os tratados internacionais em direitos ... · web viewÁvila, humberto. teoria dos princípios: da...

52
DIREITO DO TRABALHO E TRATADOS INTERNACIONAIS EM DIREITOS HUMANOS 1 . Flávia Moreira Guimarães Pessoa 2 Rafael Passos Lima 3 RESUMO O vertente estudo tem a finalidade demonstrar a natureza constitucional inerente aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, em especial no âmbito do direito do trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Direito do Trabalho, Tratados Internacionais em Direitos Humanos, princípio da norma mais favorável ao ser humano, teoria constitucionalidade das normas de direito internacional dos direitos humanos. 1. INTRODUÇÃO: O presente artigo tem por objetivo demonstrar a inserção, em status constitucional, dos tratados internacionais relativos aos direitos trabalhistas fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. 1 Artigo produzido no âmbito do grupo de pesquisa: “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe. 2 Juíza do Trabalho (TRT 20ª Região), Professora Adjunto da Universidade Federal de Sergipe, Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA, líder do grupo de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe. 3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe

Upload: lamkhuong

Post on 15-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

DIREITO DO TRABALHO E TRATADOS INTERNACIONAIS EM DIREITOS HUMANOS1.

Flávia Moreira Guimarães Pessoa2

Rafael Passos Lima3

RESUMO

O vertente estudo tem a finalidade demonstrar a natureza constitucional inerente aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos, em especial no âmbito do direito do trabalho.PALAVRAS-CHAVE: Direito do Trabalho, Tratados Internacionais em Direitos Humanos, princípio da norma mais favorável ao ser humano, teoria constitucionalidade das normas de direito internacional dos direitos humanos.

1. INTRODUÇÃO:

O presente artigo tem por objetivo demonstrar a inserção, em status

constitucional, dos tratados internacionais relativos aos direitos trabalhistas

fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro.

Para tanto, divide-se em seis partes, sendo ao final expostas as conclusões.

Na primeira, é analisado o conceito de tratados internacionais. Na segunda são expostos

alguns direitos trabalhistas fundamentais previstos em instrumentos supranacionais. Na

terceira, analisa-se a teoria do bloco de constitucionalidade. Na quarta, discute-se a

incorporação dos tratados internacionais ao ordenamento brasileiro. Na quinta, aborda-

se a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. Na sexta, estudam-se as

normas materialmente contitucionais e o primado da dignidade da pessoa humana.

2.TRATADOS INTERNACIONAIS: DEFINIÇÕES

1 Artigo produzido no âmbito do grupo de pesquisa: “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe.2 Juíza do Trabalho (TRT 20ª Região), Professora Adjunto da Universidade Federal de Sergipe, Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA, líder do grupo de pesquisa “Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais e Reflexos nas Relações Sociais” da Universidade Federal de Sergipe. 3 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe

Tendo o seu aspecto formal4 como mais relevante, o tratado internacional5,

pode assumir as mais variadas matérias de fundo, daí o porquê de ser ele reconhecido

como uma das fontes formais do direito internacional, assim como dispõe o art. 38 do

Estatuto da Corte Internacional de Justiça: “1. A Corte, cuja função é decidir de acordo

com o Direito internacional as controvérsias que lhe foram submetidas, aplicará: a) as

Convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabeleçam regras

expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes”; (...)

Para Francisco Rezek “O tratado é um acordo formal: ele se exprime, com

precisão, em determinado momento histórico, e seu teor tem contornos bem definidos.

Aí repousa, por certo, o principal elemento distintivo entre o tratado e o costume, este

último também resultante do acordo entre sujeitos de direito das gentes, e não menos

propenso a produzir efeitos jurídicos, porém forjado por meios bem diversos daqueles

que caracterizam a celebração convencional” (REZEK, 2000, pg.16).

3.DIREITOS TRABALHISTAS FUNDAMENTAIS PREVISTOS EM

INSTRUMENTOS SUPRANACIONAIS

A Constituição estabelece, no caput do seu art. 7º, que são direitos dos

trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição

social, todos aqueles indicados em seus incisos.

4 Para Francisco Rezek “O tratado é um acordo formal: ele se exprime, com precisão, em determinado momento histórico, e seu teor tem contornos bem definidos. Aí repousa, por certo, o principal elemento distintivo entre o tratado e o costume, este último também resultante do acordo entre sujeitos de direito das gentes, e não menos propenso a produzir efeitos jurídicos, porém forjado por meios bem diversos daqueles que caracterizam a celebração convencional” (REZEK, 2000, pg.16).5 Tratado internacional, na definição de Saulo José Casali Bahia (2000, p. 3) é um “acordo de vontades entre pessoas de direito internacional, regido pelo direito das gentes”. É bastante comum, porém, o uso de diversas expressões correspondendo ao vocábulo, de forma que a palavra é entendida como um termo genérico. Aponta que “deve-se preferir o vocábulo convenção para designar os tratados do tipo normativo, que estabeleçam normas gerais em determinado campo”. O autor demonstra diversas outras denominações: o termo “acordo”, “ajuste” ou “convênio” é utilizado quando o objeto do tratado encontra-se no campo cultural, comercial, financeiro ou econômico. Já “acordo de sede” refere-se a “tratados que cuidem da instalação de uma organização internacional no território de um Estado qualquer”. Acordos executivos, por seu turno, são “os tratados celebrados de modo unifásico, sem participação do Legislativo nos países onde a mesma é, a princípio, exigida”. Concordatas, por outro lado, são os “tratados firmados com a Santa Sé cujo objeto tenha cunho religioso”. O termo “Declaração”, por sua vez, embora existam exceções, “é reservado ao tratado que signifique manifestação de acordo sobre certas questões. Enumerando muitas vezes princípios, é bastante discutível o valor jurídicos desses tratados. Pode também servir para o fim de interpretar algum tratado anteriormente celebrado, notificar um acontecimento ou certas circunstâncias ou servir de anexo a um tratado”. Protocolo, por seu turno, trata-se de um tratado complementar ou suplementar a outro, termo que também pode significar a ata de uma conferência. . Os termos “pacto”, “carta”, “constituição” ou “estatuto”, por seu turno, são aqueles utilizados “quando se trata de criar ou estruturar uma organização internacional” (BAHIA, 2000, p. 8-10)

É interessante assinalar que a Constituição não fala em empregados, referindo-

se genericamente a “trabalhadores” urbanos e rurais. É clara a distinção entre as

figuras, uma vez que empregado é uma espécie do gênero mais amplo trabalhador. Tal

redação poderia dar margem ao entendimento de que os direitos estabelecidos no art. 7º

são aplicáveis a todos os trabalhadores, mas essa leitura do referido dispositivo

constitucional acabou não prevalecendo,

Há que se destacar, igualmente, que o caput do art. 7º é uma consagração do

princípio da proteção, na vertente da aplicação da norma mais favorável. Pode-se

definir o princípio da proteção, conforme lição de Pinho Pedreira da Silva (1997, p. 29),

como “aquele em virtude do qual o direito do trabalho, reconhecendo a desigualdade de

fato entre os sujeitos da relação jurídica de trabalho, promove a atenuação da

inferioridade econômica, hierárquica e intelectual dos trabalhadores”.

Desdobra-se o princípio da proteção em vários outros, mas, em primeiro plano,

podem-se apontar os princípios in dubio pro operario, o da norma mais favorável e o da

condição mais benéfica. O primeiro estabelece que, “entre várias interpretações que

comporte a norma, deve ser preferida a mais favorável ao trabalhador” (SILVA, 1997,

p. 41). Já os princípios da norma mais favorável e o da condição mais benéfica têm em

comum o pressuposto da pluralidade de normas. Porém, como assinala Silva (1997, p.

65) o “princípio da norma mais favorável supõe normas com vigência simultânea e o

princípio da condição mais benéfica sucessão normativa”.

Assim, ao estabelecer os direitos trabalhistas, “além de outros que visem à

melhoria de sua condição social” , a Constituição deixa claro que o rol apresentado

estabelece apenas os direitos mínimos, que poderão ser aumentados por tratados

internacionais e mesmo pela legislação infraconstitucional.

Os direitos trabalhistas fundamentais estão previstos em diversos instrumentos

supranacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração

dos Direitos e Princípios Fundamentais da Organização Internacional do Trabalho e o

Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, celebrada em 1948,

estabelece, em seu art. 23, que toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do

trabalho, a condições eqüitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o

desemprego. Prevê, ainda, a igualdade de condições salariais, bem como uma

remuneração eqüitativa e satisfatória, que permita ao trabalhador e à sua família uma

existência digna. Ainda no mesmo dispositivo, a Declaração estabelece que toda pessoa

tem o direito de fundar, com outras pessoas, sindicatos e de se filiar em sindicatos para

defesa dos seus interesses. Já no art. 24, a Declaração Universal dos Direitos Humanos

prevê que “toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma

limitação razoável da duração do trabalho e a férias periódicas pagas”.

Ainda tratando de direitos trabalhistas fundamentais, o art. 25 da Declaração

prescreve que toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e

à sua família a saúde e o bem-estar. Tem também direito à segurança no desemprego, na

doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou em outros casos de perda de meios de

subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.

Cumpre, ainda, destacar a Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos

fundamentais no trabalho, publicada em 1998. Trata-se de declaração que se aplica a

todos os países-membros daquela organização internacional, entendendo-se que ditos

países têm um compromisso que se deriva de sua mera filiação à OIT. Por esse

compromisso, os Estados signatários devem respeitar, promover e tornar realidade, de

boa fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos

fundamentais. Especificamente, a Declaração da OIT estabelece, no seu item 2, os

seguintes direitos fundamentais trabalhistas: a) liberdade de associação, liberdade

sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) eliminação de

todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) abolição efetiva do trabalho

infantil; d) eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.

Por sua vez, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais - aprovado na XXI Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em Nova

York, em 19 de dezembro de 1966, e ratificado pelo Brasil, em 24 de janeiro de 1992 -

estabelece, especificamente em seus arts. 6º a 9º, uma série de direitos fundamentais

trabalhistas6.

6 Art. 6º - 1. Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito e tomarão medidas apropriadas para salvaguardar esse direito. 2. As medidas que cada estado-parte no presente Pacto tomará, a fim de assegurar o pleno exercício desse direito, deverão incluir a orientação e a formação técnica e profissional, a elaboração de programas, normas técnicas apropriadas para assegurar um desenvolvimento econômico, social e cultural constante e o pleno emprego produtivo em condições que salvaguardem aos indivíduos o gozo das liberdades políticas e econômicas fundamentais. Art. 7º - Os estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem especialmente: a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os trabalhadores: i) um salário eqüitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão ter a garantia de condições de trabalho não

A esse respeito, Piovesan (2007, p. 175) anota que o Pacto dos Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais estabelece direitos endereçados aos Estados, os quais,

contudo, seriam em tese programáticos. Porém, adverte a autora que o Comitê de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais vem enfatizando que os Estados-partes tem o

dever de assegurar, ao menos, o núcleo essencial mínimo relativamente a cada direito

enunciado no Pacto, cabendo ao Estado o dever de respeitar, proteger e implementar tais

direitos (PIOVESAN, 2007, p. 177).

Outro diploma a ser destacado é a Declaração Sociolaboral do Mercosul7,

firmada em 10 de dezembro de 1998. Nela foram estabelecidos os princípios e direitos

na área do trabalho, que se configuram como direitos fundamentais a serem respeitados

pelos Estados signatários. A Declaração estabelece, inicialmente, o princípio da não-

discriminação. Seu art. 1º prescreve que todo trabalhador tem garantida a igualdade

efetiva de direitos, tratamento e oportunidades no emprego e ocupação, sem distinção

ou exclusão por motivo de raça, origem nacional, cor, sexo ou orientação sexual, idade,

credo, opinião política ou sindical, ideologia, posição econômica ou qualquer outra

condição social ou familiar, em conformidade com as disposições legais vigentes.

inferiores às dos homens e perceber a mesma remuneração que eles, por trabalho igual; ii) uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade com as disposições do presente Pacto; b) Condições de trabalho seguras e higiênicas; c) A igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu trabalho, à categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as de tempo, de trabalho e de capacidade;d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feriados. Art. 8º - 1. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir: a) O direito de toda pessoa de fundar com outras sindicatos e de filiar-se ao sindicato de sua escolha, sujeitando-se unicamente aos estatutos da organização interessada, com o objetivo de promover e de proteger seus interesses econômicos e sociais. O exercício desse direito só poderá ser objeto das restrições previstas em lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional ou da ordem pública ou para proteger os direitos e as liberdades alheias; b) O direito dos sindicatos de formar federações ou confederações nacionais, e o direito destas de formar organizações sindicais internacionais ou de filiar-se às mesmas; c) O direito dos sindicatos de exercer livremente suas atividades, sem quaisquer limitações além daquelas previstas em lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional ou da ordem pública ou para proteger os direitos e as liberdades das demais pessoas; d) O direito de greve, exercido em conformidade com as leis de cada país. 2. O presente artigo não impedirá que se submeta a restrições legais o exercício desses direitos pelos membros das Forças Armadas, da Polícia ou da Administração Pública. 3. Nenhuma das disposições do presente artigo permitirá que os Estados-partes na Convenção de 1948 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, venham a adotar medidas legislativas que restrinjam - ou a aplicar a lei de maneira a restringir - as garantias previstas na referida Convenção. Art. 9º - Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à previdência social, inclusive ao seguro social.7 O Mercado Comum do Sul – Mercosul - é composto por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Criado em 1991, tem como objetivos a adoção de políticas de integração econômica e comercial, a instalação de uma zona de livre comércio, a eliminação de barreiras alfandegárias e a união aduaneira (TERRA; COELHO, 2005, p. 98).

A partir do art. 2º, a Declaração cuida da promoção de igualdade, inicialmente

relativa às pessoas portadoras de necessidades especiais, para que tenham a

possibilidade de desempenhar uma atividade produtiva. Estabelece, em seguida, a

igualdade de tratamento e oportunidades entre mulheres e homens e entre trabalhadores

nacionais e migrantes. Cuida, ainda, da eliminação do trabalho forçado, bem como das

medidas para se coibir o trabalho infantil. Garante, além disso, os direitos coletivos, em

especial, a liberdade de associação, liberdade sindical e negociação coletiva, sendo,

também, assegurado o direito de greve.

Em seu art. 7º, estabelece que o empregador tem o direito de organizar e

dirigir, econômica e tecnicamente, a empresa, em conformidade com as legislações e as

práticas nacionais. Dispõe, em seu art. 12, sobre a promoção e desenvolvimento de

procedimentos preventivos e de autocomposição de conflito. No art. 13, estimula o

diálogo social, a partir da instituição de mecanismos efetivos de consulta permanente

entre representantes dos governos, dos empregadores e dos trabalhadores. Busca, com

isso, garantir, mediante o consenso social, condições favoráveis ao crescimento

econômico sustentável e com justiça social da região e a melhoria das condições de vida

de seus povos. Ocupa-se, ainda, do fomento ao emprego, da proteção aos

desempregados e da formação profissional e desenvolvimento dos recursos humanos,

consagrando, no art. 17, o direito à saúde e à segurança no trabalho.

4.BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE, SISTEMA CONSTITUCIONAL E

OS POSTULADOS DA UNIDADE E COERÊNCIA DO ORDENAMENTO

JURÍDICO

Doutrina recente no Direito Constitucional, a ideia do Bloco de

Constitucionalidade (Bloc de constitucionnalité) ganhou corpo com o leading case do

Conselho Constitucional da França, em 1971, em que foram atribuídos densidade e

valor jurídicos ao Preâmbulo da Constituição de 1958, o qual dispunha quanto ao

respeito da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, bem como ao

Preâmbulo da Constituição de 1946 (NETO, 2002).

Destarte, a importância da referida decisão francesa estava em atribuir valor

de norma constitucional a normas tidas como dispersas na Constituição. Abre-se então o

catálogo constitucional dos direitos fundamentais, que carregam consigo a não

exaustividade material.

A doutrina, debruçando-se sobre o assunto, classificou como existentes na

Constituição o convívio entre normas formalmente e materialmente constitucionais e as

normas materialmente constitucionais8. Estas seriam “o conjunto de fins e valores

constitutivos do princípio da ‘efectiva’ unidade e permanência de um problema da

constituição” (CANOTILHO, 1998, pg. 1016-1017). Ainda que fora do corpus

constitucional (conjunto limitado de materiais normativos que forma a Constituição),

por seu conteúdo, por sua ”natureza intrínseca” e importância podem ser tidas como

normas constitucionais, inseridas entre os direitos fundamentais.

Já às normas formalmente e materialmente constitucionais seriam acrescidas

as vestes da positivação no âmbito da constituição. Como pondera Sarlet, citando

Konrad Hesse, “os direitos fundamentais em sentido formal podem ser definidos como

aquelas posições jurídicas da pessoa que, por decisão expressa do Legislador-

Constituinte foram consagrados no catálogo dos direitos fundamentais” (SARLET,

2007, pg. 95).

Não fugindo da possibilidade concreta de serem expandidos os direitos e

garantias fundamentais, o Constituinte não se furtou a este debate, inserindo na

Constituição Brasileira de 1988, mais precisamente no §2 do art. 5 da CF/88, a

denominada cláusula aberta, de “não tipicidade dos direitos fundamentais”

(MIRANDA, 2000), norma de “fattispecie aberta” (CANOTILHO) ou princípio da

complementaridade condicionada (DIMOULIS e MARTINS, 2006). Assim está

preceituado o §2º do art. 5º: Art. 5 (...) § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela

aludidos, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja

parte9.

A partir de leitura da norma acima disposta, classificou Flávia Piovesan em

três vertentes os direitos e garantias fundamentais: “a) o dos direitos expressos na

Constituição; b) o dos direitos expressos em tratados internacionais de que o Brasil seja

parte; e, finalmente, c) o dos direitos implícitos” (PIOVESAN, 2007, pg. 58).

8 O jurista português José Carlos Vieira de Andrade aponta ainda a existência de uma terceira categoria, dos direitos, apenas, formalmente constitucionais. Ingo Sarlet critica tal classificação, haja vista que, o traço unicamente formal de uma norma constitucional não seria bastante para desautorizar sua aplicação, bem como, em termos práticos, tal divisão seria destituída de importância (SARLET, 2007, pg. 95).

9 Diversas cartas constitucionais, em todo o globo, têm, em sede do constitucionalismo moderno, adotado modelo semelhante na abertura material do catálogo de direitos fundamentais. Destaque para o inédito, até então, dispositivo previsto na IX Emenda da Constituição norte americana.

Fica desde já constatada a inclusão, por parte do Constituinte de 1988,

daqueles direitos que guardam apenas o traço da fundamentalidade materialmente

constitucional, o que é suficiente para serem insertos no sistema constitucional dos

direitos fundamentais. Logo, a referidas normas seriam empregados institutos próprios,

como por exemplo, a aplicação imediata a estes direitos (art. 5, §1 da CF/88) e, por que

não, a inclusão destes direitos no catálogo do núcleo essencial dos direitos

fundamentais, ou seja, na cláusulas pétreas (art. 60, §4da CF/88), atributos estes

pertinentes às normas de direitos e garantias fundamentais.

Para reforçar a ideia da existência dessas normas materialmente

constitucionais (integrantes do bloco de constitucionalidade) necessário inserirem-nas

na concepção de que as mesmas encontram substrato constitucional por meio de outras

disposições constitucionais, de outros princípios e regras, portanto, participantes do

sistema constitucional dos direito fundamentais.

Antes impende definir o que seria um sistema? Qual prerrequisito para a

inserção de uma norma a um sistema?

Segunda Savigny, sistema seria “a concatenação interior que liga todos os

institutos jurídicos e as regras de Direito numa grande unidade” (SAVIGNY apud

CANARIS, 1989, pg. 10). É a uma concatenação interdisciplinar entre seus elementos

estruturantes.

No campo do Direito - principalmente no Direito Constitucional – destaca-

se a tese defendida pelo jurista alemão G. Dürig que formulou a tese do sistema dos

direitos fundamentais como um sistema isento de lacunas, dado a sua completude a

partir do princípio da dignidade da pessoa humana. “Segundo o pensamento do ilustre

mestre de Tübingen, fundamenta uma pretensão geral de respeito e proteção da

dignidade da pessoa humana, concretizada nos diversos direitos fundamentais

específicos, que, além disso, foram guindados à condição de diretamente aplicáveis”

(SARLET, 2007, pg. 83).

Críticas a esta teoria foram endossadas por Konrad Hesse para quem seria

inviável se pensar um sistema autônomo e fechado dos direitos fundamentais pelos

direitos fundamentais insertos numa Constituição. “Os direitos fundamentais apesar de

comumente agrupados em um catálogo, são garantias pontuais, que se limitam à

proteção determinados bens e posições jurídicas especialmente relevantes ou

ameaçados” (HESSE apud SARLET, 2007, pg. 84).

Os direitos fundamentais reconhecidos no §2 do art. 5 da Constituição de

1988 apontam justamente pela abertura, flexibilidade e reconhecimento como direitos

fundamentais, ainda que em outras partes que não a do capítulo “Dos direitos e

garantias individuais” (Ex. direitos sociais, Meio Ambiente), ou reconhecidos em

tratados internacionais (Direitos Humanos), e ainda os princípios decorrentes da ordem

constitucional (Princípio do Duplo Grau de Jurisdição).

Pode-se ir além! É perfeitamente possível se admitir a existência da nota de

materialidade, mesmo, a disposições que estejam em hierarquia infraconstitucional

(JÚNIOR, 2008, pg. 623). Exemplo do disposto no art. 7º da CF/88 (“São direitos dos

trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição

social”). Ou mesmo, os conceitos de ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa

julgada, os quais recebem guarida constitucional (art. 5º, XXXVI, da CF), porém é

tarefa, dos parágrafos do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC),

conceituá-los.

A Constituição não se fecha ao sistema axiomático-dedutivo, cuja

“objetividade abstrata máxima ocorre com o positivismo formal da Escola de Viena,

nomeadamente na Teoria Pura do Direito de Kelsen (BONAVIDES, 2003, pg. 133). É

necessário dar tons à Constituição de um caráter multidimensional. “A Constituição

normativa, para ser qualificada como conceito de valor, não se basta com um conjunto

de regras jurídicas formalmente superiores; estas regras têm de transportar ‘momentos

axiológicos’ corporizados em normas e princípios dotados de bondade material”

(CANOTILHO, 1998, pg. 1005).

Desta feita, surge da própria ideia de sistema como uma ordem que possui

pretensão de se manter no tempo, a necessidade de unidade e coerência a qual é

sustentada pelo postulado da unidade do ordenamento jurídico.

Por postulado entende-se como condições essenciais utilizadas na

interpretação de um objeto cultural, sem as quais o objeto não pode ser sequer

apreendido (ÁVILA, 2008). Dividem-se eles em postulados meramente hermenêuticos

– destinados a compreensão em geral do Direito – e os postulados aplicativos – “cuja

utilização é necessária à compreensão interna e abstrata do ordenamento jurídico,

podendo funcionar, é claro, para suportar essa ou aquela alternativa de aplicação

normativa” (ÁVILA, 2008, pg. 124). Para a constatação da existência de um conceito

material dos direitos fundamentais, nos valeremos apenas dos postulados aplicativos.

Nesta categoria de postulados, destaca-se o postulado da unidade do

ordenamento jurídico, em que “as normas (da Constituição) devem ser vistas não como

normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e

princípios, que é instituído na e pela Constituição” (MENDES, MÁRTIRES e GONET,

2008, pg. 114). Como decorrência deste postulado, outros dois subelementos surgem, os

quais sejam o postulado da hierarquia e o postulado da coerência.

O postulado da hierarquia surge do entendimento de um ordenamento

estruturado por normas supra e infra-escalonadas. Dele pode se depreender qual norma

deverá prevalecer em caso de conflito; se algumas das normas possuem hierarquia

superior, quanto à preferência de umas em detrimento doutras; é preciso saber quais as

relações de dependências existentes entre as normas de um mesmo sistema (ÁVILA,

2008, pg. 124). Todavia o postulado da hierarquia envolve uma noção compartimentada

entre normas, movendo-se somente no plano da validade normativa.

Como complementação ao postulado da hierarquia e para dar mais sentido e

finalidade ao sistema ascende o postulado da coerência. Este se mostra como ”um

modelo de sistematização circular (as normas superiores condicionam as inferiores, e as

inferiores contribuem para determinar os elementos das superiores), complexo (não há

apenas uma relação vertical de hierarquia, mas várias relações horizontais, verticais e

entrelaçadas entre as normas) e gradual (a sistematização será tanto mais perfeita quanto

maior for a intensidade da observância de seus vários critérios” (ÁVILA, 2008, pg.

127).

Assevera o jurista gaúcho Humberto Ávila possuir o postulado o plano

formal - o qual daria consistência e completude ao sistema - e o plano substancial – que,

importando em um elenco de normas tidas como coerente e que estabelecem maior

coerência entre si, na medida em que a) haja relação de dependência recíproca entre as

normas e b) quanto maior forem seus elementos comuns (ÁVILA, 2008).

Impende afirmar que da relação entre os postulados da coerência, como

complementaridade do postulado da hierarquia encontra-se confirmada na Carta

Constitucional de 1988, o que, por sua vez, irradia por entre os direitos fundamentais.

Por mais forçoso (e pareça seguro) seja afirmar que os direitos fundamentais seriam

apenas aqueles insertos expressamente na Constituição, revela-se que tal posição revela-

se inconsistente em duração.

“Para se tratar de uma verdadeira constituição não basta um documento. É

necessário que o conteúdo desse documento obedeça aos princípios fundamentais

progressivamente revelados pelo constitucionalismo” (CANOTILHO, 1998, pg. 1004).

A ideia de bloco de constitucionalidade e a cláusula aberta contida no §2 do art. 5

cumprem à risca esta orientação não estática, cimentada, hermética da Constituição.

Veja-se: como afirmou Humberto Ávila que “a capacidade de

fundamentação de uma norma constitucional (mais aberta) é tanto melhor quanto mais

intensa for a relação que ela mantiver com outras normas constitucionais” (ÁVILA,

2008, pg. 130). Se tomarmos como exemplo os direitos fundamentais decorrentes dos

tratados de direitos humanos, como contido no §2 do art. 5. As normas decorrentes dos

tratados encontram, prima facie, embasamento constitucional tanto no princípio da

dignidade da pessoa humana (art. 1, III da CF/88), bem como no princípio da

prevalência dos direitos humanos (art. 4, II da CF/88). Portanto ocupam, sim, os direitos

decorrentes dos tratados de direitos humanos assento no sistema dos direitos

fundamentais. Desde já, se adverte que tal tema, permeará futuras discussões neste

trabalho.

5.A INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS AO

ORDENAMENTO BRASILEIRO

Toda operação a que está submetida a incorporação dos tratados

internacionais em muito se assemelha aos tantos processos legislativos insertos na

Constituição Brasileira. No entanto, segue o processo de incorporação dos tratados seu

próprio rito.

Alexandre de Morais divide em três fases o processo de incorporação dos

tratados internacionais em nosso ordenamento jurídico: “1ª fase: compete

privativamente ao Presidente da República celebrar todos os tratados, convenções e atos

internacionais (CF, art. 84, VIII); 2ª fase: é de competência exclusiva do Congresso

Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que

acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (CF, art. 49, I).

A deliberação do Parlamento será realizada através da aprovação de um decreto

legislativo, devidamente promulgado pelo Presidente do Senado Federal e publicado; 3ª

fase: edição de um decreto pelo Presidente da República, promulgando o ato ou tratado

internacional devidamente ratificado pelo Congresso Nacional. É nesse momento que

adquire executoriedade interna a norma inserida pelo ato ou ato internacional, podendo,

inclusive, ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade”. (MORAIS, 2003, pg. 38)

Analisando cada uma dessas fases, respectivamente, observa-se já na

primeira fase a preclara lição da exclusiva competência do Presidente da República, mas

também percebe-se que o fato de o Brasil ser signatário de um tratado não dá o condão

de tal tratado se encontrar vigente no ordenamento brasileiro.

Na fase seguinte já constamos a participação de outro entre, no caso o

Congresso Nacional, que também interage a este procedimento complexo. A interação

de ambas as casas do Congresso Nacional nesse processo de averiguação da

constitucionalidade dos Tratados, uma vez já acordados e assinados pela presidência da

república, foi mais uma tentativa do constituinte em equilibrar as forças dos poderes da

República (NIARADI, 2003).

O instrumento formal de incorporação dos tratados será através do Decreto

Legislativo, ao qual se atribui a natureza de um processo legislativo especial, que não

guarda semelhanças com os processos legislativos ordinário ou sumário (Silva, 2006).

Estaria, portanto, ele imune à sanção e ao veto presidencial dos demais processos

legislativos (NALINI apud NIARADI, 2003, pg. 135).

Outrossim, a sanção e o veto presidencial somente recaem sobre projetos de

lei, e sobre as matérias introduzidas no art. 48 da CF (SILVA, 2006). “Sendo um

instrumento de manifestação e não um ato normativo, o Decreto Legislativo deve ser

promulgado dentro do Congresso Nacional pelo seu Presidente” (NIARADI,2003, pg.

136).

Segundo Alexandre de Morais, seguindo à risca o dispositivo Constitucional

(art. 84, VIII), “a simples aprovação do ato ou tratado internacional por meio de decreto

legislativo, devidamente promulgado pelo presidente do Senado Federal e publicado,

não assegura a incorporação da norma ao direito interno” (MORAIS, 2003, pg. 39).

Mesmo averiguada a constitucionalidade do tratado não é suficiente.

Logo, chega-se então à terceira fase, em que a incorporação do tratado ainda

não aconteceu, tendo em vista que a produção de efeitos do tratado se dá com a

publicação de um decreto presidencial. Aqui se dá a ratificação do tratado sucedendo-se

a troca ou depósito dos instrumentos de ratificação que está prevista no plano

internacional de elaboração dos tratados. Desta feita, o Estado-Parte expressa sua

adesão em obrigar-se ao tratado, à uma cessão de parte de sua autonomia em face dos

princípios da boa-fé e o pacta sunt servanda (NIARADI, 2003).

A discussão prossegue quando em comento se está abordando quanto à

aplicabilidade dos tratados internacionais de direitos humanos.

Parte da doutrina defende a tese da aplicabilidade imediata de tais normas,

tidas como self-executing. Para elas se dispensaria todo iter procedimental atribuído aos

tratados internacionais comuns. Na sistemática de incorporação legislativa, não haveria

necessidade da edição de Decreto-Lei para formalizar a incorporação do tratado

internacional em direitos humanos. Para tanto, suficiente seria a ratificação do Estado ao

tratado – na realidade brasileira, da manifestação pelo chefe do Poder Executivo.

A razão desse procedimento especial aplicável aos tratados internacionais de

direitos humanos estaria no fato de que, com a ratificação do tratado, este geraria

direitos subjetivos aos particulares (PIOVESAN, 2007).

Não seria razoável a estes (terceiros), aguardarem o longo e demorado

caminho da incorporação do tratado internacional ao direito interno. A incorporação

seria uma obrigação por parte do Estado face à comunidade internacional e os demais

estados pactuantes (PIOVESAN, 2007).

Outra corrente admite que, mesmo se tratando de tratados internacionais em

matéria de direitos humanos, os mesmo obedeceriam o iter procedimental seguido pelos

tratados internacionais tradicionais, haja vista não haver qualquer previsão

constitucional a respeito deste tratamento diferenciado. Esta concepção – pela

incorporação não imediata – filia-se fielmente à doutrina dualista, pois, a norma

internacional teria validade se transformada em lei por procedimento interno de cada

Estado. Já a tese que admite aplicação imediata aos tratados internacionais sobre

direitos humanos se funda na corrente monista, em que pese manifestar a

desnecessidade de produção normativa interna para incorporação do tratado10.

Enfatizamos desde já que referido tema será reapresentado neste trabalho,

porém antes impende abordarmos a problematização da hierarquia constitucional dos

tratados internacionais em direitos humanos, para então, em momento oportuno (item

3.), reforçarmos o tema aqui explanado.

6. A HIERARQUIA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS

HUMANOS

10 Ver nesse sentido A.A. Cançado Trindade, Tratado Internacional dos Direitos Humanos, 1997, vol. I, pg. 430-434; e Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Internacional dos Direitos Humanos, 2007, pg. 80-93.

A Carta Constitucional de 1988 representou um grande avanço no processo

de redemocratização do Brasil ao elencar como direitos fundamentais como fundamento

do modelo brasileiro de Estado Democrático de Direito. Esse avanço também, de forma

reflexa, alcançou também a matéria quanto ao posicionamento do Brasil frente ao

cenário internacional, como na elevação do princípio da dignidade da pessoa humana

(art. 1º, III, CF), e o princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, CF) como

princípios fundamentais da República Federativa do Brasil.

A Constituição Federal de forma inédita, em nossa história constitucional,

adotou, por conta da essencialidade normativa de seus dispositivos, um sistema aberto

de direitos fundamentais – como o já defendido bloco de constitucionalidade -

principalmente com o acima citado §2º do art. 5º da Constituição: Os direitos e garantias

expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios

por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa seja

parte. (grifo nosso)

Conforme o destacado acima, os tratados internacionais também se inserem

neste contexto11. Mas nesse ínterim que se passou desde a promulgação da Lei Maior de

1988 interpretações, das mais diversas, se fizeram acerca da incorporação dos tratados

internacionais de direitos humanos no ordenamento brasileiro, seja quanto ao status

normativo dos dispositivos desses tratados ou mesmo quanto ao plano de aplicabilidade

dos mesmos.

Tentativas de pacificar referida controvérsia que se instaurou na

jurisprudência e na doutrina ocorreram. A principal delas, e com a qual trouxeram

significativas mudanças, se deu com a Emenda Constitucional nº 45/2004 (chamada de

Reforma do Judiciário).

Inseriu referida Emenda mais dois parágrafos ao artigo 5º da Constituição

Federal, com as seguintes redações: Art. 5º: §3º: Os tratados e convenções

internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos

membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. §4º: O Brasil se submete à

jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.

Eis que inevitáveis questionamentos surgem: os tratados internacionais de

direitos humanos ratificados anteriormente à EC nº 45 possuem qual status hierárquico?

11 Para maiores discussões, ver item 1.5, deste trabalho.

Os mesmos tratados precisariam passar por nova apreciação, conforme a estabelecida no

§3º do artigo 5º da CF/88?

De toda sorte, hoje há na doutrina e na jurisprudência uma grande discussão

do tema quanto ao status normativo dos tratados e convenções de direitos humanos, que

pode ser sistematizada em quatro vertentes, as quais sejam:

a) a corrente que reconhece natureza supraconstitucional (supranacional)

dos tratados internacionais de direitos humanos;

b) a vertente que atribui caráter de lei ordinária (legalidade) aos tratados de

direitos humanos;

c) o posicionamento que estabelece o caráter de supralegalidade aos

tratados de direitos humanos; e por fim

d) a vertente que reconhece o status de constitucionalidade dos tratados de

direitos humanos.

Por ora, nos reservaremos a descrever cada uma das teorias acima referidas

e seus empregos, para então opinarmos quanto ao nosso entendimento.

A primeira destas teorias, a da supraconstitucionalidade (ou

supranacionalidade) dos tratados de direitos humanos, talvez seja a mais radical entre

todas as demais correntes.

No Brasil, seu emérito defensor é o professor Celso D. Albuquerque de

Mello, para quem, mesmo a atividade primacial e suprema Poder Constituinte estaria ela

subordinada ao Direito Internacional, por sua vez, também as normas provenientes dos

tratados de direitos humanos.

Referida doutrina se coaduna com o monismo internacionalista kelseniano,

o qual referendava primazia ao direito internacional em detrimento ao direito interno,

admitindo ao primeiro supremacia hierárquica.

A dificuldade em acompanhar esse posicionamento estaria em ultrapassar

princípios como o da supremacia formal e material da Constituição os quais repercutem

sobre todo ordenamento jurídico. “Entendimento diverso anularia a própria

possibilidade do controle de constitucionalidade desses diplomas internacionais”

(MENDES, MÁRTIRES e GONET, 2008, pg. 694).

A segunda vertente, da ordinariedade dos tratados internacionais foi adotada

pelos tribunais especialmente a partir do Recurso Extraordinário 80.004/SE, relator

Xavier de Albuquerque, cujo voto vencido defendia a tese do primado dos tratados

internacionais face à legislação infraconstitucional, conforme jurisprudência anterior.

Na ocasião, após voto-vista do Ministro Cunha Peixoto, defendeu este a tese

que o ato normativo internacional – ação em que se discutia sobre a Lei uniforme de

Genebra sobre letras de câmbio e notas promissórias a qual se encontrava em colisão

normativa com o Decreto 427/69. A tese da paridade normativa dos tratados

internacionais com as leis ordinárias brasileiras prosperou a partir de 01/06/1977.

Tal valor paritário, agora pertinente aos tratados internacionais, fora

justificado com a aplicação da regra geral de solução normativa para as antinomias,

desta forma, a lex posterior derrogat legi priori, uma vez que inexistia na Constituição,

há época, critério para resolução de conflito desta ordem.

Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal, agora sob a égide da

Constituição de 1988, no Habeas Corpus 72.131/RJ12, de relatoria do Ministro Moreira

Alves, só que agora discutindo ação cuja matéria discutia-se tema relacionado aos

tratados internacionais de direitos humanos, mais especificamente na prisão civil do

depositário infiel na alienação fiduciária em garantia.

Em questão, debatia-se o conflito existente entre o art. 7 (7) do Pacto de San

José da Costa Rica13 e o Decreto-Lei nº 911/69, o qual equipara o devedor fiduciante ao

depositário infiel para fins de prisão civil. Na decisão fora ratificado a jurisprudência da

paridade dos tratados internacionais ao mesmo patamar de lei ordinária, porém o

argumento agora seria outro, o de que, por ser norma geral, a norma do Pacto não teria o

condão de revogar a legislação pertinente ao Decreto-Lei 911/69, a qual teria maio grau

de especialidade14.

Em julgado recente, após a EC nº 45/2004 o STJ, em Recurso Ordinário em

Habeas Corpus 19975/RS, de relatoria do Min. Teori Albino Zavascki fora referendada

a teoria da ordinariedade dos tratados internacionais, em questão um tratado

12 Ver também ADIn nº 1.480-3/DF em que se debateu a constitucionalidade da Convenção nº 158 da OIT.13 Art.7º - Direito à liberdade pessoal

7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar.

14 Veja-se referido acórdão: Habeas Corpus. Alienação fiduciária em garantia. Prisão civil do devedor como depositário infiel. – Sendo o devedor, na alienação fiduciária em garantia, depositário necessário por força de disposição legal que não desfigura essa caracterização, sua prisão civil, em caso de infidelidade, se enquadra na ressalva contida na parte final do art. 5º, LXVII, da Constituição de 1988. – Nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária o disposto no § 7º da Convenção de San José da Costa Rica. Habeas Corpus indeferido, cassada a liminar concedida. (HC 72.131/RJ, rel. Min. Moreira Alves)

internacional de direitos humanos, mais uma vez o Pacto de San José da Costa Rica, no

tocante ao dispositivo quanto à impossibilidade de prisão civil por dívida15.

A se somarem aos argumentos citados, para os defensores de tal corrente, a

própria Constituição de 1988, mais especificamente no art. 102, III, b, da CF/88, que

dispõe sobre a competência recursal do STF em apreciar, mediante Recurso

Extraordinário, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de tratado

ou lei federal. Outrossim, estaria a Constituição equiparando os tratados à lei federal.

Em outro artigo (art.105, III, a, da CF), a Constituição também teria

realizado a mesma sistemática ao atribuir ao Superior Tribunal de Justiça competência

recursal quando a decisão recorrida contrariar tratado ou lei federal.

Para os defensores da terceira vertente, que consideram que os tratados de

direitos humanos possuem natureza supralegal, referidas normativas internacionais

guardariam caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais.

“Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam

afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no

ordenamento jurídico” (MENDES, MÁRTIRES e GONET, 2008, pg. 705).

Tal tese fora levantada no RHC nº 79.785/RJ de relatoria do Min. Sepúlveda

Pertence, em questão discutia-se a admissão do princípio do duplo grau de jurisdição

como norma constitucional16. A esse voto se seguiram outros julgados que, mais tarde,

15 Segue trechos da decisão do recurso susomencionado: Recurso Ordinário em Habeas Corpus. “Prisão civil de depositário infiel. Alienação das cotas da sociedade pelo depositário. Transferência do encargo atrelada à autorização judicial. Possibilidade de decretação da prisão mesmo após o advento da EC 45/2004, que introduziu o §3º no art. 5º da Constituição Federal. Penhora em execução fiscal. (...) 4. Quanto aos tratados sobre direitos humanos preexistentes à EC 45/2004, a transformação da sua força normativa – de ordinária para constitucional – também supõe a observância do requisito formal de ratificação pelas Casas do congresso, por quórum qualificado de três quintos. Tal requisito não foi atendido, até a presente data, em relação ao Pacto de São José da Costa Rica (...); 5. (...). Trata-se de exceção à regra geral segundo a qual os tratados internacionais retificados pelo Brasil incorporam-se ao direito interno como lei ordinária”. (grifo nosso)

16 Mais precisamente, no que diz respeito ao dispositivo inserto no art. 8, 2, h da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Assim se manifestou Pertence: “Certo, com o alinhar-me ao consenso em torno da estrutura infraconstitucional, na ordem positiva brasileira, dos tratados a ela incorporados, não assumo compromisso logo – como creio ter deixado expresso no voto proferido na ADInMc 1.480 – com o entendimento, então majoritário – que, também em relação às convenções internacionais de proteção dos direitos fundamentais – preserva a jurisprudência que a todos equipara hierarquicamente às leis. Na ordem interna, direitos e garantias fundamentais o são, com grande frequência, precisamente porque – alçados ao texto constitucional – se erigem em limitações positivas ou negativas ao conteúdo das leis futuras, assim como à recepção das anteriores à Constituição (...) Se assim é, à primeira vista, parificar às leis ordinárias os tratados a que alude o art. 5, § 2º, da Constituição, seria esvaziar de muito do seu sentido útil a inovação, que, malgrado os termos equívocos do seu enunciado, traduziu uma abertura significativa ao movimento de internacionalização dos direitos humanos”. (RHC 79.785/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 22/11/2002)

mudaria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, mediante mutação

constitucional17, a partir do RE 466.343/SP, em que ficou transparente o novo

posicionamento que aquele tribunal adotaria quanto à hierarquia normativa dos tratados

internacionais.

No Recurso acima enumerado, outra vez, o Tribunal se debruçaria sobre o

tema da prisão civil do depositário infiel em alienação fiduciária. O auge argumentativo

desta nova orientação deu-se com o voto-vista do Min. Gilmar Mendes18.

Com o novo posicionamento do STF, consoante o que advoga Luiz Flávio

Gomes, houve a formação de uma “nova pirâmide normativa”, agora compreendendo o

ordenamento jurídico três patamares, os quais assim estariam escalonados: na base

estariam todo aparato normativo da ordinariedade das leis; no topo, estariam as normas

constitucionais (também os tratados de direitos humanos aprovados pelo procedimento

do §3º do art. 5º da CF); e numa posição intermediária às outras, as normas de DIDH

não aprovadas de acordo com o §3º do art. 5º da CF/88 (GOMES, 2008).

Por fim, a quarta vertente defende a paridade constitucional imanente aos

tratados de direitos humanos. Esta corrente, defendida na doutrina brasileira por A.A.

Cançado Trindade, Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli , Luiz Flávio Gomes e Dirley da

Cunha, finca suas bases de defesa, primeiramente, nas disposições constitucionais como

o (super)princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da CF) e da prevalência

dos direitos humanos (art. 4, II, da CF). Estes princípios fundamentais por meio de uma

interpretação teleológica e sistemática envidariam de força constitucional os tratados

internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro, consoante o preceituado no §2º do art.

5º.

17 Por mutação constitucional entende-se que seja “o processo informal de mudança das constituições que atribui novos sentidos aos seus preceitos, significados dantes não contemplados” (BULOS, 2007, pg. 321). Ou seja, “nada mais são que as alterações semânticas dos preceitos da Constituição, em decorrência de modificações no prisma histórico-social ou fático-axiológico em que se concretiza a sua aplicação” (MENDES, MÁRTIRES e GONET, 2008, pg. 130).

18 Veremos diversos trechos deste respeitável voto o qual referenda a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos. “Assim, a premente necessidade de se efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional tornou imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. Era necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. (...) Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante”. (RE 466.343/SP, voto do Min. Gilmar Mendes)

A cláusula de abertura material da Constituição, no caso do §2º do art. 5º da

CF/88 inseriu os tratados internacionais como integrantes do catálogo normativo

constitucional ao claramente expor que “os direitos e garantias expressos nesta

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele

adotados, ou tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja

parte”. As normas do DIDH, uma vez ratificadas pelo Estado brasileiro, seriam normas

constitucionais de índole material, o suficiente para que as mesmas já façam parte da

Constituição. Ademais, se as mesmas normas do DIDH passassem pelo crivo

procedimental inserto no §3º do art.5º da CF as mesmas seriam, também, formalmente

constitucionais.

A regência dos direitos fundamentais não se limitaria ao campo da forma.

Para tais fontes normativas internacionais, antes importaria a

materialidade/fundamentalidade principiológica das mesmas. Razão porque os tratados

internacionais comuns – os que não versam sobre direitos humanos – não possuírem

estatura de norma constitucional, mas de lei ordinária, uma vez ratificados.

Ademais, a interpretação da constitucionalidade dos tratados internacionais

estaria em consonância com o princípio da máxima efetividade (ótima concretização)

das normas constitucionais, haja vista que “a nenhuma norma constitucional se pode dar

interpretação que lhe retire ou diminua a razão de ser” (PIOVESAN, 2007, pg. 59).

Corolários desta vertente seriam os temas da aplicabilidade imediata (§1º do

art. 5º, da CF) dos tratados internacionais de direitos humanos e impossibilidade, por

meio de Emenda Constitucional, tendente a diminuir ou suprimi-los (art. 60, §4º, da

CF), vez que coabitariam entre os chamados direitos e garantias fundamentais.

Acrescente-se ainda que os defensores desta vertente admitem que, na

interpretação das normas do DIDH deve-se aplicar, como decorrência dos princípios da

dignidade da pessoa humana e da prevalência dos direitos humanos, o intérprete deve

primar pela norma mais favorável ao ser humano.

7.AS NORMAS MATERIALMENTE CONTITUCIONAIS E O PRIMADO DA

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Parece incontestável que os direitos fundamentais não se esgotam

unicamente no texto constitucional. A abertura material dos direitos fundamentais,

consoante o já comentado §2º do art. 5º da CF, - além de estar presente de forma

expressa na Constituição – reconhece constitucionalidade material (substancial) aos

tratados internacionais em matéria de direitos humanos, bem como aos direitos

implícitos.

Aqui convergem, antes, conceitos como constitucionalização e

fundamentalidade. Por constitucionalização entende-se a “incorporação de direitos

subjetivos do homem em normas formalmente básicas” (CANOTILHO, 1993, pg. 498).

Já o segundo conceito (fundamentalidade), seria a atenção especial depositada na

proteção dos certos direitos, quer num sentido formal ou material (JÚNIOR, 2008).

A fundamentalidade formal geraria consigo, como assevera J. J. Canotilho,

conseqüências, as quais sejam: “(1) as normas consagradoras de direitos fundamentais,

enquanto normas fundamentais, são normas colocadas no grau superior da ordem

jurídica; (2) como normas constitucionais encontram-se submetidas aos procedimentos

agravados de revisão; (3) como normas incorporadoras de direitos fundamentais

passam, muitas vezes, a constituir limites materiais da própria revisão (cfr. CRP, art.

288. 1º, d e “e”); (4) como normas dotadas de vinculatividade imediata dos poderes

públicos constituem parâmetros materiais de escolhas, decisões, acções e controlo, dos

órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais (cfr. afloramento desta ideia no art.

18.71 da CRP)”. (CANOTILHO, 1993, pg. 499)

Por sua vez, num sentido material, a fundamentalidade está associada aos

contornos dados pelo conteúdo dos direitos (JÚNIOR, 2008). A fundamentalidade

material de uma norma constitucional não estaria, necessariamente, associada a sua

expressa disposição em uma Constituição.

Ademais, reconhece o §2º do art. 5º da CF a constitucionalidade material

dos direitos fundamentais sejam eles decorrentes dos tratados internacionais em direitos

humanos ou de princípios implícitos, conforme acima visto.

Observando a inteligência do §3º do art.5º da CF, a qual teve sua redação

dada com a EC nº 45/2004, não pode haver leitura deste dispositivo se não for feita a

partir da leitura do §2º do art.5º da CF. Veio este inserir norma procedimental daquilo

que já era sabido ter reconhecimento constitucional. Quer dizer, apesar de ser um norma

procedimental, não retira ela a constitucionalidade material antes já presente no tratado

internacional em direitos humanos.

O §3º do art. 5º foi aprovado como uma tentativa de solucionar (e dar

contornos mais nítidos) o tão acirrado debate jurisprudencial e doutrinário a respeito da

hierarquia dos tratados internacionais em direitos humanos. Solução para muitos pontos

não ocorreram, talvez tenham sido acrescentados mais alguns, chegando muitos

duvidarem da sua constitucionalidade – invocando então a tese do alemão Otto Bachoff,

das normas constitucionais inconstitucionais – vez que ele (o §3º do art. 5 da CF)

“violaria os limites materiais à reforma constitucional” (SARLET, 2007, pg. 153).

Assim, veja-se sua redação: Art. 5º. §3º: Os tratados e convenções

internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do

Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos

membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Observa-se, de pronto, a semelhança existente entre o parágrafo

susomencionado e o §2º do art. 60 da CF, o qual prevê o procedimento de reforma

(emenda) à Constituição. Não por acaso, de forma expressa, o §3º do art. 5º mencionar

serem equivalentes os tratados internacionais sobre direitos humanos às emendas

constitucionais.

Vê-se também que ficou mais nítida a separação da fundamentalidade dos

tratados internacionais formal e materialmente constitucionais e outros materialmente

constitucionais. Ou seja, aqueles tratados que não passassem pelo crivo de aprovação

inserto no §3º do art. 5º, seriam apenas materialmente constitucionais, o que não os

tornam menos ou mais constitucionais.

Ademais algumas incongruências – talvez incontornáveis, senão através de

uma nova redação ao §3º do art. 5º da CF – vale a pena ressaltar o avanço do legislador

constituinte-derivado na redação §3º ao expressamente dotar os tratados internacionais

de direitos humanos como distintos dos tratados tradicionais. Reconhece-se sua

especialidade perante os demais tratados em virtude de seu conteúdo, visto que,

diferentemente dos tratados comuns os quais regulamentam interesses adstritos aos

Estados-parte, os tratados internacionais em direitos humanos refletem a assunção de

uma obrigação do Estado para com indivíduos.

Como afirma, quase em forma de desabafo, A.A. Cançado Trindade: “Com

efeito, não é razoável dar aos tratados de proteção dos direitos do ser humano (a

começar pelo direito fundamental à vida) o mesmo tratamento dispensado, por exemplo,

a um acordo comercial de exportação de laranjas ou sapatos, ou a um acordo de isenção

de vistos para turistas estrangeiros. À hierarquia de valores, deve corresponder uma

hierarquia de normas, nos planos tanto nacional quanto internacional, a ser interpretadas

e aplicadas mediante critérios apropriados. Os tratados de direitos humanos têm um

caráter especial, e devem ser tidos como tais”. (TRINDADE, 1999, pg. 47)

Aos tratados internacionais comuns se reconheceria a hierarquia

infraconstitucional, porém supralegal. Para Flávia Piovesan: “Esse posicionamento

coaduna com o princípio da boa-fé, vigente no direito internacional (o pacta sunt

servanda), e que tem como reflexo o art. 27 da Convenção de Viena, segundo a qual

não cabe ao Estado invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o

não-cumprimento de tratado19”. (PIOVESAN, 2007, pg. 60)

Outro aspecto relevante que houve com a inserção do novo parágrafo do art.

5º está na rejeição daquilo que os tribunais, majoritariamente, interpretavam possuir os

tratados internacionais em direitos humanos status de lei ordinária.

Apesar de não haver disposição explícita sobre isso – até por que

desnecessária, visto a existência do §2º do art. 5º da CF em dar resposta suficiente para

a constitucionalidade desta espécie de tratados – o legislador – como acima afirmado –

reconheceu a especialidade desses tratados, que, por sua vez, não possuem a mesma

estatura normativa no ordenamento jurídico brasileiro. O legislador teve apenas uma

visão prospectiva, na medida, não só os tratados que fossem ratificados pelo Brasil a

partir da data em que foi promulgada a EC. nº 45/2004 poderiam passar pelo iter

procedimental inserto no §3º do art. 5º, mas também todos os tratados internacionais em

direitos humanos anteriormente ratificados e incorporados no ordenamento brasileiro.

Compartilhamos com a opinião de Flávia Piovesan: “O quorum qualificado

está tão somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente

constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” dos

tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno”. (PIOVESAN, 2007, pg. 72)

Eis uma verdadeira questão teratológica! É sabido também que, com o

advento do novo parágrafo do artigo 5º da CF, pode-se vislumbrar a ocorrência da

quebra da harmonia do sistema de integração dos tratados de direitos humanos no

Brasil, na medida em que “cria ‘categorias’ jurídicas entre os próprios instrumentos

internacionais de direitos humanos retificados pelo governo, dando tratamento diferente

para normas internacionais que têm o mesmo fundamento de validade” (MAZZUOLI,

2005).

Conquanto não tenha sido empregada a melhor técnica legislativa na

aprovação do §3º do art.5º da CF, é louvável o avanço estabelecido pelo o mesmo em

19 Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, art. 27: Um Estado não pode invocar disposições de seu Direito interno para eximir-se do cumprimento das regras de um determinado tratado.

realocar os tratados de direito em lugar de merecido destaque em face aos demais

tratados clássicos. Mas outros questionamentos, como quanto à corrente adotada (e mais

apropriada) à realidade constitucional, ainda merecem acurado aprofundamento, visto

que são eles que tanto dividem doutrina e jurisprudência.

Outro relevante argumento a se somar na defesa da tese da

constitucionalidade normativa dos Tratados em direitos humanos estaria no primado da

dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), o qual, como um princípio

fundamental da República Brasileira seria o responsável por “compendiar a unidade

material da Constituição” (BONAVIDES, 2001, pg.233). Ou seja, é no princípio da

dignidade humana que os postulados da unidade e da coerência entre as normas

constitucionais e em todo ordenamento infraconstitucional que a ele deve obediência

(princípio normogenético). O que torna incontestável a força imperativa,

fundamentadora e interpretativa deste princípio (GOMES, 2008).

O reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos o qual recebe a

legitimidade de ser humano, independentemente de qualquer condição prévia, com o

exercício e a proteção de sua dignidade, é hoje o valor sobre o qual orbitam todos os

outros valores (normas) da Constituição. Em seu reconhecimento principiológico, a

dignidade da pessoa humana comporta-se, consoante a doutrina de Robert Alexy, como

um mandado de otimização na medida em que permite uma mais ampla forma de

realização de algum comando normativo (ALEXY, 2008, pg. 139).

Pois bem, a um só tempo, percebe-se que ao conceito (ou discurso em

defesa) do princípio da dignidade da pessoa humana – dado estar inserido como

categoria axiológica aberta – não se pode atribuir conceito fechado, fixista, vez que, por

sua qualidade como princípio basilar a todo ordenamento jurídico, tal tentativa se

mostraria afrontosa à própria percepção do Estado Democrático de Direito pluralista

(SARLET, 2006).

Com efeito, à dignidade da pessoa humana, enquanto tentativa de sua

conceituação, remonta (quase) sempre ao plano existencial do indivíduo como uma

qualidade intrínseca e imanente ao mesmo. Outrossim, tal noção do valor dignidade da

pessoa assimila-se como uma ordem anterior ao Direito, como um direito imanente ao

indivíduo.

Muito embora se reconheça a originalidade e independência da dignidade da

pessoa humana, seria, em verdade, um retrocesso retirar da esfera do Direito o papel que

a este cabe, em proteger (afirmar) e atender às demandas que exigem repressão às ações

atentatórias aos direitos humanos violadores (SARLET, 2006). Desse modo, é papel do

juiz apreciar as demandas as quais, ainda que não encontrem regramento expresso no

ordenamento jurídico, se mostrem conflitantes à força normativa dada ao valor

primacial da dignidade da pessoa humana.

E mais, é dever do juiz ponderar sobre os valores que permeiam as causas.

Por ponderação se entende ser aquela técnica de decisão a qual, fugindo da tradicional

subsunção normativa tradicional, tem por ocupação a solução de conflitos de razões,

valores, bens e interesses protegidos por normas constitucionais. Seu propósito seria a

“solução de conflitos normativos de maneira menos traumática para o sistema como um

todo, de modo que as normas em oposição continuem a conviver, sem a negação de

qualquer delas” (BARCELLOS, 2008, pg. 57).

Valendo-se de um poderoso recurso hermenêutico na interpretação das

normas de direitos humanos, o intérprete (ou a sociedade dos intérpretes) deve dar por

superado o famigerado dilema de primazia do direito interno ou internacional. No

contexto hodierno, fica assegurado ao indivíduo a aplicação da norma mais protetiva e

garantidora de seus direitos (princípio pro homine ou favor debilis).

A primazia da norma mais favorável ao ser humano (às vítimas20, ao

consumidor21) corresponde ao “diálogo” travado entre as fontes internacionais e internas

(MAZZUOLI, 2009). Esse diálogo permite a comunicabilidade e a complementariedade

entre as normas de Direitos Humanos, o que estabelece entre os sistemas internos e

internacionais verdadeira simbiose (GOMES, 2008).

Na ordem constitucional brasileira esse diálogo já é admitido, na medida em

fica garantida a prevalência dos direitos humanos (art.4º, II, da CF), independentemente

de qual fonte essa norma se origine. Por meio da cláusula aberta presente no §2º do art.

5º da CF/88 se reconhece a constitucionalidade material das normas do DIDH, logo,

qualquer instrumento internacional que preze com mais garantias e proteção ao ser

humano terá primazia sobre qualquer norma, seja ela constitucional ou

infraconstitucional.

Vejamos o que preceitua o art. 29, b, - denominada cláusula de reenvio - da

Convenção Americana de Direitos Humanos: “Artigo 29 - Normas de interpretação:

20 Ver apontamentos precursores feitos por A.A.Cançado Trindade, especialmente em seu Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos, Vol. 1, pg. 434-436.21 Em artigo publicado na Revista de Direito do Consumidor 2009 - RDC 70, a professora Cláudia Lima Marques em parceria com o jurista Valério Mazzuoli levantam esta tese a partir da ADIn nº 2.591, em que se aplica o princípio da norma mais favorável ao consumidor na hipótese do depositário (consumidor) infiel em leasing ou alienação fiduciária de garantia bancária.

Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: b)

limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos

em virtude de leis de qualquer dos Estados-partes ou em virtude de Convenções em que

seja parte um dos referidos Estados”

Pois bem, como é de fácil aferição, também o próprio instrumento

internacional abdica de seu jus cogens, na medida em que o que se releva é aquela

norma que mais vá favorecer ao ser humano no exercício de sua liberdade e garantis.

Essa norma de reenvio estabelece um sistema de vasos comunicantes entre as fontes

internacionais e nacionais, tendo sempre como norte a proteção da dignidade da pessoa

humana. Por exemplo, vejamos o seguinte caso da prisão civil do depositário infiel em

alienação fiduciária, sobre o qual a jurisprudência brasileira por diversas vezes já se

debruçou sobre o tema, especialmente no RE 466.343/SP, o STF se posicionou

favorável à aplicabilidade da proibição da prisão civil por dívida – com exceção do

devedor em alimentos -, vez que a Convenção Americana de Direitos Humanos, em seu

art. 7, §7º veda expressamente a prisão civil por dívidas, dando por inválida a norma do

Decreto-Lei 911/69 a qual, por ser mais restritiva – logo menos favorável à liberdade

humana -, permitia a prisão civil do devedor infiel em alienação fiduciária.

Como movimento reflexo da limitação dos poderes e a expansão dos

direitos fundamentais nos mais diversos ordenamentos jurídicos, podemos apontar a

relativização do conceito de soberania como um fenômeno recente do Direito

Constitucional, constatado, principalmente, na segunda metade do Século XX. Numa

fórmula cartesiana, asseveramos que a normatização dos direitos fundamentais é quase

que inversamente proporcional ao conceito de soberania.

Por soberania, entende-se que suas origens remontam ao propósito de

oferecer fundamento jurídico às conquistas territoriais no Novo Mundo por parte dos

Estados europeus22 que, de forma incipiente, concentravam forças e ganhavam

legitimidade (FERRAJOLI, 2007). A legitimidade dos Estados nacionais em suas novas

conquistas estava intimamente ligada à noção de soberania. Esta seria “poder supremo

que não reconhece outro acima de si (suprema potetas superiorem non recognosens si).

Bem apontado por Luigi Ferrajoli como manifestações dessa noção de

soberania são os conceitos de soberania interna e soberania externa. O primeiro - como

a própria terminologia já tem muito a dizer – é a face sobre a qual o Estado volta-se para 22 Destaca-se aqui a falsa “missão” cultural por parte dos Estados europeus em levar aos povos primitivos colonizados o modelo de ‘estado civil’ àqueles povos que se encontravam sob condições do “estado da natureza”.

seus cidadãos, impondo a estes a unificação e reconhecimento deste Estado como única

fonte normativa legitima a pacificar os conflitos internos. Já a soberania externa, cujo

conceito não perde a noção de poder supremo incontrastável aos demais poderes, porta-

se frente aos demais Estados - comunidade mundial (communitas orbis) - também

detentores de seus respectivos poderes soberanos.

Diversos foram teóricos prosélitos ao princípio máximo da soberania,

dentre eles Jean Bodin, Hugo Grotius e Thomas Hobbes. Há época (Século XVII), os

Estados nacionais ganham novos contornos, na medida em que os mesmos,

progressivamente, concentram mais poderes, tornando-se mais “absolutos”, bem como,

é com esse novo modelo de Estado que, com a Reforma Protestante, ocorre o processo

de secularização do Estado. É justamente nessa época que por parte da soberania

externa, o Estado se “absolutiza”, cujo ápice encontra-se na primeira metade do século

XX (FERRAJOLI, 2007).

Nesse momento histórico, tamanha é a concentração de poderes por parte do

Estado que ganham espaço as teorias da personificação do Estado a ser preenchida pelo

modelo organicista. A decisão soberana do governante, neste momento, confunde-se

como fonte única e incontestável de direitos, como se legalidade stricto sensu se

confundisse com legitimidade.

Como reposta à excessiva concentração de poderes nas mãos do um único

representante (ou classe) e ultrapassando os entraves das relações estáticas entre

soberano e súditos, diversos foram os acontecimentos em prol da limitação desse poder

soberano - como em momento anterior comentamos (item 1.) – principalmente após a

Revolução liberal francesa. Diversas cartas constitucionais seguiram a este, então,

fenômeno que acabou se tornando realização através de afirmações de direitos

fundamentais (naquele momento, direitos de primeira dimensão) projetados aos

cidadãos e de princípios como o da legalidade (legítima) e da separação de poderes,

tomando o Estado forma nítida de um Estado de Direito.

Ainda que, por enquanto, essa limitação do poder soberano ocorresse no

plano da soberania interna, já é o suficiente para proporcionar o mesmo que a negação

do princípio da soberania em seu sentido original de poder absoluto. A crescente

convergência do indivíduo da periferia ao centro valorativo da Constituição, realizada

por meio da afirmação dos direitos fundamentais, tornou-se uma auto-limitação

intransponível.

Como se vê, o programa dos direitos fundamentais (humanos) estava bem

estruturado internamente, mas, paralelamente, a soberania externa percorria outro

caminho. A face externa da soberania do Estado, progressivamente, não encontra

obstáculos a sua desenfreada luta em conquistas por territórios (especialmente colônias

de exploração) e liderança no campo da economia, por parte dos países capitalistas, em

defesa dos conglomerados industriais que começavam a se formar, ignorando, na

maioria das vezes os direitos humanos em sua perspectiva além-estado. Bem demonstra

Hannah Arendt tal panorama: “Os Direitos do Homem, supostamente inalienáveis,

mostraram-se inexequíveis — mesmo nos países cujas constituições se baseavam neles

— sempre que surgiam pessoas que não eram cidadãos de algum Estado soberano. A

esse fato, por si já suficientemente desconcertante, deve acrescentar-se a confusão

criada pelas numerosas tentativas de moldar o conceito de direitos humanos no sentido

de defini-los com alguma convicção, em contraste com os direitos do cidadão,

claramente delineados”. (ARENDT, 1989, pg. 327).

Haja vista a não existência de nenhuma via que proclame a defesa da

universalidade dos direitos humanos (fundamentais) num plano acima dos Estados-

nações, foi na primeira metade do século XX que a soberania externa alcançou seu

ápice. O profundo desinteresse com as causas humanitárias sempre esbarrava com a

evocação do poder legítimo dos Estados em exercerem sua soberania e seu poder de

intervenção, maior exemplo disso se deu com o Estado máximo totalitário nazista.

Houve, portanto, um esvaziamento do direito (enquanto em sua perspectiva de justiça)

frente às relações internacionais, sob o postulado do “princípio da efetividade” em que o

direito cede em face dos fatos (FERRAJOLI, 2007).

No pós-guerra, com todas as lembranças das atrocidades direcionadas à

dignidade da pessoa humana (seja ela cotejada aos grupos ou indivíduos em particular),

era notória a necessidade em também limitar discricionariedade absoluta com que os

lideres das nações dirigiam seus Estados. Para tanto, necessário seria repensar a

soberania, então absoluta, atribuída aos Estados.

Com a carta da ONU, de 1945, e a Declaração Universal dos Direitos

Humanos, em 1948, o mundo conheceu uma nova realidade, até então pouco evocada –

e, quando suscitada, de forma inconsistente -, da supremacia da dignidade da pessoa

humana e o reconhecimento do indivíduo como novo sujeito do Direito Internacional.

Referindo-se aos dois documentos internacionais, assim assevera Luigi

Ferrajoli: “Esses dois documentos transformaram, ao menos no plano normativo, ordem

jurídica do mundo, levando-o do estado de natureza ao estado civil. A soberania,

inclusive a externa, do Estado – ao menos em princípio – deixa de ser, com eles, uma

liberdade absoluta e selvagem e se subordina, juridicamente, a duas normas

fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos”. (FERRAJOLI,

2007, pg. 39-40).

Impende, neste momento, uma indagação. O que sobrou da soberania?

Muito embora esteja inserta na Constituição de 1988 como um dos

princípios fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 1º, I), como afirma L.

Ferrajoli “isso não passa de uma simples homenagem verbal ao caráter democrático-

representativo dos atuais ordenamentos” (FERRAJOLI, 2007, pg. 33), uma vez que, por

soberania se entende um poder absoluto, sem reservas ou limites, porém não é isso que

se aduz na interpretação da própria Lei Fundamental de 1988. Senão vejamos o

parágrafo único do art. 1 da CF: Art. 1º (...) Parágrafo único: Todo o poder emana do

povo, que o exerce por meio de representantes eleitos diretamente, nos termos desta

Constituição. (grifo nosso)

Ora, se a própria soberania popular se encontra condicionada à obediência

aos termos da Constituição, a mesma deve antes respeito ao princípio basilar da

dignidade da pessoa humana, bem como ao princípio da prevalência dos direitos

humanos.

Portanto, já não prospera o argumento insistente em posicionar a soberania à

frente de valores, como o princípio da dignidade humana, os quais dão unidade e

coerência a todo ordenamento jurídico.

5. CONCLUSÃO

A Constituição de 1988 se permitiu abrir seu catálogo de direitos

fundamentais também aos direitos humanos insertos nos tratados internacionais. Não só

concedeu-lhes o status de norma constitucional de índole material como também dotou-

lhes com a prerrogativa de aplicabilidade imediata dada a todos os direitos e garantis

fundamentais (§1º art. 5º da CF) e os incluiu no chamado núcleo essencial da

Constituição (§4º art. 60 da CF).

Muito embora as tensões presenciadas entre as diversas teses reproduzidas

na doutrina e jurisprudência a respeito da hierarquia normativa dos tratados

internacionais de direitos humanos nos posicionamos favoráveis à vertente que

reconhece aos tratados internacionais em matéria de direitos humanos a estatura de

normas constitucionais.

Essa posição ainda mais se justifica no tocante às normas supranacionais de direitos fundamentais trabalhistas. Com efeito, esta tese é a única, entre as outras posições – que reverbera o valor da dignidade da pessoa humana, buscando dar aos direitos fundamentais trabalhistas uma máxima efetividade, haja vista que, uma vez ratificados pelo Brasil, pois tais tratados teriam aplicabilidade imediata, podendo ser evocado por qualquer cidadão que se encontre em situação de restrição de sua dignidade.

o mais importante nessa discussão se concentra na proteção da pessoa

humana, e, para tanto, independente da origem da norma, na ponderação de valores, a

interpretação mais adequada será aquela que mais vá proteger o ser humano. Deve-se

estabelecer, portanto, um diálogo entre as fontes interna e internacionais com vistas à

dar primazia ao ser humano. Somente assim será possível construir uma ordem de

valores condizente à realidade social que muito têm a exigir proteção e respeito aos

direitos humanos como valores universais e indivisíveis merecedores de maior atenção e

afirmação.

REFERÊNCIAS

ACCIOLLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2006.

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição a aplicação dos princípios jurídicos. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

BARCELLOS, Ana Paula. Alguns Parâmetros Normativos para a Ponderação Constitucional. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elservier, 1993.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros editores, 1999.

_______, Teoria da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros editores, 2001.

BULLOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2004.

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2002.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998.

______, Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.

CAMPOS, German J. Bidart. Manual de la Constituición Reformada, Tomo I. Buenos Aires: EDIAR, 1996.

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

FIGUEIREDO, Patrícia Cobianchi. Hierarquia Normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Ordenamento Jurídico Brasileiro Antes e Após a Emenda Constitucional 45 de Dezembro de 2004. In: VULCANIS, Andréa; PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos: Fundamento, Proteção e Implementação. Curitiba: Juruá, 2007-2008.

FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GOMES, Luiz Flávio. O Estado Constitucional de Direito e a Nova Pirâmide Jurídica. São Paulo: Premier, 2008.

GUERRA, Sidney. Direitos Humanos na Ordem Jurídica Internacional e Reflexos na Ordem Constitucional Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.

JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Editora Juspodivm, 2008.

MARQUES, Cláudia Lima; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Consumidor-depositário infiel, os tratados de direitos humanos e o necessário diálogo das fontes nacionais e internacionais: a primazia da norma mais favorável ao consumidor. São Paulo: Revista de Direito dos Consumidor, nº 71, 2009, Editora Revista dos Tribunais, 2009.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional de Convencionalidade das Leis. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2009.

_______. A Incorporação Automática dos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no Ordenamento Brasileiro. Brasília: Revista de Informação Legislativa a.37, nº 148 out/dez 2000. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_147/r147-15.PDF. Acesso em: 29 de out. 2009.

_______. O Novo §3º do art. 5º da Constituição e sua Eficácia. Brasília: Revista de Informação Legislativa a.42, nº 167 jul/set. 2005. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_167/R167-08.pdf. Acesso em: 29 de out. 2009.

_______. Tratados Internacionais. São Paulo: Editora Juarez Freitas, 2001.

_______. Soberania e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Dois Fundamentos Irreconciliáveis. Brasília: Revista de Informação Legislativa a.37, nº 148 out/dez 2000. Disponível em: http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_156/R156-14.pdf. Acesso em: 05 de nov. 2009.

MELLO, Celso Duvivier de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público, Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 edição. São Paulo: Saraiva, 2008.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. Lisboa: Coimbra Editora, 2008.

_______, Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Lisboa: Coimbra Editora, 1997.

MORAES, Alexandre de. Tratados Internacionais na Constituição de 1988. In: AMARAL, Antônio Carlos Rodrigues do; VELLOSO, Carlos Mário da (Org.). Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. São Paulo: Lex Aduaneiras, 2005.

MORAIS, José Luís Bolzan; Streck. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Julex, 2001.

NETO, Miguel Josino. O Bloco de Constitucionalidade como Fator Determinante para a Expansão dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana. Teresina; ano 7, n. 61, jan. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3619>. Acesso em 17 set. 2009.

NIARADI, George Augusto. Conflito entre Norma Interna e Tratado Internacional. In: AMARAL, Antônio Carlos Rodrigues do; VELLOSO, Carlos Mário da (Org.). Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira. São Paulo: Lex Aduaneiras, 2005.

PIOVESAN. Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Saraiva, 2006.

RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2003.

SARLET, Indo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

_______, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2006.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27ª edição. São Paulo: Malheiros, 2006.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vol. 1 e 2. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1997.