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HJUFC DOS SI Ê OS 500 ANOS EXIGEM NOSSO AUTO-DESCOBRIMENTO ou A INVENÇÃO DO BRASIL NO PENSAMENTO BRASILEIRO -Enfim, esta terra parece um novo Portugal» EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES· PRELIMINARES RESUMO O artigo trata dos jogos discursivos que constroem representações coletivas sobre o imaginário brasileiro, condensado como experiência compartilhada em códigos de sensibilidade, valores e crenças. A invençãodo Brasilno pensamentobrasileiro é tratada com base em casos exemplares através de produções literárias e teóricas. FERNÃo CARDIM (1585) -E por ventura por isto, ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de estado e lhe chamam estado do Brasil, ficou ele tão pouco es- tável que, com não haver hoje cem anos, quan- do isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão povoados al- guns lugares e, sendo a terra tão gran- de efértil como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em di- minuição. (...) E deste mesmo modo se hão os pouoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo preten- dem levar a Portugal e, se asfazendas e bens que possuem souberem falar, também lhes houveram de ensinar a dizer como ospapagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é: 'papa- gaio real pera Portugal', porque tudo querem para lá. E isto não têm os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, para a desfrutarem e a deixarem destruída .• N ossa condição cog- nitiva é tal que a apro- priação do real pelo ser humano se faz so- bretudo por meio de um processo simultaneamente ativo e semiótico. Noutras palavras, é algo que se dá mediante operações de classificação, de compara- ção, de diferenciação, de ordenamento e de atribui- ção de sentido e de valor às realidades com que se convive. Dentre estas, des- taca-se naturalmente a vida social, os grupos, a coletivi- dade, a nação, enfim, o País. Bem distante daquilo em que acredita- vam as tradições tanto idealistas quanto positivistas e realistas sobre o modo de funci- onamento desse processo gnosiológico, o que chamamos de real é sobretudo, para nós, um construto, uma invenção, ou, antes, uma reinvenção permanente, ao mesmo tempo individual e coletiva, no plano semiótico e conceptual. Com maior razão, isso se dá no caso de uma realidade histórico-cultural de extrema complexidade e mutação incessante como é um país, um povo, uma nação. No caso que nos interessa aqui, queremos refe- rir-nos ao Brasil, obviamente. Ao contrário de outras nações cujas ori- gens se perdem em tempos imemoriais, o Brasil como atualmente é percebido, resul- tando da expansão marítima e mercantil de Portugal na disputa pela colonização ou pos- • Doutor em Sociologia pela Université de Tours (França), Pós-doutor pela École des HautesÉtudesen SciencesSociales(Paris), membro do Instituto Histórico do Ceará, da Academia Cearense de Letras e membro titular da Association Internationale des Sociologues de Langue Française (AISLF). Professor Titular de Sociologia da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Estudual do Ceará. Autor de Contrapontos - ensaios de crítica, São Paulo: AnaBlume, 1998, etc. FREI VICENI'E DO SALVADOR (1627) MENEZES, EDUARDO DIATHAY BEZERRA DE. OS 500 ANOS EXIGEM Nosso ... P. 59 A 69 59

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HJUFC

DOS S I Ê

OS 500 ANOS EXIGEM NOSSO AUTO-DESCOBRIMENTOou A INVENÇÃO DO BRASIL NO PENSAMENTO BRASILEIRO

-Enfim, esta terraparece já umnovo Portugal»

EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES·PRELIMINARES

RESUMOO artigo trata dos jogos discursivos queconstroem representações coletivas sobre oimaginário brasileiro, condensado comoexperiência compartilhada em códigos desensibilidade, valores e crenças.A invençãodo Brasil no pensamentobrasileiroé tratada com base em casos exemplaresatravés de produções literárias e teóricas.

FERNÃo CARDIM(1585)

-E por venturapor isto, aindaque ao nome deBrasil ajuntaramo de estado e lhechamam estadodo Brasil, ficouele tão pouco es-tável que, comnão haver hojecem anos, quan-do isto escrevo,que se começoua povoar, já sehão povoados al-guns lugares e, sendo a terra tão gran-de efértil como adiante veremos, nempor isso vai em aumento, antes em di-minuição. ( ...) E deste mesmo modose hão os pouoadores, os quais, pormais arraigados que na terra estejame mais ricos que sejam, tudo preten-dem levar a Portugal e, se asfazendase bens que possuem souberem falar,também lhes houveram de ensinar adizer como ospapagaios, aos quais aprimeira coisa que ensinam é: 'papa-gaio real pera Portugal', porque tudoquerem para lá. E isto não têm só osque de lá vieram, mas ainda os que cánasceram, que uns e outros usam daterra, não como senhores, mas comousufrutuários, só para a desfrutareme a deixarem destruída .•

Nossa condição cog-nitivaé tal que a apro-priação do real peloser humano se faz so-

bretudo por meio de umprocesso simultaneamenteativo e semiótico. Noutraspalavras, é algo que se dámediante operações declassificação, de compara-ção, de diferenciação, deordenamento e de atribui-ção de sentido e de valoràs realidades com que seconvive. Dentre estas, des-taca-se naturalmente a vidasocial, os grupos, a coletivi-dade, a nação, enfim, o País.

Bem distante daquilo em que acredita-vam as tradições tanto idealistas quantopositivistas e realistas sobre o modo de funci-onamento desse processo gnosiológico, o quechamamos de real é sobretudo, para nós, umconstruto, uma invenção, ou, antes, umareinvenção permanente, ao mesmo tempoindividual e coletiva, no plano semiótico econceptual. Com maior razão, isso se dá nocaso de uma realidade histórico-cultural deextrema complexidade e mutação incessantecomo é um país, um povo, uma nação. Nocaso que nos interessa aqui, queremos refe-rir-nos ao Brasil, obviamente.

Ao contrário de outras nações cujas ori-gens se perdem em tempos imemoriais, oBrasil como atualmente é percebido, resul-tando da expansão marítima e mercantil dePortugal na disputa pela colonização ou pos-

• Doutor em Sociologia pela Université deTours (França), Pós-doutor pela École desHautesÉtudesen SciencesSociales (Paris),membro do Instituto Histórico do Ceará, daAcademia Cearense de Letras e membrotitular da Association Internationale desSociologues de Langue Française (AISLF).Professor Titular de Sociologia daUniversidade Federal do Ceará e daUniversidade Estudual do Ceará. Autor deContrapontos - ensaios de crítica, SãoPaulo: AnaBlume, 1998, etc.

FREI VICENI'EDO SALVADOR(1627)

MENEZES, EDUARDO DIATHAY BEZERRA DE. OS 500 ANOS EXIGEM Nosso ... P. 59 A 69 59

se de novas terras, possui uma data oficial deseu "descobrimento ", grau zero de sua cons-trução social, econômica e cultural, nos ter-mos da semântica cujas regras nos foramimpostas pelos que dominaram esta área dageopolítica do Atlântico a partir de 1500. Éóbvio, porém, que possuímos também umalonga pré-história, em particular na sua varia-da contribuição indígena, freqüentes vezesvelada ou minimizada, mas que se projetapelo período posterior à Conquista, e acresci-da da reposição negro-africana no Novo Mundomediante sua imensa diáspora forçada.

Assim, se o real se compõe de coisasou sistemas de fatos, eventos e processos,ele só se dá para nossa consciência, comorepresentação coletiva, mediante atos e falas.É do entrecruzamento de um sem-númerodesses atos e falas, desses jogos discursivosao longo do tempo histórico e dos diferentesespaços sociais que essa realidade chamada'Brasil' vem sendo inventada e reinventada,e cujo produto mutante vai sendo transforma-do por nosso imaginário social e condensadocomo experiência compartilhada em nossoscódigos de sensibilidade e de conduta, valo-res e crenças que a memória coletiva preser-va, assegurando a sua singularidade contrastivaentre outros povos e nações.

Teremos uma ilustração significativadesse processo de construção ou invenção seacompanharmos a produção da cartografia doBrasil desde o século XVI: da ilha presumidanos inícios das primeiras expediçõesexploratórias, pouco a pouco não só as técni-cas de elaboração dos mapas e representa-ções geográficas foram sendo refinadas, mastambém a ocupação efetiva do espaço e oconhecimento da terra foram sendo retifica dose aperfeiçoados. Mas fomos, de começo, aimagem produzida pelo espanto de olharesestrangeiros. E a primeira e saborosa expres-são disso está na Carta de Pero Vaz de Cami-nha, que Capistrano de Abreu dizia ser nossacertidão de nascimento.

Durante os três séculos do nosso perío-do Colonial, foram sobretudo esses olharesestrangeiros que construíram a nossa imagem

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e produziram a consciência do que somos:portugueses, judeus, mouros, espanhóis, fran-ceses, africanos, italianos, alemães, holande-ses, e, ao longo do tempo do Brasilindependente, vieram mais: suíços, norte-ame-ricanos, russos e outros eslavos, etc., que,aventureiros, colonos, missionários, comercian-tes, prostitutas, traficantes, negreiros, degreda-dos, foragidos, escravos, artesãos, naturalistase homens de ciência, diplomatas, viajantes evisitantes, foram todos construindo essa ima-gem sempre mutante, única e múltipla.

É interessante observar que, nos inícios,esse olhar de espanto e de deslumbramentoface ao Novo Mundo produziu imagens oraparadisíacas, ora negativas, em que se sobres-saem a terra, a natureza exuberante e grandi-osa, mas também a sua gente e seus costumes.O Padre Anchieta, por exemplo, ao escrevera primeira arte de gramática da língua geralmais falada na costa do Brasil, na frase comque inicia seu texto, afirma que os primitivoshabitantes desta terra não possuem em sualinguagem nem f, nem I, nem r, porque elesnão têm nem Fé, nem Lei, nem Rei. Ou seja,ele definia nossos ancestrais pela negação,pois em seu viés etnocêntrico não encontra-va aqui as mesmas instituições que conheciano Velho Mundo. E Narciso sempre acha feiotudo que não é espelho ...

Com o fim do exclusivo português e dopacto colonial, o Brasil independente ouincipiente abriu-se à curiosidade universal esobretudo à intensa expansão das ciênciasnaturais de que fomos o principal fornecedorde matéria-prima, por nossa imensa diversi-dade biológica e ecológica. Boa parte do avan-ço dos conhecimentos científicos nessedomínio e dos acervos das Universidades eMuseus de História Natural espalhados pelomundo se formaram a partir dessas expedi-ções, que duram até os nossos dias. Aliás,isso ocorre de fato desde os sábios trazidospela administração de Nassau, na primeirametade do século XVII, quando inclusive seinstalou o primeiro observatório astronômicoem terras do Novo Mundo. Mas provieramtambém de artistas de todo gênero, que con-

tribuíram significativamente para a constru-ção de nossa imagem: é riquíssima aiconografia do Novo Mundo e a do Brasil emparticular.

Paralelamente a essa presença dominan-te do olhar, da fala e da conduta dos estran-geiros, e em relação dinâmica, ora convergenteora antagônica, com estes, foi se constituindoo nosso povo, com seus sentimentos, normase valores, códigos e costumes, que se singu-larizam lentamente e vão pouco a pouco con-figurando o nosso perfil peculiar, inclusivepela apropriação dessa realidade por meiode nossa própria fala e nosso próprio olhar,mediante múltiplas linguagens (músicas, rit-mos, danças, religiosidades, festas, arquitetu-ras, decoraçôes, narrativas, poéticas,representações, etc.) que, por simplificaçãoe comodidade, costumamos chamar de cul-tura brasileira.

EXAME DE ALGUNS CASOS

Tomemos para efeito de simples ilus-tração desse esforço de invenção do Brasilno pensamento brasileiro o exame, sumárioembora, de alguns casos exemplares. Deixode lado, por óbvias razões, diferentes gêne-ros de trabalhos que também poderiam seraqui contemplados, mas que, sua natureza di-versa do critério adotado, tornaria a tipologiaescolhida excessivamente complexa.ê

I. Em primeiro lugar, em ordem crono-lógica, tomo a recolha de textos significativosfeita por Djacir Menezes, em seu já clássicoO Brasil no Pensamento Brasileiro= Trata-sede alentado volume com mais de 800 pági-nas, contendo um leque variado de 72 auto-res e 74 textos diversos, sem contar aapresentação de Artur César Ferreira Reis e aintrodução de Djacir Menezes.

Mesmo a uma primeira aproximaçãosuperficial, ver-se-á que não passa de meraamostra do que tem produzido o pensamen-to brasileiro que se debruça sobre a ingentetarefa de interpretar e criticar as característi-cas daquilo que se costuma chamar de

brasilidade. Na verdade, posto que impor-tantes os textos que a compõem e emboraproduzam uma imagem expressiva das qua-lidades e defeitos do Brasil, esta se mostranitidamente parcial e fragmentária. Com efei-to, constituem apenas parte da produçãoensaística de pensadores, estadistas, 'econo-mistas, historiadores, juristas, críticos quebuscaram interpretar nossa realidade. Comoquer que seja, a obra possui valor inegávelpela riqueza de textos e variedade de auto-res contemplados, em especial na sua edi-ção mais recente e ampliada, que introduziutoda uma seção nova (a 4ª), intitulada «Ca-minhos na Terra e na História», com o intuitode acolher autores excluídos ou ainda nãovigentes ao tempo da edição de 1957, quan-do os escolhidos então foram agrupados sobas seguintes rubricas:

• As Instituições e o Meio Social• Eleições, Rebeliões e Partidos• Retratos do Brasil• O Ensino e as Elites• A Tese Republicana• A Crítica Inconformista.

Enfim, com todas as restrições aponta-das e que decorrem da inevitável escolha edos limites do volume, os textos que com-põem essa contribuição de Djacir Menezesnão estão ordenados por critérios cronológi-cos, mas sim postos em grupos temáticos,conforme assinalei. Todavia, eles recobremuma panorâmica do nosso pensamento, indo,de modo expressivo, desde um dos nossosprimeiros olhares tipicamente brasileiro, queé o da deliciosa escritura do franciscanobaiano, Frei Vicente do Salvador, autor da pri-meira história do Brasil, até, por exemplo emui significativamente, o texto de um dos maiscompetentes especialistas de nossa literatura,justamente o ensaio em que Afrânio Coutinhoforjou a definição do traço característico denossa produção intelectual: a tradição afortu-nada. Mas o conjunto dessa amostra opulentaservirá apenas como um aperitivo que fará oseu ofício propedêutico se suscitar o gosto

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pelo aprofundamento do estudo e compreen-são de nossa realidade.

11. Nesse gênero de produções, porémintroduzindo uma perspectiva analítica comofulcro do trabalho e não propriamente umacoletânea de textos representativos do pen-samento brasileiro, uma segunda obra mere-ce a nossa atenção: refiro-me ao belo esforçode Mariza Veloso, antropóloga, e AngélicaMadeira, teórica da literatura, com o títulomodesto mas mui significativo de LeiturasBrasileiras.'

Ainda que esta obra, por seus própriosméritos deliberadamente teóricos, possua umcaráter polêmico - e o leitor verificará issofacilmente desde o prefácio claramente pro-vocante e dialogal de Rouanet - não é minhaintenção aqui proceder a um exame críticodo texto, posto tenha a sua leitura suscitadoem mim o desejo de participar do debate comalguns reparos e sugestões. Meu propósito,todavia, restringe-se a uma apresentação su-mária da obra como produto ou exemplar daarquitetônica da nossa inteligência no proces-so de invenção do Brasil.

Assim, as autoras iniciam o livro por umcapítulo que busca justamente responder àquestão -Por que Leituras Brasileiras?-, o quemostra como seu esforço se prendeu ao estu-do de temas relacionados à cultura, à políticae ao modo como se constituíram as narrativase imagens que têm dado suporte à represen-tação do Brasil e dos brasileiros. Noutros ter-mos, o exame dos processos históricos quederam corpo a uma sociedade que porta asmarcas de seu legado colonial na percepçãode si mesma e como configuração multiétnicae multicultural, mostrando no entanto, no pre-sente, uma singularidade que é fruto de tro-cas contínuas e de conflitos de tradiçõesdiversas aqui enraizadas. Configuração, aomesmo tempo carregada de harmonias e con-tradições, efetuando-se sob a vigilância e oscódigos de uma civilização imperial européia,ou conforme dizem as autoras: -As metrópo-les foram as responsáveis pelas narrativas fun-dadoras da modernidade ocidental e, entreelas, as que dizem respeito à constituição dos

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países colonizados; foram também a sede docontrole da produção e da difusão dos discur-sos e das idéias- Ip. 27], que, no período co-lonial, constituíram o conjunto de narrativasde exploração e conquista do Novo Mundo,em relatos de viajantes, em textos missionári-os, em crônicas da vida urbana, até as narrati-vas globalizadas de hoje.

Nesse imenso território impunha-se al-guma escolha, por isso as autoras procede-ram a -um mapeamento de textos-, que serealiza em múltiplas direções e onde os ex-tratos do tempo e das concepções vão se ins-crevendo. Realizam assim uma seleção dosdiscursos e temas que vão construindo nossapaidéia sociocultural, nosso êtbos, enfim,nossa gênese como povo e nação em seuperfil característico por suas manifestaçõessimbólicas e práticas sociais expressivas. Emsuma, as narrativas que elas selecionam paraexame e ilustração do quadro analítico adota-do -se propõem a constituir um corpus ex-pressivo das diversas interpretações do Brasil,(...) um corpus significativo e consistente so-bre a cultura brasileira» [p. 29], bebido tantona ensaística que compõe nosso pensamentosocial, quanto em nossa literatura. Ao que elascompletam com esta intenção de ordemextrateórica. -O conhecimento do que somose a consciência crítica de nossa formação so-cial e de nossa história devem servir de alia-dos para o enfrentamento dos desafioscontemporâneos» [ibidem].

esse processo de constituição de nos-sa paidéia, as mutações históricas nas "estru-turas de referência" metropolitanas nãodeixaram de acarretar modificações locais notom de nossas narrativas, nas vozes que dizi-am o nosso sentimento de colonizados e re-sultante do encontro, ora conflitante, oraconvergente, das diversas tradições e reper-tórios culturais que moldaram nosso modo deser, nossa cultura política e estética, nossoimaginário sociocultural. É interessante obser-var que embora as autoras, no estudo desseprocesso, não contemplem o nosso períodocolonial, não obstante, nem por isso deixamde sublinhar com argúcia que é então que se

implanta o modelo cultural europeu, funda-mental para a compreensão da dinâmica só-cio-histórica de nossas tradições. Além disso,assinalam ainda que nossa sociedade colonial,desprovida de instituições específicas queassegurassem um desenvolvimento auto-nômico das práticas culturais, mesmos assimos modelos artísticos e cognitivos para aquitransplantados produziram, contraditoriamen-te, nossas matrizes estéticas originais que pro-piciariam nossa diferenciação em face dosmodelos metropolitanos. Expressão exemplardessa criação foi Barroco, como estética econcepção de vida, na sua força de veículocapaz de exprimir o caráter agonístico de nos-sa condição dominada e periférica: «a tradi-ção estética do barroco é um marco comuma todos os países da América Latina, e o quetemos de mais comum e mais singular emcada uma das expressões nacionais. Tendo seconstituído em obras de arquitetura, esculturae música, marcadas par forte religiosidade eexuberância, a arte barroca, na América Lati-na, não tem cessado de fornecer formas eimagens, alegorias dissonantes e inaugurais,distintas da expressão metropolitana, exem-plo de nossa capacidade antropofágica de ela-borar respostas criativas e alternativas aosmodelos e cânones europeus- [pp. 30-31].Para completar a lúcida intuição desse pro-cesso, só faltou destacar que, no caso do Bra-sil, essa produção marcante e original foi obrasobretudo de mulatos, cujo poder criativomarcará até hoje os principais domínios denossas expressões culturais.

Portanto, é mais particularmente ao con-texto pós-colonial de nossa cultura, progres-sivamente mundializado, que as autoras vãobuscar seus materiais, orientadas por um rumoque aponta na direção de uma releitura siste-mática e crítica dos mecanismos históricos queconstituíram nossa modemidade, acentuandoque, ao contrário de uma lógica linear ehomogeneizadora, é possível observar nesseprocesso a complexidade e as disjunções nasinterfaces das várias instâncias que constitu-em a sociedade - cultura, economia, política- e ainda as segmentações mais finas no inte-

rior dessas esferas. Além disso, nos períodosmais recentes em que se disseminam ideolo-gias globalizantes, essa proposta de umareleitura de nossa tradição servirá deensinamento para evidenciar como a culturabrasileira foi elaborada «namalha de uma enor-me variedade de trocas culturais criadoras deconcretudes históricas, narrativas e imagensque desenharam ... , por si mesmas, umafisionomia singular no que concerne às di-mensões culturais, políticas e estéticas» [p. 35]e produziram o Brasil como configuração só-cio-histórica específica.

Contudo, é mais particularmente no ca-pítulo segundo desta obra - -Itinerários eMol-duras- - que as autoras desenvolvem de formaconsistente o aparelho conceptual com quetentam dar conta desse seu desiderato dereleitura de momentos cruciais de nossaautointerpretação mediante suas práticas so-ciais e suas narrativas representativas. Re-correm para tanto a consagradas fontesteóricas, tais como Nobert Elias, Mannheim,Gramsci, Foucault, Bakthine, Bourdieu,Deleuze, etc., no intuito de trabalhar catego-rias analíticas que lhe permitam realizar talempreendimento crítico: 'configuração sócio-histórica', 'bloco histórico', intelligentsia, 'for-mação discursiva', 'campo intelectual','intertextualidade', etc., etc., relacionando issocom os lugares e agenciamentos daenunciação ou moldura institucional das prá-ticas discursivas e simbólicas. Desse aparen-te emaranhado conceptual habilidosamenteoperado por elas, uma conclusão se impõecomo princípio de leitura: -írernos realizarnão apenas um estudo histórico, retrospecti-vo das interpretações [do Brasil] já elabora-das, mas também descortinar novasperspectivas de investigação» acerca de taisquestões concernentes ao repertório de in-terpretações por elas selecionadas; -tais nar-rativas serão tomadas como o queverdadeiramente são, isto é, representaçõesconstruídas e não descrições naturais da rea-lidade. O estatuto de representação não inibeo intercâmbio dos discursos no interior deuma cultura, nem minimiza sua força pro-

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que percorre todo o texto e que constituiverdadeiro empecilho para o trabalho deconstrução de uma rationale nesta área: anoção de 'identidade' cultural, nacional, etc.Esse termo insidioso invadiu clandestinamenteo campo das ciências humanas em períodorelativamente recente e agora ocupa um es-paço tão avassalador que, praticamente, nãohá um texto contemporâneo sobre qualquerproblema de nossas disciplinas que deixede tomá-Io como algo central da discussão,quase sempre sem se dar conta que essemodismo constitui mero rótulo que serve paradissimular tanto a indigência teórica quantoa inconsistência do argumento. As própriasautoras manifestam por mais de uma vez asua insatisfação com esse "conceito" domi-nante no jargão atual de nossas disciplinas,sem no entanto lograrem dele livrar-se. Issoaparece mais claramente quando são obriga-das a reconhecer que o processo de constru-ção da -identidade nacional- sofre incessantemutação e por isso chegam a falar de -iden-tidades múltiplas-, etc., que é, evidentemen-te, um paradoxo lógico. Por outro lado, algoque se refaz continuamente, como ocorre noprocesso histórico da formação de uma na-ção, não pode constituir uma identidade que,por definição, é uma mesmidade, conformese dá legitimamente no campo das ciênciasformais, as lógicas e as matemáticas. Um país,uma cultura e um povo constituem um sen-do histórico, e não uma essência abstrata euniversal: esse conjunto mutante cimenta asua realidade sobre uma memória coletivacompartilhada, à qual seus agentes prestamuma lealdade agonística, mas que constitui otecido de uma rede que permite compor umperfil original, em sua singularidadecontrastiva. Eis aí onde reside o problemadesse conceito de identidade equivocada-mente transplantado para as ciências sociais,cuja validade não foi ainda submetida a umacriteriologia radical.

m. Finalmente, portando o belo títuloIntrodução ao Brasil: Um Banquete no Trôpi-CO,5 examinarei rapidamente a terceira obraque escolhi como parte do conjunto ilustrativo

dutora de sentido. Os discursos não são vistosaqui como reduplicação ou cópia miméticade um real que lhes seja exterior. É precisosempre ressaltar sua capacidade modeladorae constitutiva do próprio tempo histórico doqual emergem» Ip. 53].

Isto posto, pode-se afirmar, resumida-mente, que a obra percorre três unidadestemáticas. A primeira delas focaliza sumaria-mente o século XIX, repassando as noçõesCnatureza', 'território' e 'pátria') com que ageração romântica enfrentou a construção daidéia de nação; passando em seguida para asgerações posteriores até a República, quandoessa noção é tematizada sobre os conceitosde 'raça' e 'meio geográfico', mediante dis-cussões que perdurarão pelas décadas seguin-tes; para enfim considerar os gruposintelectuais que circularão à volta da Acade-mia Brasileiras de Letras, de onde elas desta-cam figuras como Machado de Assis,Euclydesda Cunha e Lima Barreto. A unidade seguinterecobre os anos 20, 30 e 40 do nosso século,sob o influxo da estética do Modernismo edos inícios da institucionalização das CiênciasSociais no Brasil, examinando tanto a sua es-fera mais literária (sobretudo em Mário deAndrade e Oswald de Andrade), como a gran-de ensaística dos "retratos do Brasil" em figu-ras como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque deHolanda e Caio Prado Júnior. Por fim, na últi-ma unidade temática, dedicada aos «debatesintelectuais dos anos 50, 60 e 70:engajamentoe contracultura-, conforme afirmam as auto-ras, são examinadas algumas questões maiscontundentes que emergem desse períodomais recente e que decorrem do agravamen-to das desigualdades sociais que se perpetu-am, e são analisadas relações mais complexase densas entre cultura, estética, economia epolítica, sob o signo dos debates teóricos quecompõem o horizonte mental de hoje.

Não gostaria de encerrar essa apresen-tação sumária da obra em foco, sem mani-festar um incômodo intelectual que a mim,pessoalmente, provocou a sua leitura, nãoobstante encantadora sob muitos aspectos.Quero referir-me a um conceito equivocado

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dessa espécie de monomíto cuja invenção serecria e se renarra quase que a cada geração.

Situado a meio caminho entre as duasprimeiras obras aqui apreciadas, este livro nemconstitui inteiramente uma ampla coletâneade textos significativos como aquela organi-zada por Djacir Menezes, nem propriamenteuma obra com propósitos de elaborar um qua-dro teórico de leitura crítica relativamenteunificada das interpretações do Brasil, comoé o caso do trabalho de Mariza VeIos o e An-gélica Madeira.

Com efeito, a obra em tela pretende,conforme assinala uma nota do editor, tomar oBrasil, em suas instituições, economia, culturae história, como tema para reunir 19 estudio-sos que apresentam, sob formato reduzido, tex-tos clássicos do pensamento social no país que,-ao pensar a nacionalidade, foram decisivospara cornpreendê-la-, desde os primeiros tem-pos de sua formação aos nossos dias. O mes-mo editor, sublinhando as convergências ediscordâncias entre tais "mestres", acrescentaainda este comentário: -as obras tratadas, quevão dos Sermões [de Vieira] aos Sertões, deCasa-Grande & Senzala a Formação Econô-mica do Brasil, aqui se visitam, referem-se umaà outra, realirnentando-se, criando elos que ilu-minam nossos 500 Anos. Lê-Ias é um modo departicipar da viva discussão sobre esse paísmestiço localizado no trópico". Da leitura aten-ta da obra, porém, força é reconhecer que essapiedosa retórica patriótica do editor não chegaa constituir mais que uma boa intenção, semefetiva realização.

Posto que bem elaborado, este livropossui evidentes intuitos propedêuticos. Daía razão do modesto termo «introdução- emseu título, visto que cada ensaio foi pensadocom o propósito de estimular o leitor ao con-tato direto com os textos originais aqui apre-sentados. E eis por que, na Introduçãoelaborada pelo organizador da obra, ele a ini-cia por esta frase: -Já se disse com humor everdade que ensinar é fazer cócegas na inte-ligência. lp. 11]. Portanto, a motivação da obrareside antes de tudo em servir de instrumen-to de trabalho para professores e alunos de

cursos sobre o Brasil. Sublinhe-se no entantoque isso não diminui em nada o valor e aconsistência do livro como produto intelectualde bom nível.

Mais significativo do que as palavrascom que eu quisesse descrever a urdidura dolivro será uma apresentação do seu sumário,com cada autor cuja obra vai apresentada pe-los especialistas que escreveram os diversoscapítulos:

• Padre Antônio VIElRA: Sermões (IoãoAdolfo Hansen)

• André João ANTONIL: Cultura e opu-lência do Brasil (Ianice Theodoro da Silva)

• José BONIFÁCIO: Projetos para oBra-sil (Carlos Guilherme Mota)

• Visconde de MAUÁ: AutobiografiaOorge Caldeira)

• Joaquim NABUCO: Um estadista doimpério (Luiz Felipe de Alencastro)

• Eduardo PRADO: A ilusão americana(Lucia Lippi Oliveira)

• Eudydes da CUNHA: Os sertões(Walnice Nogueira Galvão)

• Capistrano de ABREU: Capítulos dehistória colonial (Ronaldo Vainfas)

• Paulo PRADO: Retrato do Brasil (Mar-co Aurélio Nogueira)

• Gilberto FREYRE: Casa-grande & sen-zala (Elide Rugai Bastos)

• Sérgio Buarque de HOLANDA: Raízesdo Brasil (Brasílio Sallum jr.)

• Caio PRADO JR.: Formação do Brasilcontemporâneo (Iosé Roberto do Amaral Lapa)

• Victor Nunes LEAL: Coronelisrno, en-xada e voto (Bolívar Lamounier)

• Oliveira VIANA: Instituições políticasbrasileiras (Mil Hermínia Tavares de Almeida)

• Celso FURTADO: Formação econô-mica do Brasil (Francisco de Oliveira)

• Raymundo FAORO: Os donos do po-der (Laura de Mello e Souza)

• Antonio CANDIDO: Formação da li-teratura brasileira (Benjamin Abdala Júnior)

• José Honório RODRIGUES: Conciliaçãoe reforma no Brasil (Alberto da Costa e Silva)

• Florestan FERNANDES: A revoluçãoburguesa no Brasil (Gabriel Cohn)

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A simples leitura dessa lista já dá umaidéia do conteúdo do livro. Mas faz suportambém a existência de uma escolha, cujoscritérios não foram expostos claramente. Cabelegitimamente ao leitor indagar por que estessão os selecionados e por que outros foramexcluídos. É óbvio que vários dos autores aco-lhidos como -mestres- do pensamento dabrasilidade, de tão aclamados como clássicosdo gênero, é auto-evidente a razão de suapresença. Todavia, há de perdurar no espíritodo leitor mais atento sobretudo certas ausên-cias injustificáveis. Por exemplo, dentre osprimevos, não cabe dúvida de que Vieira éimportantíssimo e não se discute a sua pre-sença. Mas por que não um Femão Cardim,um Gabriel Soares de Souza e sobretudo umFrei Vicente do Salvador? Por outro lado, oséculo XIX inteiro vem representado, prati-camente, apenas por José Bonifácio e o Vis-conde de Mauá: estranha a ausência deinúmeros estudiosos brasileiros do período,muito mais significativos do que estes na ma-téria. Nem adianta argumentar que Nabuco,Eduardo Prado ou Euclydes são homens da-quele século, pois na verdade escreveramsuas obras sob o influxos da República e dasnovas idéias. Caberia ainda indagar, já no nossoséculo, e sem negar sua relativa importância,por que um Victor unes Leal aí está quandoforam omitidos um Manoel Bornfim, umAlberto Torres, um Nestor Duarte, umFernando de Azevedo, um Darcy Ribeiro, etc.,etc.? Sei, porém, que o organizador dispõede um argumento de ordem pragmática: aescolha se impunha diante do volume da obra.E a este outro volume pode seguir-se.

Mas passemos aos propósitos e alcancedo livro. Aqui, o organizador explicita clara-mente as suas razões, no seu texto intro-dutório. Afirma que a via escolhida foi a deapresentar, sob o formato de resenha, um con-junto de obras fundamentais para o conheci-mento do Brasil, (e eu acrescentaria mais quevárias dessas obras são também fundantes doBrasil na medida em que compõem a ima-gem e a concepção que foi sendo construídade nossa ontologia sociocultural). Portanto, não

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se trata de expor ou debater o pensamentode um Gilberto Freyre ou de um SérgioBuarque de Holanda, visto que isso implica-ria estudos mais consistentes que levassemem conta o seu pensamento expresso no con-junto de suas obras. Aquilo que aqui se ofere-ce é uma apresentação reduzida de livroscomo Casa-grande & senzala ou Raízes doBrasil, em sua urdidura, em sua temática, emsuas teses. A saber, nas palavras de LourençoDantas Mota, -expor o seu pensamento, sim,mas apenas tal como eles o expressaram emdeterminados livros. A forma de resenha soli-citada aos colaboradores, C ..), tem a [inten-ção] de chamar a atenção para o que esseslivros contêm de duradouro, como instrumen-to de conhecimento do Brasil, para sua atuali-dade, em suma. C ..) Este conjunto de obrasmostra como nos vimos e nos julgamos ao lon-go da história. Levanta as grandes perguntasque nos fizemos - e as várias respostas que lhesdemos - sobre o que somos e qual o nosso lu-gar no mundo, sobre os obstáculos que entra-vam ou retardam nossa marcha e o que jazerpara remouê-los- lpp. 11 e 21].

Um último reparo para encerrar a apre-sentação desta obra. O seu organizador tentajustificar a metáfora do -banquete- e de ban-quete tropical posto no subtítulo do livro, ex-primindo o desejo que isso remeta a algosemelhante ao diálogo platônico, portanto algoque sugere que se apague o tempo e propicieo encontro lado a lado, por exemplo, de Vieira,Nabuco, Euclydes, etc. Ora, tal metáfora podeaté ser bela como figura literária e pode atétornar a Introdução da obra mais amena. Con-tudo, na verdade, esse diálogo não se dá: Vieira,Nabuco e Euclydes, assim como os demais au-tores, permanecem cada um no seu tempo eno seu lugar. Não há nada na obra que aproxi-me efetivamente e propicie o diálogo, salvo ahipotética habilidade do leitor em elaborar in-teriormente o painel ou mosaico com os frag-mentos aqui oferecidos. São ensaios autônomosem que cada especialista examina a significa-ção e o alcance do autor objeto de sua esco-lha, apresentando de forma condensada a suaobra mais conhecida. Eventualmente, um ou

outro desses especialistas chega a estabelecercomparações ou a fazer referência a outrosautores em tomo do escolhido.

À GUISA DE INCONCLUSÃO

Das reflexões preliminares e sobretudodo percurso feito no exame sumário das trêsobras escolhidas para ilustrar os caminhospercorridos pelo pensamento brasileiro, pode-se deduzir uma conclusão ainda que provisó-ria: como no mito de Sísifo, a tarefa dohistoriador e demais estudiosos desse gênerode investigação está condenada a incessantereconstrução, cada geração reescrevendo osrelatos segundo seus horizontes de consciên-cia. Ora, se todo conhecimento se faz a partirde um ponto de vista, no território da Históriae da ensaística em geral isto é ainda maisevidente, visto que aí se entrelaçam epistemee doxa, conhecimento verificado e merasopiniões, para não falar das inúmeras ideolo-gias políticas e paixões pessoais, que tendema polarizar as interpretações.

Por outro lado, não é difícil notar quenos três tipos obras que apresentei, estão ex-cluídas todas as demais expressões de nossaprodução simbólica ou discursiva, tais como apoética, a dramaturgia, a crônica, a prosa deficção, (sem falar em nossas outras manifesta-ções estéticas como a música, a arquitetura eartes visuais, etc.). Enfim, também tudo issoque constitui nossa tradição afortunada, a sa-ber, nossa crítica cultural e literária e nossaprópria literatura voltadas sempre para amissão de dizer o que somos e que, sob mui-tos aspectos, é amplamente superior em livrealcance interpretativo e criativo de nossa rea-lidade do que toda a nossa produção em eco-nomia, sociologia, ciência política, etc., quasesempre perempta por seus discursos datadose constrangidos aos limites de ideologias po-líticas mutantes Há, pois, muito mais capta-ção de nossa gênese e de nosso caráternacional em Gregório de Matos Guerra, nosInconfidentes, num Antônio José (o Judeu -trucidado pela Inquisição), em Alencar, Ma-

chado de Assis, Lima Barreto, J. Lins do Rego,Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Guima-rães Rosa, Antônio Callado, João Ubaldo Ribei-ro, etc. do que em nossas exangues ciênciassociais, exceção feita, conforme já assinalei,para a ensaística e a história social do início doséculo e sobretudo do modernismo para cá.

Destaque-se ainda que os textos esco-lhidos pelos diferentes organizadores das obrasexaminadas, posto sejam importantes e atéindispensáveis, estão restritos aos escritorespertencentes à nossa ilustração, à nossa tra-dição letrada. Toda a riquíssima produção denossa cultura popular está fora de cogita-ção nessas escolhas, visto que alguma sele-ção se impunha, até porque se assim não forateríamos que propor uma Biblioteca Nacionale não uma antologia básica.

Aliás, diga-se, sumariamente, que a des-mesurada tarefa de construir um quadro consis-tente como resposta à nossa aporia ôntica comopovo e como cultura implicaria o cometimentode muitos especialistas que explorassem a ela-boração da imagem do Brasil pelo menos nosseguintes segmentos discursivos: a) nos que seexprimiram nas diferentes fases de nossa histó-ria; b) nas diversas regiões de nosso continentesociocultural; c) nos vários olhares forasteirosque nos estudaram e apreciaram; d) no pensa-mento de nossa «ilustração» e nas imagens daliteratura ficcional e poética, incluindo aí as vi-sões de ufanistas contumazes e as dos críticospessimistas; e) nas concepções de nossas elitespolíticas e econômicas e nas das massas e clas-ses subalternas. Para não falar de outras formasde expressão tais como a pintura, a arquitetura,a música, a dança, o carnaval, os esportes, ohumor, a caricatura, etc,

Em suma, para encerrar sem conclusãopropriamente dita, gostaria de convidar a par-ticipar dessa permanente reflexão o poetaCarlos Drummond de Andrade que, usandode refinada ironia, no seu sentido etimológicoe socrático", nos propõe uma síntese maravi-lhosa de nossos percalços e hesitações, deum Brasil cuja realidade se expressa na an-gustiante indagação final deste poema quetranscrevo a seguir:

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HINO NACIONAL

PRECISAMOSdescobrir o Brasil !Escondido atrás das florestas,com a água dos rios no meio,O Brasil está dormindo, coitado.Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesasmuito louras, de pele macia,alemãs gordas, russas nostálgicas paragarçonnettesdos restaurantes noturnos.E virão sírias fidelíssimas.Não convém desprezar as japonesas ...

Precisamos educar o Brasil.Compraremos professores e livros,assimilaremos finas culturas,abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casacom fogão e aquecedor elétricos, piscinas,salão para conferências científicas.E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.Não é só um país sem igual.Nossas revoluções são bem maioresdo que quaisquer outras; nossos erros também.E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões ...os Amazonas inenarráveis ...os incríveis]oão-Pessoas ...

Precisamos adorar o Brasil!Sebem que seja difícilcaber tanto oceano e tanta solidãono pobre coração já cheio de compromissos ...se bem que seja difícil compreender o que queremesses homens,por que motivo eles se ajustaram e qual a razão deseus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil !Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.O Brasil não nos quer! Ele está farto de nós!Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.Nenhum Brasil existe. Eacaso existirão os brasileiros'?

FORTALEZA, 22 DE ABRIL DE 2000

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NOTAS

1 Quanto a isso, penso tanto nos clássicos"retratos ou raízes do Brasil .. (Paulo PRA-DO, Gilberto Freyre, Sérgio B. deHOLANDA, Caio PRADO JR., etc.), quan-to em livros como: A Cultura Brasileira,de Fernando de AZEVEDO; Contribuiçãoà História das Idéias no Brasil, de João CruzCOSTA; História da Inteligência Brasilei-ra, de Wilson MARTlNS; Evolução do Pen-samento Político Brasileiro, de VicenteBARRETTO e Antonio PAlM, etc. Portan-to, como pretendo examinar obras quecompendiam analiticamente a invenção doBrasil por sua inteligência, não considera-rei aqui estudos monográficos mais anti-gos como os trabalhos de Manoel BOMFIM(O Brazil na América - Caracterização daformação brazileira. Rio de Janeiro: Fran-cisco Alves, 1929; etc.), ou o curso queproferiu OLIVEIRA LIMA, na Sorbonne, em1911 (Formation Historique de IaNationalité Brésilienne), nem coisas comoo livro de Hélio VIANNA sobre o mesmotema (Formação Brasileira. Rio de Janei-ro: José Olympio, 1935); tão-pouco en-tram em linha de conta textos deestudiosos estrangeiros como JacquesLAMBERT (Os Dois Brasis, Rio de Janeiro:CBPE, 1959), Roger BASSTlDE (Brasil-Terra de Contrastes. São Paulo: Difel,1959), Charles WAGLEY CIntroduction toBrazil. New York: Columbia Univ. Press,1963), Thomas SKIDMORE (O Brasil vistode fora. São Paulo: Paz e Terra, 1994),joseph F. PAGE (The Brazilians. Reading,Massachusetts, 1995), etc. Deixo, enfim,de fora, a despeito de sua inegável im-portância, a recente obra organizada porCarlos Guilherme MOTA (Viagem Incom-pleta - 1500-2000 - A Experiência Brasi-leira, tomo I -Formação: histórias>; tomo II·A grande transação». São Paulo: Ed. Senac,2000), por se tratar de uma coletânea deensaios diversos que analisam múltiplosaspectos de nossa formação e de nossarealidade atual.

'H/UfC

2 Publicado inicialmente pelo Centro Brasi-leiro de Pesquisas Educacionais, do MEC-INEP, Rio de Janeiro, 1957, com introdução,organização e notas do mencionado estu-dioso, este livro foi republicado em 1972pelo Conselho Federal de Cultura, acresci-do de novos textos e com uma apresenta-ção de Artur César Ferreira Reis. Sai,finalmente, em nova edição ampliada e commais recursos (índice onomástico, etc.), na..Coleção Brasil 500 Anos .., publicada peloSenado Federal, Brasília, 1998.

3 CL VELOSO, Matiza e MADEIRA, Angéli-ca: Leituras Brasileiras. Itinerários no Pen-

samento Social e na Literatura. Prefácio deSérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Paz eTerra, 1999.

4 Cf.: MOTA, Lourenço Dantas (org.): In-trodução ao Brasil - Um Banquete nosTrópicos. São Paulo: Editora SENAC,1999.

5 No grego, eirwneia, é um tropo pelo qualse diz o contrário do que as palavras signi-ficam, ou seja, um recurso de argumenta-ção para levar o interlocutor a uma verdademais subtil, etc.

6 De seu livro Brejo das Almas, in Poesia eProsa. Rio: Nova Aguilar, 1979: 108-109.

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