pela boca.

Com o que estava sonhando?Algum sonho de perigo, algoviolento... mas nenhuma imagemnítida lhe veio à cabeça, apenas asensação de estar sendo seguido, dealgo a persegui-lo pela mata.

Precisava mijar, com urgência.Tateou em busca da borda da mesa efoi se levantando aos poucos,semicerrando os olhos para seproteger dos clarões de dor nacabeça.

A sra. Bug tinha lhe deixado umpenico, lembrava-se de ela ter ditoisso, mas a vela havia se apagado eele não tinha condições deengatinhar pelo chão à sua procura.Uma luz débil lhe indicava alocalização da porta; ela a deixaraentreaberta, e uma claridade vinhada lareira da cozinha e se espalhavapelo corredor. Usando-a como farol,ele foi até a janela, abriu-a, soltoudesajeitadamente o trinco daveneziana e ficou em pé diante daenxurrada de ar da fria noite de

primavera, olhos fechados de alívioenquanto esvaziava a bexiga.

Melhor assim, embora o alíviotivesse aguçado a consciência doenjoo e do latejar na cabeça. Ele sesentou, pousou os braços nos joelhose a cabeça nos braços e esperoutudo melhorar. Vozes vinham dacozinha; pôde ouvi-las com clareza,agora que estava prestando atenção.

Eram tio Jamie e aquele tal deMacDonald, e o velho Arch Bugtambém, mais tia Claire, que de vezem quando fazia um aparte, a voz

inglesa nítida em contraste com osresmungos bruscos do escocês e dogaélico.

– O senhor por acaso gostaria deser um agente indígena? –perguntava MacDonald.

O que era aquilo?, perguntou-seIan. Então se lembrou. Sim, claro: aCoroa contratava homens para irematé as aldeias oferecer presentes aosíndios, tabaco, facas, coisas assim.Para lhes dizer bobagens sobre orei, como se fosse provável eleaparecer e se sentar em frente às

fogueiras do conselho na Lua doCoelho seguinte e falar como umhomem.

Pensar aquilo o fez sorrirtristemente. O conceito era bemsimples: engambelar os índios parafazê-los lutar do lado dos inglesesquando fosse preciso. Mas por queeles pensariam que precisavamdisso agora? Os franceses haviamcapitulado e se retirado para seuterritório setentrional do Canadá.

Ah! Ele então se lembrou do queBrianna tinha lhe dito sobre o novo

combate que estava por vir. Nãosoubera se devia acreditar nela ounão... mas talvez ela tivesse razão, enesse caso... ele não queria pensarnisso. Nem em qualquer outra coisa.

Rollo andou até onde ele estava,sentou-se e se recostou pesadamenteno seu corpo. Ele se recostou devolta, descansando a cabeça napelagem densa.

Um agente indígena tinhaaparecido certo dia, quando elemorava em Snaketown. Umsujeitinho gordo, com olhos

dissimulados e um tremor na voz.Pensava que o homem... Meu Deus,como ele se chamava? Os mohawkso haviam chamado de Suor Ruim,um nome condizente: ele fedia comose estivesse acometido por umadoença mortal. Na sua opinião, ohomem não estava muito acostumadoa lidar com os kahnyen’kehakas: nãoconhecia grande coisa da línguadeles, e obviamente imaginava queeles fossem escalpelá-lo a qualquerinstante, algo que os índios achavamhilariante... e um ou dois teriam até

tentado, só de brincadeira, não fosseTewaktenyonh ter lhes dito paratratar o homem com respeito. Ianfora instado a traduzir para ele,trabalho que havia realizado,embora sem grande prazer. Preferiamuito mais se considerar ummohawk do que reconhecer qualquerparentesco com Suor Ruim.

Mas tio Jamie... ele iriadesempenhar muito melhor essatarefa, sem comparação. Será queiria aceitar? Ian ficou escutando asvozes com uma vaga sensação de

interesse, mas ficou claro que tioJamie se recusava a ser pressionadopara tomar uma decisão. Seria maisfácil para MacDonald tentar agarrarum sapo numa nascente, pensou eleao ouvir o tio se esquivar docompromisso.

Deu um suspiro, passou o braçoem volta de Rollo e apoiou-se maisno cachorro. Sentia-se péssimo.Teria imaginado que estava à beirada morte, não fosse tia Claire ter lhedito que ele iria se sentir mal porvários dias. Tinha certeza de que ela

teria ficado caso ele estivesse àbeira da morte, e não ido embora e odeixado com a companhia apenas deRollo.

As venezianas continuavamabertas e o ar frio se derramavasobre ele, gelado e suave ao mesmotempo, como eram as noites deprimavera. Ele sentiu Rollo levantaro focinho, farejar e soltar um ganidobaixo e ansioso. Um gambá, talvez,ou então um guaxinim.

– Pode ir – falou, endireitando-se e dando um empurrãozinho no

cachorro. – Eu estou bem.O cão o cheirou desconfiado e

tentou lamber a parte de trás de suacabeça, onde estavam os pontos,mas desistiu quando Ian deu um gritoe cobriu o local com as mãos.

– Vá, eu já disse!Deu-lhe um tabefe de leve e

Rollo bufou, girou no próprio eixo,então pulou por cima de sua cabeçae pela janela e aterrissou no chão dooutro lado com um baque sólido. Umguincho assustador varou a noite, eouviu-se o ruído de pés correndo e

corpos pesados atravessando osarbustos.

Vozes espantadas vieram dadireção da cozinha, e ele ouviu tioJamie sair para o corredor umsegundo antes de a porta doconsultório se abrir.

– Ian? – chamou seu tiobaixinho. – Onde você está, rapaz?O que aconteceu?

Ele se levantou, mas um lençolbranco ofuscante baixou dentro deseus olhos, e ele cambaleou. TioJamie o segurou pelo braço e o fez

sentar num banquinho.– O que houve, rapaz? – Quando

sua visão clareou, ele pôde ver o tioà luz que emanava da porta, com ofuzil numa das mãos e olhando paraa janela aberta com uma expressãopreocupada, mas bem-humorada.Jamie inspirou fundo. – Não era umgambá, imagino.

– Bem, é, acho que deve ser umacoisa ou outra – disse Ian, tocandocom cuidado a própria cabeça. – OuRollo saiu atrás de um puma, ouentão encurralou o gato da tia na

árvore.– Ah, sim. Ele teria mais sorte

com o puma. – Seu tio pousou o fuzile foi até a janela. – Quer que eufeche a janela, ou você precisa dear? Está um pouco abatido.

– Estou me sentindo abatido –reconheceu Ian. – É, tio, deixeaberta, por favor.

– Não é melhor você descansar?Ian hesitou. Seu estômago

continuava revirado, e ele de fatosentia que seria bom se deitar outravez... mas o consultório o deixava

nervoso, com aqueles cheiros fortese brilhos aqui e ali de pequenaslâminas e outras coisas misteriosas edoloridas. Tio Jamie pareceuentender o problema, pois curvou-see levou uma das mãos até debaixodo cotovelo de Ian.

– Vamos, rapaz. Você podedormir lá em cima numa cama deverdade, se não se importar que omajor MacDonald durma na outra.

– Eu não me importo – disse ele.– Mas acho que vou ficar aqui. – Fezum gesto em direção à janela, sem

querer menear a cabeça e tornar asentir dor. – Rollo deve voltar daquia pouco.

Tio Jamie não discutiu, fato peloqual ele se sentiu grato. Mulherescriavam caso. Homens simplesmentetocavam a vida.

Seu tio o ajudou sem muitacerimônia a voltar para a cama,cobriu-o, então pôs-se a tatear noescuro em busca do fuzil que haviapousado. Ian começou a sentir que,no fim das contas, talvez pudessesuportar um pouco de criação de

caso.– Tio Jamie, o senhor poderia

pegar um copo d’água para mim?– Ahn? Ah, sim.Tia Claire havia deixado uma

jarra d’água ali perto. Ouviu-se obarulho reconfortante de águagorgolejando, então a borda de umacaneca de barro encostou na suaboca, e a mão de seu tio o amparoupor trás para mantê-lo ereto. Emboranão precisasse disso, ele nãoobjetou; o toque era cálido ereconfortante. Não tinha percebido o

quanto estava com frio por causa doar da noite, e estremeceu de leve.

– Está tudo bem, rapaz? –murmurou tio Jamie, e apertou commais força o ombro de Ian.

– Sim, tudo. Tio Jamie?– Hã?– Tia Claire lhe contou sobre...

uma guerra? Uma guerra que aindavai acontecer, quero dizer? Contra aInglaterra?

Houve alguns instantes desilêncio e a grande silhueta de seutio se imobilizou à luz da porta.

– Sim – respondeu ele, e retiroua mão. – Ela contou a você?

– Não, foi a prima Brianna. –Ele se deitou de lado, tomandocuidado com a cabeça dolorida. – Osenhor acreditou?

Dessa vez não houve hesitação.– Sim, acreditei.A frase foi dita no tom neutro

característico de seu tio, mas algonela fez os cabelos da nuca de Ian seeriçarem.

– Ah. É isso, então.O travesseiro de plumas de

ganso era macio sob a sua bochechae cheirava a lavanda. A mão de seutio lhe tocou a cabeça e afastou oscabelos desarrumados de seu rosto.

– Não se preocupe com issoagora, Ian – disse Jamie baixinho. –Ainda há tempo.

Ele pegou o fuzil e se retirou. Deonde estava deitado, Ian podia verpor cima das árvores do outro ladodo quintal, onde elas desciam daborda da Cordilheira, se estendiampela encosta da montanha Negra edesapareciam mais além no céu

noturno coalhado de estrelas.Ouviu a porta dos fundos se

abrir e a voz da sra. Bug se ergueracima das outras.

– Eles não estão em casa, senhor– dizia ela, ofegante. – E o chaléestá escuro, sem fogo na lareira.Aonde podem ter ido a esta hora danoite?

Ian se perguntou difusamentequem teria ido, mas isso não lhepareceu importar muito. Se fosse umproblema, tio Jamie lidaria com ele.Esse pensamento o reconfortou. Ele

se sentiu um menino pequeno, segurona cama, ouvindo a voz do pai dolado de fora conversando com umarrendatário na escuridão fria deuma madrugada nas Terras Altas.

O calor se espalhou lentamentepor cima dele embaixo da colcha, eele dormiu.

Fim da amostra.

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SOBRE A AUTORA

DIANA GABALDON

cresceu no Arizona, Estados Unidos,e é de ascendência mexicano-americana e inglesa. Tem formaçãoem Zoologia, Biologia Marinha eEcologia. Foi professorauniversitária durante mais de dozeanos antes de se dedicar à escrita emtempo integral.

Sua série Outlander se tornou umenorme sucesso mundial e foiadaptada para a TV em 2014,ganhando o BAFTA e sendoindicada ao Globo de Ouro e aoEmmy. No Brasil, as temporadas 1 e

2 estão disponíveis na FOXPremium APP & TV e na Netflix, e atemporada 3 é exclusiva da FOXPremium.

Um sopro de neve e cinzasganhou o Corine International Prize,além do Quill Award, vencendoobras de George R. R. Martin eStephen King.

Atualmente Diana mora emScottsdale, no Arizona.

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