osvaldo dragún - milagre no mercado velho

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MILAGRE NO MILAGRE NO MERCADO VELHO MERCADO VELHO OSVALDO DRAGÚN OSVALDO DRAGÚN 1

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Teatro argentino de qualidade

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Page 1: Osvaldo Dragún - Milagre No Mercado Velho

MILAGRE NOMILAGRE NO MERCADO VELHOMERCADO VELHO

OSVALDO DRAGÚNOSVALDO DRAGÚN

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SEM IMAGINAÇÃO NÃO HÁ LIBERDADE POSSÍVELSEM IMAGINAÇÃO NÃO HÁ LIBERDADE POSSÍVELFERNANDO PEIXOTO

I

Parece incrível que esta seja a peça primogênita de um autor que recém-atravessou o pórtico da adolescência. Não foi em vão que sua infância teve início sob os dramáticos acontecimentos do mundo atual, e particularmente dos de seu próprio país. Ele foi um lutador de seu difícil tempo, mas viveu-o sem desprezar o sentido crítico que lhe permitiu discernir o refluxo dos fatos. Dragún foi surpreendido na posse de um nítido talento de autor, mas em vez de acreditar-se um privilegiado, compreendeu que isso implica uma séria responsabilidade para com seu povo e para com seus contemporâneos de qualquer latitude.

São palavras lúcidas do mestre dos mestres do teatro latino-americano, o encenador uruguaio atahualpa Desl Cioppo, do grupo El Galpón, num prefácio, intitulado “Um autor que nasce adulto”, escrito em 1956 para a edição da primeira peça de Osvaldo Dragún, La Peste Viene de Melos, estreada em Buenos Aires em Junho daquele ano pelo Teatro Popular Independiente Fray Mocho. Prefácio que, comentando o texto, episódios históricos que se sucedem na Grácia durante a Guerra do Peloponeso (mas, na verdade, uma reflexão política sobre a invasão da Guatemala coordenada pelo imperialismo norte-americano que depôs o governo eleito de Jacobo Arbens Guzmán sob a alegação de que instaurava o comunismo), acaba com as seguintes palavras: “E já que falamos de História, é fácil afirmar que no teatro desde hoje se há de escrever o nome de Osvaldo Dragún, com os perduráveis caracteres que a glória reserva a seus eleitos”. Trinta e quatro anos depois, diante de uma das mais fascinantes e criativas obras da dramaturgia latino-americana, instigante reflexão sempre surpreendente e em permanente questionamento sobre o Homem e a História, é irrecusável constatar que a sabedoria de Atahualpa se transformou de correta premonição em irrefutável verdade. Poucos dramaturgos latino-americanos possuem uma trajetória tão marcada por uma participação íntegra e por uma obra tão coerente, em contínua busca de novos caminhos de expressão, como Osvaldo Dragún. Cada novo texto surpreende porque cada vez mais Dragún mergulha sem medo em si mesmo, em sua verdade e em sua consciência, em sua memória e em sua individualidade, num universo pessoal e intransferível que materializa fantasmas e sensações numa estrutura de linhas cruzadas e até contraditórias, que resultam numa teatralidade instigante e poética construída por inesperadas imagens que ultrapassa os limites do individual porque alcançam o significado revelador e perturbador do processo histórico concreto, que nasce da firma recusa da simplificação ou do esquematismo.

Os quatro textos reunidos neste volume são uma mostra inequívoca de significativos momentos de uma obra teatral em permanente construção. que investiga universos complexos e dilacerantes sem perder-se nunca em reduções psicologistas ou em angústias existenciais particulares, mas, através da passagem do eu para o nós, através da poética essencialmente cênica, faz com que eu seja a relação

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com a História, enquanto realidade universal, concreta e provocativa, atingindo como uma dimensão profunda e implacável que desperta viva emoção e produtiva reflexão.

II

Mas La Peste Viene de Melos não foi a primeira peça de Dragún. Escrita em 1956, quando tinha 27 anos, foi sim, a primeira encenada, graças à inteligência e à inquietação de Oscar Ferrigno, a quem Fragún considera talvez o mais expressivo dos homens de teatro da Argentina nestas últimas décadas. Dragún nasceu em 1929 na província de Entre-Rios, filho de camponeses que, expulsos de suas terras, foram obrigados a mudar-se para o Paraná. O golpe militar de 1943 atingiu seu pai, judeu radical e empregado na Casa do Governo, que teve de ir viver em Buenos Aires. Sua mãe havia sido atriz num elenco judeu em Entre-Trios, mas abandonou o teatro para casar-se. Com vinte anos, Dragún trabalhava como cobrador de uma empresa que vendia terras em Córdoba e chegou a entrar como figurante no filme O Crime de Oribe, de Leopoldo Torres Nilsson. Um dia comprou um caderno e escreveu uma comédia chamada El Gran Duque Há Desaparecido.

Instigado a lembra por que o jovem cobrador de vinte anos comprou um caderno para escrever diálogos, Dragún revela numa entrevista a Sérgio Moreno: “Talvez a necessidade de por no papel algumas imagens. É curioso, às vezes me sinto como se não tivesse memória. Conheço gente que recorda seu passado como uma história com continuidade. O meu está estruturado só com fragmentos, com imagens, mas estas sim muito gravadas em mim. E ainda: Creio que são as imagens que me levam a escrever teatro. Tenho uma mente que apanha o que está organizado e o desorganiza. Por isso, para mim é um horror escrever um ensaio que exige o contrário: organizar o desorganizado. Meu teatro parte de uma realidade que está aparentemente organizada e a desorganiza”.

Há três ou quatro anos uma universidade do Canadá decidiu microfilmar tudo que seis dramaturgos haviam escrito, entre eles Dragún. Abrindo velhas caixas ele descobriu, surpreso, que havia escrito, desde os dezoito anos, peças sobre uma cidade e sua família e comédias, escritas a lápis (Dragún sempre escreve a mão, depois datilografa), de um ou três atos, de que não mais se lembrava, numa época em que estava ligado a grupos amadores de bairro. Afirma que nunca escreveu contos ou novelas, apenas alguns poemas perdidos. “Teatro é a única coisa que escrevi de forma coerente”, me confessou.

Vivendo em Buenos Aires desde 1945, Dragún inicialmente se liga a grupos amadores de bairros, até o dia decisivo em que assiste a um espetáculo no Teatro Popular Independiente Fray Mocho, que o fascina inclusive pela força da liberdade poética e cênica: um cenário vazio, bastante distante do tradicional realismo de portas que eram portas e janelas, com os intérpretes transformando-se em seres humanos, animais ou árvores. O grupo estava estruturado a partir de uma postura marxista, mas o que mais despertou o entusiasmo do jovem Dragún, que ele ressalta ainda hoje com incontida emoção, foi a ideologia do espaço e da liberdade de criação. Foi aos bastidores cumprimentar os artistas. E pediu para ficar. Acompanhou Oscar Ferrigno a um bar próximo e contou que havia escrito um texto, intitulado Melo Vivirá. Ferrigno lhe havia dito: se está mal escrita, não importa. A gente modifica e ficará

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bem. Foi um trabalho intenso de dramaturgia que alterou inclusive o título: a peça passou a chamar-se La Peste Viene de Melos. E estreou em Buenos Aires em junho de 1956. Dragún ficou doze anos como o Fray Mocho.

III

Em 1976, poucos dias depois de estrear Ponto de Partida, de Gianfrancesco Guarnieri, em São Paulo, todo o meu esforço, como encenador, concentrava-se na montagem de Tupac Amarú, de Osvaldo Dragún, que traduzi em poucos dias. Mantive com ele uma produtiva correspondência, recebendo modificações e cenas reescritas. O fascínio havia começado quando assisti à peça encenada pelo Fray Mocho em 1957, em minha primeira visita a Buenos Aires. A ditadura militar brasileira abortou o projeto, já quase em fase de início de ensaios, com maquete de cenários de Hélio Eichbauer pronta e elenco praticamente escolhido. Uma tarde fui chamado pela Censura Federal e o chefe do organismo repressivo me comunicou, com delicada gentileza, a impossibilidade de permitir, naquele momento, a propaganda do terrorismo dos tupaaros uruguaios... A tradução acabou sendo publicada pela Editora Hucitec em 1980. Pouco depois conheci Dragún pessoalmente. E desde o primeiro instante solidificou-se uma amizade fraterna e solidária, uma compreensão de iramos, consolidada em constantes e inesquecíveis encontros em São Paulo e Havana. Uniu-nos ainda mais nossa participação na criação da Escola Internacional de Teatro Para a América Latina e o Caribe, em 1987, em Havana, que tem Dragún como primeiro diretor. Começou a possibilidade de trabalharmos juntos num projeto que nos consome com incontido entusiasmo.

Foi durante as oficinas da EITALC, em São Paulo, em março/abril de 1990, que surgiu a organização deste volume, com os quatro textos que ele mesmo escolheu.

E que conversamos longamente, sobre as origens de Milagro en el Mercado Viejo, Al Violador, Volver a La Habana e Los alpinistas, num bar do Bom Retiro, na noite de 2 de abril.

IV

“Eu queria escrever uma peça sobre Buenos Aires. As imagens já me vinham enquanto escrevia Tupac Amaú. Venho da província para a capital. Sinto Buenos Aires como uma cidade mágica, em um ponto de vista muito particular. Principalmente à noite. Eu queria mergulhar no universo da Rua Corrientes, escrever uma homenagem a Buenos Aires, à noite da cidade. Ma como contar isso tudo? Enquanto não sei como contar, não sei escrever. Não consigo. Só quando descubro como contar, aí sim, escrevo. Acho que isso importa mais que o que contar, para que mesmo o que já foi contado pareça novo”.

Foi nas ruas noturnas da cidade que ele encontrou a estrutura, os personagens, o desenvolvimento da temática imaginada. Na época, 1960, estava em ensaios sua peça Historias Para Ser Contidas, com direção de Frrigno no Fray Mocho. Dragún e o grupo saía do teatro já quase ao amanhecer. Perto havia um velho mercado, hoje um shopping-center. Fascinantes e integrantes personagens populares aproximando-se

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dos atores ou eram vistos por eles, gente da rua, da noite. Afirma Dragún: “Eu sentia as imagens, homens e mulheres. Vi uma velha que falava em voz baixa, contava histórias. Um homem alto e magro que tinha pés tão grandes que cortava as alpargatas para deixar os dedos livres. Ele se aproximava para vender flores e se você estivesse com uma mulher e não comprasse flores, ele as dava à mulher e o olhava com desprezo, como se você fosse um imbecil. Nós tínhamos uma companheira de grupo que era atriz e o pai ganhava muito dinheiro vendendo bíblias editadas nos Estados Unidos. Uma mistura de drama, comédia, grotesco foi nascendo, gente aparentando ser o que não era, a noite onde tudo era possível – a falsificação do ser humano, uma feira popular que lhe oferecia tudo. Eu contava as idéias a Ferigno. Sempre imaginava que o vigia do mercado seria coxo. Uma noite estávamos indo para um restaurante, e pasmos pela porta do mercado. Eu estava contando o que pensava a Ferigno, quando olhamos para o fundo, e lá estava o guarda-noturno: era coxo... Mergulhei na noite de Buenos Aires”.

Começou a escrever , mas parou depois de cerca de dez páginas, sem saber como continuar a solucionar a diversidade de imagens. Foi para Cuba assumir a direção de um Seminário de Dramaturgia no Teatro Nacional de Havana. Passaram-se dois ou três anos e, num período de férias dos trabalhos do seminário, Dragún voltou Buenos Aires. E voltaram ao mercado, agora com mais vigor: “Comecei a ver tudo claramente”.

Regressou para Havana: “Fechei-me em casa. Escutava tangos. Lia poemas portenhos. Terminei a peça em 15 dias”.

Em 1963 Milagre no Mercado Velho recebeu o prêmio de teatro do concurso da ‘Casa de las Américas” (dividindo com El Atentado, do mexicano Jorge Ibarguengoitia) e no mesmo ano estreou em Buenos Aires. Três anos depois Dragún novamente receberia o mesmo prêmio cubano: havia ido para a Espanha para uma viagem rápida, de 15 a 20 dias, pretendendo voltar no mesmo navio que o levara, mas foi contratado pela televisão espanhola e ficou três anos em Madri. Entre outros textos, havia escrito em 1964, em uma semana de trabalho compulsivo, Heróica de Buenos Aires. Estava em Madri, 1966, quando o dramaturgo Alfonso Sastre lhe comunicou que a peça havia recebido o prêmio “Casa”. Ele não se lembrava mais nem de que havia enviado o texto para o concurso. Encenado em diversos países, inclusive Polônia e Hungria, México e Venezuela, e também Porto Rico, Heróica só estreou em Buenos Aires no ano de 1984, antes proibida pela ditadura militar.

V

Depois de vários outros textos, entre eles História com Cárceres, cresce a dificuldade de escrever: “Eu não sabia como , nem o quê. Tudo cada vez mais difícil. Mas em plena ditadura na Argentina, eu queria cada vez mais encontrar um caminho: trabalho mais com minhas próprias imagens, a princípio, para depois buscar o pessoal e o individual de cada peça. Comecei a sentir a necessidade escrever uma trilogia. Três temas que são essenciais na história do meu país: os perdedores, os triunfadores e os violadores.”

E três peças são escritas: Al Perdedor, AL Vencedor e Al Violador. Dragún pensa numa saga histórica, mas que ao mesmo tempo fosse anistórica. Ou seja, sem

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nada falar de história, mas sim transpor o tema histórico, investigando a realidade de um país como o seu, aparentemente racional mas totalmente irracional quando, por exemplo, explode uma violência alucinada numa cidade organizada como Buenos Aires, mas descrita com tanta lucidez por Borges como um labirinto. Referindo-se a Al Bviolador, afirma: “Queria escrever sobre isso e escrevi como uma autobiografia de nós mesmos, em plena ditadura, um texto metafórico, mas muito sobre nós mesmos. Mas em determinado momento senti que ‘nós mesmos’ era ‘eu mesmo’. Uma peça sobre mim mesmo, sobre mim. Quero muito essa peça, estreou em 1982 e li ainda agora num jornal que continua em cartaz, oito anos depois. O tema é a trajetória de um personagem que rompe a estrutura apesar de si mesmo. Há gente assim, que nasce para ser violador. Ele quer incorporar-se ao sistema, mas confunde o problema da normalidade e da anormalidade. descobre que o que é bem ou mal, para ele, não é bem ou mal para os demais. Quando decide fala o idioma dos outros, os outros falam outro idioma. Está sempre como que fora da Historia. Segue sua história própria. Vale tudo. É uma peça aparentemente metafórica sobre a sociedade do meu país. Mas resulta que afinal não é tão metafórica assim, não.”

Ao Violador foi a origem involuntária de um dos mais polêmicos e combativos movimentos de resistência e afirmação artístico-democrática do teatro argentino contemporâneo, o Teatro Aberto (1982), que sob liderança e coordenação de Dragún, reuniu os mais expressivos dramaturgos do país, entre eles Roberto Cossa, Augustin Cuzzani, Griselda Gambaro e Carlos Gorostiza. Dragún escreveu AO violador para um grupo jovem, em plena ditadura, e o entregou ao grupo: “O diretor leu, me disse que era a peça que sonhou em fazer toda a sua vida – que maravilha – e disse que me chamaria quando começassem os ensaios. Passou um mês, e nada. Aí me chamaram pelo telefone e me disseram que queriam uma reunião. Fui. Me disseram que não ima montar a peça, porque alguns trabalhavam em televisão, outros em publicidade, tinham medo de perder o emprego, não mais serem chamados. Fiquei perplexo. Tinha ido à reunião com medo de ser chamado de velho de merda. E fiquei penando: que fizemos nó, da nossa geração, se são estes os herdeiros que deixamos. Aí assumimos, sem eles, a organização do movimento”. E a força desta mobilização artístico-política ultrapassou as fronteiras do pais.

VI

Já decididamente autobiográfica, mas mergulhando num campo poético que nada tem a ver com mera confissão ou desabafo pessoal, estréia em Buenos Aires, em abril de 1987, com direção de Omar Grasso, um dos textos mais densos e vigorosos de Dragún: Arriba, Carazón! Ele conta: Descobri que não tenho recordações mas memória. Levei muitos anos para escrever esse texto. Sempre escrevi sobre mim, sobre minha família, amigos. Agora não. Seria diretamente sobre mim mesmo. Já não podia evitar me colocar em questão. Então, decidi que teria de me jogar interior. Sem nenhum tipo de piedade. Tudo que meu subconsciente vai dizendo sobre mim e tudo que penso de mim. As imagens surgiam em tensão, sem eu saber como eram, verdade ou invenção, certo ou errado. Terremotos dentro de mim mesmo.

“Buenos Aires é uma cidade sem terremotos, mas Dragún afirma que sempre viveu em um. Ou na precariedade da perseguição e do exílio. No terremoto das

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guerras e das ideologias. No terremoto do peronismo, na precariedade das perguntas e das respostas. Sobre os dilacetentes instantes de descoberta em que surgiu o texto de Arriba, Carazón! Escreveu: “Imagens incoerentes, desordenadas, enganadoras, porque no sabia se eram verdade, invenção, fantasmas. Quando me sentei para escrever, ou melhor, quando me sentei para esperar que estes fantasmas tivesses tempo para vir me visitar, ou melhor, que eu tivesse o valor de assumi-los, descobri que pela primeira vez na minha vida eu havia começado a escrever uma carta para mim mesmo. A carta levou sete anos para ser escrita. O que assegura apenas isso: que levou sete anos. Podem abrir o envelope. Talvez, quem sabe, seja possível (ah, a precariedade) que posamos compartilhar a sensação de habitar uma terra que está sempre se mexendo debaixo de nossos pés. Imigrantes que nunca chegarão ao paraíso.”

É o momento de crise das ideologias e das utopias. Mas a posição de Dragún é segura: creio nas ideologias sem ser ideólogo. Creio nas utopias , porque sem elas não poderia viver, não poderia fazer teatro. E começou a sentir necessidade de reagir. E revistar a fascinante e controvertida temática da utopia. Contou Dragún” Voltar à utopia – mas o que é uma utopia para mim? Tanta coisa. Uma ilha perdida por aí. Cuba, não o que é Cuba ou o que foi Cuba. O que é Cuba para mim. O que fui nela. O que sinto, o que seria. Comecei a escrever em Porto Rico, onde estava trabalhando, dirigindo Historias Para ser Contadas. Mas escrevi as primeiras páginas sem saber quem seria o personagem, o que iria acontecer. Aí voltei para Havana, depois de muitos anos. Uma noite o ATOR Mário Balmaseda me convidou para comer no Café-Teatro do “Teatro Político Bertolt Brecht’. Vi numa mesa meu velho e grande amigo César Portillo de la Luz, o grande músico cubano. Estava sentado, inclinado para o violão, ouvindo as cordas. Aproximei-me dele e disse: “César”. Ele me olhou e disse: “Osvaldo”. E em seguida: “Lembra desta cançao?" Como se tivéssemos nos visto um dia antes. Começou a cantar tudo que cantava antes. Vinte e três anos tinham se passado. Foi nesse momento que descobri que a peça se chamaria Voltar Para Havana. E se passava não em Havana, ainda que Cuba estivesse presente em todas as páginas, mas sim e m Buenos Aires. Mas, misturando tudo, misturando as cidades, as pessoas, os amigos, os amores, os países, as canções, tudo. Agora eu tinha consciência clara de que tinha vivido muitas vidas. E todas continuavam vivas. Minha vida havia continuado para Portillo, a dele para mim. Tudo se misturava. Cuba, as mulheres e os amores de Cuba, a revolução, o Chê. Naqueles dias nós já estávamos discutindo a organização da “Escola Internacional de Teatro’. Eu estava hospedado no Hotel Riviera. Fechei-me no quarto. Fechei-me escutando tangos e Portillo de la Luz. Para mim o fílin’ cubano é como o meu tango. Comecei a escrever sem reler. Como um louco. Terminei. Eu me dei conta de que não era uma peça sobre Cuba, mas era. E era sobre mim e sobre tudo e todos. Mas sobre meus próprios fantasmas. Lá estava a utopia, Portillo, as noites e longas caminhadas juntos pelo ‘Malecón’ de Havana, o Chê, tudo , não o Chê como foi, mas como senti ou sentia agora tudo, como tudo se cruza na vida, nas tantas vidas que vivi e que continuo vivendo”.

Voltar par Havana foi escrita entre 19 de março de 1988 (Em SAN Juan de Porto Rico) a 9 de setembro de 1988 (em Havana)

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VII

Los Alpinistas foi escrita em 1989. Contou Dragún: “Meu pai morreu no ano passado. Eu estava no meu teatro, em Buenos Aires, no “Teatro de la Campana’. E tinha estado com ele até duas horas antes. Fui a um bar próximo ao teatro; estava lá quando avisaram que meu irmão tinha telefonado me chamando. Meu pai estava muito mal. Telefonei e ele me disse que meu pai tinha acabado de falecer. Peguei um táxi, fui para casa, fechei-me no quarto onde ele estava e comecei a falar com ele. De repente tive a sensação de que ele estava flutuando por cima de nós dois, por cima de mim e do corpo, e que esta conversa tinha sentido, eu estava tentando falar com ele o que nunca havia falado durante toda a vida. Meu pai era um homem muito fechado, introvertido. Continuei falando com ele. Pensei em escrever uma peça que se chamaria Conversas com meu pai”.

E prossegue: “Eu tinha de ir para Havana. Havia sido nomeado diretor da ‘Escola Internacional de Teatro para a América La tina e o Caribe’. Aí me telefonaram de Havana dizendo que o apartamento onde eu ficaria morando não estava pronto e seria melhor adiar a viagem por quinze dias. Eu já havia concluído todos os trâmites para a viagem e não tinha mais nada a fazer em Buenos Aires. Saí caminhando de noite. Às 4 horas da madrugada me encontrei com o diretor de Arriba, Coazón! Omar Grasso. Disse a ele que ficaria mais quinze dias na Argentina e que não sabia o que fazer. Ele me respondeu que o destino me colocava a oportunidade para escrever uma peça. Em quinze dias? Perguntei. Impossível. Grasso começou a me contar uma idéia que tinha: Simón Bolívar e San Martín olhado os Andes, pensando em subir. Começa a me surgir a idéia de escalar montanhas. Nada a ver com os dois, com eles certamente que não. Mas outros personagens, a idéia de escalar montanha. O alpinismo nunca me interessou nem interessa. Parece-me idiota alguém subir com perigo de vida, arriscar-se, para provar o quê? Por que não ir de helicóptero? Tenho horror de altura. Mas a idéia de escalar uma montanha que não existe era uma idéia que me tentava. Inventar a montanha para escalar. Tudo começou a se untar. Meu pai e também os personagens de Arriba, Corazón! Comecei a pensar que a história daquela peça não havia terminado, sobretudo o personagem de ‘Negro’. Sempre que encontrava o ator que havia feito, ele me perguntava: quando ia prosseguir e retomar a história? Tudo começou a caminhar junto na cabeça. E surgiu a idéia de escrever Los Alpinistas. Terminei sem reler. Nunca reli o texto. Não sei se devo mexer, mudar, nunca reli. Peguei um táxi na hora de ir apara o aeroporto, deixei a peça com Grasso e fui para Cuba. Não mexi inclusive porque não sei mexer com os ensaios. Não sou um literato. Não sei mudar a peça literariamente. Eu trabalho com imagens e com as imagens que os outros me trazem, o ator, o diretor etc.”

VII

Hoje dividido entre Buenos Aires e Havana, viajando pelo mundo, dedicando-se com contagiante paixão a seu Teatro de La Campana, que dirige junto com Roberto Cossa, e à Escola Internacional de Teatro Para a América Latina e o Caribe,

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que tem sede em Cuba mas organiza oficinas de investigação e pesquisa em toda “Nossa América”, Osvaldo “Chacho” Dragún prossegue seu trabalho teatral; múltiplo e transformador, com um generoso entusiasmo que não aceita limites e não perde o inesgotável vigor diante das eventuais adversidades. Autor de textos essenciais, como La Peste Viene de Melos, Historias para ser cantadas, Tupac Amarú, Los de La Mesa 10, El Jardin del infierno, milagro en el mercado viejo, amoretta, y nos dijeron que éramos inmortales, heroica de Buenos Aires, mi obelisco y yo, hoy se comem al falco, al perdedor, al vencedor, al violadro, historia com cárceles, arriba, Corazón! Volver a la habana, los alpinistas, não perde a crença na justa ideologia nem a fé na necessidade da alcançável utopia de justiça e liberdade, fiel à responsabilidade que Atahualpa del Cioppo encontrou em sua primeira peça encenada. Sensível, inteligente, jovem, polêmico, combativo, sempre coerente, não aceita a passividade da glória.

E recusa a falsa estratificação, que seria o equivalente da morte. Construir um sistema de pensamento, organizar tudo, tanto para o personagem central de Voltar para Havana como para Dragún, seria o fim: não escreverá o último para sua vida não tenha uma explicação lógica, para que os inúmeros e inesperados fantasmas continuem desordenados, mas dando-lhe impulso e vitalidade. É o que dizem os versos de “Malena” que encerra aquela peça: “quando todas as portas estão cerradas, ladram os fantasmas da canção”. Ou seja, permanece a imaginação, a liberdade total. Conclui Dragún: “Isso é estar vivo – o que pedem àquele personagem é o contrário, que organize a memória, mas ele mesmo diz que é como existir uma cenoura a cinco metro e um pobre coelho assustado rogando a Deus todos os dias para que não a alcance nunca, para que assim possa continuar vivo. Sem imaginar não há liberdade possível.”

São Paulo – setembro de 1990

MILAGRE NO MERCADO VELHOMILAGRE NO MERCADO VELHO(Milagro en el Mercado Viejo)

OSVALDO DRAGÚN

PRÊMIO DE TEATROCONCURSO “CASA DE LAS AMÉRICAS”

HAVANA, CUBA, 1963

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PERSONAGENSPERSONAGENS

ÚRSULA, UMA VELHAJOAQUIM, O GUARDA-NOTURNO

ATOR, UM ATORJUIZ

COYAVENDEDOR DE BÍBLIAS

A FILHA DO ARREPENDIMENTOMARIAJOSÉ

O MERCADO VELHO, À NOITE. AS BARRACAS ESTÃO ABANDONADAS, COM AS MERCADORIAS COBERTAS OU PENDURADA. UM GRANDE MONTE DE FRUTAS OCUPA O ESPAÇO DO CENTRO, IMPONENTE, AO FUNDO , ACIMA DE CAIXOTES AMONTOADOS, UMA GRANDE JANELA, AGORA FECHADA, MAS QUE, QUANDO ESTÁ ABERTA, PERMITE VER AS LUZES E OS LETREIROS LUMINOSO DA RUA CORRIENTES. AO LADO, ACIMA, UMA SEPARAÇÃO DE VIDRO DÁ PARA O CHÃO DE UMA BOATE AO LADO, PELA QUAL SE VÊEM, QUANDO COMEÇA A DANÇA, OS PÉS DOS DANÇARINOS.

AO SE LEVANTAR A CORTINA, NO MEIO DO MERCADO ESTÁ A VELHA ÚRSULA, COM A CABEÇA CURVADA E OS OLHOS FIXOS NUMAS FLORES, PARECIDAS COM MARGARIDAS, QUE TEM EM SUAS MÃOS. ÚRSULA LEVANTA LENTAMENTE A CABEÇA E OLHA O PÚBLICO. AVANÇA PARA FRENTE.

ÚRSULA Isso que vocês vêem aqui, ao meu redor, é o Mercado Velho, de noite. Quando deixa de pertencer às pessoas e começa a pertencer a mim. Porque esse é o meu mundo. O meu e o das minhas flores. Tem sido durante muitos anos e continuará sendo ate que... bom, vocês compreendem. A história que eu quero contar pra vocês não apareceu publicada nos jornais porque aconteceu aqui, na hora em que o Mercado se transforma em seu próprio esqueleto... Começou... (Ouvem-se onze badaladas de um sino)... sim, os últimos vendedores já tinham ido embora... (Como se cumprimentasse algumas pessoas) Até amanhã, Lola. Cuidado como resfriado!...Até amanhã, Juan. Não esquece a garrafinha de clarete que você me prometeu... vamos ver, nené, se amanhã você me traz aqueles charutinhos toscanos, hein!... (Soa a última badalada) Eram as onze da noite. Como de costume, aumentou o volume da música da boate ao lado... (Escutam-se nitidamente os compassos da música da boate)... e também, como de costume, chegou Joaquim, o guarda-noturno...

CHEGA JOAQUIM, MUITO AGASALHADO, COM O CACHECOL, SOBRETUDO E LUVAS. APESAR DE TUDO, O FRIO O FAZ RESFOLEGAR. JOAQUIM É COXO.

JOAQUIMUff! Boa-noite, Úrsula!ÚRSULA Boa-noite, Joaquim! Parece que você está com frio, meu velho...

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JOAQUIMTambém! Dez graus, minha querida... não é brincadeira. Por que é que você não se agasalha mais? Assim você vai ficar congelada.ÚRSULA Fui ao Banco Municipal retirar o meu casacão, mas o que me trouxeram foi uma traça bem gorda. Me disseram que depois de quinze anos...JOAQUIM (Rindo)Parece que vai tudo indo bem, não é?ÚRSULAÉ... tudo vai indo bem.JOAQUIMO pessoal ainda não veio?ÚRSULANão, ainda não. Ma com certeza vão chegar logo. Hoje é o dia de aniversário do Juiz e a gente ficou de tomar um par de garrafinhas.JOAQUIM E quem é que vai trazer?ÚRSULAO Juiz descobriu uma brecha que dá pros fundos de um bar. Deve estar roubando garrafas agora. Me faz um favor, Joaquim...

JOAQUIM (Tira o charuto do bolso que Úrsula indicou. Olha-o) Pequenininho, o coitado...(coloca entre os lábios)ÚRSULAPõe aqui.JOAQUIM (Coloca o charuto na boca de ÚRSULA, em seguida olha as flores que ela segura nas mãos) Por que que você não pode soltar isso?ÚRSULAIsso! Não seja estúpido, Joaquim. “Isso” são três Xantopis propicuos.JOAQUIM (Admirado)Ah!... E que é isso?ÚRSULASão gregas. É uma flor grega que floresce de noite. É isso.JOAQUIMGregas, Úrsula? E onde você arranjou isso?ÚRSULAQuem me trouxe foi um contrabandista grego que foi meu amante antigamente.JOAQUIMAh, não! Por favor, Úrsula... Não vai começar outra vez com os teus amantes de cinema. Antes de ontem era um turco pescador de polvos... Ontem foi a vez de um índio caçador de cabeças, hoje... ÚRSULAEstá bem, está bem! Se você não acredita em mim, chega Joaquim, chega! Mas de onde é que saíram essas flores gregas?

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JOAQUIMSão gregas mesmo, Úrsula?ÚRSULAClaro! Xantopis propicuos (Olha as flores) Bom, por agora está bem. Posso deixar elas por alguns minutos (Vai largá-las)JOAQUIM (Olhando as flores)Ainda não se abriram, Úrsula...ÚRSULA (Com carinho, enquanto larga-as)Não, elas mesmas vão escolher, pra se abrirem, o momento da noite que mais agrade a elas. (Arruma as flores com amor.)JOAQUIM (Aproxima-se dela)Úrsula...ÚRSULAO quê?JOAQUIMQue é que você ia dizer se eu tivesse trazido um presente pra você?ÚRSULA (Volta-se para ele)Não, Joaquim! Não pode ser! Você é um perfeito galego... Você sempre tomou o nosso vinho, fumou os meus charutos, comeu tudo que o pessoal traz...JOAQUIMNão exagere, Úrsula, não exagere! Eu nunca fui contra vocês virem aqui de noite... E pra você ficar sabendo, eu trouxe um presente... Toma (Dá a ela uma garrafa de vinho que tirou do bolso do abrigo)ÚRSULA (Arrancando a garrafa da mão dele. Olha-o de todos os lados. Observa Joaquim. Pausa) Que favor você está querendo de mim?JOAQUIM (Queixando-se pela desconfiança)Ursulinha...ÚRSULA (Imita-o de brincadeira)Joaquinzinho...JOAQUIMEssa noite a minha filha mais velha – a Carlota – está dado uma festa pelo batismo do meu neto, sabe? A minha mulher vai, os meus outros filhos vão, e eu pensei que eu podia ir também se você cuidasse do Mercado pra mim...ÚRSULAVai tranqüilo, Joaquim. E dá felicitações à Carlota em meu nome.JOAQUIM (Feliz)Então... você fica, Úrsula?ÚRSULAE se eu não ficar aqui, eu vou pra onde, idiota?JOAQUIM (Entusiasmado)É meu neto, sabe... o primeiro... não posso faltar... você sabe, Úrsula, o que é um neto pra um velho como eu...ÚRSULA (Seca)

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Cala a boca, velho! Eu não sei o que é um neto para uma velha como eu. (Com aparente indiferença) Eu nunca quis ter filhos. Amarram demais.JOAQUIM (Olha-a de esguelha, compreendendo-a)Claro... é, em parte você tem razão... (Quer mudar de conversa) Me diz , você ouviu os boatos sobre a demolição do Mercado? (Ela olha-o) Parece que o senhor Fernández que construir um edifício...ÚRSULAÉ mentira, Joaquim! Você acredita em qualquer coisa...JOAQUIMÉ sim!...Sabe que há três dias atrás vieram me oferece o posto de guarda-noturno na obra?ÚRSULAMentiras! (Pausa) E você aceitou?JOAQUIME eu vou fazer o quê, Úrsula!ÚRSULAQuando terminarem a construção te mandam embora!JOAQUIMÉ, mas isso vai levar muito tempo. Que é que eu poso fazer? Pior vai ser pra vocês...

ÚRSULAÉ... (Pausa) É certo isso do teu emprego?JOAQUIMNão, certo que não...ÚRSULAEntão, por que é que você tem que ficar assustando as pessoas?! É tudo mentira.JOAQUIMPode ser. Sei lá!... Bom, ou indo...ÚRSULAVai.JOAQUIMVolto de madrugada (Volta-se) Úrsula...ÚRSULA O que é?JOAQUIMSe o pessoal chegar... e beber... que não façam muito barulho, tá?ÚRSULATá.JOAQUIME se vier alguém... um polícia, sei lá... vocês se escondem, está bem?ÚRSULAPor favor, Joaquim, não me põe nervosa! Vai tranqüilo que eu tomo conta de tudo.

JOAQUIMSim, claro... E olha, se aparecerem dois... um casal... Mas é quase certo que não! Até logo, Úrsula...

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ÚRSULAAté logo (Grita para ele) E obrigada pela garrafa!JOAQUIM (Volta-se)Ah... de qualquer jeito ganhei de presente! (Sai)ÚRSULA (Olha-o sair. Ri) Bom, é preciso ver as flores... (Enquanto observa as flores cantarola imitando o som galego)

“Ya esse bautismo yo te fi a ver en tu mantilla...”(Interrompe-se) “En tu mantilla...”Acho que era assim numa zarzuela da minha época... “En tu mantilla...”Não lembro (Olha as flores) Será que vão se abrir essa noite? (Vai até a janela grande que está acima dos caixotes. Abre. Vê-se ao longe as luzes da Rua Corrientes. Os letreiros luminosos giram vertiginosamente. Úrsula contempla-os em silêncio enquanto fuma seu charuto. Entre o Ator. Veste smoking, camisa branca e gravata preta. Traz uma bengala e segura as luvas nas mãos. Não vê Úrsula. Avança para o centro do palco. Olha em torno e declama)

ATORSenhora condessa, sois injusta comigo... (Imita mal uma voz feminina) Por que, senhor Conde? (Volta a sua voz) Ri quando choro e chora quando rio. Me afirmaram que esta casa era um museu, mas assemelha-se atrozmente ao mundo. Senhora Condessa... (Interrompe-se tremendo) Brrr! Estou morrendo de frio... (Vê a garrafa de vinho e toma um grande gole. ÚRSULA, ao ouvi-lo declamar, volta-se para ele, fechando com um golpe o janelão. Ao escutar o barulho, o Ator volta-se para onde ela está) Úrsula?ÚRSULAÉ, Úrsula! Se não interrompo, você toma a garrafa inteira! (Chega onde ele está. Olha-o) E esse disfarce? Ontem você veio de uniforme militar, hoje...ATORHoje eu vou ser o Conde Dupré no teatro, ontem fui o Coronel Williams na televisão. Assim é a vida! Pelo menos, a minha.ÚRSULAVocê conseguiu trabalho?ATORUma substituição, por esta noite.ÚRSULAJá não é tarde pra você?ATOREntro no final do terceiro ato. Ainda tenho tempo. É uma peça longa (Olha a redor) O Coya não veio?ÚRSULANão. Para que você precisa dele?ATORTenho que pedir para que ele me dê um cravo de graça! O Conde Dupré sempre usa um cravo branco na lapela. Me surpreende que você não saiba isso.

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ÚRSULAO único conde que conheci era vendedor de mulheres brancas. Um dia quis me vender a um inglês.ATORQue pena que o Coya não veio! O último dinheiro que eu tinha gastei para alugar o traje!ÚRSULA (Apalpa o casaco)Lindo tecido. É uma linda camisa!ATORCamisa? (Ri e volta-se. Levanta o casaco e vê-se que sua camisa é apenas um peitilho. Debaixo do casaco usa uma camiseta emburacada) Úrsula, querida, eu estou morrendo de frio! Me deixa tomar outro golinho...ÚRSULATomaATOR (Toma outro gole. Vê as flores de Úrsula) E essas flores? Podiam substituir os cravo... (Tenta apanhar uma, mas Úrsula bate em suas mãos)ÚRSULATira a mão, animal! São Xantopis propicuos... gregas.ATORNão!ÚRSULASim!ATOR (Faz reverencia às flores)Salve, senhora Condessa de Xantopis propicuos! Pensei que esta casa era o mundo, mas é um museu. (A musica da boate sobe de intensidade. Agora se ouve cantar “Marechiare”. O Ator se ergue lentamente) Estão cantando...ÚRSULASim. Estão cantando.ATOR“Cuando apunta la luna, marechare...” Eu gostava de ouvir o meu velho cantar essa música. Era napolitano, sabe... e um napolitano com três doses de vinho...ÚRSULAAh, um napolitano, um correntino, eu... qualquer um!ATOREle sempre cantava isso... Nós nunca cantamos, você já pensou nisso, Úrsula? Eu tenho quarenta anos e posso contar nos dedos de uma mão as vezes que eu cantei... (Lembra) Um aniversário, um casamento, um velório... Uma vez eu cantei num velório!ÚRSULANão!ATORFoi.

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ÚRSULAEu também! Me compraram dois ramos de rosas, um para um casamento e outro para um velório. eu quis me fazer de simpática e me enganei de lugar. Entrei no velório cantando!ATORNão!ÚRSULA

- Foi. Me diz... você não se lembra de uma zarzuela antiga que dizia... “Y a esse bautismo yo te fui ver. En tu mantilla...”Você não lembra?ATOR (Procurando recordar, cantarola.)

- “Y a esse bautismo yo te fui ver. En tu mantilla...” (Pausa. Continua lentamente) En tu mantila nube en el viento adiviné que aquella noche de juramentos de fiebre ardiente de juventude de tu memória se había borrado...” Tinha se apagado... Não lembro mais, Úrsula.ÚRSULANão importa. É triste.ATORÉ. Era muito triste (Treme de frio) Eu estou morrendo de frio!ÚRSULAToma outro gole. (O Ator bebe. Ela encara-o) até quando você vai continuar assim?

ATOR (Surpreso)Assim... como?ÚRSULAAssim. sendo um dia Coronel Williams, outro dia o Conde Dupré... Amanhã...ATOR Ah, quem me dera que amanhã eu possa ser alguém!... Já estou velho, Úrsula. Antes eu pensava em personagens. Hoje eu penso em viver. Comer, dormir, fumar.ÚRSULAMas se você quase nunca tem dinheiro para comer, nem pra fumar e às vezes até que dormir aqui, no Mercado! Por que você não procura um trabalho? Uma barraquinha de vender frutas...ATOREu sou Ator, Úrsula! Quem pode fazer o papel de um conde com uma camiseta emburacada? (Volta a mostrar a camiseta) Ninguém a não ser eu! (A música da boate cresce) O pessoal se diverte...ÚRSULA E amanhã é sábado. Dentro de pouco nós também vamos nos divertir.ATORQuem é que recebe os presentes? Eu trouxe um pedaço de salame... (Tira do bolso do smoking um pedaço de salame)ÚRSULAMe dá... Vou por aqui. (Larga o salame enquanto olha a garrafa de vinho na luz) Você não deixou muito ... (Pausa) Me diz... você ouviu falar alguma coisa sobre o Mercado?

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ATORNão! Por quêÚRSULAJoaquim me disse que o senhor Fernández está pensando em derrubar o Mercado para construir um edifício. É impossível, não é verdade?ATOR (Encara-a. em seguida olha em torno) Não. Não é impossível, Úrsula...ÚRSULAEu não vou poder suportar isso, te juro! Aqui eu me sinto bem. Eu sempre tenho a sensação de que em qualquer momento pode acontecer alguma coisa de inesperado, misterioso...ATOREssa não é a época para isso. Nem é esse o lugar.ÚRSULAEu te digo que sim! Eu sinto isso como sinto a roupa que estou vestindo. Algumas noites, quando eu estou sozinha, eu gosto de gritar... você nunca gritou?ATORNão.ÚRSULAOuve. (Grita) Ahhhhh!... (O eco responde) E isso, o eu é?ATORO eco.ÚRSULAE por que eco? Por que alguém chamou isso de “eco”? e se ninguém tivesse posto esse nome... se nós é que estivéssemos descobrindo isso... o que é que você ia dizer?ATOR (Pausa) Que os ratos te responderam.ÚRSULAE por que não, hein?... por que não? Talvez os ratos tenham me respondido... e eu me sinta muito feliz em falar com eles.ATOR (Encara-a. grita) Ahhhhhh! (O eco responde) Da minha parte, eu não tenho nada contra conversar um pouco com s ratos.ÚRSULAMe diz... Sobre a demolição... não vamos falar nada disso aos outros. Pode ser mentira...ATORE se não for?ÚRSULASe não for... Olha, filhinho, uma vez um dos meus amantes – um francês de bigodinho – fugiu com outra. Eu nunca consegui odiar ele, porque até a ultima noite ele jurou que me amava. Foi muito educado. (Ouve um barulho no teto e olha para cima) Aí vem o Juiz! Nem uma palavra, tá?(UM PEQUENO PEDAÇO DO TETO É ABERTO. COMO SE FOSSE UMA PORTA FALSA. ALGUÉM JOGA PARA BAIXO UM ESCADA DE CORDA. DESCE O JUIZ. AGASALHADO

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COM UM CASACO E UM CACHECOL VELHO E SEM COR, USA UM PAR DE LUVAS RASGADAS. TRAZ UM GARRAFÃO DE VINHO.)

JUIZ (Enquanto desce pela escada)Boas-noites, senhoras e cavalheiros!ÚRSULAVocê está muito bem... muito galante! Me dá esse garrafão... (Pega e põe junto à garrafa e ao salame)ATORFeliz aniversário, Juiz!JUIZ É muito gentil de sua parte!... (Vê o pedaço de salame. Ergue-o com desprezo, com a ponta dos dedos) Quem trouxe esse salame?ATOREu.JUIZEu podia imaginar. Quem sabe de onde você tirou isso!ATORNão se preocupe. Foi da lata de lixo de uma honesta casa de classe média... O seu aniversário me pegou de surpresa, sem eu ter cobrado a minha herança!JUIZMas isso não pode ser assim, Úrsula! Sou eu quem faz aniversário e tenho que correr o risco de roubar esse garrafão... pra que me traga esse pedaço de salame!ÚRSULADeixa de bobagem, velho! Quantas vezes você comeu a nossa costeleta?JUIZ (olha em volta)E os outros, onde estão?ÚRSULAAinda não chegaram.JUIZAh, não, mais isso é o cúmulo! Não pode ser! Que hora a gene combinou que chegava?ÚRSULAÀs onze...JUIZE já são onze e meia. Onde é que já se viu o homenageado chegar antes dos convidados? (Volta pra a escada de cordas) Me avise quando eles chegarem. Vou voltar para o meu lugar. (Começa a subir a escada)ÚRSULAMas, Juiz... nós estamos aqui!JUIZ ( Subindo)Não me interessa. Falta gente. Gente sem cultura, Úrsula. E são quem , afinal de contas? Um vendedor de qualquer coisa, um Vendedor de Bíblias... (Aponta o Ator) E esse aí aparece com um pedaço de salame! Isso aí é um Ator? (Sobe. A escada fica pendurada)ATOR (Corre para a escada. Sobe dois degraus e grita para cima)

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E isso aí é um Juiz? Cheirando a roupa velha e com bigodes cheios de gordura!...ÚRSULANão ofenda ele! Você não viu que ele fez a barba para o aniversário?ATORÀs vezes eu não consigo suportar ele! Tem esse ar de aristocrata...ÚRSULAFoi, filhinho, foi... E isso é igual a varíola.ATORApesar disso, aprendeu a roubar com uma facilidade incrível!ÚRSULARoubar é uma coisa que a gente aprende logo quando precisa, meu filhinho! Olha você...ATOREu não roubo! (Encara-a em silêncio, em seguida começa a rir) Só roubo a mim mesmo! (Aproxima-se dela humildemente) Úrsula, me deixa tomar outro golinho... Te juro que estou ficando gelado...ÚRSULA (Com doçura)Pode tomar, meu filhinho... Eu sei que esse mercado não é nada quente, mas a gente não tem outro lugar pra i. espero que dure! (Ela bebe um trago e em seguida passa a garrafa ao Ator) Toma...

(ENTRAM COYA, O VENDEDOR DE BÍBLIAS E UMA MULHER VESTIDA COM UMA ESPÉCIE DE UNIFORME RELIGIOSOS, BASTANTE SEMELHANTE AO DO EXÉRCITO DA SALVAÇÃO. COYA É BEM ALGO E MAGRO. ROSTO PEQUENO. CABELO GROSSO,

PENTEADO NO MEIO. SEUS PÉS SÃO TÃO GRANDES QUE TEM DE ABRIR AS ALPARGATAS NA PONTA PARA DEIXAR SEUS DEDOS EM LIBERDADE.)

VENDEDOR DE BÍBLIAParece que já começaram os brindes! Boa – noite... ainda que seja uma noite pra cachorro!ÚRSULAAinda bem que vocês chegaram! (Vê a mulher) E essa aí... quem é?MULHER (Tremendo de frio) Boa-noite irmã... ÚRSULAIrmã? Só se for pelo teu pai, e sorte que você tenha conhecido o teu, porque o meu!...VENDEDOR DE BÍBLIASEncontramos ela morta de frio na porta do mercado. É uma das Filhas do Arrependimento.COYA (À Úrsula, timidamente) Eu convidei ela, Úrsula. Me deu pena...ÚRSULA (Olha A Filha do Arrependimento. Para Coya)Você fez bem (Ao Vendedor de Bíblias, que traz uma cesta cheia de garrafas e empadas) Deixa isso aí. Parece que hoje se vendeu muita bíblia, não?VENDEDOR DE BÍBLIAS (Largando a cesta)Se vende sempre. Além disso, a edição está muito barata. É impressa nos Estados Unidos.

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ÚRSULA (Ao Ator)Me dá... (Tira dele a garrafa de vinho e oferece à Filha do Arrependimento) Toma ... assim você se aquece.FILHA DO ARREPENDIMENTONão bebo, irmã.ÚRSULA Você nunca tomou vinho?FILHA DO ARREPENDIMENTOSim, antes... na época que eu pecava.ÚRSULABom, pecado seria você morrer de frio, não é? Toma... (A Filha do Arrependimento vacila) Olha bem pra mim... eu não quero desviar você do seu caminho... Toma! (A Filha do Arrependimento olha a garrafa. Bebe um longo gole) Assim é que eu gosto! Vai te fazer bem...FILHA DO ARREPENDIMENTOEu não devia tomar... mas sinto muito firo...ÚRSULAClaro! Todos nós temos frio!... E para esquentar, vamos juntando os presentinhos! Coya, você trouxe alguma coisa?COYASim, Úrsula... Comprei esse livro aqui perto. Acho que é sobre leis.. (Entrega o livro a Úrsula)ÚRSULA (Surpresa) A Barbada!... Que é isso, Coya?COYA (Pega o livro e lhe entrega outro)Não, não é esse, não... Este! Me disseram que se chama O Erro Judicial...ÚRSULA (Olhando Coya)A Barbada. Outra vez...COYAA ultima vez, Úrsula... Eu juro que vai ser a última vez!ÚRSULANão acredito em você... mas pelo menos espero que desta vez você ganhe!COYANão posso perder. Eu preciso de dinheiro!ÚRSULAVamos deixar o teu presente aqui... E o meu aqui! (Tira um pacotinho de papel floreado e deixa-o junto aos demais. Volta-se para o Ator) Diz ao Juiz para descer.ATOREu? Por que eu?ÚRSULAPorque você ofendeu ele antes. É uma boa maneira de pedir desculpas.ATOR (Resignado)Enfim (Começa a subir a escada de corda) Custa um pouco pedir perdão... (Bate no teto com a bengala) Honorável Juiz... as damas e cavalheiros aqui presentes gostariam de serem honrados com vossa presença!

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COYA (Com admiração)Eu gosto de ouvir ele declamar!VENDEDOR DE BÍBLIAS É... emociona.ATOR (da escada, ao Vendedor de Bíblias)Que bom se você fosse o meu empresário!VENDEDOR DE BÍBLIASTalvez algum dia eu seja. Dizem que como negócio é tão bom quanto vender bíblias...(ABRE-SE A MESMA PORTA DE ANTES E O JUIZ DESCE COM GRANDE DIGNIDADE.)JUIZBoa-noite, damas e cavalheiro.. (É aplaudido)TODOSFeliz aniversário, Juiz!JUIZObrigado. Muito obrigado. (Vê A Filha do Arrependimento) A senhora eu não tenho o prazer de conhecer..ÚRSULAFoi o Coya quem trouxe. É uma Filha do Arrependimento.JUIZNão acredito que entre nós dê resultado o seu arrependimento, mas fico contente em ter a senhora no meu aniversário...ÚRSULAAgora, enquanto vocês bebem, eu vou cantar ao Juiz uma canção que preparei especialmente pra ele!JUIZMuito obrigado, Úrsula.ÚRSULACoya, serve o vinho, está bem?COYAOnde estão os copos?ÚRSULAAli debaixo da prateleira das flores... (Coya começa a servir) E não façam barulho, como se estivessem bebendo sopa! Uma vez, quando cantei em Paris, o Conde Dupré...ATORÚrsula, o Conde Dupré sou eu...ÚRSULAEu estava mesmo com a impressão de eu essa noite você me parecia conhecido! E fica quieto que eu vou cantar... Me dá um copo de vinho, Coya... (Coya lhe dá um copo. Ela bebe) Ah, como nos velhos tempos! Para você, Juiz (Entoa com sua voz grave e já totalmente cansada) “No dia do teu aniversário te desejamos felicidades. Nos, teus amigos de mercado Velho como prova de amizade...(TODOS SE OLHAM EM SILÊNCIO. O ATOR BRINCA COM A BENGALA E ASSOBIA SUAVEMENTE. O JUIZ ARRUMA AS LUVAS. O VENDEDOR DE BÍBLIAS COÇA A

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ORELHA. A FILHADO ARREPENDIMENTO BEBE UM COO APÓS O OUTRO. SÓ COYA OLHA ÚRSULA COM GRANDE ADMIRAÇÃO. A VELHA PASSA O OLHAR POR TODOS)ÚRSULAQue foi? Não gostaram?COYAFoi muito lindo, Úrsula! Primeiro, “nós, teus amigos do Mercado Velho”... e depois, isso da “amizade”.. Muito lindo!ÚRSULAAh, eu já sei que perdia a voz! (Segura outro copo) Mas quem de nós não perdeu o que mais quis? (Bebe de um só trago) Feliz aniversário, Juiz! (Todos voltam a movimentar-se e enchem os copos)JUIZTua canção foi muito amável, Úrsula... muito amável! Nesse momento, eu me sinto muito amigo de todos vocês. Talvez seja o vinho.ÚRSULAMesmo que seja o vinho, isso faz falta para você se sentir amigo. E agora, vou te entregar os presentes.. (Apanha-os)FILHA DO ARREPENDIMENTO (A Coya)Enche o meu copo, irmão...COYA (Enchendo) Passou o frio?FILHA DO ARREPENDIMENTOFrio? Lá fora faz frio. Aqui, o fogo me corre por toda a espinha.ÚRSULA (Com os presentes, do Juiz) Esse é o meu presente... (Entrega-lhe o pacotinho)JUIZ (Abre-o rapidamente)Um relógio de bolso!ÚRSULACom pulseira. Mandei consertar. Acho que vai ficar bem em você... (Arruma-o, enquanto o Juiz dá uma mordida no pedaço de salame trazido pelo Ator)ATOR (Grita para ele)Você está comendo o meu presente!JUIZ (Responde a ele)Quem jogou fora não sabia o que fazia! (Para Úrsula) Úrsula, o relógio... tem música?ÚRSULAClaro que não! Por quê?JUIZPor nada. Uma época eu tive um com uma música... Era de ouro.ÚRSULAQue é que se vai fazer! E esse livro é o presente de Coya... (Entrega-o. o Juiz lê o título. Numa mão o livro, na outra um copo com vinho. Relê. Ficou subitamente sério. Úrsula encara-o sem compreender) Não gostou Juiz?JUIZCoya... (Bebe seu vinho de um só trago)

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COYASim, Juiz...JUIZOnde você comprou? Ou encontrou jogado numa lata de lixo como o salame?COYAOh, Juiz... eu não ia fazer uma coisa dessas pra você! Comprei aqui perto, numa liquidação.. . Me custou um e noventa...JUIZDevia ter custado mil pesos!COYAVamos, Juiz... por esse preço eu teria trazido um sobretudo!JUIZDevia ter-te custado mil pesos, eu digo... para pagar pelo esforço do autor... um pouco das noites que ficou sem dormir... ou dos seus sonhos de glória... ou de seu olhar altivo e definitivo!...ÚRSULAVamos, meu velho... O Coya quis ficar legal com você!... Não está certo você ficar aborrecido por causa do preço!JUIZ (Olha-a como voltando a si)Preço (Muda totalmente) Ah, sim!... O preço me parece muito bem! Um e noventa numa liquidação... porque, na melhor das hipóteses, o autor não passa de um ladrão, de um vigarista e de um vagabundo, que nesta noite de inverno festeja seu santo ladrando pra lua. Damas e Cavalheiro; brindo pelo autor! Uau-Uau! (Bebe. Todos continuam ladrando. A Filha do Arrependimento aproxima-se do juiz)FILHA DO ARREPENDIMENTO (Seu aspecto mudou visivelmente, agora que o vinho fez efeito. O cabelo começou a soltar-se) Irmão, eu também quero dar um presente... Tome... (Entrega-lhe um medalhão)JUIZ (Examina-o com ar de entediado. Morde o medalhão)Humm!... Parece de ouro!FILHA DO ARREPENDIMENTOÉ de ouro.JUIZNão faz falta para você?FILHA DO ARREPENDIMENTOO ouro não protege, irmão.JUIZIsso é muito relativo, irmã!VENDEDOR DE BÍBLIASEspecialmente em se tratando de você, Juiz! Na segunda-feira poso lhe levar a um avaliador...JUIZEu não disse que ia vender! (Pausa) Mas vou vender... Que eu posso fazer, amigos? São esses tempos de sujeira!FILHA DO ARREPENDIMENTO (Com as mãos apoiadas nas cadeiras adotando uma pose muito contraditória)

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Deixe-se guiar por Deus!JUIZUma vez eu deixei e ele me deportou! (Salta sobre um grande caixote e fala dali) Eu me lembro como ele vivia... numa grande casa... comum grande mordomo... e com uma grande mulher... Agora eu sou um exilado de Deus! (Todos riem)ATOR (Salta para cima do caixote, junto ao Juiz) Ser ou não ser!... Mas comer ou ao comer, fumar ou não fumar, é mais importante que brincar com uma caveira... agora eu sou um exilado do teatro!ÚRSULAMe ajudem, por favor, me ajudem, eu também! (O Ator e o Juiz ajudam-na a subir para o caixote para junto deles) Eu falei pro meu turco... você está me apertando como se você fosse um polvo, meu queridinho, meu nenê!... Então se começou a ouvir uma música estranha... e por cima das ondas eu vi passar o Juiz com uma grande peruca branca e um manto negro... e vi passar o Ator seguido por mulheres belíssimas... e o Coya abraçando pela cintura uma garota loura que cantava canções de amor para ele...COYA (Extasiado)Era mesmo eu, Úrsula?ÚRSULAClaro que era você! Vi tão perto que não podia me enganar...COYA (Ofegante)E o que foi que aconteceu depois?ÚRSULADepois... vocês desapareceram... o meu turco desapareceu... e eu voltei para o meu jardim colorido... E de repente tudo se transformou num sujo mercado de flores e acordei com um cachorro lambendo o meu rosto! (todos riem e bebem, menos Coya.)COYANão fiquem rindo, por favor! Não gosto dos mercados de flores... Parecem um velório... os caminhões são os carros fúneres, e os mortos se chama rosa, cravo, violeta... Me dá vontade de rezar!FILHA DO ARREPENDIMENTOE por que é que você não reza? As flores iam gostar!COYAPorque eu não sei, irmã.FILHA DO ARREPENDIMENTOEu vou te ensinar! (Coya se ajoelha) Não fique de joelhos, não! A gente fala com Deus de pé!COYASim, mas sem estar bêbado. Eu estou bêbado irmã...FILHA DO ARREPENDIMENTOEu também (Ela também se ajoelha) Desta vez, passa.COYAEu digo o quê?FILHA DO ARREPENDIMENTOPadre Nosso...

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COYAPadre Nosso...FILHA DO ARREPENDIMENTOQue estais no céu...COYAQue estais no céu...

(OUVEM-SE UMA VALSA NA BOATE, A FILHA DO ARREPENDIMENTO OLHA NAQUELA DIREÇÃO. COYA OBSERVA-A)

COYAQue esta no céu...

FILHA DO ARREPENDIMENTO (Dançando sozinha)Coya, você não vai precisar nunca se arrepender...

(CONTINUA MOVIMENTANDO-SE. COYA OLHA-A E PROCURA DA VOLTAS. A FILHA DO ARREPENDIMENTO SUSPENDE O MOVIMENTO E CAI SENTADA NUM CAIXOTE OLHANDO PARA FRENTE. NOVAMENTE BEBE UM COPO QUE ESTÁ EM VIMA DE

UMA DAS PRATELEIRAS DE VERDURA.)JUIZ (Para Úrsula)Úrsula. Você quer me dar a honra de dançar comigo?ÚRSULAClaro, Juiz! Eu sempre dancei muito bem. Me chamavam “a Isadora do BAIXO”... (Dançam. Úrsula muito mal e continuamente pisa os pés do Juiz. O Ator tira um cravo da cesta de Coya e coloca-o na lapela de seu smoking) Ah, o champanhe me deixou enjoada!JUIZ (Surpreso)Que champanhe?ÚRSULAComo, que champanhe? A que nós bebemos!ATOR (Aproxima-se deles e separa o JUIZ de ÚRSULA. Inclina-se diante dela)Úrsula, você que dançar com o Conde Dupré?ÚRSULA (Encara-o)Não filhinho... Você é tão jovem.. não precisa ser mau com uma pobre velha...ATOR (Bastante suave) Úrsula... eu te quero tanto! É o segredo da minha vida...ÚRSULAFaz muito tempo que eu sei, mas eu prometo que não vou contar à tua mãe. Você tem tantos preconceitos! (A orquestra da boate começa a tocar “Adiós Muchachos.” Úrsula canta num sussurro)“Adiós, muchachos, companeros de mi vida barra querida de aquellos tiempos... me toca a mí hoy emprender la retirasaa debo alejarme de mi buena muchacaha...”

TODOS SE APROXIMMS E CANTAM JUNTO COM ÚRSULA. APENAS A FILHA DO ARREPENDIMENTO PERMANECE SENTADA EM SEU CAIXOTE BEBENDO.

TODOS “Adiós, muchachos ya me voy y me resigno. Contra el destino nadie la talla. Se terminaron par amí todas las farras, me cuerpo enfermo no resite más..”

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VENDEDOR DE BÍBLIAChega, parem de cantar! (Sobe em um caixote) Chega! Me faz mal ouvir vocês cantarem! (Chora) Por que é que me mandam embora assim? comportem-se!JUIZNinguém está mandando voe embora. É meu aniversário, não a tua despedida.

VENDEDOR DE BÍBLIA (Continua chorando)É, sim, estão me mandando embora. Eu vou embora, vou!... Adeus, pessoal... Vou embora... Tudo isso.. vocês.. que sorte não ver vocês nunca mais! (Chora)JUIZNão insista em monopolizar a atenção! É o meu aniversário e não a tua despedida!ÚRSULAMas olhem.. ele está chorando de verdade! (Os outros cercam o Vendedor de Bíblias, que, em cima do caixote , parece um crucificado) O que aconteceu, filhinho... você está indo embora?VENDEDOR DE BÍBLIAS (Ergue os olhos para ela)Sim. Estou.ÚRSULAJá?VENDEDOR DE BÍBLIASEssa noite. Finalmente eu vou poder realizar o meu sonho!ATOR (Eufórico e invejoso)Você vai para Roma!FILHA DO ARREPENDIMENTO (Salta m seu caixote) Roma não! Não se pode confiar no Papa! Roma, não!VENDEDOR DE BÍBLIASNão, para Roma não. Vou para Vicente López. Comprei uma padaria.

(SILÊNCIO TOTAL DE TODOS, QUE SE OLHAM ENTRE SI. A ORQUESTRA DA BOATE COMEÇA A TOCAS DESESPERADAMENTE, ENQUANTO SEU VOCALISTA CANTA EM

RITMO RAPIDÍSSIMO.)“Si no sonríes cariño míoqué triste está micrazón.Sí tu sonríes,Carita de ángel,Billará de nuevo el sol...”

VENDEDOR DE BÍBLIASEu sempre quis me estabelece com um negócio! Vou ter uma bicicleta e um empregado... e dentro de um ano, cinco empregados... No comércio a gente pode ir longe, tendo energia!

(O VOCALISTA CONTINUA CANTANDO)“Mi chica tienetan dulce encantoal sonreír, al conversar,

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es tan divina.La quiero tanto,Otra igual no encuentro más.

ATOR (Aponta para o Vendedor com o braço estendido)Eu proponho que a gene enforque ele! Como traidor!JUIZUm momento! No nosso país não existe a pena de morte. Nós só podemos condenar à prisão perpétua, desde que seja considerado culpado.FILHA DO ARREPENDIMENTOQuem de nós é eu pode julgar alguém? (Aponta o Ator) Você? (Aponta o Juiz) Você (Aponta para si mesma) ou eu? Não me façam rir! Irmãos, nós somos uns espantalhos, uns espanta-moscas!JUIZNão renuncie nunca ao poder de julgar a outro, já que ninguém renunciará ao poder de julgar você!FILHA DO ARREPENDIMENTONão, irmão! Um cego não pode dizer “que lindo dia”, porque é cego!ATORSó é cego se disser “eu não enxergo”! e eu vejo! (Aponta o Vendedor) Eu o acuso de abandonar essas noites de mentira, acuso de abandonar seus amigos ladroes, vigarista e vagabundos! Acuso de...COYA (Vai em direção ao Ator e sacode-o, interrompendo-o)Ator!ATORO quê?COYAVocê me roubou esse cravo! Devolve.ATORNão roubei. Eu pago amanhã.COYANão, não! É o meu capital... Se não paga agora, devolve...ATOREu pago amanhã!COYA Agora (Pausa) Vamos me devolve o cravo...ATOR (Faz uma pausa.)Tira o cravo de sua lapela e devolve-o a Coya com grande suavidade) Toma... Adeus, Conde Drupé! Adeus! (Volta-se para os demais) Adeus, acusação.ÚRSULANa realidade, é um acusado muito pequenininho... Vejo ele ali, em cima do caixote... e juro que me dá pena!JUIZPor que nós não procuramos alguém mais importante? (Ao Vendedor) Quem é que fez você comprar a padaria?

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VENDEDOR DE BÍBLIASO meu pai, antes de morre, me aconselhou a pôr um negócio, masÚRSULANão serve! É tão pequenininho quanto você...JUIZE teu pai, quem foi que aconselhou a te aconselhar?VENDEDOR DE BÍBLIASMeu avô, antes de morrer...ÚRSULAO avô também não serve! E quem aconselhou o teu avô?VENDEDOR DE BÍBLIASO ano de 1930, porque morreu de fome durante a crise...ÚRSULAA gente não pode condenar um ano, não é verdade, Juiz?JUIZNão está nos códigos.ATOREntão vamos condenar o meu empresário que é igual ao não de 1930! Está me fazendo morrer de fome.JUIZ (Bate uma garrafa num balcão)Condenado!FILHA DO ARREPENDIMENTO A gente deve condenar também o pecado! (Sem muita convicção) Não?ÚRSULANão, minha filhinha... essa noite não. Nós todos somos pecadores e já estamos bastante condenados. Vamos aproveitar essa noite para condenar outros...JUIZAssim seja! Declaro que todos os pecadores que estão aqui são inocentes por essa noite.ATORE quem é que vai executar a sentença contra o meu empresário?ÚRSULAVamos nomear o Coya como policial, hein?COYANão, Úrsula... ninguém me faz caso. E por que é preciso condenar alguém? Está tudo bem assim...ATORVocê está de acordo em viver assim?COYAEstou... Cada um faz o que pode. Além disso, eu teria que acusar você por querer me roubar um cravo!ÚRSULACoya, você é muito grosso! Não podemos te nomear polícia. Você acabaria enforcando um de nós.

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COYAE que é que eu posso fazer, Úrsula, se vocês são as únicas pessoas que eu conheço?VENDEDOR DE BÍBLIAS (Ainda em cima do caixote) Eu posso descer? Eu quero comer uma empada... (Ouve-se o barulho do grande portão da rua que se abre e se fecha. Todos ficam em suspenso)ÚRSULASerá a polícia?JUIZ (Aterrorizado) A polícia? Vamos nos esconder, que eu sei muito bem o que é a polícia!ÚRSULAVamos nos esconder!VENDEDOR DE BÍBLIASA gente não pode abandonar tudo isso! (Aponta as garrafas e as empadas)ÚRSULAVamos nos esconder! (Como se o insultasse) Padeiro! (Escondem-se, cada um num lugar, mas permanecem todos à vista do público, iluminado pela luz do centro chega JOSÉ, alto, forte e desajeitado)JOSÉ (Em meio a voz) Joaquim... (Pausa. Mais forte) Joaquim!ÚRSULANossa! O empregado do depósito de frutas. Que é que ele veio fazer aqui?JOSÉ (Mais forte)Responde, Joaquim!ÚRSULA (À Parte)Como é que ele vai responder se não está aqui?JOSÉParece que não está...ÚRSULA (À Parte) É o que eu dizia. Agora ele vai embora e volta amanhã.JOSÉ (Olhando ao redor)Que coisa mais estranha!VENDEDOR DE BÍBLIAS (À Parte)Pelo menos que ele não encontre as empadas e o vinho.JOSÉ (Vê as empadas e o vinho)E isso... será que é do Joaquim?VENDEDOR DE BÍBLIAS (À parte, desconsolado) Encontrou!JOSÉ (Volta-se e chama em direção às sombras)Maria... vem!ÚRSULA (À parte)Trouxestes uma dama, filhinho!

(MARIA APARECE NA LUZ)JOSÉPor que você ficou pra trás? Você ainda está aborrecida?

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MARIANão.JOSÉEu já ate te pedi perdão mais de dez vezes! Que mais que você quer?MARIAEu não estou aborrecida , José.JUIZ (À Parte)É uma prostituta. Elas começam bem jovens, agora!MARIAJoaquim não está?JOSÉ Acho que não. Chamei, mas no apareceu...MARIAVocê avisou ele?JOSÉEu ... fiz sinal com os olhos, como sempre...ÚRSULA (À Parte) Então é esse o casal! E parece que vão querer ficar aqui.MARIA (Vendo o vinho e as empadas)De quem é isso?JOSÉDeve ser do Joaquim. Você quer um pouco?VENDEDOR DE BÍBLIAS (À parte, aterrorizado)Não!MARIADeixa. Não é nosso.VENDEDOR DE BÍBLIAS (à parte, suspira) Menos mal!JOSÉQue importa isso? (Come e bebe)ÚRSULA (À parte)Ladrão!VENDEDOR DE BÍBLIAS (À parte)Ladrão!JUIZ (À parte)Ladrão!MARIA (Vendo José comer)José...JOSÉQue é? ( Maria olha-o e abraça-o desesperadamente. Depois de um instante, ele encara-a) Que é que está acontecendo com você?MARIANada...JOSÉVocê tem certeza de que não está aborrecida?

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MARIATenho.JUIZ (À Parte)Uma prostituta sentimental!JOSÉEstá fazendo muito frio essa noite... (Olha-a fixamente) Vamos?MARIAVocê não quer conversar um pouco?JOSÉDepois. Quando a gente conversa, a gente briga; quando a gente está deitado não. Vamos!MARIAEstá bem... vamos... (Vai até a escada de cordas que leva para a moradia do Juiz)JUIZ (À parte, surpreso)Não é possível, vão usar a minha cama...JOSÉ (Vendo a escada)Olha... alguém puxou a escada! Poupou trabalho!JUIZ (À parte, aterrorizado)Já usaram outras vezes!MARIA (Detém-se diante das xantopis propicuis de Úrsula)Olha, José!...JOSÉ (que já estava subindo a escada, volta-se impaciente) O que é agora?MARIAEssas flores...JOSÉ (Olha para onde está Maria. Olha as flores)Devem ser da velha. Aprecem margaridas...ÚRSULA (À parte)Margarida é a tua avó!MARIASerão o quê?... São tão estranhas!... Nunca vi flores parecidas com essas...JOSÉVocê quer uma?MARIATudo que eu vejo você quer me dar, desde que você me leve pra cama! Uma empada, uma flor... mas quando você me agarra...JOSÉEu já pedi perdão! (Pausa curta) Tanta confusão só porque eu quero dar uma flor pra você... que é que você tem essa noite?MARIANada... Mas você me dá tudo que não é teu!JOSÉ (Ri com simplicidade)É claro! Pois eu não tenho nada... Você quer a flor? A velha vai pensar que fora os ratos que comeram... (Úrsula não agüenta mais e sai quando vê que José estende a mão para pegar a flor)

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ÚRSULAVocê tá enganado, meu filhinho! Rato come é queijo!MARIA (Muito assustada)Vamos José, antes que ela chame a polícia (Procura a saída, mas todos os outros saem de seu esconderijos e se colocam na frente deles)VENDEDOR DE BÍBLIASE pelo que eu sei, não bebem vinho!JUIZNem precisam de uma cama para se reproduzir! (José e Maria ficam no centro, cercados. José adota uma postura de briga)JOSÉPois bem! Vocês querem o quê? se alguém está pensando em chamar a policia, rebento a alma dele!ÚRSULANós não somos assim tão amigos da polícia, como você imagina!... Estávamos festejando um aniversário, vocês chegaram, assustaram a gente....ATORComeram a nossa comida!VENDEDOR DE BÍBLIASBeberam nosso vinho!JUIZIam usar a minha cama!ÚRSULAAí então uma pessoa tem o direito de perguntar, não?COYA (Aproxima-se de José) Eu conheço você...JOSÉ (Áspero)Eu também conheço você ... e sempre vi você de porre como agora...ÚRSULAAlem de ladrão, você é muitomal-educado, filhinho (Coya avança em direção a José, este espera-o provocador) Coya, não faz nada nele, não!COYAMas Úrsula, ninguém pode roubar gente como nós!ÚRSULAÉ verdade, mas não faz nada... ainda!MARIAPor favor senhora, deixa a gente ir embora... amanhã a gente paga o que comeu!JUIZ (Adianta-se para Maria)Ah! Promessa de prostitutaJOSÉ (Grita)Eu vou te matar, velho de... (Vai avançar sobre o JUIZ, é detido pelos outros) Se você chama ela de prostituta, eu te mato!JUIZ (Seco, encarando Maria)Prostituta.

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FILHA DO ARREPENDIMENTOCala a boca, irmão.JUIZMas..FILHA DO ARREPENDIMENTOCala boca... ou eu te arranho (Aproxima-se de Maria. Olha-a fixamente nos olhos) Não. Não é uma prostituta. Eu sei muito bem o que é uma prostituta. Ela não é uma prostituta.MARIAObrigada, senhora... Nós... José e eu... nós podemos explicar tudo, se nos deixarem.ÚRSULAEstá certo isso, menina. Você tem mais educação que o teu... bem, que ele!JOSÉ (Grita) Joaquim! Joaquim!ATORJoaquim não está! E não grita, se não quiser que venha a polícia.JOSÉÉ que o Joaquim pode explicar tudo!MARIANós também José!JOSÉÉ, eu sei... mas está ficando tarde... e você tem eu voltar para casa... e justo essa noite, que...JUIZNem sonhem em usar a minha cama, agora que eu fiquei sabendo!MARIANem sempre a gente usava a sua cama, senhor! A maioria das vezes a gente se deitava por cima das verduras...JUIZEntão vocês dormiam juntos?MARIASim.JUIZSão casados?MARIANão, senhor.JUIZ (Forte voltando-se aos demais)E vocês ainda querem me convencer de que ela não é uma prostituta?ÚRSULAEh, eh... De onde você tirou essas idéias, Juiz? E como é que você nunca me chamou de prostituta quando eu contava para você sobre os meus amantes?JUIZMas... eram mentiras, Úrsula!ÚRSULA (Muito séria)Não, Juiz. Tudo que eu contei é verdade.

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JOSÉE também o que nós estamos dizendo é verdade! Maria e eu somos noivos e não viemos roubar nada...VENDEDOR DE BÍBLIAS (Ao mesmo tempo)E o vinho?JUIZ (Ao mesmo tempo)E a minha cama?

ÚRSULA (Grita acima de todos)Chega, assim ninguém entende nada. E ninguém se lembra das minhas flores! Vinho, cama, comida... e as minhas flores que morram!JOSÉOlhe, senhora...ÚRSULAAntes você me chamou de “velha”!JOSÉVocê quer que eu lhe chame de “velha”?ÚRSULA (Encarando)Não. Melhor me chamar de senhora.JOSÉBem, olhe, senhora, eu não teria necessidade de explica nada pra vocês. Você me viu carregando caixote , não é? Posso bater em todos vocês juntos (Os outros se olham inquietos)... mas não gosto de andar por aí incomodando as pessoas, eh?JUIZ (Depois de um silêncio em que encara seu companheiro) Me parece justo. É sempre melhor interrogar em ordem e por vez...JOSÉE sem insultar, está bem?JUIZClaro, sem insultar (aos demais) Senhores, vamos sentando! A sessão do tribunal vai começar!..

MARIA SE APROXIMA DE JOSÉ. AMBOS FICAM NO CENTRO. OS DEMAIS OCUPAM SEU LUGARES. INSENSIVELMENTE O MERCADO VELHO SE TRANSFORMOU NUM

TRIBUNAL DOS ESFARRAPADOS. ÚRSULA AVANÇA EM DIREÇÃO AO PÚBLICO, ENQUANTO OS DEMAIS PERMANECEM ESTÁTICOS. A MÚSICA DA BOATE PAROU.

HÁ UM GRANDE E TOTAL SILÊNCIO.ÚRSULA (Ao público)De repente a música da boate e todos os barulhos do Mercado Velho desapareceram. Escutem... (Pausa) Hein?... Tudo era silêncio. Apenas, por aí, um pequeno riso... (Ouve-se ao longe um riso)... (um pequenos assobio... (ouve-se ao longe um assobio)... Eu pressenti que alguma coisa de importante estava acontecendo para nós, habitantes do Mercado Velho. O empregado do depósito de frutas parecia desconhecido. Ela, bem... Coya olhava para ela e sentia o mesmo que eu! Os outro não. O Juiz era o Juiz. O Ator estava melancólico por causa do vinho. O Vendedor de Bíblias tinha fome. E a Filha do Arrependimento... sei lá que coisa do passado dela se tornava presente! É claro, eles não podiam saber nada... E sim, porque... (Ri

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novamente).. bem, o que me ajudava era a minha experiência através de tantas viagens pelo Oriente, pela Índia, por... tem um nome grande , de bicho! Quando o Juiz perguntou os nome deles, ela disse , Maria, ele disse (Com a voz grossa) José! Profissão (com voz grossa) Empregado naquele depósito de frutas! E ela... empregada doméstica.JUIZQuem é que pode acreditar no que você me diz, José?ÚRSULAEu sempre vi ele carregando caixotes.JOSÉE quem é que pode acreditar que ela seja empregada doméstica? (O eco do Mercado Velho repete: “Empregada doméstica... empregada domestica”)ÚRSULA Todo o Mercado Velho, JUIZ... (Volta-se ao público e fala rapidamente) Então o Vendedor de Bíblias se levantou e...VENDEDOR DE BÍBLIAS (Vai para onde estão as empadas) A gente pode comer, não é?ÚRSULA (Voltando para seu lugar ente os demais) Desde que não se empanturre!VENDEDOR DE BÍBLIAS (Apanha uma empada. Olha-a em seguida vai em direção a Maria e José)Por que é que vocês vieram aqui essa noite?JOSÉPorque a gente não tem outro lugar pra ir. Foi aqui que agente se conheceu, e algumas noites...JUIZVocês se conheceram aqui?

MARIASim senhor.JUIZE como é que podemos saber se é verdade?JOSÉA velha... (Interrompendo-se) A senhora sabe.ÚRSULAEu?JOSÉClaro.ÚRSULAFilhinho, que flor de mentiroso que você me saiu!JOSÉNão. É verdade! Não lembra o dia em que veio o senhor Fernández, o dono do depósito de frutas?ÚRSULALembro.JOSÉ

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E não se lembra que enfiou o pé num buraco e teve que ser levado para casa?ÚRSULASim. Um chofer de uniforme teve de carregar ele no colo até o carro. Parecia um bebêJOSÉ Isso mesmo!MARIABom, eu trabalho na casa do senhor Fernández e ele me mandou vir ao Mercado trazendo uma carta para o gerente...JOSÉEu ia quando ela entrou...ÚRSULAAgora eu me lembro! Ela veio à minha barraca... e ficou olhando as flores . (A Maria) Você quer alguma flor menina? (A ação trasladou para o pequeno canto onde Úrsula vende suas flores)MARIA Não, não... A senhora sabe onde fica o depósito de frutas?ÚRSULA (Aponta para José, que agora se coloca junto ao depósito de frutas do Mercado Velho)Ali.JOSÉEu estava trabalhando... (Começa a fazer gestos de levantar caixotes. Maria chega perto dele)MARIAO gerente está?JOSÉNão. Volta em seguida.MARIAAh!JOSÉVocê quer alguma coisa?MARIA

- Não. Eu espero.JOSÉEle é gordo. Pra que você quer esperar?MARIAA mim não importa que seja gordo! Eu trago pra ele uma carta de Fernández...JOSÉ (Assustado)Você é filha de Fernández?MARIANão. (Dando-se importância) Sou sobrinha.JUIZ (Interrompendo secamente) Começou mentindo.JOSÉNão, era uma mentira sem importância!

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JUIZMas começou mentindo.JOSÉEu lhe digo que...MARIADeixa. Ele tem razão. Eu comecei mentindo. (Pausa) Esperei um pouco. Ele me olhava de lado. E eu também, sem me dar conta. Parecia Robert Taylor levando caixotes!JOSÉEntão eu vi o gerente que vinha vindo (Ao Ator) você me ajuda? Você faz o gerente...ATOR (Olha os demais. Encolhe os ombros)Bom... é a minha profissão...JOSÉ (A Maria)Aí vem o gerente!

(O ATOR, APESAR DO SMOKING, ASSUME A PERSONALIDADE FÍSICA DE UM GERENTE GORDO E VELHO. MARIA VAI NA DIREÇÃO DELE E ENTREGA-LHE A

CARTA. EM SEGUIDA VAI EMBORA, NÃO SEM ANTES OLHAR PARA JOSÉ. O ATOR, COMO GERENTE, CHEGA ONDE ELE ESTÁ.)

ATOR (Como gerente)Faz muito tempo que a empregada de Fernández estava me esperando?JOSÉA empre...? não é a sobrinha dele?ATOR (Com uma gargalhada)Sobrinha?... com essa pinta de ...? É a empregada doméstica, seu louco!JOSÉEu volto em seguida.

(SAI CORRENDO ATRÁS DE MARIA. DESAPARECE ATRÁS DAS BARRACAS ABANDONADAS DO MERCADO. O ATOR SE REINTEGRA AO GRUPO. POUCO A POUCO

A LUZ MUDA E VINDO DA BOATE ESCUTA-SE AGORA UM BOLERO ROMÂNTICO. MARIA E JOSÉ CHEGAM AO FUNDO, CONVERSANDO. CAMINHAM MUITO

LENTAMENTE, ELE CHUTA PEDRINHAS IMAGINÁRIAS.)MARIA... E você acha que seu tingir o cabelo de loiro eu vou ficar mais parecida com ela?JOSÉNão, vai estragar o cabelo! (Aponta para a frente). Aqui está o Parque Retiro... Vamos!

(A MÚSICA DA BOATE É AGORA ALEGRE. OUVEM-SE RISOS E GRITOS DOS DANÇARINOS, AO MESMO TEMPO QUE SE VÊEM SEU PÉS DANÇANDO AGILMENTE.)ÚRSULAOnde é que vocês foram naquela noite?JOSÉ (À Úrsula)Ao Parque Retiro! (A Maria) Como a gente sente que é sábado, não é? (Úrsula abre a grande janela do fundo e as luzes da Rua Corrientes, girando vertiginosamente, parecem entrar no Mercado Velho) Vamos andar no Trem Fantasma!

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MARIANão...JOSÉ (Enquanto arruma os caixotes)Vamos sim!MARIAEu quero andar na roda gigante!JOSÉDepois! (Faz ela sentar-se ao seu lado, sobre dois caixotes. Ficam ambos no centro encarando o público. A música de piano da boate acompanha o trem fantasma e os dois se balançam violentamente) - Agora vem o túnel!MARIANão se encoste tanto em mim!JOSÉÉ o trem!MARIAQue trem coisa nenhuma! É você que virou um bom mal-educado...JOSÉE agora, vamos pra montanha-russa!MARIAEu quero a roda gigante!JOSÉDepois da montanha-russa! (Agora tocam um rock na boate e os dois se juntam continuamente. José quer beijá-la e ela recusa)MARIANão se aproveita, tá!JOSÉE você ficou aborrecida?MARIAVamos embora...JOSÉNão, primeiro temos que ir à roda-gigante (Ela não responde) É cedo ainda...MARIA (Não muito ressentida)... Bom.. Vamos... (E já estão na volta ao mundo. parou a música da boate e apensas os violinos rompem o silêncio. os dois também se transfiguram. A luz transformou-se imperceptivelmente)MARIAVocê sabe por que que eu gosto da roda-gigante?JOSÉPor quê?MARIAPorque quando eu estou aqui, bem em cima, eu faço assim com a mão (Estende o braço)... e a roda pára!

(A MÚSICA SE INTERROMPE)JOSÉ (Surpreso, olha em torno de si)Parou! Como é que você fez?

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MARIAAssim... quero.. e pára!... Então, tenho toda a cidade atrás e o rio na frente... Olha!JOSÉO quê?MARIALá... um barco! (Volta a música de violinos) me dá vontade de chorar... Você nunca viajou, José?JOSÉNão, nunca... mas eu gostaria de viajar com você...MARIANum barco francês.. e um cara com uniforme de coronel que nos chamasse de “madame”.. “Monseir”... Você casava comigo?JOSÉClaro que sim!MARIAEu seroe sonhei em me casar! As minhas amigas... as outras empregadas do bairro, não são casadas, sabe? Mas eu sempre sonhei em me casar!JOSÉVocê está muito sozinha, Maria, não é?MARIAE você?JOSÉEu trabalho todo dia... que lindo rio! Faz tanto tempo que eu não vinha ver... quando eu te conheci eu não sentia isso que...MARIA (Interrompendo-o)Não importa! Mas nós estamos sozinhos e precisamos um do outro... eu tenho tanto medo quando a roda gigante volta a girar e a gente tiver que voltar para a terra!JOSÉNão, você não tem que ter medo! Olha os meu braços.. No Mercado Velho dizem que u devia ser lutador de boxe.. não sou lutador de boxe, mas chegam para te defender!MARIAOlha, José!JOSÉO quê?MARIAAli... lá se vai o nosso barco francês (Grita) Adeus madame...Adeus, monsieur!...

(O JUIZ FECHA VIOLENTAMENTE A GRANDE JANELA E OUVE-SE UMA FORTE MÚSICA DE JAZZ QUE VEM DA BOATE.)

JUIZ (Grita)Metro-Goldwyn- Mayer apresenta!...mas que é que vocês pensam que é isso? Uma sessão de cinema para senhoritas? Tão querendo nos fazer engolir uma enfiada de mentiras!COYA (Ainda extasiado pela história dos amantes)Não interrompa, Juiz...

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JUIZSó mesmo você é que pode ficar convencido com esse romance de cinema!(Para Maria e José, que continuam sentados olhando o público) Onde é que vocês leram isso? No “Idílio”?VENDEDOR DE BÍBLIASRealmente, não é para acreditar...ÚRSULAE por que não, hein? Por quê? Por que não?JUIZPorque sei muito bem o que é o amor de uma mulher... e não uma mulher como essa, não!... uma loura... branca...envolta numa pele de visom, que acariciava a pele dela como...ÚRSULA (Interrompe-o)Esse, sim, que é um belo filme, Juiz!

JUIZ (Desconcertado)Como?ÚRSULAVisom... Mulher branca e loura.. diamantes e perfumes... de que é que você está falando, Juiz? Isso que você está contando, existe? Olha, filhinho, acontece que eu conheço isso, por que eu convivi com a mais alta nobreza, mas de outros...vamos Juiz! Desce da árvore!FILHA DO ARREPENDIMENTO (com repentina paixão) O amor é enganador! Somente existe fidelidade em Deus! (Pausa. Mais tranqüila. Ao Juiz) É a isso que você estava se referindo , irmão?JUIZ (Mais desconcertado)Não, não... na minha vida eu tive cem ou duzentos amores, e todos começaram assim: olhando as estrelas... vendo o rio passar ... a gente se querendo muito!COYAEu não posso dizer nada, Úrsula, porque nunca nenhuma mulher se fixou em mim...ÚRSULAMas você gostaria de ter uma mulher?COYAAh, sim, claro!ÚRSULAEntão, você vai ter, Coya, não te preocupas! (Ao Juiz) Está vendo, Juiz? O Coya espera uma mulher porque não tem uma, e eles que se tinham uma ao outro, como é que não iam contar todas essas coisas?VENDEDOR DE BÍBLIAS E depois Úrsula?ÚRSULAAh, depois!..VENDEDOR DE BÍBLIASSim, depois!...ÚRSULA (Irritada) Depois o que?

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JUIZ Continuou tudo assim? (Úrsula não responde. O Juiz interroga Maria e José) Voltaram outra vez à roda gigante?JOSÉSim. Voltamos cinco meses depois.JUIZE parou?JOSÉNão. Não parou.MARIA (Grita)Já tinha acontecido coisas!JUIZQue coisas? (Pausa prolongada. Maria se levanta lentamente)MARIANão sei.. agora, pensando... quase nem me lembro de que coisas, José!.. Por que que eu quase nem me lembro? (Cantarola) E eu lhe disse: Pára. Mas a roda-gigante continuou girando, continuou girando...FILHA DO ARREPENDIMENTOÉ uma desculpa. Não querem nos contar mais.JUIZNão há desculpas possível, Jurou dizer a verdade e somente a verdadeFILHA DO ARREPENDIMENTOTalvez ela esteja arrependida...COYADe que irmã? A mim ela parece tão boa...FILHA DO ARREPENDIMENTOTalvez ela esteja arrependida...(ENQUANTO DIZ AS ÚLTIMAS PALAVRAS, DESCE DO LOCAL DAS TESTEMUNHAS E

AVANÇA PARA O CENTRO, JUNTO AOS CAIXOTES UTILIZADOS PARA A HISTÓRIA DA RODA-GIGANTE. JOSÉ VAI LENTAMENTE PARA UM LADO. ELE E MARIA OCUPAM

OS DOIS EXTREMOS DO PALCO E SÃO PRATICAMENTE CONVERTIDOS EM OUTROS OBSERVADORES.)

FILHA DO ARREPENDIMENTOPorque somente existe fidelidade em Deus! Ela é a Sombra, o Descanso e a barreira que não nos deixa entrar no Inferno! (Sobe no caixote. Fica de costas para o público e fala aos demais) Vocês não podem compreender isso, porque vivem como iguanas, com a barriga para o sol. E Deus é a Sombra, o Castigo!(O ATOR CAMINHA EM DIREÇÃO A ELA, TRANSFORMADO EM DEUS.)ATORPorque você compreendeu muito tarde, a roda-gigante não parou outra vez, minha filha.FILHA DO ARREPENDIMENTO (Olha-o e vê Deus) Oh, meu Deus! (Desce do caixão e se ajoelha diante dele, como se estivesse num confessionário. Fica de costas para o público) Recebe minha confissão, Senhor. (O

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Ator bate suavemente com a bengala nos ombros dela, como se a estivesse armando cavaleiro) Meu pai me disse: fechai a porta, que a luz é pecado.ATORE você seguiu o conselho dele?FILHA DO ARREPENDIMENTOSegui Senhor, quando tinha cinco anosATORE quando tinha dezessete?FILHA DO ARREPENDIMENTOTambém segui, Senhor, mas me enganei. Fechei a porta pelo lado de fora (Começa a tremer) ATORO que está acontecendo com você, minha filha...você tem frio?FILHA DO ARREPENDIMENTO (Temendo) Tenho...ATORVem que eu te protejo. (Vai em direção a ela que se levanta. Ela abraça-a. Acaricia-a. primeiro como Deus, depois como amante) Tira a roupa, que eu vou te proteger.FILHA DO ARREPENDIMENTO (Beija-o com paixão)Oh, Senhor, Senhor!...ATORMeu nome é Pepe.FILHA DO ARREPENDIMENTO (Encara-o. Pausa)Não importa. Eu creio em vós. Depois você vai me dar um presentinho? (Volta a beijá-lo com fúria. O ATOR fica de costas para o público. Ela acaricia-o e levanta o seu casaco, ficando a descoberto a camiseta esburacada do ATOR)MARIA (Do lado)Não foi assim... Não foi assim.VENDEDOR DE BÍBLIASIsso é uma indecência!COYAIsso é uma indecência!ÚRSULA (Vi em direção ao Ator e à Filha DO Arrependimento)Isso é indecente! Claro que não foi assim! Eu sei como foi... (A Filha do Arrependimento encolhe os ombros e vai em direção a Coya, balançando as cadeiras)FILHA DO ARREPENDIMENTOMe dá um gole irmão (Coya dá com raiva. Ela bebe)ÚRSULAEu sei como foi. A gente ia se arrepender de quê? A nossa foi muito linda! Uma verdadeira “História de amor”!... Numa noite de lua, como as noites de... Aí esse nome de bicho que não consigo lembrar!... ele me disseATOR (Fazendo outro personagem)... A vida é uma merda, Maria.

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ÚRSULA (Olhando-o horrorizada)Não, Ator... assim não...pro favor! Ele me disse...ATOR (Resignado)Eu te amoÚRSULA (Sacode com força a cabeça. Senta-se no caixote)Não, Ator! Assim não!ATOR (Pausa Resignado)Quando você e eu...ÚRSULA (Interrompendo-o)Me chamou de senhora.ATORQuando a senhora e eu pudermos viver sozinhos nesta ilha... nos amando...ÚRSULASim... sim.. foi assim! então ele parou de carregar caixotes no Mercado Velho... e se foi como marinheiro para procurara uma ilha para nós dois...(Triste) Mas o barco bateu num arrecife... e afundou.. (Pausa)VENDEDOR DE BÍBLIASMas... mas isso é uma estupidez, Úrsula! (Aponta José) Ele está aqui e continua carregando caixotes!ÚRSULA (Levanta-se furiosa) Já sei que ele está aqui! Ou você acha que eu sou cega? (Pausa curta) Se salvou. Mas voltou diferente. E a gente não conseguiu mais se compreender. Por isso a roda-gigante não parou outra vez. Foi assim!MARIANão foi assim... Não foi assim.ÚRSULA (Olhando)O que é que foi assim? mas, menina, como é que você vai me dizer que não foi assim, se a gente vê a léguas que foi assim como eu disse. (Anda em direção aos outros. O Ator fica próximo a José)FILHA DO ARREPENDIMENTOFoi como eu disse! A léguas que se vê que foi como eu disse!MARIANão, não foi assim! (Pausa. Olham para ela) Por que vocês querem que a gente viva a vida de vocês?.. Deixem a gente viver a nossa. A de vocês não serviu pra nós... Tivemos que viver tudo desde o princípio... (Pausa curta) Foi assim... (Começa a cantar) Escutem:

não há nada pra lembrar.De uma empregada e um empregado, que pode ficar?Não é história, nãoE ainda que fosse história já escrita,Quem sabe ler?(Fala)quem sabe ler?Eu.. não (Canta)

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ele e eu carregando caixotes de talheres de prata de talheres de prata e melões.Eram belos caixotes E neles enterramos os anos.(Fala)Por isso..(Canta)eu disse: pára!Mas a roda-giganteContinuou girando,Continuou girando...

ATOR (Como o gerente, para José)É uma empregada doméstica. Pra que é que você precisa se casar com ela?JOSÉEla quer casar.ATORE você vai vier onde? Na pensão onde você está, com os outros três (José não responde) Vai morar com ela, na casa de Fernández?JOSÉEu também quero me casar.ATOR (Encolhe os ombros)E daí? (Volta-se de costas. Deixa de representar o papel de gerente)MARIA (Cantando) Escutem:

Não há nada pra lembra.Um ano demora dois, Dois anos demoram dez. e mais.Você completa vinte e são quarenta E depois são cinqüenta.E mais.E você está mortoComum pouco maisE você está morto (fala)assim, foi assim,foi então que...(canta)eu disse: pára!Mas a roda-giganteContinuou girando...Continuou girando...

JOSÉ (Fala com Ator, agora transformado em amigo de José. Estão ambos bêbados num bar)

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- Hoje é domingo. Ele está esperando. Eu quero ficar aqui, com você. (O Ator aplaude-o José grita) Você é meu amigo! (O Ator faz sinal com os dedos nos lábios para que ele se cale; José baixa o olhar) Ontem eu bati nela (O Ator encolhe os ombros) Ontem foi sábado e eu bati nela.ATOR (Interpretando o amigo)Você fez mal. Sábado é dia de descanso.JOSÉFoi por isso que eu bati nela. Para descansarATOR (olha surpreso. faz gesto de pergunta, juntando os dedos)Hein?...JOSÉEu não trabalho naquilo que gosto, só no que me oferecem. Não como aquilo que gosto, só o que posso! Não moro onde quero, só onde me sobra lugar! Eu preciso descansar! (Pausa) E vou descansar onde, a não ser nela? Por isso que eu bati nela.MARIA (Cantando)

Assim, foi assim.O gesto morreuE morreuO beijo mordeuE mordeuO corpo se queimouE morreuE ninguém perguntou!(Fala)Felizmente...Não leram nos jornais?... Páginas sociais?(canta)podemos enterrar tudo nos caixotes de talheres de prata e de melões.(fala)foi um enterro famoso(canta)eu disse: pára!Mas a roda-giganteContinuou girando, Continuou girando...(Pausa falando)assim, foi assim.

JUIZ (Depois de uma pausa. Desconcertado)Úrsula... eu pensei que a gente estivesse brincando!COYAA gente estava brincando! (Para Maria) Quem é que pediu pra você nos contar a historia da sua vida? Ou você acha que a nossa é pouco pra nós?

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ÚRSULAIsso é uma coisa de mau gosto, menina! Além de ter vindo nos interromper, nos trouxe a morte.. Que é que tem a ver a morte como aniversário do Juiz?COYAVamos continuar com o aniversário, Úrsula!MARIAÉ que a morte está aqui. Ainda não nasceu, mas está aqui. Eu estou grávida.FILHA DO ARREPENDIMENTOIsso é que é vida, irmã! Outra vida para o exército do Senhor!MARIAÉ. é vida (Cruza o palco e vai em direção a José. Volta ao passado) Estou gravida (Ele encara-a. não responde. Brinca com moedas no bolso) Você quer que eu tenha? (Ele não responde. Abraça seu corpo com desespero. Encolhendo-se sobre si mesma) Pode ser homem.JOSÉ (Grita)Sei lá se é meu!MARIA (Volta-se rapidamente. Vai para o centro. Dali de costas ao público, fala aos demais. Volta ao presente: o réu diante do tribunal) Como a gente não tinha dinheiro para o aborto, essa noite, antes de vir aqui, eu roubei cinco mil peso do senhor Fernández (Cai sentada no caixote)JOSÉ (Vai rapidamente em direção a ela)Mas você está louca! Quando ele descobrir, vai me expulsar a patadas!JUIZIsso é um imundície! Aborto, roubo... Estragou a nossa festa!COYAFica calado, Juiz. Ela está sofrendo (Apanha uma flor em seu cesto e leva a Maria. Oferece-a. ela nem a olha. Coya fica com o braço estendido)ÚRSULA (Vai em direção a José)A verdade, filhinho, é que você se portou como um cafetão e não como um cavalheiro...VENDEDOR DE BÍBLIASEsperem! (Hipócrita) Deixem ela tranqüila, porra! Olhem como a pobrezinha está... (Apanha a flor que Coya tem nas mãos e dá para Maria) Toma. Olha o que Coya está te dando de presente.. Pro bebê! (Ela levanta a cabeça e encara-o. ele se desconcerta) Não, eu não quis dizer.. (Para José) Vamos, te comporta bem, ainda que seja agora, não é!... Leva ela por aí, para que se sinta tranqüila...(José levanta Maria. Caminham em direção a um dos lado do palco. A princípio ele vai na frente e ela atrás, separados. Depois José espera-a. passa um braço por sua cintura e continuam juntos. Sentam-se num caixote no outro extremo do palco. O vendedor segue-os alguns passos e em seguida volta-se para os demais)COYA Você esteve muito bem...VENDEDOR DE BÍBLIAS (interrompe-o com um dedo sobre os lados. Cochicha)Cala a boca idiota!

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COYAO quê?...VENDEDOR DE BÍBLIAS (Igual)Cala a boca!COYA (Também começa a cochichar)O que foi? (A partir deste momento todos cochicham. É como uma reunião de bruxas)VENDEDOR DE BÍBLIASNada ainda... mas o que é que vai acontecer quando o senhor Fernández se der conta do roubo?JUIZ (Com desprezo)Ah... a primeira coisa que vai pensar é na empregada!VENDEDOR DE BÍBLIASPois é. E vai fazer o quê?JUIZPôr a polícia atrás dela.VENDEDOR DE BÍBLIASAh. E vão procurar ela onde?JUIZVão... (Cala-se, surpreso) Aqui?VENDEDOR DE BÍBLIASAh. (Todos se olham. Começam a inquietar-se)COYAMas aqui estamos nós...VENDEDOR DE BÍBLIASPois é (Todos se encaram. A ação se detém. Úrsula avança para a frente do palco e começa a falar como público)ÚRSULA (Sua voz é de uma anciã. Ela está toda encurvada)Eu estou muito velha... tenho frio.. (Aponta os outros) Os senhores estão vendo... Estamos mortos de frio. (Com voz de velha bruxa) Por que que essa entrometida teve que vir se meter na minha vida? (Quase tremendo de fúria) Essa ladra... com o macho dela... com o aborto dela... a mim, que merda me importa! (Falsa) Nós somos gente pobre... quase nem ocupamos espaço... não incomodamos ninguém... Por que ela tinha que vir jogar a vida dela na nossa frente? A única coisa que a gente pede é pra viver em paz! (Curva-se ainda mais. Chora falsamente. Parece uma passa de uva. Ao publico) Que é que custa pra eles nos deixarem um cantinho, hein? Não é verdade que não custa nada?... Por isso quando o Coya falou...COYA...Mas aqui estamos nós.ÚRSULA (Rápido)... nós compreendemos que...JUIZ... se nos encontrarem com ela, vão achar que nós somos cúmplices.ÚRSULA (Ao público)E nós não somos iguais a ela.

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COYA (Aos outros)Eu não roubei nada!JUIZEu roubei só um salame!FILHA DO ARREPENDIMENTOE eu faz anos que não faço aborto!ÚRSULA (Ao publico)Nós não somos iguais a elaJUIZMas se nos encontrarem junto com ela, vão nos pôr fora do Mercado! (Olham-se. A reunião continua com cochichos)COYANão quero que me tirem daqui, Juiz! O Mercado é a minha casa!FILHA DO ARREPENDIMENTOÉ o meu berço!ATORÉ minha mesa!VENDEDOR DE BÍBLIASÉ o meu pão!ÚRSULA (Rápido em direção a eles. Fala naturalmente) Vamos matar ela (Olham-se)COYAÉ, Juiz. Vamos mata ela. Coramos em pedacinhos e enterramos debaixo do chão do Mercado...JUIZNão resolve. Depois apodrece e começa a cheirar mal...ÚRSULAE o que é que nós vamos fazer, Juiz? (Pausa curta. Sacode-o com força) Rápido velho! Você não serve pra porra nenhuma!JUIZVamos entregá-la ao senhor Fernández.VENDEDOR DE BÍBLIASComo?!...JUIZVamos à casa dele... e contamos a ele que logo que ficamos sabendo do roubo trouxemos ela... Tenho certeza de que vai nos perdoar... e até, quem sabe, nos dê alguma coisa de presente!VENDEDOR DE BÍBLIASÉ lei. Cabe a nós dez por cento.JUIZE tem até jurisprudência assentada no Diário Oficial...ÚRSULA (Segurando-o pelo braço)Vamos logo! (Todos iniciam um movimento)JUIZ (Detendo-os)Esperem um pouco! (Pausa) quem conhece o Fernández?

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ÚRSULAEu... quando ele enfiou o pé no poço...JUIZMas ele conhece você? Você falou com ele alguma vez? (Úrsula nega com a cabeça) Ah... assim a gente não pode improvisar...VENDEDOR DE BÍBLIASPor que a gente não ensaia? Ator, você faz o papel do Fernández! Vamos, Ator... anda! (Empurra-o. O Ator olha-os. Encolhe os ombros. Avança para o outro extremo do palco. Vai se transformando. Começa a ficar coxo e se apoia em sua bengala, como se fosse Fernández no dia em que enfiou o pé no buraco. Silêncio. Maria e José ficam surpresos, no outro extremo do palco. Levantam-se e vão em direção aos demais)MARIAQue está acontecendo?ÚRSULAFica calada, menina!MARIAMas me diz... o que é que está acontecendo?VENDEDOR DE BÍBLIASVamos ensaiar o que vamos dizer ao senhor Fernández... para defender você, sabe?ATOR (Em tom baixo, mas que já não é o seu)Que querem?VENDEDOR DE BÍBLIAS (Vai a ele) Escute...ATORVelho sujo.VENDEDOR DE BÍBLIAS (Fica parado em seu lugar. Olha-o surpreso)Mas...ATORQuando é que nós dormimos juntos?VENDEDOR DE BÍBLIAS (Começa a sentir medo. O Ator já é Fernández)Eu pensava que... (Cala-se)ATORComeça de novo...VENDEDOR DE BÍBLIASÉ que... (Súbito aponta Maria) Estamos trazendo ela, senhor! Se aproveitou de sua confiança e roubou esse cinco mil pesos!... Foi ela, senhor! (Maria que escapar ao ouvir o Vendedor. Corre, mas é detida por todos)MARIA (Grita)Me defende José!ATOR (Já na pele de Fernández)De quem... do exercito... da polícia? Seria uma idiotice!... Você achou que eu não ia perceber?JOSÉ (Avança um passo)Senhor...

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ATOR (Olhando-o)E você... você gastou o meu dinheiro com ela?JOSÉNão, senhor... se estivesse sabido...ATORSe você tivesse sabido, teria gasto! Agradeça que eu mantenha você no emprego. Os cinco mil pesos não me interessam. Amanhã ode me roubar sei lá o que...JUIZIsso é justo, senhor.ATOR (Olhando-o. vai em direção ao Juiz) E você... quem é você?JUIZ (Encara-o. logo descia o olhar)Eu era... Juiz.ATOREra. Por que expulsaram você? (O Juiz não responde) Porre é? (O Juiz não responde) Vamos ver.. “Juiz!” Quantos anos de prisão você daria a ela por ter roubado cinco mil pesos?JUIZ (Vacila) Três...ATORMais.JUIZCinco..ATORMais.VENDEDOR DE BÍBLIAS (Vai ao Juiz) Mais, Juiz, mais!JUIZVinte e cinco!ATORClaro. Pelo menos 25 (Pausa) e, vamos ver, quanto você daria a você mesmo por roubar dez litro de vinho?ÚRSULAEu não roubei nada, senhor! Eles, sim, mas eu não...ATOROlhe só quem está aqui! A velha louca! E onde é que está a criançada que fica gritando "louca” quando você passa na rua?ÚRSULANão, senhor... deve ser outra.. as crianças gostam muito de mim..ATORLouca, louca!ÚRSULANão senhor...ATOR (Quase como uma das crianças da rua, canta)Louca! Louca! louca!

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ÚRSULA (Furiosa, apanha uma pedra imaginária do chão e ameaça. Como se estivesse cercada por crianças)Calem-se seus filhos-da-puta, que eu vou... (Detém-se. Pausa. Começa a chorar com pequenos gritos entrecortados)ATOR (Rindo, aponta a todos com a bengala)Que beleza de vizinhos que eu tinha sem saber!VENDEDOR DE BÍBLIAS (Avança um passo em direção ao Ator)Me perdoe lhe interromper, senhor Fernández... mas nós não somos todos iguais, não.. Eu não sou como eles... Ontem eu comprei uma padaria.ATORMe traga pão às oito da manhã. Eu gosto bem quente.VENDEDOR DE BÍBLIASNão, não.. eu quis dizer.. Veja, é um negócio... e eu vou progredir... Quase, quase... sou como o senhor, não é? (Sorri)ATOR (Olhando)Como eu. (Pausa muito curta) Vamos ver, quanto é xis vezes ípsilon por zero menos negro à s sete?VENDEDOR DE BÍBLIAMas.. isso é um absurdo, senhor...ATORAbsurdo. E por que é que você pensou que devia ser engraçado? Você é igual a mim! Está querendo um emprego?VENDEDOR DE BÍBLIAS (Rápido)Sim, senhor Fernández!ATORVocê vai dirigir um prostíbuloVENDEDOR DE BÍBLIAS (Pausa muito curta)Sim, senhor Fernández!ATOR (Aponta com a bengala a Filha do Arrependimento) Agarra ela! (A Filha do Arrependimento começa a correr pelo Mercado, perseguida pelo Vendedor. Em busca também Coya corre atrás dela e os dois a agarram, trazendo-a até Fernández) Essa vai ser a tua matéria-prima.FILHA DO ARREPENDIMENTOO Senhor te castigará, irmão! Eu sou filha do Senhor!ATOR (Olhando) Caminha (Ela vacila) Vamos, anda! (Ela não caminha) Coya, quanto você ganha por mês?COYAQuinhentos pesos, senhor Fernández.ATOREu pago setecentos se você quiser ser policial. Quer?COYASim senhor Fernández.

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ATOR- Pega (Dá sua bengala. Coya pega-a com receio, mas logo que a tem nas mãos se converte instantaneamente em policial) Faz ela caminhar. (Coya, com a bengala, obriga a Filha do Arrependimento a caminhar. A princípio ela anda lentamente. Logo, de forma paulatina. Começa a balançar as cadeiras e a rodar uma bolsinha imaginária. O Ator ri. Os demais observam, tristemente. A Filha do Arrependimento cai de joelhos e reza) Você substitui a religião da alma pela religião do corpo!FILHA DO ARREPENDIMENTOE que é que posso fazer, Senhor, se tudo que eu sou cabe dentro do meu corpo?ATOR (A Coya)Guarda, põe todos para fora! Amanhã vamos começar a derrubar o Mercado para construir um edifício de cem andares (Os miseráveis se juntam) Todos pra fora, guarda! (Coya começa a dar bengaladas. Sua força se tornou descomunal. Todos correm e escondem-se, uns atrás e outros debaixo dos balcões do Mercado Velho. Já não resta ninguém, mas Coya continua dando bengaladas, como uma máquina. Pouco a pouco vai parando. Olha para todo os lados. Não há ninguém. Angustia-se)ATORVai pro cinema.COYASenhor... fiquei sozinho...(O ATOR COMEÇA A RIR ÀS GARGALHADAS. VAI PARA OS CAIXOTES DO CENTRO DO PALCO. AJOELHA-SE E VATE NOS CAIXOTES COM OS PUNHOS, MORRENDO DE RIR.

DE REPENTE, COMEÇA A CHORAR. OS OUTROS VÃO SAINDO DE SEUS ESCONDERIJOS. LENTAMENTE, AINDA CHEIOS DE MEDO, CERCAM O ATOR, QUE

CONTINUA CHORANDO. O ATOR, POUCO A POUCO, VAI PARANDO DE CHORAR. ERGUE A CABEÇA. OS DEMAIS TÊM MEDO. NÃO SABEM QUE É QUE VAI SAIR DO

CHORO)ATORMe perdoem... por um minuto eu fui o Fernández... e vocês.. meus amigos... meus únicos amigos!... Eu odiei vocês.. me perdoem!ÚRSULA (Ainda assustada)Que aconteceu com você, ATOR?ATOR (Pausa)Não sei, Úrsula... Quando eu tive que ser o gerente, eu estava representando... porque andar curvado, gordo... não gostava. Quando tive que ser Deus, eu estava representando.. (Aponta a Filha do Arrependimento) porque o cheiro dela... e os buracos da camiseta por onde entra o frio quando eu levanto o casaco... eu não gostava. Mas quando eu fui o Fernández... eu não gostava. Mas quando eu fui Fernández... eu queria representar!... mas de repente alguém pintou num pedaço do meu cérebro um andar do novo edifício... e eu queria representar! Mas alguém pintou em outro pedaço do cérebro... e eu queria representar, Úrsula!... mas os andares começaram a ser como sangue... e a correr pelas minhas veias... e era tão quente apertar o punho e sentir estalar... vocês, os andares... minha puta mãe!... e quando senti estalar, eu odiei vocês.

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FILHA DO ARREPENDIMENTOVocê está arrependido?ATOR (Senta-se no caixote)Sim, eu estou arrependido. Mas se eu voltar a se o Fernández... eu vou voltar a odiar vocês.COYAAtor... amanhã eu vou voltar a me sentir sozinho, eu, sozinho... sem companhia? (O Ator não responde)JUIZ (Sacudindo-o)Responde, Ator!ATOR (Encarando-o)Eu acredito naquilo que eu faço! Eu gosto do meu trabalho!COYA (Suavemente)Eu vou ter que matar você, Ator.ATOR (Encara-o. segura a mão dele. Sacode a cabeça)Por que vocês não impedem que eu volte a ser o Fernández?JUIZComo?ATORVocê é o Juiz. Condene ele à morte. (Ao ouvir o Ator, todos se encolhem de medo)JUIZ (Assustado)É que não existe pena de... (Olha os demais. Pausa. Decide. Vai em direção a uma das barracas. Bate e fala em voz baixa) Condenado. (Pausa. Olha a todos) Quem executará as sentença?COYAEu (Pausa curta) Eu já aprendi, Juiz (Acaricia as mãos) Deixe que seja eu (O Ator olha-o. começa a tirar o smoking. Entrega-lhe. Fica com sua camiseta esburacada. Começa a sofrer. Está por perder a possibilidade de voltar a ser Fernández. Coya apanha o smoking. Vai a uma barraca de carne, no fundo. Estrangula o smoking. Grita feliz) Ahhh!...(O ATOR SE ENCOLHE TODO: A POSSIBILIDADE MORREU. COYA PENDURA O SMOKING

NUM GRANDE GANCHO PARA CARNE. CANTA O GALO DO AMANHECER E COMEÇA A NASCER O SOL POR TRÁS DAS JANELAS. ENTRA JOAQUIM, O GUARDA-NOTURNO)

JOAQUIMVocês se divertiram?...(Todos se voltam para ele) Vocês nem sabem o que aconteceu essa noite... O senhor Fernández morreu!JOSÉMaria... Que é que você tem? (Maria senta-se no caixote gemendo. José vai a ela. Os demais se aproximam. Ela se encolhe toda. Dá à luz.. levanta-se e entrega a José um boneco de pano)MARIATeu filho. É homem.

(E O MILAGRE DO MERCADO VELHO ACONTECE: A XANTOPIS PROPICUOS SE ABRE E ESTENDE UM GRANDE E ESTRANHO TETO QUE COBRE A TODOS, ENQUANTO ATRAVÉS DO

TETO E DAS JANELAS DO MERCADO VELHOS SE FILTRAM LUZES...MÁGICAS)

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