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FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO E NEGÓCIOS DE SERGIPE NÚCLEO DE POS-GRADUAÇAO E EXTENSAO CURSO DE ESPECIALIZAÇAO EM PROGRAMA DA DISCIPLINA DISCIPLINA: TEORIA GERAL DO DIREITO DO TRABALHO PROFESSOR: Fernanda Duarte CARGA HORÁRIA: 12 horas/aula DATAS: 28 E 29 DE JANEIRO 2006 1 Ementa: Pós-Positivismo. Princípios. Regras. Dworkin, Alexy 2 Objetivos a) construir um panorama geral sobre o debate contemporâneo sobre o tema proposto; b) identificar as conseqüências fundamentais e repercussões práticas da adoção de uma concepção pós-positivista sobre o Direito; c) estabelecer os elementos necessários mínimos para a elaboração de uma futura reflexão crítica sobre as diferentes concepções sobre o Direito e suas respectivas derivações. 3 Conteúdo Programático: As visões clássicas sobre o Direito e o Pós-Positivismo: mudanças de paradigmas? A estrutura normativa do ordenamento jurídico: o a problemática dos Princípios e Regras o alguns princípios em especial Pós-positivismo e neoconstitucionalismo

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FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO E NEGÓCIOS DE SERGIPENÚCLEO DE POS-GRADUAÇAO E EXTENSAO

CURSO DE ESPECIALIZAÇAO EM

PROGRAMA DA DISCIPLINA

DISCIPLINA: TEORIA GERAL DO DIREITO DO TRABALHO PROFESSOR: Fernanda DuarteCARGA HORÁRIA: 12 horas/aulaDATAS: 28 E 29 DE JANEIRO 2006

1 Ementa: Pós-Positivismo. Princípios. Regras. Dworkin, Alexy

2 Objetivos

a) construir um panorama geral sobre o debate contemporâneo sobre o tema proposto;

b) identificar as conseqüências fundamentais e repercussões práticas da adoção de uma concepção pós-positivista sobre o Direito;

c) estabelecer os elementos necessários mínimos para a elaboração de uma futura reflexão crítica sobre as diferentes concepções sobre o Direito e suas respectivas derivações.

3 Conteúdo Programático:

As visões clássicas sobre o Direito e o Pós-Positivismo: mudanças de paradigmas? A estrutura normativa do ordenamento jurídico:

o a problemática dos Princípios e Regraso alguns princípios em especial

Pós-positivismo e neoconstitucionalismo A repercussão da adoção de uma concepção pós-positivista para metodologia da

interpretação do direito Destaques sobre as obras de Dworkin e Alexy Balanço crítico: entre ganhos e perdas

4 Procedimentos Metodológicos: Sessões expositivas e análise de caso (dinâmica de grupo).

5 Avaliação

Relatório sobre o desenvolvimento do Curso, descrevendo –se as atividades desenvolvidas, os

debates realizadas e consignando-se uma pequena análise crítica sobre o conhecimento

apresentado.

6 Bibliografia (básica recomendada)

ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, Universidad de Alicante, no. 5: p. 139-156, 1988.

_____. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.

_____. Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, mimeo [Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 11.12.98]

ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, a. 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7547>. Acesso em: 26 jan. 2006

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional . 17.ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

CASALMIGLIA, Alberto. Postpositivismo. Doxa, n. 21-I, p. 209-220, 1998. Disponível em: < http://www.cervantesvirtual.com/portal/DOXA/>. Acesso em: 25 jan. 2006.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998.

CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.

CRUZ, Luis M. La constitución como orden de valores. Granada: Comares, 2005.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério.São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 1997.

REIS, Jane Moreira dos. Breves notas sobre as implicações para a teoria do direito da adoção de uma perspectiva pós-moderna de ciência. Revista da Faculdade de Direito da UCP, Rio de Janeiro, n.01, p. 49-58, 1999

SANCHÍS, Luis Prieto. Sobre principios y normas: problemas del razonamiento juridico. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992.

SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004.

__________ . Jusnaturalismo e Juspositivismo: As Primas-Irmãs da Modernidade. Revista da Ajufe, Rio de Janeiro, v. 66, p. 109-121, 2001.

SILVA, F. D. L. L. ; REIS, J. M. . A estrutura normativa das normas constitucionais. Notas sobre a distinçaõ entre princípios e regras. In: Manoel Messias Peixinhos; Isabella Franco Guerra. (Org.). Os princípios da Constituição de 1988. 1 ed. Rio de Janeiro, 2001, v. 1, p. 3-24.

Suporte bibliográfico:

A ESTRUTURA DAS NORMAS CONSTITUCIONAISnotas sobre a distinção entre princípios e regras1

JANE REIS GONÇALVES PEREIRA2

FERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA3

"Quando comecei a escrever, sempre dizia a mim mesmo que minas idéias eram bastante superficiais - que se um leitor as desvendasse, me desprezaria. E, assim me disfarcei." Jorge Luis Borges, Esse ofício do verso

SUMÁRIOIntrodução.I) A estrutura normativa das normas constitucionais:

1) sobre princípios, regras e positivismo. 2) a distinção lógica ou qualitativa (forte) entre princípios e regras.3) a distinção quantitativa ou de grau (fraca) entre princípios e regras.

II) Palavras Finais: os critérios de identificação de princípios.Bibliografia.

Introdução.

As normas constitucionais encontram-se estruturadas normativamente sob a forma de princípios e de regras. Essa afirmação, em sua aparente simplicidade, pressupõe tomada de posição quanto a diversas questões, tendo implicações diretas no âmbito da interpretação constitucional.

1 Referência bibliográfica: SILVA, F. D. L. L. ; REIS, J. M. . A estrutura normativa das normas constitucionais. Notas sobre a distinçaõ entre princípios e regras. In: Manoel Messias Peixinhos; Isabella Franco Guerra. (Org.). Os princípios da Constituição de 1988. 1 ed. Rio de Janeiro, 2001, v. 1, p. 3-24.

2 Jane Reis Gonçalves Pereira é professora da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ; Doutora em Direito Público - UERJ; Juíza Federal.

3 Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva é professora do Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Gama Filho e dfa Faculdade de Direito da Universidade Católica de Petrópolis; Doutora em Ciências Jurídicas - PUC/RJ; Juíza Federal.

De fato, embora haja concordância razoável quanto ao caráter normativo dos princípios, o problema da sua conceituação e dos critérios de distinção com as regras envolve muita dúvida, sendo de capital importância para o delineamento do aspecto morfológico das normas constitucionais, o qual, por sua vez, tem repercussão direta na solução dos problemas hermenêuticos que as envolvem.4

É possível, entretanto, afirmar que as discussões se desenvolvem a partir de certas concepções que são compartilhadas pelas diversas teorias sobre o conceito e a natureza dos princípios. Os debates partem, como regra, do consenso acerca da normatividade e do maior grau de abstração dos princípios.

Nesse contexto, o presente estudo pretende sistematizar, em linhas gerais, o debate sobre a diferença entre princípios e regras, abordando as vertentes de pensamento mais representativas sobre o tema, tendo em vista o aporte da doutrina contemporânea.5

I. A estrutura normativa das normas constitucionais:

1. Sobre princípios, regras e positivismo6.

Já não é novidade afirmar que a concepção que apresenta o Direito como um sistema puro de regras é insuficiente para explicar todas as dimensões do fenômeno normativo. O tema dos princípios - e, especialmente, da força jurídica a eles atribuída -, retomou, a partir do constitucionalismo pós-guerra, lugar de prestígio na teoria do direito e da constituição.7

É interessante observar que essa nova idade de ouro8 dos princípios surge num contexto de superação da concepção formalista que não reconhecia em todas as disposições 4 Veja-se, a propósito, Alexy, Colisão e ponderação como problema fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, mimeo [Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 11.12.98], que destaca as implicações para o problema dos conflitos entre direitos da adoção de um modelo de princípios ou de um modelo de regras. Como afirma o autor, “Princípios e ponderação são dois lados de um mesmo fenômeno [...] quem empreende ponderação no âmbito jurídico pressupõe que as normas entre as quais se faz a uma ponderação são dotadas da estrutura de princípios e quem classifica as normas como princípio acaba chegando ao processo de ponderação”p.10. (tradução livre)

5 Ressalte-se que eventuais repetições de conceitos, promovidas ao longo do texto, objetivaram conferir maior clareza aos temas tratados.

6 Sobre o que é o positivismo, veja-se REIS, Jane Moreira dos. Breves notas sobre as implicações para a teoria do direito da adoção de uma perspectiva pós-moderna de ciência. Revista da Faculdade de Direito da UCP, Rio de Janeiro, n.01, p. 49-58, 1999.7

? Associando a importância dos princípios ao pós-positivismo, veja-se, por todos, Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional. 7.ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.237 : “A terceira fase [referindo-se as fases da positivação dos princípios], enfim, é a do pós-positivismo, que corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas deste século. As novas constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”. 8

? A metáfora é de Luis Prieto Sanchís, referindo-se tanto “ao ambiente teórico da filosofia do direito como ao mundo mais limitado do direito espanhol a partir da Constituição de 1978”. Sobre principios y normas: problemas del razonamiento juridico. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1992, p.17.

constitucionais valor normativo9, e que negava eficácia jurídica precisamente àqueles dispositivos que veiculavam princípios, apresentando abertura semântica e menor densidade jurídica. De fato, é lícito supor que há estreitas relações entre o reconhecimento da normatividade dos princípios e a aceitação da idéia de que todas as normas constitucionais são dotadas de imperatividade e eficácia. As duas concepções inserem-se em um processo de questionamento das premissas do positivismo clássico, que concebia o direito exclusivamente como um sistema de regras, destinando aos princípios o papel secundário de colmatação de lacunas e de orientação da atividade interpretativa.

O destaque atribuído aos princípios na atualidade não pode também ser apartado da progressiva importância que os direitos fundamentais assumiram nas últimas décadas. A positivação constitucional dos direitos deu-se sobretudo por meio de disposições dotadas de alto grau de abertura e forte carga valorativa, apresentando a estrutura que é peculiar aos princípios. Nessa perspectiva, direitos fundamentais e princípios são elementos indissociáveis na teoria constitucional.

No plano teórico, a posição de relevo conferida aos princípios no direito contemporâneo está normalmente relacionada a ataques ao positivismo jurídico, sendo produto das reflexões de uma corrente de pensamento que, por contextualizar-se dogmaticamente como contrária às concepções positivistas clássicas, convencionou-se denominar de pós-positivista10. Esta matriz teórica, denunciando a insuficiência da subsunção como método de aplicação das normas, concebe o sistema jurídico como um conjunto de regras e princípios, sendo estes últimos a porta de conexão entre o Direito e a Moral. Pode-se citar, como representantes importantes dessa corrente - e sem qualquer pretensão de esgotamento - Ronald Dworkin11, Chaïm Perelman12 e Gustavo Zagrebelsky13.

Vale destacar que a concepção de que a normatividade dos princípios é incompatível com o positivismo jurídico, aliada à identificação do caráter principiológico de grande parte das normas constitucionais, teve por resultado a contraposição - feita por alguns teóricos - entre constitucionalismo e positivismo. Nessa ordem de idéias, passou-se a falar no Estado Constitucional como modelo superador do Estado de Direito, e na substituição do princípio da legalidade pelo princípio da constitucionalidade14.

Entretanto, a oposição estabelecida entre o caráter normativo dos princípios e o positivismo jurídico é apresentada como uma evidência apenas para os antipositivistas. Assim, nem sempre o recurso à idéia de princípios relaciona-se com uma abordagem não-positivista do direito. Os positivistas contemporâneos, sem discrepar da idéia de normatividade dos princípios e sem negar que desempenham relevante papel no constitucionalismo, afirmam que tais premissas não são incompatíveis com o positivismo jurídico, mas, ao contrário, são plenamente adaptáveis àquele, 9

? CRISAFULLI, Vezio. La constituizione e la sua disposizione di princípio. Milan: Giuffrè, 1952.10 A expressão, contudo, não é imune a ambigüidades. 11

? Taking rights seriously. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 1978.12

? La lógica jurídica y la nueva retórica. Civitas: Madrid, 1979, p. 103.13

? El derecho dúctil. Lei, derechos, justicia. Madrid: Trotta, 1995.14

? Nesse sentido, veja-se ZAGREBELSKY, op. cit. Em sentido contrário, visando a conciliar constitucionalismo e positivismo, confira-se SANCHÍS, Luis Prieto. Constitucionalismo y positivismo. México: Fontammara, 1997 e PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Sobre o positivismo jurídico. In: Positivismo jurídico y derechos sociales. Madrid: Dykison, p. 83-89, 1999.

sendo viável falar em um positivismo de princípios15. Afirma-se, ainda, que o ataque promovido contra o positivismo não tem seu ponto central na afirmação da normatividade e na força obrigatória dos princípios, mas na distinção que se faz entre estes e as regras16. A discussão crucial a respeito dos princípios deixa, então, de referir-se à sua força obrigatória - hoje indiscutível -, passando a envolver sua morfologia e a extensão de sua função no processo hermenêutico.

Essa nova postura positivista é bem retratada na crítica formulada por Gregorio Peces-Barba ao livro de Gustavo Zagrebelsky17:

“Não posso [...] compartilhar da impossibilidade de passar de um positivismo das regras a um positivismo dos princípios, destacada por Zagrebelsky no capítulo sexto de sua obra. A partir da unidade, coerência e completude, com esta leitura que fazemos, não só o positivismo não desaparece, como é a chave da explicação que permite que as normas principiais possam funcionar em um sistema, e não no caos inseguro que existia no Direito pré-moderno. Dentro do sistema, e na concepção positivista, com a primazia da Constituição, cabem e são integráveis esses elementos tópicos”18.

De fato, o recurso aos princípios, por si só, não é inconciliável com o positivismo jurídico. G. Carrió, após listar uma série de usos possíveis da palavra princípio, menciona duas acepções que são compatíveis com o positivismo: “a) o entendimento dos princípios como pautas de segundo grau, que indica como devem entender-se e, às vezes, complementar-se as regras de primeiro grau; e, b) o recurso aos princípios como propósitos, objetivos metas ou policies de uma regra ou conjunto de regras do sistema, certas exigências fundamentais e moral positiva e certas máxima da sabedoria jurídica tradicional”19.

Assim, embora seja bem aceita na teoria do direito a idéia de que princípios e regras são tipos de normas20, ambos dotados de imperatividade, a distinção entre as duas categorias

15 PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Desacuerdo y acuerdos con una obra importante. In: Positivismo jurídico y derechos sociales. Madrid: Dykison, p. 111-130, 1999.16

? SANCHÍS, Sobre principios y..., op. cit.17

? El derecho dúctil. Lei...., op. cit. 18

? PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Desacuerdo y acuerdos ..., op. cit. p. 126.19

? Princípios y positivismo juridico. Argentina: Abeledo-Perrot, [s.d.], p. 42. (tradução livre)20 O consenso é apenas relativo, havendo ambigüidades terminológicas. Embora a idéia de que os princípios são categorias normativas seja bem acolhida na doutrina, há ainda muita imprecisão semântica quanto à dicotomia princípios e regras, ou princípios e normas. De fato, há quem empregue a distinção princípios/ normas atribuindo à expressão norma o significado que aqui se confere à expressão regra. Outrossim, não há uniformidade terminológica mesmo quando se trata de traduções. Note-se que Ronald Dworkin, em seu “Taking Rights Seriously”, fala em “principles” e “rules”. op. cit., p. 22 e ss. A tradução espanhola da referida obra, porém, refere-se a “principios y normas” (Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1984). Não obstante, há autores espanhóis que fazem menção à distinção de Dworkin como de “principios y reglas”. ANSUÁTEGUI, Fancisco Janvier. El derecho como norma. In: PECES-BARBA, Gregorio et al. Curso de teoria del derecho. Barcelona: Marcial Pons, 2000. cap. 6, p. 147-173. A propósito do tema veja-se, também ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Barcelona: Bosch, 1961, p.183-287, que aparta a distinção princípio-norma dos sistemas fechados (Direito Civil Codificado) da distinção “principle-rule” dos sistemas abertos (Common Law).

normativas varia substancialmente em função das diversas matrizes teóricas. Alexy, identificando duas grandes categorias de distinções, classificou-as como distinções fortes ou distinções fracas a respeito dos princípios e das regras, segundo o tipo de critério utilizado21. As distinções fortes pressupõem uma diferença qualitativa ou lógica entre princípios e regras, enquanto as fracas orientam-se no sentido de que a diferença entre as duas espécies normativas é apenas quantitativa ou de grau22.

A diferença fundamental no que tange ao conceito de princípio e ao lugar que ocupa no sistema jurídico decorre, hoje, exatamente da adoção de uma distinção forte ou de uma distinção débil. Vejam-se as peculiaridades de cada uma delas.

2. A distinção qualitativa ou lógica (forte) entre princípios e regras.

Os principais representantes da concepção forte quanto à distinção entre princípios e regras são Ronald Dworkin e Robert Alexy. Ambos apontam aspectos lógicos e substanciais que diferenciam princípios e regras, os quais tem implicações diretas na forma de interpretação das duas categorias normativas.

Ronald Dworkin, sucessor de Herbert L. Hart na cadeira de Filosofia do Direito da Universidade de Oxford, formulou sua distinção entre princípios e regras no quadro de uma severa crítica à versão do positivismo jurídico representada por Hart.

Para Dworkin, o positivismo jurídico, ao conceber o direito exclusivamente como um modelo de regras, ignora uma importante dimensão do fenômeno jurídico, que consiste no papel relevante que princípios desempenham no sistema jurídico, e, especialmente, na solução dos casos difíceis (hard cases). Os princípios, segundo Dworkin, são diferentes das regras do ponto de vista estrutural e lógico, representando ponto de aproximação entre o direito e a moral. Na concepção do autor, um princípio é um “standard que deve ser observado, não porque favoreça ou assegure uma situação econômica política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência da justiça, da eqüidade ou de alguma outra dimensão da moralidade”23. Assim, a presença dos princípios no Direito impede que o fenômeno jurídico seja identificado a partir de processos meramente formais e alheios a considerações morais substantivas, fazendo cair por terra a tese positivista que pressupõe a separação estanque entre o Direito e Moral24.

21

? ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Doxa, Universidad de Alicante, n. 5, p. 139-156, 1988.22

? Identificam-se as distinções fortes, normalmente, como contrárias ao positivismo. Assim, Sanchís considera que a teoria forte dos princípios - que dá lugar a distinção forte dos princípios e regras - supõe que “o horizonte de normatividade não se esgota nos standards de conduta que contam com respaldo institucional, mas se abre ao mundo da moralidade, da política e das exigências da justiça que se supõe objetivas e suscetíveis de conhecimento, compondo assim uma ordem não diferenciada da moral e do Direito, onde os princípios, situados na cúspide do sistema, dotariam de sentido e coerência valorativa cada uma das regras particulares”. op. cit. p. 67. (tradução livre)23 op. cit., p. 22. No texto original: “I call a principle a standard that is to be observed, not because it will advance an economical, political, or social situation deemed desirable, but because it is a requirement of justice or fairness or some other dimension of morality”.24

? Para Sanchís,. "o positivismo sustenta que as normas ou modelos de conduta que se impõem aos cidadãos e que são tomadas em consideração pelo juiz na hora de valorar o comportamento daqueles, podem ser

Como foi dito, a distinção entre princípios e regras no quadro teórico de Dworkin é de natureza lógica. Segundo o autor:

“ambos estabelecem standards que apontam para decisões particulares relativas a obrigações jurídicas em determinadas circunstâncias, mas diferem quanto ao caráter da orientação que estabelecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Se os fatos que a regra estipula estão dados, então ou a regra é válida, caso em que a resposta que fornece deve ser aceita, ou então não é, caso em que em nada contribuirá para a decisão”25.

Enquanto as regras são aplicadas na forma de disjuntivas (tudo ou nada) - a partir da aferição de sua validade - os princípios incidem de forma diferente, porque não estabelecem conseqüências jurídicas que devem ocorrer automaticamente quando determinadas condições se apresentem. Por essa razão, quanto aos princípios, não há como prever todas as possíveis formas de aplicação que podem ensejar, pois estes enunciam razões que indicam determinada direção, sem exigir uma decisão particular.

Dessa diferença entre as regras e os princípios decorre uma outra: os princípios possuem uma dimensão de peso ou de importância, que não está presente nas regras. Essa característica se torna visível nos casos de conflito. Quanto dois princípios opostos colidem - incidindo no mesmo caso concreto - a solução do conflito tem que ser encontrada levando-se em conta o peso relativo de cada um deles.

Em relação às regras, por não possuírem a dimensão de peso, a solução de um conflito aparente não pode ser que uma ceda espaço à outra em função de possuir maior peso. O afastamento de uma das regras só pode ocorrer a partir da aplicação do critério hierárquico, cronológico ou da especialidade. É possível, também, a prevalência de determinada regra em razão

normalmente identificados através de alguma regra ou critério do próprio sistema jurídico e que, ao final, encarnam alguma prática social verificável. A institucionalização dos meios de produção normativa facilita, sem dúvida, a identificação das normas do sistema (leis, regulamentos, sentenças, etc.), porém, tão pouco, resulta imprescindível: o positivismo, ao menos em sua versão, mais evoluída e "realista", não encontra nenhuma dificuldade em considerar como normas jurídicas aqueles modelos de conduta que contam com certo respaldo social, em concreto, com um respaldo suficiente para impor-se mediante o uso da força; em qualquer sistema jurídico, mesmo num sistema primitivo, as normas podem carecer de institucionalização (o costume), porém, pelo menos, hão de gozar desse respaldo social que nos permita afirmar que em caso de desvio por parte dos destinatários deverá produzir-se, de acordo com a prática desse ordenamento, uma reação jurídica, ou seja, um ato de coação.” op. cit. p. 69-70 (tradução livre). Porém, isto não quer dizer que a concepção positivista ignore que por trás de cada norma ou decisão jurídica se ache uma opção moral ou política. Ou seja, "o positivismo aceita sem dificuldades que as disposições legislativas descansem em uma certa filosofia política e encarnem princípios morais, porém, nega que sua validade seja dada por aquela filosofia ou por estes princípios, senão pela decisão de um órgão que assume a responsabilidade de dar respaldo a estes critérios extrasistemáticos, combinando-os de forma variável com as prescrições que derivem de normas superiores, isto é, combinado-os com os padrões de comportamento identificáveis segundo alguma regra de reconhecimento.” .” op. cit. p. 72-73 (tradução livre)

25 op. cit., p. 24. No original: “The difference between principles and legal rules is a logical distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation in particular circumstances, but they differ in the character of the direction they give. Rules are applicable in all-or-nothing fashion. If the facts a rule stipulates are given, then either the rule is valid, in which case the answer it suplies must be accepted, or it is not, in which case it contributes nothing to the decision”.

de estar amparada por um princípio mais importante26.

O que releva notar quanto ao modelo de Dworkin é que o que determina a aplicabilidade das regras são critérios de natureza formal (validade) - daí a identificação do modelo de regras com o positivismo -, enquanto o que determina a incidência de um princípio são aspectos materiais ou substantivos, pois o peso dos princípios nos casos concretos é identificado a partir de processos de valoração que não envolvem procedimentos puramente formais, mas demandam considerações de natureza moral.

Robert Alexy também estabelece um critério que diferencia regras e princípios sob o aspecto qualitativo ou lógico, embora o faça em um contexto teórico diverso daquele que orienta Dworkin. Segundo o autor:

“O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na melhor medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida de seu cumprimento depende não só das possibilidades reais mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídica é determinado pelos princípios e regras opostos.

De outro lado, as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve fazer-se o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contém determinações no âmbito do fática e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma ou é uma regra ou é um princípio”27.

Como se vê, o ponto crucial da teoria de Alexy é a qualificação dos princípios como mandados de otimização, ou seja, como normas que podem ser cumpridas em diferentes graus. Como consigna Peczenik “esse modo de qualificação não é binário, mas por graus, de mais ou menos”28.

A concepção de que os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus significa que se trata de mandados prima facie, e não de mandados definitivos. Isso decorre do fato de que os princípios apresentam razões que podem ser afastadas por razões opostas, não trazendo em si determinações acerca da forma que deve ser resolvida a tensão potencial entre a razão que contém a as que eventualmente se apresentem opostas. Assim, “os princípios carecem de conteúdo de determinação com respeito aos princípios contrapostos e às possibilidades fáticas”29.

26

? op. cit. p. 27. No original: “A legal system may also prefer the rule supported by the more important principles”. A posição de Robert Alexy, a esse respeito, é diferente - não obstante seu modelo de regras e princípios seja semelhante: “Un principio es soslayado cuando en el caso concreto el principio opuesto tiene um peso maior. En cambio, una regla todavía no es soslayada cuando en el caso concreto el principio opuesto tiene um maior peso que el principio que apoia a regra”. op. cit., p. 100.27 Teoria de los derechos.... op. cit. p. 86-87 (tradução livre).28

? Dimensiones morales del Derecho, Doxa, no. 8, 1990, p. 92 (tradução livre).29

? Alexy, op. cit., p. 99.

Para Alexy, assim como para Dworkin, a diferença existente entre princípios e regras evidencia-se a partir da forma de solução demandada para os casos de colisão.

Nas hipóteses em que entram em conflito duas regras só pode haver duas formas de solução: introduzindo-se uma cláusula de exceção que elimina o conflito ou declarando inválida uma das regras. Isso ocorre porque a o conflito de regras se dá na dimensão da validade, e a validade jurídica não é graduável pois, “se uma norma existe, é válida e aplicável a um caso concreto significa que vale também sua conseqüência jurídica”30.

Quanto às colisões de princípios, devem ser solucionadas de forma completamente diversa. A solução não se encontra em declarar a invalidade de um dos princípios, ou em entender um deles como uma exceção ao outro. Sempre que dois princípios, aplicáveis a um mesmo caso, entram em conflito - por conterem mandamentos opostos - um dos princípios tem que ceder em face do outro. E a determinação sobre qual princípio deve ceder - e em que medida - é feita a partir de um processo de ponderação do peso que cada um deles no caso concreto. Segundo Alexy, a lei de ponderação determina que “a medida permitida de não satisfação ou de afetação de um dos princípios depende do grau de importância da satisfação do outro”31.

Assim, na hipótese em que algo é permitido por um princípio mas vedado por outro, um dos princípios deve recuar, sem que algum deles seja declarado inválido, ou inserida cláusula de exceção. Dessa forma, o problema do conflito de regras se resolve na dimensão de sua validade, enquanto que dos princípios é solucionado na dimensão do valor.

As concepções de Alexy e Dworkin sobre a distinção entre princípios e regras, como se vê, são bastante semelhantes. As diferenças expressivas existentes podem ser atribuídas, talvez, ao fato das teorias haverem sido formuladas em contextos jurídicos diversos, e não propriamente a questões de fundo.

3. A distinção quantitativa ou de grau (fraca) entre princípios e regras

As distinções fracas de regras e princípios identificam-se, essencialmente, com as abordagens positivistas do Direito. O que as diferencia das teorias de distinção forte é a concepção de que os princípios não guardam diferença de ordem lógica ou substancial em relação às regras, sendo apenas as normas fundamentais do sistema, cuja marca é o maior grau de generalidade e abstração.

Um paradigma dessa corrente é R. Guastini32, que caracteriza os princípios jurídicos a partir de três critérios: a) as relações com outras normas. b) o tipo formulação lingüística, c) a generalidade. A primeira nota distintiva dos princípios deriva do fato de servirem de fundamento às outras normas, seja pelo fato de aquelas consistirem em especificações do princípio, seja porque o princípio constitui um fim para cuja consecução as outras normas estabelecem meios. Quanto ao segundo aspecto, o autor considera princípios as normas formuladas em termos vagos e gerais que, por isso mesmo, dão lugar a ampla margem de discricionariedade. Entretanto, afirma Guastini que

30 idem, p. 88.

31 idem, p. 161.

32 Principi di diritto, In: Dalle fonti alle norme. Turim: Giappichelli, 1992.

o critério de generalidade não é muito preciso, pois que mesmo as regras possuem uma “zona de penumbra”. Assim, o que determina a diferença entre princípios e regras é de grau de abertura, na medida em que o conceito de generalidade, assim como o de incerteza, é relacional.

Distinção semelhante é defendida por Norberto Bobbio, para quem os princípios gerais nada mais são que “normas fundamentais ou generalíssimas do sistema, as normas mais gerais”.33

Outro exemplo dessa linha de pensamento é a tese perfilhada por Luis Prieto Sanchís, que defende uma distinção débil entre princípios e regras partindo de formulações críticas acerca das distinções fortes ou qualitativas. Segundo Sanchís, a noção de princípio está muito mais ligada a um determinado modelo de argumentação do que a uma certa classe de normas.

O autor espanhol defende a distinção débil pontificando diversas insuficiências que, na sua óptica, encontram-se subjacentes às teorias da distinção forte. Critica, assim, os dois pontos cardeais da distinção forte: a) a idéia de a colisão entre os princípios se opera de forma diversa da colisão entre regras; e b) a noção de princípios como mandados de otimização, que podem ser cumpridos em diferentes graus.

Quanto ao primeiro aspecto, Sanchís afirma que há pontos obscuros na concepção de que os conflitos entre regras são solucionados no campo da validade, enquanto os conflitos entre princípios pressupõem a ponderação de seu peso34.

Assim, no que se refere aos princípios, argumenta que embora possa considerar-se certo que, nos casos de colisão, a aplicação de um princípio não leva necessariamente à perda de validade do princípio contraditório, isso não significa que jamais vá ocorrer uma antinomia total entre princípios, de modo que não possam coexistir no mesmo ordenamento. Destaca como exemplo, para ilustrar seu raciocínio, a hipótese de “reconhecimento - não meramente retórico - dos princípios da igual dignidade humana e do apartheid”35. Quanto às regras, Sanchís alega que nem todo conflito normativo se resolve com a declaração de invalidade de uma delas. Pondera que nos casos em que o Tribunal Constitucional aplica a técnica da interpretação conforme à Constituição, o conflito é solucionado sem exclusão da regra do sistema36. Sublinha, ainda, que a aplicação do critério da especialidade para a solução dos conflitos de regras não se diferencia, em nada, da idéia de peso ou importância que se atribui aos princípios37.

Quanto à caracterização dos princípios como mandados de otimização, Sanchís assinala:

“me parece duvidoso que este seja um critério de todo acertado para traçar um nítida diferenciação entre duas classes de entidades normativas, como se desde essa óptica pretendem formular-se as regras e os princípios: a meu juízo, se trata mais de um peculiar técnica de interpretação do que de uma característica inafastável que acompanhe certos standards (princípios), e

33 BOBBIO, Norberto, Teoria do Ordenamento Jurídico. 6.ed. Brasília: Ed. UNB, 1995.34

? op. cit. 35 idem, p. 41.36

? ibidem.37

? idem.

que esteja ausente em outros (regras). De um lado, porque, como já sabemos, não cabe rechaçar por hipótese a colisão total de princípios em que, como ocorre com as regras, se excluam mutuamente, de modo que uma delas deva considerar-se como pertinente ao ordenamento. [...]A segunda observação que se deve fazer a caracterização de Alexy é que, embora as idéia de mandado de otimização e do conseqüente juízo de ponderação no caso concreto são acertadas, me parece que isso não ocorra só (nem sempre) em relação aos princípios, mas também com relação às regras”38.

Partindo dessas premissas, Sanchís defende que é impossível estabelecer uma distinção entre princípios e regras que seja anterior ao processo interpretativo. Assim, averba, “antes da interpretação existiria um mundo indiferenciado de prescrições e só a argumentação jurídica faria de cada uma delas e em cada caso concreto um princípio ou uma regra; o que pode ser certo se apenas se quer afirmar que as técnicas argumentativas de “peso”(Dworkin) ou do juízo de otimização (Alexy) devem ser usadas em qualquer momento pelo juiz e em relação a qualquer disposição normativa”39.

Nota-se, pois, que, na concepção de Sanchís, os princípios não são um determinado tipo de norma identificável abstratamente, mas quaisquer normas que assumam posição de fundamentalidade no processo da argumentação jurídica. Segundo o autor, essa conclusão aponta no sentido de uma distinção fraca entre princípios e regras, pois qualquer regra pode ser elevada à categoria de princípio, dependendo do uso que dela faça o operador jurídico. Conclui, nessa perspectiva, que “os princípios são uma noção relacional ou comparativa; dizemos que uma norma é um princípio quando, nem mesmo idealmente, temos presente outra norma ou grupo de normas a respeito das quais aquela se apresenta como fundamental, geral, etc.”40

II) Palavras finais: os critérios de identificação de princípios.

De fato, a doutrina, especialmente entre nós, não tem dado a devida atenção às implicações teórico-metodológicas que a adesão a uma teoria (forte) ou à outra (fraca) gera. Limita-se, no mais das vezes, a apontar os critérios diferenciadores de forma indiscriminada, sem tomar em conta que os fatores indicados podem eventualmente inserir-se em um plano qualitativo (substancial) ou em uma dimensão quantitativa (formal) – o que ao cabo pouco contribui para uma compreensão mais adequada da própria distinção.

38

? op. cit., p. 45-46 (tradução livre)39

? idem, p. 54.40

? idem, p. 63 (tradução livre)

A propósito, verifique-se a enumeração apontada por Canotilho41 42.e que tem sido utilizada como referência para o assunto, pela doutrina pátria43, na qual não se percebe uma preocupação mais minuciosa com os planos substancial e formal. São eles:

“a)Grau de abstracção: os princípios são normas com um grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida.

b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação directa.

c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).

d) ”Proximidade” da idéia de direito: os princípios são “standards” juridicamente vinculantes radicados nas exigências de “justiça” (Dworkin) ou na “idéia de direito” (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

e) Natureza normogenética: os princípios são fundamento de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.” 44

Entretanto, enumerações como esta - sem embargo de sua inequívoca utilidade didática – se mostram insuficientes quando se trata de solucionar problemas hermenêuticos.

41

? Canotilho registra a complexidade dessa distinção e aponta que essa complexidade “deriva, muitas vezes, do facto de não se esclarecerem duas questões fundamentais: (1) saber qual a função dos princípios, ou seja, se têm uma função retórica-argumentativa ou são normas de conduta; (2) saber se entre princípios e regras existe um denominador comum, pertencendo à mesma ‘família’ e havendo apenas uma diferença do grau (quanto à generalidade, conteúdo informativo, hierarquia das fontes, explicitação do conteúdo, conteúdo valorativo), ou se, pelo contrário, os princípios e as regras são susceptíveis de uma diferenciação qualitativa.” CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 1034-103542

? Veja-se também, o estudo exaustivo de Rodolfo Vigo, Los principios jurídicos. Buenos Aires: Depalma, 2000, que chegou a listar vinte e quatro critérios distintivos. São eles :o conteúdo; a origem; a validade; a capacidade explicatória e justificatória; a aplicação; os tipos de razão; a identificação; a derrogação; o esforço que exigem; as exceções; os destinatários; a resolução de contradições; seu cumprimento; a estrutura lógica; a incorporação ao sistema jurídico; compromisso histórico; localização no ordenamento jurídico; operatividade com a lógica formal; a contribuição para a completude do sistema; componentes; funções; a coatividade; a formulação lingüística ; e a capacidade sistematizadora do direito. 43

? Vide FARIA, Edilsom de. A colisão dos direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem versus a liberdade de expressão e informação. Dissertação (Mestrado em Direito, área de concentração “Direito e Estado”) - Universidade de Brasília, 1995 e SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2001.44 Canotilho, op.cit. p. 1034-1035

Ao se partir da idéia de que – considerados sob sua dimensão lógica, qualitativa ou substancial – os princípios são distintos das regras, a concepção forte coloca de forma evidente a relevância e essencialidade da elaboração de uma distinção definida, com implicações no âmbito da interpretação. Se faz necessário, por conseguinte, o estabelecimento de critérios mais precisos que se prestem a identificar as normas-princípios e as normas-regras.

Considerando-se a produção doutrinária sobre a questão, acima sumariada, e em especial as contribuições de Ronald Dworkin e Robert Alexy45, é possível sintetizar as diferenças qualitativas que traduzem-se, fundamentalmente, em dois grandes aspectos46.

O primeiro diz respeito à forma de aplicação. Os princípios são normas jurídicas impositivas de otimização, compatíveis com vários graus de concretização, circunscritos às condições fáticas e jurídicas. Já as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida.47

Registre-se que a expressão “mandado de otimização” é sugestão de Alexy. Para o autor:

“[...] os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferente grau e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das

45 As obras referências desses autores sobre o tema são , respectivamente, Taking rights seriously e Teoria de los derechos fundamentales, op. cit. Vale registrar também que a sistematização desses posicionamentos elaborada por Canotilho op. cit. , embora breve, é bastante interessante.

46 Zagrebelsky apresenta a questão sob um ângulo distinto, já que, sem negar os dois critérios apontados, complementa-os. Confira-se: “ [...] talvez a diferença mais importante possa ser sugerida pelo ‘tratamento’ distinto que a ciência do direito outorga às regras e aos princípios. [...] em poucas palavras, às regras ‘se obedece’ e, por isso, é mais importante determinar com precisão os preceitos que o legislador estabelece por meio das formulações que as regras contêm; aos princípios, ao contrário, ‘se presta adesão’ e, por isso, é importante compreender o mundo de valores, as grandes opções de cultura jurídica das quais tomam parte e às quais as palavras não façam simples alusão. [... A] distinção essencial parece ser a seguinte: as regras nos proporcionam um critério para nossas ações, nos dizem como devemos, não devemos, podemos atuar em determinadas situações específicas previstas pelas próprias regras; os princípios, diretamente, não nos dizem nada a esse respeito, mas nos proporcionam critérios para tomar posições frente situações concretas, mas que a priori aparecem indeterminadas. Os princípios geram atitudes favoráveis ou contrárias, de adesão e apoio ou de dissenso e repulsa em relação a tudo que pode estar implicado na sua salva-guarda no caso em concreto. Vez que não demandam ‘pressupostos de fato’, aos princípios , diferentemente do que se passa com as regras, só se pode dar algum significado operativo fazendo-os ‘reagir’ frente a um caso concreto. Seu significado não pode ser determinado em abstrato, mas apenas nos casos concreto, e é apenas nos casos concretos que se pode entender seu alcance. Se poderia indicar a diferença assinalando simplesmente que as regras, e apenas as regras, são as que podem ser observadas e aplicadas mecânica e passivamente.” ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Ley, derechos, justicia. Madrid: Editorial Trotta, 1995. p. 110 (tradução livre)

47 Nos termos de Dworkin as regras são aplicada na forma do tudo ou nada (“applicable in all-or nothing fashion”) op. cit.

possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos.” 48

O segundo diz respeito ao problema do conflito e suas formas de solução49. A convivência dos princípios é conflitual, ao passo que a convivência de regras é antinômica. Isto significa que os princípios coexistem50, enquanto as regras antinômicas excluem-se. Consequentemente, os princípios, ao constituírem-se em exigências (mandados) de otimização, permitem o balanceamento de valores e interesses, consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflituantes51. Portanto, não obedecem, como as regras, à ‘lógica do tudo ou nada’.

“Isso significa que, em cada caso, armam-se diversos jogos de princípios, de sorte que diversas soluções e decisões, em diversos casos, podem ser alcançadas, umas privilegiando a decisividade de certo princípio, outras a recusando.

48 op. cit. p. 86 (tradução livre)

49 Nas palavras de Alexy: “Se se constata a aplicabilidade de duas regras com conseqüências reciprocamente contraditórias, no caso em concreto, e esta contradição não pode se eliminada mediante a introdução de uma cláusula de exceção, deve-se, então, declarar inválida, pelo menos, uma das regras. [...] Quando os princípios entram em colisão – tal como no caso em que algo é proibido por um princípio e permitido por outro - um dois princípios deve ceder frente ao outro. Porém, isto não significa declarar inválido tal princípio preterido, nem que ao princípio preterido tenha-se de introduzir uma cláusula de exceção. Mais bem, o que acontece é que sob certas circunstâncias um dos princípios precede ao outro. Sob outras circunstâncias, a questão da precedência pode ser solucionada de maneira inversa. É isto que se quer dizer quando se afirma que nos casos em concreto, os princípios têm peso diferente e que prima o princípio com maior peso. Os conflitos de regras se desenvolvem na dimensão da validade; a colisão de princípios – como só podem entrar em colisão princípios válidos – tem lugar mais além da dimensão da validade, na dimensão de peso.” op. cit. p. 89 (tradução livre)

50 Esta leitura é bem aproximada da visão sustentada por Gianformaggio. Para a autora italiana, os princípios são entendidos como juízos de concorrência. “Porque os princípios não são entre si incompatíveis: são sempre concorrentes, e aplicar um significa, simultaneamente, aplicar todos os concorrentes, buscando a maneira de sacrificar cada um deles na menor medida possível compatível com cada uma dos demais.” GIANFORMAGGIO, Letizia. L'interpretazione della costituzione tra applicazione di regole ed argumentazione basata su principi. Rivista internacionale di filosofia del diritto, IV, serie-LXII, n. 1, p. 65-103, gen./mar. 1985. (tradução livre)

51 Como esclarece Ricardo Lobo Torres : “Karl Larenz defende que ‘a ponderação de bens em cada caso é um método de complementação do direito, que visa a solucionar as colisões de normas’. Anota que o Tribunal Constitucional se serve do método da ‘ponderação de bens no caso particular’(‘Güterabwägung in Einzellfall’) para determinar o alcance concreto dos direitos fundamentais (Grundrechte) ou princípios constitucionais (Verfassungsprinzipien) que colidam entre si nos casos particulares. A colisão pode ocorrer em virtude de os conceitos e princípios serem abertos (offen) e móveis (beweglich), não estando a sua amplitude previamente fixada. Para a ponderação de bens deduzem-se das sentenças da Corte Constitucional os princípios da proporcionalidade (Verhältnismässigkeit), do melhor meio (schönendsten Mittels) e da menor restrição possível (geringstmöglichen Eisnschränkung). ‘Quanto ao princípio da proporcionalidade (Grundsatz der Verhältnismässigkeit), trata-se de um princípio jurídico material (ein materiales Rechtsprinzip)’.” TORRES, Ricardo Lobo. Da ponderação de interesses ao princípio da ponderação. In: ZILLES, Urbano (Coord.). Miguel Reale. Estudos em Homenagem a 90 anos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 643-651. Veja-se também SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000

Cada conjunção ou jogo de princípios será informada por determinações da mais variada ordem52: é necessário insistir, nesse ponto, em que o fenômeno jurídico não é uma questão científica, porém uma questão política e, de outra parte, a aplicação do direito é uma prudência e não uma ciência.”53

Já as regras não admitem outra solução. Se uma regra é válida54, deve ser cumprida na medida exata de suas prescrições, nem mais, nem menos. A regra se aplica de forma automática e necessariamente quando as condições previstas como suficientes para a sua aplicação se manifestam55. São portanto determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível.

Para Eros Roberto Grau,

[as] “regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto, aplicáveis. Trata-se de um tudo ou nada. Desde que os pressupostos de fato aos quais a regra refira – o suporte fáctico hipotético, o Tatbestand – se verifiquem, em uma situação concreta, e sendo ela válida, em qualquer caso, há de ser aplicada.”56

52

? No particular, Eros Roberto Grau, respaldado em Jean Boulanger, adverte que “tanto o aplicador quanto o intérprete do direito, ao comporem tais jogos de princípios, atuam sob impacto, também, de valores ideológicos. Há aí, definidamente, uma escolha entre princípios [...].”op. cit. p. 99.nota 3853

? idem op. cit. p. 99

54 Para Bobbio, Teoría general del derecho. Madrid: Debate, 1996. p.34: “O problema da validade é um problema da existência da regra enquanto tal, independentemente o juízo de valor sobre seu conteúdo de justiça. Enquanto este se resolve com um juízo de valor, o problema da validade se resolve com um juízo de existência ou de fato. Isto é, se trata de comprovar se uma regra jurídica existe ou não, ou melhor, se aquela determinada regra, tal como é, é uma regra jurídica. Validade jurídica de uma norma eqüivale a existência dessa norma como norma jurídica. Enquanto para se julgar a justiça de uma norma é necessário medi-la segundo um valor ideal, para se julgar sua validade deve-se realizar investigações de caráter empírico-racional, investigações que se fazem quando se trata de estabelecer a entidade e a dimensão de um sucesso.” (Observe-se que no particular, o autor se utiliza das expressões norma e regra como sinônimas) (tradução livre) Para se verificar a validade de um norma (isto é, “se existe como regra jurídica que pertence a um determinado sistema”), Bobbio indica três comprovações a serem feitas, que podem ser assim resumidas: a) determinar se autoridade que a promulgou era detentora de poder legítimo para expedir normas jurídicas; b) comprovar que ela não está derrogada; c) comprovar que não seja incompatível com as outras normas do sistema.

55 “É que as regras jurídicas não comportam exceções. Isso é afirmado no seguinte sentido: se há circunstâncias que excepcionem uma regra jurídica, a enunciação dela, sem que todas essas exceções sejam também enunciadas, será inexata e incompleta. No nível teórico, ao menos, não há nenhuma razão que impeça a enunciação da totalidade dessas exceções e quanto mais extensa seja essa enunciação (de exceções) , mais completo será o enunciado da regra. Se a regra – exemplifica Dworkin – define que um testamento não é válido senão quando assinado por três testemunhas, não é possível tomar-se como válido um testamento firmado por apenas duas testemunhas.” Grau , op. cit. p. 90. Para uma crítica da idéia de “tudo ou nada”, negando que em tese seja possível conhecer todas as exceções às regras cfr. Sanchís, op. cit., p. 38.56 idem p. 89-90

Por outro lado, quanto à teoria da distinção fraca, a precisão de critérios já não se revela tão necessária e o debate toma outros contornos. É que o critério da generalidade parece dar conta de forma satisfatória da distinção, já que os princípios não se apresentam, em nada, substancialmente diferentes das normas, caracterizando-se simplesmente por possuírem certos traços (generalidade, vagueidade, fundamentalidade ...) que não se configuram na forma do “tudo ou nada” (all-or-nothing). Tal qual ao resto das outras normas, podem ter sua existência aferida quando resultam válidos à luz de uma regra de reconhecimento ou quando uma prática dos operadores jurídicos assim o reconheça.

Desta forma, o problema da estrutura ou morfologia dos princípios perde relevo pois não há como traçar uma separação nítida entre eles e as regras e a questão se remete ao âmbito da teoria da interpretação ou da lógica dos juristas. Como esclarece Vigo:

“[...] e é aí onde se procura mostrar que um mesmo standard pode funcionar como norma [regra] ou como princípio; por conseqüência, não existe nenhuma característica que identifique a priori ou em si mesmas as normas [regras] dos princípios, mas sim que uma mesma disposição pode ser usada, no momento da interpretação, como norma [regra] ou como princípio.”57

São os operadores jurídicos que identificam a norma como regra ou como princípio, identificando, nos casos concretos, o papel que desempenham no processo de interpretação.58

Do que foi abordado, infere-se que a principal conseqüência da adoção de uma distinção qualitativa entre princípios e regras ou de uma distinção fraca situa-se no âmbito da interpretação.

Quanto à distinção forte, como se viu, o mecanismo de solução de conflitos entre princípios e entre regras não é o mesmo. Por outro lado, partindo-se de uma distinção fraca entre princípios e regras, não há como falar em duas categorias de normas que requeiram, a priori, soluções interpretativas diferentes. Quando se trata de interpretação constitucional, porém, a admissão dessa tese apresenta problemas.

As constituições contemporâneas albergam valores antagônicos, o que faz que os preceitos constitucionais tenham uma tendência natural a colidir.

No que se refere aos critérios de solução para as hipóteses de conflito entre normas constitucionais, a teoria da distinção débil não admite que se adote soluções hermenêuticas diferentes quanto às regras e aos princípios, já que não há diferença substancial ou qualitativa entre 57 Vigo op. cit. p. 06 (tradução livre)58

? Sanchís apresenta alguns exemplos bastante interessantes que teriam por finalidade evidenciar esse caráter relacional e gradual dos princípios e das regras. Verifique-se: [os exemplos se referenciam no contexto da Constituição Espanhola] “o quadro é mais complexo e se compõem de três normas, a saber: A) ‘Todos os espanhóis são iguais perante a lei’; B) ‘Se proíbe a discriminação por razões de sexo; C) ‘O empresário está obrigado a pagar salários iguais a homens e mulheres’. Pois bem, onde está aqui o princípio e onde está a regra? ... pode-se dizer que a norma A é um princípio em relação a regra B, porém esta se converte em princípio frente a regra C? Creio que a resposta deve ser afirmativa : a norma B acrescenta uma condição de aplicação à norma A, pois especifica um dos possíveis casos de discriminação, o sexo; e a norma C, a seu turno, acrescenta outras duas especificações em relação a norma B, as relações empregatícias e o salário.” op. cit. p.39 (tradução livre)

as duas espécies de normas. Por essa razão, a distinção fraca só admite duas ordens de respostas: ou se aplicam, tanto aos princípios como às regras, apenas os critérios clássicos de solução de conflitos de normas (hierárquico, da especialização e cronológico); ou se a técnica da ponderação, que permite afastar a incidência da norma nos casos concretos, é adequada tanto para as regras como para os princípios59.

Em outras palavras, sob a perspectiva de uma distinção débil, ou a ponderação é um método válido para a solução de todo tipo de conflito entre normas constitucionais ou não é para nenhum60.

A idéia de que os critérios clássicos de solução de conflitos são adequados e suficientes no âmbito da interpretação constitucional já está superada61. De fato, não há como conceber a hermenêutica constitucional sem o recurso à técnica da ponderação, que permite conciliar os valores constitucionais que se mostrem antagônicos sem comprometer a noção de unidade da ordem constitucional62.

Por outro lado, admitir que todas as normas constitucionais estão sujeitas à ponderação, ou que todas possuem uma dimensão de peso implica, em última análise, o substancial comprometimento da força normativa da Constituição, já que pressupõe que é possível afastar a aplicação de uma norma constitucional mesmo quando esta traga em si todos os elementos necessários à sua aplicação.

A adoção de uma distinção forte entre regras e princípios, ao revés, estabelece soluções diferenciadas para a interpretação das duas categorias de normas, determinando, assim, um razoável equilíbrio entre vinculação e flexibilidade63. Fica estabelecido, a partir do aspecto estrutural da norma, um parâmetro de atuação para o intérprete: se tratar-se de uma regra, sem previsão de exceção, e ocorrer a hipótese que a esta se subsume, deverá o juiz aplicá-la (já que no âmbito da Constituição não há como questionar-lhe a validade64). Se tratar-se de princípios, de outra 59 Na lição de Luís Roberto Barroso, “A ponderação de valores é a técnica pela qual o intérprete procura lidar com valores constitucionais que se encontrem em linha de colisão. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir-se um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo. In: Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.68.60

? É o que se infere da seguinte abordagem de Sanchís: “así, pues, a mi juicio, la idea del mandato de optimización representa más bien uma técnica argumentativa que puede ser útil en la aplicación de cualquier estándar normativo, ya sea una regra o un principio, cuando entra en colisión cin outro estándar.” op. cit. p. 48.61

? Sobre o tema , veja-se BARROSO, Interpretação e aplicação da constituição. São Paulo: Saraiva, 1996; PEIXINHO, Manoel Messias. A interpretação da Constituição e os princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1999 e SARMENTO, op. cit..62

? Veja-se, a propósito da insuficiência dos critérios clássicos para a solução de conflitos entre normas constitucionais e da técnica da ponderação: Sarmento op. cit.

63 Sobre vinculação e flexibilidade como atributos da constituição veja-se Alexy , “Colisão e ponderação ....”, op.cit.

64 Averbe-se , contudo, que Dworkin, embora alinhado à teoria forte, sustenta que uma regra pode ser afastada em detrimento de outra que esteja amparada por princípios mais importantes. op. cit., vide nota 24 supra. Sem embargo, essa proposição de certa forma, contraria a idéia de os conflitos entre regras se soluciona

forma, poderá aplicar ambos de forma parcial ou mesmo deixar de aplicar um dos princípios, dependendo do peso que assumam. Essa concepção parece melhor conciliar os antagonismos presentes nos textos constitucionais, sem, contudo, comprometer o caráter vinculativo das normas contidas na Constituição.

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JUSNATURALISMO E JUSPOSITIVISMO JURÍDICO:

as primas-irmãs da MODERNIDADE65[1]

Fernanda Duarte Lopes Lucas da Silva

"É esta a ambiguidade e a complexidade do tempo

presente, um tempo de transição, síncrone com muita coisa que está além

ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que o habita" 

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

in Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pós-

moderna

 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 

A história da produção de conhecimento da humanidade é marcada por

modelos de racionalidade que determinam o ritmo, os parâmetros e as estruturas de saber

produzidos numa determinada época.

Neste sentido, pode-se apontar que à visão holística que predominou na

antigüidade clássica, deu-se, mais tarde, lugar a chamada Modernidade, cujo modelo racional,

presidiu à ciência moderna.

Por outro lado, sendo o DIREITO, inegavelmente, uma manifestação de

saber -- desconsiderando-se aqui as dificuldades encontradas pelos autores para delinear o seu rigor

de seus pressupostos, método e objeto , de modo a lhe conferir o estatuto de ciência , (ou para

concluir, ao cabo por sua falta) 66[2] -- a Modernidade, nele, também imprimiu suas cores.

65[1] Trabalho de conclusão de curso apresentado, em fevereiro de 1997, para a disciplina SEMINÁRIO DE ESTUDO DE AUTORES, ministrada pelo Prof. CARLOS ALBERTO PLASTINO , como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional, PUC/RJ. Posteriormente publicado : SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Jusnaturalismo e Juspositivismo: As Primas-Irmãs da Modernidade. Revista da Ajufe, Rio de Janeiro, v. 66, p. 109-121, 2001.

 66[2] Para melhor se fixar a discussão, vide DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. São Paulo, Saraiva, 1995, 3. ed. 

Na realidade, distante de pretender esgotar o tema complexo e tortuoso,

oferecendo soluções para encerrar o debate acerca da prevalência entre Jusnaturalismo e

Juspositivismo Jurídico (ou mesmo oferecer uma terceira possibilidade) - o que é objeto de muitas

páginas dos mais variados autores, numa polêmica que não chega a seu fim - este trabalho busca,

simplesmente, dedicar algumas poucas linhas a identificar nas duas grandes correntes do

pensamento jurídico, essas mesmas colorações modernas , como que a indicar que o

JUSPOSITIVISMO JURÍDICO E O JUSNATURALISMO podem ser considerados como primas-

irmãs da Modernidade.

E assim, hoje, se encontrariam também em crise, como que numa reação

em cadeia, já que os limites de tensionamento do paradigma dominante cada vez mais apontam para

rupturas que parecem ser insuperáveis.67[3]  

¨ 

Embora ressalte-se: o recorte dado o tema não reside, especificamente, em

analisar esta crise ou ruptura do paradigma moderno, e, por conseqüência apontar os caminhos a

serem daí percorridos, mas apenas a aproximar o Jusnaturalismo e o Positivismo dos pressupostos

impostos pela Modernidade.

 

 

2. A MODERNIDADE COMO PARADIGMA DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO 

Modernidade.

O que é a Modernidade?

As dificuldades em se responder a esta aparentemente singela indagação já

se fazem surgir.

67[3] Sobre o tema da crise do paradigma moderno , SANTOS, Boaventura de Sousa, Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna, Estudos Avançados.

Não é fácil de se apontar um consenso, o termo gera uma variedade de

idéias, conceitos e preconceitos, entretanto, força é esclarecer o que se toma por Modernidade,

como pressuposto antecedente a maiores considerações.

A Modernidade, como aqui entendida, representa uma certa ordem que,

deste a revolução científica do século XVI, vem moldando a produção do conhecimento científico

da humanidade.

Como explica BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, desenvolvido

basicamente no domínio das ciências naturais, "[...] ainda que com alguns prenúncios no século

XVIII, é só no século XIX que este modelo de racionalidade se estende às ciências sociais

emergentes. A partir de então pode-se falar de um modelo global de racionalidade científica que

admite variedade interna mas se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e

ostensivamente policiadas de duas formas de conhecimento não-científico (e, portanto, irracional)

potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades ou estudos

humanísticos [...]".68[4]

Separando em compartimentos estanques sujeito cognoscente e objeto

cognoscível , a Modernidade alija, radicalmente, o homem da natureza, independentes e afastados

entre si, como que por um foço intransponível, onde apenas a razão transita investigando e

"conhecendo". 69[5]

A metáfora moderna pode se representar como um relógio, onde cada um

de seus mecanismos é regido por leis, racionalmente apreendíveis e experimentalmente

68[4] SANTOS, Boaventura de Sousa, Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna, Estudos Avançados, p. 49. 69[5] "Essa nova visão do mundo e da vida reconduz-se a duas distinções fundamentais, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro. [...] Por outro lado, é total a separação entre a natureza e o ser humano. A natureza é tão-só extensão e movimento: é passiva, eterna e reversível, mecanismos cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis; não tem qualquer outra qualidade ou dignidade que nos impeça de desvendar seus mistérios, desvendamento , mas antes ativo, já que visa conhecer a natureza para dominar e controlar. Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana o senhor e o possuidor da natureza." - SANTOS, p. 49. 

comprovadas, e que pode ser compreendido em todas as suas particularidades, separadamente dos

outros componentes, e ao final , a soma do conhecimento separado de cada uma das peças levaria a

compreensão final do próprio relógio.70[6]

Esta visão de mundo se assenta na formulação de leis que traduziriam a

realidade de forma irremediável, à luz de regularidades observadas, com fito de prever o

comportamento futuro dos fenômenos, comprovadas pela via experimental.

Como adverte SANTOS, o "conhecimento baseado na formulação de leis

tem como pressuposto metafórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o

passado se repete no futuro."71[7]

Neste diapasão, conhecer implica em dois grandes momentos: a) quantificar

e, b) dividir para classificar ; e só então se determinar as relações sistêmicas entre o que se separou.

As chamadas "leis da natureza" revelam a redução da complexidade do

mundo, evidenciando um processo de simplificação, posto que afastando as "condições inicias" ,

onde residiria a complicação, permite à razão humana apreender a realidade.72[8]

Desta forma as ciências naturais passam a ditar os parâmetros científicos,

como ponto de referência, para as demais formas de conhecimento, se pretendentes a ser

reconhecidas como tal.

Dotado o homem do aparelho necessário para formular as leis da natureza -

a razão - seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade. No século XVIII, com as

70[6] SANTOS: "Segundo a mecânica newtoniana, o mundo da matéria é uma máquina cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis físicas e matemáticas , um mundo estático e eterno a flutuar num espaço vazio, um mundo que o racionalismo cartesiano torna cognoscível por via da sua decomposição nos elementos que o constituem. Esta idéia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar na grande hipótese universal da época moderna, o mecanicismo." idem ibidem p. 51 71[7] ob. cit. p. 51 72[8] SANTOS: "A divisão primordial é a que distingue entre "condições iniciais" e "leis da natureza" . As condições iniciais são o reino são o reino da complicação, do acidente e onde é necessário selecionar as que estabelecem as condições relevantes dos fatos a observar ; as leis da natureza são o reino da simplicidade e da regularidade onde é possível observar e medir com rigor." ob. cit. p. 50.

idéias iluministas, se vão gerando as condições para o surgimento das ciências sociais no século

XIX.

Para SANTOS , "a consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no

racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-

se no positivismo oitocentista. Dado que, segundo este, só há duas formas de conhecimento

científico - as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas segundo o

modelo mecânicista das ciências naturais - as ciências sociais nasceram para ser empíricas."73[9]

Encaminhando-se neste mesmo sentido, CARLOS ALBERTO PLASTINO

observa que "o conceito central da cosmologia moderna - isto é da compreensão que a modernidade

produz sobre o mundo e o homem - é o de racionalidade. Esta racionalidade possui dupla face, a da

ontologia e da gnoseologia. Pela primeira, o real é conhecido `a semelhança da máquina, cujo

dinamismo é determinado por leis rigorosas , passíveis de serem conhecidas. É o reino do

determinismo e da causalidade suficiente, potencialmente exprimível na linguagem exata das

matemáticas. A segunda face do racionalismo da modernidade se situa no homem e na sua

capacidade de conhecer. O homem é definido como um ser racional, capaz de aceder ao

conhecimento real e de sua organização e leis de movimento. É esta confiança na capacidade da

razão para conhecer as leis que regem o real - e, em conseqüência, na capacidade do homem para

dominá-lo - que inspira o projeto prometeico da modernidade, sustentando a idéia-força de

progresso."74[10]

Por fim, "desta perspectiva da cosmovisão moderna, de sua concepção da

matéria, do determinismo que rege seu movimento, do processo de conhecimento, deriva a

interpretação do mundo e do homem da modernidade, e consequentemente seu sentido e sua

ética"75[11], bem como sua concepção das regras que pautariam a vida em sociedade.

73[9] ob. cit. p. 52 74[10] PLASTINO, Carlos Alberto. Os horizontes de Prometeu - Considerações para uma crítica da modernidade. Cadernos - Teoria Política Moderna, PUC-RJ, ano II, n. 01, 1996, p. 07 75[11] PLASTINO, ob. cit. p. 08

Assim, embora longe de abarcar e esgotar a matéria, imagino que os

contornos básicos do que se chama, aqui, de Modernidade já estejam suficientemente traçados, de

modo a permitir um avanço no desenvolvimento deste trabalho.

 

 

3. JUSNATURALISMO 

O direito natural tem sido um tema recorrente no campo da Filosofia do

Direito, por vezes negado, por outras até sacralizado.

Entretanto, também aqui, é preciso marcar suas fronterias, de modo que

seja possível estabelecer uma correlação plausível com o tema apresentado.

Fazendo-se uma retrospectiva, é possível identificar que a idéia ao redor do

direito natural já havia sido concebida na Antigüidade e difundida no período medievo, mas foi no

limiar da Idade Moderna, a partir de Hugo Grócio, que sucedeu uma marcante evolução na

matéria.76[12]

O Jusnaturalismo alçou seu apogeu no século XVIII, ao inspirar as

declarações de direitos dos Estados Unidos e da França, além de se refletir nas codificações dos

direitos austríaco, prussiano e francês.

É de se registrar que esta corrente de pensamento , a medida que se

difundia, foram surgindo suas diferentes vertentes 77[13], entretanto como ponto básico pode-se

apontar a visão da existência de uma ordem jurídica imanente da própria natureza humana.

 76[12] "O ius naturale já não seria identificado com a natureza cósmica, como fizeram os filósofos estóicos e a jurisprudência romana, nem imaginado como produto da vontade divina. A valorização da pessoa, que se registrou com a Renascença , atingiu o âmbito da Filosofia Jurídica, quando então o Direito Natural passou a ser reconhecido como emanação da natureza humana." NADER, Paulo. Filosofia do direito. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1995, 4. ed, p. 131 77[13] NADER, ob. cit., dá conta destes ramos do Jusnaturalismo. 

VICENTE RÁO afirma que existe uma concepção geral do direito, "que a

todos os povos se impõe, não pela força da coerção material, mas pela força própria dos princípios

supremos, universais e necessários, dos quais resulta, princípios estes inerentes à natureza do

homem, havido como ser social, dotado, ao mesmo tempo, de vida física, de razão e de

consciência."78[14]

"Não são, portanto, apenas as suas exigências físicas, ou sociais, nem

tampouco apenas os preceitos éticos, morais ou espirituais, nem, ainda, exclusivamente , a razão,

que definem a sua natureza; ao contrário, são todos estes elementos reunidos que integram a

unidade natural da pessoa humana.

A razão extrai e declara os princípios gerais que do concurso de tais

elementos resultam e, pois, da natureza humana decorrem; mas nesta e não naquela se encontra o

fundamento do direito natural, que não é um super-direito mas

- um conjunto de princípios supremos, universais e necessários que,

extraídos da natureza humana pela razão, ora inspiram o direito positivo, ora por este direito são

imediatamente aplicados, quando definem os direitos fundamentais do homem."79[15]

78[14] RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo, Editora Resenha Universitária, 1976. v. I, t. I, p. 45 79[15] idem ibidem, p. 45-6 

A concepção dos jusnaturalistas80[16] admitia " a existência de um estado de

natureza, isto é, uma sociedade em que existiam apenas relações intersubjetivas entre os homens,

sem um poder político organizado. Nesse estado, que teria precedido a instauração da sociedade

política (ou Estado), admitiam a existência de um direito que era, exatamente, o direito natural.

Nessa sociedade, os homens cultivavam a terra e escambavam os produtos, constituíam famílias e o

chefe de família tinha servos à sua disposição; com a morte do pai os seus haveres se transmitiam a

seus descendentes. Todas essas relações sociais eram reguladas por normas jurídicas (tinha-se,

assim, os direitos reais, o direito das obrigações, o direito de família e aquele das sucessões). "81[17]

"Segundo os jusnaturalistas a intervenção do Estado limita-se a tornar

estáveis tais relações jurídicas. Por exemplo, segundo Kant, o direito privado já existe no estado de

natureza e a constituição do Estado determina apenas o surgimento do direito público; contrapõe o

modo de ser do direito privado no estado de natureza àquele característico do mesmo direito da

sociedade política, afirmando que no primeiro momento tem-se um "direito provisório" (isto é,

precário) e no segundo momento um "direito peremptório" (isto é, definitivamente afirmado graças

ao poder do Estado)."82[18]

80[16] A obra de JOHN LOCKE (1632-1704), Segundo Tratado sobre o Governo - Ensaio Reflexivo Relativo a Verdadeira Origem , Extensão e Objetivo do Governo Civil, revela com clareza essa concepção de uma ordem natural, como a seguir, os trechos reproduzidos evidenciam: "Para compreender corretamente o poder político e depreendê-lo de sua origem, devemos considerar em que estado os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas tal como acharem conveniente, nos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem. [...] O estado de natureza tem uma lei de natureza a governá-lo e que a todos submete; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que apenas a consultam que, sendo todos iguais e independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses.[...] E para evitar que todos os homens invadam os direitos dos outros e que mutuamente se molestem, e para que a lei da natureza seja observada, a qual implica na paz e na preservação e toda a humanidade, coloca-se, naquele estado, a execução da lei da natureza nas mãos de todos os homens, [...]" 81[17] BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico - lições de filosofia do direito. São Paulo, Ícone Editora, 1995, p.29 82[18] idem ibidem  

PLASTINO afirma que "para além das significativas diferenças existentes

entre os fundadores da reflexão política da modernidade, todos eles sustentam a existência de um

direito natural acessível à razão humana. Este direito exprime que o homem é conforme a sua

natureza, devendo-se, a partir da consideração dessa natureza, estabelecer a forma de associação

mais racional, isto é, mais adequada à natureza do homem. Essas formas de associação e de

organização da vida social não deveriam se motivo de opiniões - e de conflitos - mas conseqüências

necessárias e irrefutáveis de um saber sobre o homem e a sociedade, que poderia reivindicar o

mesmo nível de certeza que as ciências matemáticas."83[19]

Na realidade , esta concepção jusnaturalista reflete a mentalidade

humanista da Filosofia das Luzes, que acompanhou a própria Modernidade.

A ordem natural que regeria a vida em sociedade não mais residiria numa

verdade transcendente ao ser humano , fruto da revelação divina, mas na própria natureza do

homem, que passava a ser o sujeito de conhecimento, tornando-se o ator principal, detentor de seu

destino. A razão, na expressão de ERNST CASSIRER, deixa de ser a "criada da revelação", como

foi durante a Idade Média, para se tornar a vedete.

Com os ventos da Modernidade, o direito natural proclama sua

independência das esferas divinas, passando a valer por si só, como produto exclusivo da razão

humana, e a ciência jurídica dá seus primeiros passos para adquirir o estatuto de "engrenagem da

máquina moderna", e como tal ter o seu saber reconhecido como ciência.84[20]

83[19] ob. cit. p. 09 84[20] CASSIRER , ao analisar a idéia de direito e o princípio dos direitos inalienáveis, insere o Jusnaturalismo na matriz moderna. Cria um paralelo entre Grocius e Galileu, pois aquele vai realizar no domínio do direito a mesma revolução que este realizou na física. "[...] Trata-se de definir uma fonte de conhecimento jurídico que não provenha da revelação divina, mas pelo contrário, por sua própria "natureza" e evite assim toda mácula e toda falsificação. Tal como Galileu proclama e defende a autonomia da física matemática, também Grocius luta pela autonomia da ciência jurídica. Parece que o próprio Grocius tinha uma noção perfeita desse parentesco ideal: manifesta por Galileu a sua mais profunda admiração e chama-o, numa carta, de o maior gênio do século. " - CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. São Paulo, Editora da Unicamp, 1994, 4. ed., p. 325 

"Há, pois, a crença em uma natureza humana imodificável, cujas

características principais, acessíveis à razão, permitem a formulação das normas que, por serem

naturais, devem reger a convivência entre os homens. Esta crença faz parte da cosmovisão da

modernidade e se harmoniza com a sua lógica."85[21]

E mais, é a Modernidade, que desde o século XVI já se fazia anunciar,

especialmente com a idéia de leis da natureza, acessíveis pela razão, que injeta novo ânimo ao

Jusnaturalismo, esculpindo suas novas feições, diversas do Jusnaturalismo conhecido pela

Antigüidade Clássica e reforçado pelos filósofos medievais , de modo a distinguí-lo como outra

corrente de pensamento, já que seus fundamentos divergiam: o direito de origem divina, passa a ser

criação da própria criatura, o homem.  

4. JUSPOSITIVISMO JURÍDICO 

A expressão "positivismo jurídico" não deriva de "positivismo", no sentido

filosófico do termo, muito embora no século passado tenha havido uma certa correlação, já que

alguns positivistas jurídicos eram igualmente positivistas, na acepção da escola fundada por Comte.

De fato, o termo deriva da locução "direito positivo" em contraposição

àquela de "direito natural." E portanto, para compreender o seu significado, é necessário apontar o

sentido da expressão direito positivo.

Neste particular, a definição elaborada por RÁO cumpre seu papel:

"A concretização do direito em normas ou preceitos legislativos, ou

simplesmente costumeiros, ou jurisprudenciais, mas sancionados e impostos pela autoridade do

Estado, revela, em relação a cada comunidade nacional, uma concepção peculiar do que é justo, ou

injusto nas relações humanas e no modo de solução dos conflitos que destas relações surgem; assim

é que se caracteriza e nasce o direito positivo, por natureza contingente e variável de povo a povo e

em cada povo, como contingentes e incessantemente variáveis são as ações, reações, relações e

85[21] PLASTINO, ob. cit. p.09 

conflitos, que formam o seu objeto. É pois, o direito positivo um direito declarado, praticado e feito

valer, materialmente, pela proteção-coerção a cargo do Estado." 86[22]

Por outro lado, muito embora a dicotomia direito natural e direito positivo

tenha permeado a história da evolução do pensamento jurídico é apenas a partir do século passado

que a tradição jurídico-positivista se firma como corrente de pensamento, de forma quase

hegemônica, fazendo ainda sentir hoje sua influência. 87[23]

BOBBIO explica que o positivismo jurídico "é uma concepção do direito

que nasce quando "direito positivo" e "direito natural" não mais são considerados direito no mesmo

sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como direito em sentido próprio. Por obra do

positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é

excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. A partir

deste momento o acréscimo do adjetivo "positivo" ao termo "direito" torna-se um pleonasmo

mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina

segundo a qual não existe outro direito senão o positivo." 88[24] 89[25]

Daí resulta claro que o positivismo jurídico surge como reação ao

Jusnaturalismo, repelindo tudo aquilo que extravasasse os limites do que não fosse posto e

aprovado pelo Estado, surgindo como conseqüência da formação do Estado moderno.90[26]

86[22] ob. cit., p. 45 87[23] Norberto Bobbio nos dá a notícia de que a distinção entre direito natural e direito positivo já era encontrada em Platão e Aristóteles, passando pelos latinos e doutrinadores medievais - vide ob. cit. 88[24] ob. cit. p. 26 89[25] Ou na lavra de PAULO NADER "o positivismo jurídico constitui um grande pólo doutrinário na área da Filosofia do Direito, que reúne diversas correntes que se unem por alguns pontos comuns e se diversificam em outros.º [...] "O denominador comum das correntes positivistas registra afirmações e negativas. Afirma-se que o método jurídico é o empírico, pelo qual o investigador deve observar a realidade concreta. Dado real - ao qual o cientista deve ater-se - é o núcleo onde se processam as dissensões. Norma jurídica, código, fato social, fato natural, psicológico, decisão judicial, eis algumas de suas identificações. Nega-se a validade de princípios metafísicos, de valores absolutos, de princípios que sejam eternos, imutáveis e universais." - ob. cit. p. 193 º Sobre as diversas correntes positivistas, vide BOBBIO, ob. cit. 90[26] "Enquanto, de fato, num período primitivo, o Estado se limitava a nomear o juiz que dirimia as

Com ele, o juiz, livre orgão da sociedade, se torna um orgão do Estado,

autêntico funcionário do Estado. De acordo com a análise histórica realizada por EHRLICH, em sua

obra La logica dei giuristi, "este fato transforma o juiz no titular de um dos poderes estatais, o

judiciário, subordinado ao legislativo; e impõe ao próprio juiz a resolução das controvérsias

sobretudo segundo as regras emanadas do orgão legislativo ou que, de qualquer modo (tratando-se

de normas consuetudinárias ou de direito natural), possam ser submetidas a um reconhecimento por

parte do Estado. As demais regras são descartadas e não mais aplicadas nos juízos: eis por que, com

a formação do Estado moderno, o direito natural e positivo não mais são considerados no mesmo

nível; eis por que sobretudo o direito positivo (o direito posto e aprovado pelo Estado) é tido como

o único verdadeiro direito: este é o único a encontrar, doravante, aplicação nos tribunais."91[27]

E como encaixar o positivismo jurídico no projeto da Modernidade?

Tal não requer um esforço muito grande.

Se o Jusnaturalismo é o primeiro passo em direção a independência do

Direito, como forma de conhecimento individualizada, já que o desvinculou da Teologia; o

Positivismo Jurídico é o esforço final de avocação para o Direito do estatuto de ciência, e portanto,

de ganhar seu lugar ao sol na comunidade científica moderna.

Pode-se dizer, em última análise, que ele representa uma tentativa de

"cientifização" do direito, de modo a aproximá-lo, o máximo possível, do paradigma das

matemáticas, num esforço de trazer maior rigor e exatidão para seus postulados.

Num outro aspecto, inspirado no racionalismo moderno exacerbado, o

Positivismo Jurídico acaba se tornando "o produto da razão humana", mais até do que o

Jusnaturalismo.

controvérsias entre os particulares, buscando a norma a aplicar ao caso sob exame tanto nos costumes quanto em critérios de equidade, e a seguir, adicionando à função judiciária aquela coativa, providenciando a execução das decisões do juiz, com a formação do Estado moderno é subtraída ao juiz a faculdade de obter as normas a aplicar na resolução das controvérsias por normas sociais e se lhe impõe a obrigação de aplicar apenas as normas postas pelo Estado, que se torna, assim, o único criador do direito." BOBBIO, ob. cit. p. 29 91[27] BOBBIO, ob. cit. p. 29

Se neste ela é apenas um instrumento de captação de uma ordem natural

predeterminada; naquele a razão humana, na concepção de que o homem por ser racional (em

função da razão) é capaz de definir para cada sociedade qual o regime político e a melhor forma de

mantê-lo racionalmente, é a própria força motriz do direito. Em outras palavras, o Positivismo é

fruto da própria razão, como derivação do racionalismo político.

Enfim, tendo florescido o Juspositivismo Jurídico, no ápice da Modernesse

(e sendo o homem fruto de seu tempo) não poderia ele se furtar dos fundamentos modernos. 

5. REFLEXÕES FINAIS 

Se olharmos nosso mundo de hoje, às portas do novo milênio, soturno, triste e

lamentável é o panorama que nos apresenta.

Fome, miséria, guerras locais, desemprego em níveis alarmantes, avanços da

tecnologia acessíveis a tão poucos, desastres nucleares, ameaças ecológicas de extinção da própria

vida, poluição, violência no campo e na cidade, extermínio dos indesejáveis, conflitos étnicos,

intolerância religiosa, consumo alarmante de drogas ... As mazelas são tantas!

Surge um sentimento de desorientação, reconheço alarmista, e nos perguntamos:

para onde vamos? para quê?

Os questionamentos são muitos.

As certezas já se foram e , talvez, não voltem mais.

A crise do paradigma dominante ressalta aos olhos ante as evidências que o próprio

aprofundamento do conhecimento, permitido pela ciência moderna, revela.

A teoria da relatividade, a mecânica quântica, o teorema da incompletude, os

avanços da microfísica, da química, da biologia corroboram para compor esse panorama de crise da

Modernidade, implodindo seus alicerces.92[28]

E nesse emaranhado de dúvidas, nascem pequenas questões, mas de grandes

respostas (que deixo aos sábios para responder):92[28] Uma visão mais aprofundada desta crise se encontra em SANTOS, Boaventura de Sousa, Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna, Estudos Avançados

Qual o papel a ser desempenhado pelo Direito, nesta história do homem, escrita a

sangue e lágrimas?

Onde buscar sua legitimidade, se o Jusnaturalismo e o Juspositivismo Jurídico já

não atendem mais aos reclames de uma sociedade sedenta de Igualdade, Humanidade e Justiça (e

que, talvez, nunca o tenham feito)?

A concepção de direitos inalienáveis à natureza humana queda desamparada

quando a própria natureza humana, em sua mesma existência é questionada, em face do papel

desempenhado pela cultura, na formação do ser humano. O que, realmente, pode ter-se como

natural, e não como produto da história?

E se a natureza humana está em cheque, como sustentar a idéia de direitos

universais e necessários, pertinentes a todos humanos e aplicáveis a todos nós?

O quê pôr em seu lugar?

Ademais, os ordenamentos jurídicos não puderam trazer uma eficácia real a estes

supostos direitos, quando a mera declaração formal dos mesmos já atenderia a estes reclames da

natureza humana, como entendeu o Estado Liberal.

O outro reverso da medalha também não resta incólume.

Confiando que a razão traria a luz, revestida do mito da infalibilidade, o

Positivismo Jurídico fez coincidir a legalidade com a legitimidade, afastando a ética do Direito, que

frio, respondia "dure lex, sede lex".

Onde está a exatidão matemática da operação de adequar o fato concreto à norma

hipotética, se os fatos reais nunca apresentam a simplicidade da norma descrita em abstrato, pois

não se dão de forma desconecta de todo um conjunto de circunstâncias, sem elementos de

subjetividade?

Se o ordenamento jurídico de Kelsen, escalonado numa pirâmide, apresenta uma

lógica interna irretocável, impondo obediência do escalão inferior ao superior, como vencer o

sofisma da Grundnorm hipotética, sem conteúdo definido?

A experiência nefasta da Alemanha nacional-socialista revelou a fragilidade do

argumento positivista, desmascarando as ameaças que se podem esconder em seus subterrâneos.

E muito mais poderia ser dito ...

Mas para encerrar - o que talvez não tenha fim - a constatação é clara: se

admitirmos que Modernidade está em crise, o que foi forjado em seu ventre também estará. 

Novos rumos esperam o Direito no amanhã... 

6. BIBLIOGRAFIA 

BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico - lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone,

1995. 

CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. 4.ed. São Paulo: Unicamp, 1994. 

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Os Pensadores . São Paulo: Abril, 1973. 

NADER, Paulo. Filosofia do direito. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995. 

PLASTINO, Carlos Alberto. Os horizontes de Prometeu - Considerações para uma crítica da

modernidade. Cadernos - Teoria Política Moderna, Revista da PUC-RJ, Rio de Janeiro, ano II, n.

01, 1996 

RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Resenha Universitária, 1976. v. I, t. I

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-

moderna, in mimeo.

 

 

Material para  Estudo de Casos:

os dois casos apresentados encontram-se analisados na obra SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004.

CASO A

SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - DÉCIMA VARA FEDERAL

PROCESSO N.º 93.0007947-6 - ACÃO ORDINÁRIA - SENTENÇA TIPO 2

AUTOR : JAIRO GOLTARA E OUTROS

RÉU : UNIÃO FEDERAL

JUIZ : JOSÉ CARLOS GARCIA

SENTENÇA

Vistos etc.

JAIRO GOLTARA E OUTROS ajuizaram a presente ação de rito ordinário em face da

UNIÃO FEDERAL, objetivando suas promoções em igualdade de condições com as cabos do

corpo feminino, a percepção das parcelas atrasadas daí decorrentes acrescidas de juros e correção

monetária e mais doze prestações vincendas.

Na inicial de fls. 02 e 06 alegam que ingressaram na Força Aérea Brasileira há mais de dez

anos através de processo de seleção para o serviço inicial na condição de recrutas, concluindo os

cursos de Formação de Soldados e Formação de Cabos. Após o término do referido curso, foram

distribuídos de acordo com suas especialidades em diversos órgãos do Ministério da Aeronáutica.

Ao completarem dez anos de efetivo serviço militar, adquiriram estabilidade. Todos têm Segundo

Grau completo, sendo que alguns completaram ou cursavam curso de nível superior.

A Lei n.º 6.924, de 29 de junho de 1981, criou o Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica,

restando prevista para as integrantes de tal Corpo a mesma sistemática de promoções estabelecida

para os cabos varões, conforme traçado nos arts. 7º, III, e 20, da referida Lei, e ainda pelo art. 30 do

Decreto n.º 86.325, de 1º de setembro de 1981, que a regulamentou; tal sistemática consistiria em

concurso específico para ingresso no Círculo de Graduados, que começa em 3º Sargento e termina

em suboficial, inexistente hipótese de promoção automática de Cabo a 3º Sargento. O então

Ministro da Aeronáutica, através da Portaria n.º 120/GM3/84, criou um acesso direto das cabos a 3º

Sargento mediante simples apresentação de certificado conclusão do 2º Grau, permissão esta

inexistente na Lei n.º 6.924/81 e no decreto que a regulamentou. Entendem que a previsão de

mecanismo distinto para a promoção de integrantes do Corpo Feminino fere os princípios

constitucionais e hierárquicos, dando causa a preterição dos Autores quanto as suas promoções,

especialmente à luz dos arts. 50, IV, “m”, 59 e 60 da Lei n.º 6.880/81.

Requerem, assim, que a União, através do Ministério da Aeronáutica, seja compelida a

expedir os atos necessários às suas promoções em igualdade de condições com os cabos do Corpo

Feminino, dentro de suas respectivas especialidades, retroativamente à data em que a 3º Sargento

mais antiga dentre as ex-cabos foi promovida nos termos da Portaria n.º 120/GM3/84, o pagamento

de parcelas atrasadas corrigidas monetariamente desde quando devidas e juros de lei, e ainda “12

prestações vincendas à época do cálculo a base de 20% dado a complexidade da causa e o tempo

necessário à sua completa finalização”(sic).

Juntaram documentos de fls. 07 a 40.

Custas recolhidas a fls. 41 e certificadas a fls. 42.

Contestação da União Federal a fls. 45/47, acompanhada dos documentos de fls. 48 a 55.

Sustenta-se: que a isonomia somente pode ser deferida quando haja identidade de condições

funcionais, o que inocorreria na hipótese, vez que o Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica

rege-se por norma legal distinta da que rege os Autores; que a finalidade da criação do CFRA foi o

atendimento às necessidades do setor, com aproveitamento dos militares homens para o serviço

propriamente militar, no qual a condição física é mais necessária que em serviços meramente

administrativos; que, nestes termos, a criação do CFRA é ato discricionário da Administração; que

os Tribunais têm decidido contrariamente à pretensão dos Autores; que as normas infralegais

ditadas pelo Ministério da Aeronáutica relativamente ao CFRA somente disciplinaram os exames de

conhecimentos especializados, traçando os critérios a serem estabelecidos dentro dos estreitos

limites da norma legal aplicável à espécie. Requer a improcedência dos pedidos.

Réplica a fls. 57/59, sustentando existência de identidade de condições funcionais no caso

vertente, concorrendo as integrantes do Corpo Feminino à mesma escala de serviço, portando e

manejando com perícia armamento pesado; que o sistema constitucional atual e anterior já

assegurava igualdade entre homens e mulheres, com o que a Portaria n.º 120/GM3, de 20 de janeiro

de 1984, é discriminatória e viola tal dispositivo constitucional.

Instadas as partes à especificação de provas (fls. 60), disseram ambas não terem outras provas

a produzir que não as já constantes dos autos (fls. 61 e 62), com o que vieram estes conclusos para

sentença.

É o relatório.

DECIDO

O núcleo da controvérsia reside em matéria de âmbito nitidamente constitucional : o princípio

da isonomia consagrado no art. 5º da Constituição, em especial no que respeita à igualdade de

tratamento entre homens e mulheres. Sustentam os Autores que o estabelecimento de critérios

próprios para a promoção das integrantes do Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica violaria tal

comando constitucional, causando sério prejuízo a sua esfera jurídica.

Nosso ordenamento jurídico, à semelhança de vários outros em todo o mundo, avançou no

sentido de excluir de seu âmbito normas discriminatórias que pretendiam constituir a mulher com

cidadã de segunda classe, subordinando-a sempre a uma figura masculina, fosse o pai, fosse o

marido. Fruto das importantes transformações observadas nos costumes nos últimos trinta anos, e

como decorrência da crescente atividade dos grupos feministas e do movimento de mulheres em

geral, esta parcela que conta hoje a maior parte da população brasileira vem galgando espaços cada

vez mais significativos, ainda que não condizentes com sua verdadeira importância no cenário

nacional e mundial. Tal atuação tem determinado mesmo decisivas alterações nas relação homem-

mulher e na redefinição de papéis sociais e da divisão social do trabalho doméstico, contribuindo

para a construção de uma humanidade menos opressiva, mais solidária e mais aberta a seus próprios

afetos.

As diversas alterações normativas neste campo, consolidando a igualdade jurídica entre

homens e mulheres, devem ser compreendidas, portanto, no bojo de um tal processo que não é,

como se vê, apenas normativo, mas fundamentalmente civilizacional; e o mundo do direito não é

indiferente ao tratamento ativo da superação das desigualdades. O direito não se conforma, hoje, em

manifestar no corpo dos textos legislativos uma igualdade formal e abstrata, também importante

mas não mais suficiente. O mundo do pós-II Guerra exige ainda a adoção concreta de medidas

ativas para a superação fática das desigualdades, como uma conseqüência necessária das normas

gerais de reconhecimento.

A isto se tem denominado, tanto na doutrina quanto na atuação político-institucional dos

grupos de interesse respectivos, de “discriminação positiva”, ou “políticas de ação afirmativa”.

Trata-se de conjunto de medidas de cunho constitucional e legal que, interferindo diretamente na

realidade, pretendem superar o marco das desigualdades sociais no que concerne a certos grupos

sociais, realizando a igualdade genericamente reconhecida no Texto Constitucional, sejam estes

grupos minorias oprimidas, sejam maioria excluídas ou alijadas dos processos sócio-políticos como

um todo. A própria Constituição estabelece algumas normas visivelmente com esta natureza ou com

esta orientação - não é outra a finalidade de dispositivos como o constante do art. 37, VIII, ao

determinar reserva de certo número de vagas no serviço público para portadores de deficiência,

devendo a lei dispor sobre os critérios de sua admissão. O caso das mulheres, maioria em nossa

sociedade, não é diferente, expressando-se mesmo em recente legislação que obriga os partidos

políticos a comporem nominatas com percentual mínimo obrigatório de candidatas.

É aristotélica a clássica noção de que realizar a justiça é tratar desigualmente os desiguais nos

limites da sua desigualdade. Tratar identicamente os desiguais não pode gerar senão a injustiça, a

segregação e a iniquidade.

As forças armadas são historicamente espaço reservado aos homens. Mas esta realidade tem

sido alterada a passos ágeis em vários países do mundo. Há não muitos anos viu-se pela televisão

imagens da participação ativa de mulheres norte-americanas na invasão do Iraque promovida pelos

EUA e seus aliados, inclusive em missões de combate, tendo-se ciência mesmo das repercussões de

tal fato no choque entre a cultura norte-americana e a fundamentalista islâmica.

Neste sentido, o estabelecimento de normas próprias para promoção e acesso a certos níveis

da carreira para as integrantes do corpo feminino de qualquer Força deve ser analisado no âmbito

das chamadas discriminações positivas, a fim de verificar se o discrímen estabelecido na norma

jurídica encontra-se dentro dos limites constitucionalmente aceitáveis para tal desnivelamento. Vale

dizer : se o tratamento desigual em cada caso corresponde de forma razoável ao atendimento da

norma geral de igualdade, incidindo sobre o mundo da vida de forma a realizar tal igualdade fática,

e não só abstrata, ou se, ao contrário, excede estes limites constitucionais e viola ela própria a

norma garantidora de igualdade.

Dentre as várias formas de proceder-se à análise desta adequação, uma delas é a proposta

pelo jusfilósofo alemão Robert Alexy, notadamente em sua obra Teoria de los derechos

fundamentales (Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997). Para este Autor, a máxima

aristotélica acima mencionada (tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais)

caracteriza-se como conteúdo mesmo do princípio de igualdade constitucional. Daí que a igualdade

deve ser considerada a partir de duas outras máximas complementares, uma relativa ao comando de

tratamento igual, outro pertinente ao comando de tratamento desigual. A primeira poderia ser

traduzida pela seguinte fórmula: “Se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de um

tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual” (ob. cit., p. 395). À segunda

corresponderia a fórmula “Se há uma razão suficiente para ordenar um tratamento desigual, então

está ordenado um tratamento desigual” (idem, p. 397). Ambas estas formulações, entretanto, estão

submetidas a uma orientação geral em favor da igualdade, que se expressa na assimetria das

referidas fórmulas. Ou seja: a realização do princípio constitucional da igualdade exige, prima facie,

um tratamento igual e só permite um tratamento desigual se pode ser justificado com razões opostas

(p. 398).

No caso concreto, insurgem-se os Autores contra o estabelecimento de normas para

promoção das integrantes do corpo feminino distintas daquelas relativas à promoção de cabos

homens. A norma em comento seria a constante da Portaria n.º 120/GM3/84, do Ministro da

Aeronáutica, notadamente os arts. 1º e 2º :

“Art. 1.º - Autorizar o Comandante-Geral do Pessoal a baixar as normas para a realização

do exame de conhecimentos especializados para as atuais cabos do QFG, que o requererem e

comprovem ter habilitação profissional correspondente ao ensino de 2º grau.

Art. 2º - Autorizar que os aprovadas no exame de que trata o art. 1º desta Portaria

sejam promovidas à graduação de Terceiro-Sargento, satisfeitas as demais condições legais e

regulamentares aplicáveis ao Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica.”

Alegam que tais normas estabeleceriam acesso direto das integrantes do QFG ao posto de

Terceiro-Sargento, com preterição deles próprios, vez que a eles seria exigido o concurso público

para a escola de especialistas.

Não procedem as alegações autorais. Nos termos da Lei n.º 6.924, de 29 de junho de 1991, o

Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica é criado para atender às necessidades do Ministério da

Aeronáutica relacionadas com atividades técnicas e administrativas, exercendo suas funções na

forma da respectiva lei (art. 1.º e seu parágrafo único). O aludido Corpo Feminino da Reserva da

Aeronáutica é composto pelas alunas dos Quadros do CFRA, na condição de praças especiais, pelo

Quadro Feminino de Oficiais - QFO e pelo Quadro Feminino de Graduados - QFG. A mesma Lei

dispõe sobre condições de recrutamento, seleção inicial, matrícula, condições de habilitação e

outras matérias específicas, determinando a existência, tanto fatual quanto jurídica, de um Corpo

próprio, integrado por Quadros específicos. O Decreto n.º 86.325, de 1º de setembro de 1991,

regulamentou a referida Lei.

Ora, em primeiro lugar, como já salientado, há a conformação de Quadro específico, com

atribuições específicas, distintas daquelas pertinentes ao corpo masculino da Aeronáutica. Além

disso, não há promoção automática a Terceiro-Sargento no âmbito do QFG, tanto assim que a

Portaria referida pelos Autores (n.º 120/GM3/84) autoriza exames de conhecimentos especializados

para cabos do CFRA. As normas são, de fato, distintas, mas isto se dá porque há quadro próprio de

graduados no Corpo Feminino, não havendo competição direta com a promoção dos cabos homens,

integrantes de outros quadros da Força; logo, não há preterição. Por fim, a Lei n.º 6.924 estabeleceu

que as promoções no QFO e no QFG ocorreriam nas mesmas épocas e nas mesmas condições

previstas para os Oficiais e Graduados da Ativa do Ministério da Aeronáutica, respeitados os

interstícios previstos na regulamentação da Lei (art. 20), estatuindo assim orientação geral de

igualdade; mas tal dispositivo deve ser entendido sistematicamente, integrado ao conjunto da

mesma Lei que criou o CFRA como Corpo próprio e com atribuições próprias. Tanto é assim que as

especialidades necessárias ao desempenho das atividades técnicas e administrativas do CFRA

deveriam ser estabelecidas por ato do Ministro de Estado da Aeronáutica, consoante o que prevê o

art. 22 da Lei n.º 6.924.

Assim, sob o ponto de vista infraconstitucional não há ilegalidade a ser corrigida pelo

Judiciário, posto que tanto o Decreto 86.325/91 quanto a Portaria n.º 120/GM3/84 atenderam a seus

requisitos próprios de validade jurídica, não excedendo os limites traçados pelas normas

hierarquicamente superiores. Restaria, então, a crítica à constitucionalidade da própria Lei 6.924 ao

estatuir Corpo Feminino distinto do masculino da Aeronáutica.

Aqui, todavia, também merecerá desacolhimento a pretensão autoral. É que, como salientado

anteriormente com base em Alexy, a realização do princípio constitucional da igualdade exige,

prima facie, um tratamento igual e só permite um tratamento desigual se pode ser justificado com

razões opostas. Estas razões, entretanto, residem no fato de que às mulheres, em que pese o fato de

corresponderem à maior parte da população brasileira, eram vedados inúmeros espaços sociais,

inclusive no que tange à participação e ao desenvolvimento na carreira militar. Textos legislativos

com a Lei 6.924/84 visam reverter parcialmente tal situação, ao mesmo tempo que sanar problemas

de falta de efetivo, de forma a integrar as mulheres em tal espaço, antes exclusivamente masculino,

e melhor compor as necessidades das Forças Armadas.

É sem dúvida criticável, em tese, se a forma escolhida pelo legislador foi a melhor ou não, se

o ideal não seria uma integração efetiva e em todos os níveis das mulheres no cotidiano militar, em

absoluta igualdade de condições com os homens (podendo atingir as patentes superiores a Tenente-

Coronel, por exemplo), mas não foi esta a opção legislativa. Tal debate, de resto, é apenas de lege

ferenda, porque insconstitucionalidade não há no diploma normativo. A integração parcial das

mulheres nas Forças Armadas, ainda que demandando provisoriamente especificação de condições

e procedimentos um tanto distintos daqueles previstos para os militares homens, é razão suficiente

para comandar o tratamento diferenciado, ampliando a capacidade de atração de maiores

contingentes femininos para a área militar, tanto quanto a exigência legal de número mínimo de

candidaturas femininas nas eleições proporcionais é útil e necessária ao respectivo fim para a

composição das casas legislativas. Não se trata, na hipótese, de norma violadora do princípio de

igualdade, mas sim de norma que tende a realizá-la, como já mencionado, através da promoção de

políticas de ação afirmativa e de tratamento diferenciado em face daqueles que ainda são

factualmente diferentes, no caso concreto, apesar da cláusula constitucional de proclamação e

reconhecimento jurídico de igualdade.

No futuro certamente tais normas desaparecerão, permitindo que as mulheres ocupem

integralmente, e sem necessidade de quaisquer normatizações específicas, todos os postos que sua

capacidade presente já lhes permitiria alcançar, mas que as vicissitudes da vida social ainda

entravam, mesmo que menos do que antes. A título exemplificativo, já é mais do que tempo para

que houvesse mais de uma mulher nos tribunais superiores, em especial no STJ e STF, sendo de

todo inadmissível a alegação de que inexista mulher com capacitação para tanto, tese que somente

poderia ser explicitada pela ignorância ou pelo preconceito.

Lícitas as regulamentações da Lei 6.924, portanto, e constitucional esta própria à luz do

princípio isonômico, não houve a preterição alegada pelos Autores na inicial, sendo portanto

improcedentes tanto o pedido de promoção dos Autores, quanto todos os demais que dele são meros

consectários (parcelas atrasadas, correção monetária, juros e parcelas vincendas).

ISTO POSTO, julgo IMPROCEDENTES os pedidos autorais, na forma da fundamentação

supra.

Custas e honorários pelos Autores, estes fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da

causa.

P.R.I.

Rio de Janeiro, 29 de abril de 1998.

JOSÉ CARLOS GARCIA

CASO B

30ª VARA FEDERAL

AÇÃO ORDINÁRIA N.º: 93.0013105-2

Autor : NELI DE BRITO LUNA

Ré : UNIÃO FEDERAL

Juíza : Dra. FERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA

S E N T E N Ç A

I

Vistos etc.

NELI DE BRITO LUNA, qualificada na inicial, ajuíza a presente Ação Ordinária, contra a

UNIÃO FEDERAL objetivando a reversão da pensão militar, deferida a sua mãe, viúva do General

de Brigada R/1 Alfredo Luna, com o pagamento das respectivas pensões atrasadas desde 08 de

outubro de 1991. Para tanto, alega que, na condição de filha, está amparada na Lei 4242/63, art. 30,

pela qual é devida pensão especial aos herdeiros igual à estipulada no art. 26 da Lei 3.765/60.

Procuração e documentos às fls. 06/26.

Regularmente citada, a União Federal responde, alegando que a recusa ao pedido de reversão

da pensão foi legal e baseada na Lei 8216/91, porquanto a lei estava em vigor quando do

requerimento da autora e que não contempla com pensão militar as filhas casadas do militar

falecido.

Réplica às fls. 36.

Sem outras provas, vieram os autos conclusos para sentença.

É o relatório.

Passo a decidir.

II

Ainda que por mera hipótese, o juízo admitisse a tese sustentada pela Autora, de que a Lei

8216/91 ao modificar o artigo 7º, II da Lei 3765/60 estaria a atingir direito adquirido, melhor sorte

não lhe caberia.

A questão das pensões concedidas a filhas mulheres de militar falecido não tem sua solução a

nível infraconstitucional legal, mas sim a nível constitucional.

É a partir da Constituição de 1988, com seus valores abraçados, a serem efetivados, que a

moldura desse benefício se viu reformulada.

O fato do indeferimento da reversão do benefício, em razão do estado civil da Autora, não se

justifica primordialmente em lei, mas tem seu fundamento de validade na Constituição como a

seguir se evidenciará.

Logo, despicienda é a discussão sobre a lei que se faria incidir no caso em concreto, vez que

é no grau supremo da hierarquia das leis que se manifesta a controvérsia. Pelo que, me reservo o

direito, em homenagem ao princípio da economia processual, de não adentrar nesta seara.

Pois bem.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O tema da seguridade social sempre foi - e o será - ponto nevrálgico, para uma sociedade

complexa - traçada sob os auspícios de um Estado de Direito - cujos conflitos se manifestam das

mais variadas formas e são permeados pelos mais diversos interesses, acabando suas águas por

desembocar e confluir no Poder Judiciário.

E, ao fim, é ele, Judiciário, chamado a solucioná-los. Sendo inclusive, muitas vezes, lhe

exigidas decisões salomônicas, que “confortem a todos” - gregos e troianos (como que numa

fórmula mágica) - não importando que, para assegurar a satisfação de uns poucos, a própria

Constituição Federal pereça -- convenientemente esquecida.

Entretanto, cabe ao mesmo Judiciário, na figura do juiz, como aplicador da lei, em especial,

velar para que a ordem constitucional seja eficaz, preservando-a intacta, íntegra; não rebaixando-

a, como diz Luiz Roberto Barroso, a uma simples folha de papel que aceita tudo, admitindo que

seu potencial jurídico se dilua na convivência com abstrações implausíveis.

Como ensina HESSE, há que se cultivar a vontade de constituição.

“A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar

‘a força que reside na natureza das coisas’, tornado-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa

que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva

quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte

mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a

intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão

de vontade de Constituição (Wille zur Verfassung). (Konrad Hesse, A Força Normativa da

Constituição. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p.24).

E é a partir dessa vontade de constituição que a pretensão de eficácia constitucional se

realiza.

A MOLDURA LEGAL DO BENEFÍCIO

Considerando-se o período anterior à vigência da Constituição de 1988, basicamente, o

benefício da pensão de dependente, em razão da morte de militar e ex-combatente, tinha sua

fundamentação legal, entre outros diplomas, na Lei 3765/60 e na Lei 4242/63.

Quanto aos filhos, de qualquer natureza, - varões e mulheres - a legislação erigiu uma

sistemática diferenciada (vide arts. 7, II e 23, II, da Lei 3765/60), criando, ao fim, pensões vitalícias

e temporárias, concedidas mediante os seguintes critérios:

Ao filho homem seria devida pensão, enquanto menor, e alcançada a maioridade, a mesma

cessaria.

Com relação a filhas mulheres, independentemente de idade ou estado civil, a pensão não

estaria sujeita a termo fixado para a sua extinção, sendo portanto, concedida em caráter vitalício.

Cumpre observar que aos filhos (independentemente de sexo, idade, ou estado civil)

interditos ou inválidos era dispensado o mesmo tratamento dado às mulheres, isto é, concessão de

pensão vitalícia.

Assim, o ordenamento legal regulava a matéria de forma diferenciada, elegendo dois grandes

critérios de classificação legislativa: o sexo e incapacidade.

E gozando a filha mulher do mesmo tratamento dispensado aos inválidos e interditos,

subentende-se o reconhecimento de uma maior fragilidade e dependências femininas, as mesmas

que ostentam os incapazes (ainda que a mulher fosse maior), exigindo amparo legal.

O EXAME DA INCOMPATIBILIDADE DO BENEFÍCIO

FACE A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL

A compatibilidade de uma norma frente ao texto constitucional, e por conseqüência sua

validade, indica duas linhas de análise: uma de cunho formal e outra material.

A primeira cinge-se à aferição da regularidade formal do ato (forma de expressão) frente ao

ordenamento constitucional.

Já a segunda, a material, verifica-se se a norma corresponde ao espírito da Constituição.

No particular, os princípios constitucionais, definidos por CELSO ANTONIO BANDEIRA

DE MELLO, como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição

fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério

para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do

sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico” (apud José Afonso da

Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo. 10º ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1995, p.93)

desempenham papel vital para a análise de compatibilidade entre o ato normativo e o Texto Maior,

alvejando a efetividade da ordem constitucional.

Neste diapasão, são inafastáveis algumas considerações sobre o PRINCÍPIO DA

ISONOMIA.

GERALDO ATALIBA esclarece: “Princípio constitucional fundamental, imediatamente

decorrente do republicano, é o da isonomia ou igualdade diante da lei, diante dos atos infralegais,

diante de todas as manifestações do poder, quer traduzidas em normas, quer expressas em atos

concretos. Firmou-se a isonomia, no direito constitucional moderno, como direito público subjetivo

a tratamento igual, de todos os cidadãos, pelo Estado.

Como essencialmente, a ação do Estado reduz-se a editar a lei ou dar-lhe aplicação, o fulcro

da questão jurídica postulada pela isonomia substancia-se na necessidade de que as leis sejam

isonômicas e que sua interpretação (pelo Executivo ou pelo Judiciário) levem tais postulados até

suas últimas conseqüências, no plano concreto da aplicação (...)

Igualdade diante do Estado, em todas as suas manifestações. Igualdade perante a

Constituição, perante a lei e perante todos os demais atos estatais. A isonomia, como quase todos

os princípios constitucionais, é implicação lógica do magno princípio republicano, que o fecunda e

lhe dá substância. Embora tenha larguíssima fundamentação histórica e provectas raízes culturais, o

princípio da isonomia só pode ser compreendido em toda sua dimensão e significado, juntamente

como o princípio da legalidade. É que a teleologia do direito constitucional - tal como plasmado ao

longo da evolução do mundo ocidental - foi expressando-se por esses princípios, guardando porém,

essencialmente a mesma substância. Esta tem inúmeras dimensões, as quais, por isso que partícipes

da mesma raiz, são harmônicas, coerentes entre si e solidárias” ( apud Carlos Ari Sundfeld,.

Fundamentos de Direito Público. 2ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1993, p.161).

Para CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “a lei não deve ser fonte de privilégios

ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente

todos os cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da isonomia e

juridiscizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo modo assimilado pelos sistemas

normativos vigentes.” (apud José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª

ed., São Paulo, Malheiros Editores, 1995, p. 93).

Pois bem.

Surge então a pergunta:

"Quem são os iguais e quem são os desiguais?"

CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO entende que só respondendo a esta indagação

“poder-se-á lograr adensamento do preceito, de sorte a emprestar-lhe cunho operativo seguro, capaz

de converter sua teórica proclamação em guia de uma praxis efetiva, reclamada pelo próprio ditame

constitucional.

Como as leis nada mais fazem senão discriminar situações para submetê-las à regência de tais

ou quais regras - sendo esta mesma sua característica funcional - é preciso indagar quais as

discriminações juridicamente intoleráveis “ (ob. cit. p . 11)

Ou seja, o Estado pode dispensar um tratamento desigual aos particulares, desde que o faça

JUSTIFICADAMENTE.

É o próprio BANDEIRA DE MELLO quem indica o caminho a seguir: “Com efeito, por via

do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de

desequiparações fortuitas ou injustificadas. Para atingir este bem, este valor absorvido pelo Direito,

o sistema normativo concebeu fórmula hábil que interdita, o quanto possível, tais resultados, posto

que, exigindo igualdade, assegura que os preceitos genéricos, os abstratos e os atos concretos

colham a todos sem especificações arbitrárias, assim proveitosas que detrimentosas para os

atingidos.” (ibidem)

Assim, “a lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que

não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e

poderá ser uma tirania.” (ibidem)

Num outro giro, ao se tratar de igualdade, impõe-se reflexão sobre o princípio da

proporcionalidade.

Ainda que de escasso estudo, o princípio da proporcionalidade já vem sendo reconhecido

pelos nossos Tribunais, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal.

O princípio da razoabilidade - dirigindo-se ao legislador - pressupõe uma correlação precisa

entre meio adotado e fim a ser atingido, de modo que a solução mais satisfatória, coerente e menos

gravosa seja a escolhida.

Desta forma, o princípio da razoabilidade é utilizado com o intuito de aferir se as distinções

de tratamento, considerando o resultado perseguido, são ou não compatíveis com a igualdade, logo

a proporcionalidade assume feições de parâmetro e não de uma medida em si.

Assim, quando o legislador institui disparidade de tratamento, buscando disciplinar situações,

o faz dentro de certos critérios discricionários, MAS SEMPRE SEM CONTRARIAR VALORES

CONSTITUCIONAIS, sob pena de instituir tratamento incompatível com o Texto Constitucional.

“HOMENS E MULHERES SÃO IGUAIS EM DIREITOS E OBRIGAÇÕES..." (CF, art. 5 º,

inciso I)

A propósito, esclarece JOSÉ AFONSO DA SILVA que “não é sem conseqüência que o

Constituinte decidiu destacar em um inciso específico (art. 5º, I), que homens e mulheres são iguais

em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. Era dispensável acrescentar a cláusula

final, porque, ao estabelecer a norma, por si, já estava dito que seria ‘nos termos desta

Constituição’. Isso é de somenos importância. Importa mesmo é notar que é uma regra que resume

décadas de lutas das mulheres contra discriminações. Mais relevante ainda é que não se trata aí de

mera isonomia formal. Não é igualdade perante a lei, mas igualdade em direitos e obrigações.

Significa que existem dois termos concretos de comparação: homens de um lado e mulheres de

outro. Onde houver um homem e uma mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito

de situações pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional.” (ob. cit. p .

212)

Retomando ao texto de lei examinado, percebe-se que há tratamento mais benéfico e

complacente, dispensado às filhas mulheres, vez que sua pensão seria vitalícia, independentemente

de suas condições pessoais.

E a questão que se coloca é:

Tal tratamento diferenciado - em que mulheres gozam de mais direitos que homens - se

justifica? Se mostra razoável? Perante a ordem constitucional vigente, se sustenta como legítimo,

tal discrímen?

E a resposta que aflora, naturalmente, indica um caminho negativo.

Com o movimento de liberação feminina e novos espaços sendo conquistados, as mulheres

saíram de casa, deixaram as asas protetoras de pais e maridos, passando a assumir identidade e

vontade próprias.

Hoje o mercado de trabalho é disputado entre homens e mulheres quase em mesmas

proporções. As universidades não são mais redutos masculinos. Até mesmo atividades

tradicionalmente masculinas são desempenhadas por representantes do sexo feminino, tais como: o

futebol, o policiamento, a condução de veículos de massa, o trabalho de frentista, e muitos outros

mais.

É claro que, não se quer afirmar que não existem mais discriminações - o que revelaria uma

visão naive da realidade - mas a moldura legal que legitimaria tais situações (como o foi no

passado) não mais persiste. A questão, agora, mudou de oitava, passando-se ao campo da

efetividade dos mandamentos constitucionais.

E por um lado, se houve bônus, também os ônus correspondentes devem ser assumidos, sob

pena de se admitir situações extremamente injustas e inadequadas, não apenas face aos filhos varões

de ex-combatente, mas também em relação a outras mulheres, não desfrutantes do privilégio.

Imagine-se, ad argumentandum, que numa situação extremada, uma beneficiária desta lei,

vivendo em união estável, e sendo profissional liberal de grande sucesso, ainda continuaria

percebendo a pensão deixada por seu pai.

Hipótese que não se justifica!

O discrímen não se coaduna com o princípio da razoabilidade, acabando por macular,

consequentemente, o princípio da igualdade.

Logo, o disposto no art. 7º, II, da Lei 3.765/60, configura-se em violação ao valor

constitucional da isonomia.

Restando superada a questão do discrímen irrazoável do dispositivo em exame, que acaba por

determinar um tratamento anti-isonômico entre homens e mulheres, não se coadunando aos

desideratos constitucionais, a própria ordem constitucional desenvolve mecanismos para que a sua

integridade seja garantida, de modo que essas violações sejam rechaçadas, por força de sua

supremacia.

Sendo o ato anterior à Constituição, seguindo-se orientação do STF, o fenômeno que se dá é

o da RECEPÇÃO ou não, pela nova ordem, da legislação que a precedeu; resolvendo-se pelas

regras da revogação.

Exatamente a situação em tela, já que o regime em questão foi instituído em 1960, e portanto,

superveniente é a Constituição.

Como acima verificado, salta aos olhos que, por sustentar tratamento discriminatório

desarrazoado entre homens e mulheres, o dispositivo que concede privilégio às filhas mulheres,

apresenta-se materialmente em desacordo com a nova ordem jurídica constitucional; e, portanto, por

ela não é acolhido, restando REVOGADO.

Entretanto, apenas a tese da revogação da norma pode não vir a solucionar a controvérsia em

sua completude, já que fixa a ausência de escorço legal, apenas, para aquelas filhas de ex-militar

falecido, que viessem a pleitear pensão, depois do advento da Constituição de 1988.

Como se resolve a questão daquelas pensões que já vinham sendo deferidas, e acabaram

suspensas ou cortadas?

Poderiam ser argüidas como "direito adquirido" e conseqüentemente protegidas, por força do

art. 5º, inciso XXXVI, da CF, que determina que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato

jurídico perfeito e a coisa julgada" ?

Em que pese a sedução desse raciocínio, o mesmo não se sustém perante uma reflexão mais

aprofundada.

A orientação é de NAGIB SLAIBI FILHO: “Como norma jurídica mais elevada, a

Constituição nova não respeita a ordem jurídica anterior - isto é, não há direito adquirido oponível

em face à nova ordem constitucional, a não ser que a nova Constituição assim disponha

expressamente ( o art. 49, § 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é um exemplo

de tal previsão).

Tal conclusão decorre, tão-somente, da aplicação do princípio da supremacia da Constituição

perante todos os outros atos jurídicos." (in NAGIB SLAIBI FILHO, Anotações à Constituição de

1988, 4ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense, 1993, p. 66)

Por outro lado, se o direito adquirido, ainda que contrário à nova Constituição, fosse

preservado - sem qualquer referência a sua manutenção, no novo texto, simplesmente por ser

direito adquirido - se reconheceria que a nova ordem constitucional, estaria sempre atada ao velho

ordenamento, por grilhões inquebrantáveis, que jamais admitiriam uma renovação total.

E a nova Carta Política, simplesmente, se transmudaria em veículo de repetição, cuja força

criadora originária estaria seriamente comprometida, seu poder de transformação impotente. O que,

por si só, descaracteriza a própria Constituição como instrumento fundador do Estado.

Daí o direito adquirido, que materialmente violar norma constitucional, só será preservado,

se houver EXPRESSA DETERMINAÇÃO, no novo texto constitucional - o que, aí sim, gozará

de legitimidade já que oriundo do poder constituinte.

Logo, a invocação de direito adquirido, para preservar a percepção de pensão por aquelas

filhas beneficiárias - MAIORES DE 21 ANOS, NÃO INVÁLIDAS E NÃO INTERDITAS - fenece

frente a proibição de tratamento discriminatório por motivo de sexo.

No confronto entre a regra do art. 7º, inciso II, da Lei 3765/60 e a norma constitucional do

art. 5º, inciso I, PREVALECERÁ SEMPRE O MANDAMENTO CONSTITUCIONAL.

Em outras palavras, não é possível que privilégio -- ainda que aparentemente benéfico --

decorrente de norma legal antecedente, não-recepcionada pela Constituição superveniente, seja

mantido.

Inclusive, neste particular não há de se invocar o art. 53, inciso III, dos Atos das Disposições

Constitucionais Transitórias - ADCT - como norma constitucional há recepcionar o direito

adquirido a pensão, posto que a dicção da regra se refere a "DEPENDENTE", e portanto, os filhos

(homens ou mulheres) maiores de 21 anos e capazes, evidentemente, não se enquadram nesta

categoria.

É de se lembrar que as normas constitucionais devem ser interpretadas num todo harmônico,

cujos vetores são os princípios que dão esteio ao ordenamento.

Por outro lado, como indicam as regras de interpretação constitucional, sendo o princípio da

isonomia um direito fundamental, se o constituinte almejasse perpetuar a situação das pensionistas

filhas de militares, o teria ter feito de forma expressa, já que autorizaria norma de exceção ao

cânone da igualdade. Não o fazendo, prevalece a interpretação que favorece a integridade e maior

eficácia do princípio.

EM SÍNTESE

As reflexões quanto a legitimidade da pensão vitalícia para filhas mulheres, maiores de 21

anos, a despeito de seu estado civil, perante a Constituição Federal de 1988, apontam para a

violação da ordem constitucional, pela norma ordinária, que macula o princípio da isonomia, por

estabelecer tratamento diferenciado desproporcional, entre filhos homens e mulheres.

Desta forma, tem-se que, no mundo da vida, a questão a ser enfrentada, principalmente pelo

Judiciário, agente mediador entre a vontade constitucional e sua efetivação, quando chamado a

solucionar lide a este respeito, pode se apresentar sob dois aspectos principais.

Num primeiro momento, a argüição, no sentido da confirmação do recebimento da pensão

temporária, por aquelas pessoas, que, implementando as condições exigidas na lei, já dela

usufruíam, antes do advento da Carta Política de 88; e que pretendem manter seu status quo

inalterável, sob a alegação de direito adquirido.

O segundo aspecto a ser considerado, diz respeito à filha - que teria apenas mera expectativa

de direito, quando da vigência do dispositivo discutido - e que, por ocasião da morte de seu pai ou

mãe, funcionário público, mesmo após a promulgação da nova Constituição, pretenderia

concretizar essa expectativa, em direito subjetivo, visto que a condição para a aquisição do direito,

como estabelecido em lei, teria se implementado.

Em ambos os casos, quer na impossibilidade de invocação de direito adquirido perante a

Constituição, quer pela não-recepção do dispositivo infraconstitucional, e sua consequente

revogação, caem por terra estas pretensões, por ausência de fundamentação jurídica, como,

previamente, demonstrado.

III

Do exposto, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos formulados pela Autora.

Custas processuais e honorários advocatícios - estes fixados em 5% (cinco porcento) do

valor da causa, devidamente corrigido - pela Autora, nos termos do art. 20, § 4º do CPC.

P.R.I.

Rio de Janeiro, 19 de março de 1997.

FERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA

Juíza Federal Substituta - 30ª Vara/RJ

 

REPRODUÇÃO DO CAPÍTULO 4 DA OBRA SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas da. Princípio constitucional da igualdade. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 101-110

Nesse último capítulo, busca-se evidenciar , com o estudo de dois casos em concreto,

CASO A e CASO B, mediante a análise da fundamentação das respectivas decisões judiciais,

algumas das possibilidades de utilização e aplicação prática do princípio da isonomia, através da

prestação jurisdicional . E portanto, deixar-se em evidência, a potencialidade de utilização efetiva

do mandamento constitucional de igualdade.

Entre todas as aplicações possíveis do princípio da igualdade, com efeito, considerando-se

sua relação com a atividade jurisdicional, o grande papel contemporâneo desse princípio

constitucional - em qualquer de suas manifestações - é justamente o de coibir o abuso do poder

normativo governamental, em todas as suas manifestações, abrindo espaço para a concretização de

uma sociedade mais humana, justa e solidária.

Assim, servindo de suporte argumentativo, fundamentando e informando as decisões tomadas

pelo juiz, o princípio da isonomia se erige como freio ao destempero e arbitrariedade legislativas,

repelindo as mazelas da irracionalidade e da irrazoabilidade.

Tanto que, para Siqueira Castro (1983: 72) , nesse sentido, como controle meritório da

legislação, o princípio da isonomia desempenha papel semelhante ao desempenhado pela teoria

francesa do desvio de poder (détournement de pouvoir), no que toca ao controle da legalidade dos

atos discricionários praticados pela Administração Pública.

A exata percepção da cláusula da igualdade abre ao órgão judicial um enorme potencial de

fiscalização da regularidade material entre a disciplina constitucional e a classificação adotada pelo

legislador, e portanto, sua legitimidade perante a ordem constitucional vigente, quer reforçando a

possibilidade de ações que visem a uma maior igualdade material (ações afirmativas), quer alijando

privilégios desqualificados.93

93 Muito embora o debate dos limites da atividade judicial não seja parte do objeto em exame, são pertinentes as colocações de Mélin-Soucramanien (1997), sobre questão tão delicada, em que o juiz deve se defrontar com os limites de sua atuação : “De fait, il est certain que le principe constitutionel d’égalité, s’il

Por outro lado, há de ser considerado que a atividade jurisdicional, como veículo de aplicação

da lei, no caso em concreto, tem como pressuposto lógico a interpretação94 da norma constitucional

considerada, lhe dando concretização.

La interpretación constitucional es “concretización” (Konkretisierung). Precisamente lo que no aparece de forma clara como contenido de la Constitución el lo que debe ser determinado mediante la incorporación de la “realidad” de cuya ordenación se trata [...]. En este sentido la interpretación constitucional tiene carácter creativo: el contenido de la norma interpretada sólo queda completo com su interpretación; ahora bien, sólo em esse sentido posee carácter creativo: la actividad interpretativa queda vinculada a la norma. (Hesse:1992,40-1)

Ao final, a interpretação deve estar compromissada com a produção do resultado

constitucionalmente “correto” através de um procedimento racional e controlável e com a

fundamentação desse resultado, de modo igualmente racional e controlável, criando deste modo,

certeza e previsibilidade jurídicas, e não se ter, simplesmente, a decisão pela decisão. (Hesse: 1992,

35)

est strictement entendu par le juge, peut représenter une menace pour pratiquement tous les choix effectués par le Parlement puisque l’activité législative qui comporte nécessairementl’etablisssement de différenciations de traitement selon les catégories est, par essence, discriminatoire. En ce sens, on peut considérer que le mise en œuvre du principe d’égalité par le Conseil constitucionnel recèle en germe une potencialité d’anéantissement de la quasi-totalité de l’ œuvre législative ce qui pose un problème délicat au juge constitucionnel qui se trouve partagé entre l’exigence d’assurer la plénitude de son rôle de gardien de la Constitucion et l’impérieuse nécessité de préserver une marge suffisante de pouvoir discrétionnaire au profit du législateur.” (p.125)

Para F.Rubio Llorente: “El principio de igualdad el foca de la tensión entre legislador y juez, entre política y Derecho, y es, en consecuencia, su aplicación la que más frecuentemente suscita acusaciones de activismo judicial o de abdicacíon del juez ante la arbitrariedad del legislador. “ (citado por Mélin-Soucramanien , 1997:125) 94 Quanto à questão da interpretação constitucional, Hesse (1992) faz uma distinção entre interpretação no sentido estrito e no sentido amplo, que no presente estudo não é abordada eis que extrapolaria o objeto escolhido. Para o autor, só há interpretação propriamente dita (no sentido restrito) quando deve-se dar uma resposta a uma questão constitucional que a Constituição não permite solução de forma concludente. “Allí donde não se suscitam dudas no se interpreta, y com frecuencia no hace falta interpretación alguna. No toda realización de normas constitucionales es “interpretación”, en tanto que en el curso de la interpretación constitucional la Constitución resulta siempre “actualizada”.

Así, no estaremos ante un supuesto de interpretación, aunque sí de actualización, cuando se cumple el contenido de las normas constitucionales, sin que, posiblemente exista conciencia del acto de ejecución: cuando se funda una asociación, cuando se elige el Parlamento, cuando se dictan leyes, actos administrativos o resoluciones judiciales, en ejercicio todo ello de competencias constitucionalmente delimitadas. Igualmente tampoco resulta necessário interpretar cuando la las disposiciones son terminantes, por más que aquí también se asista a un acto – estructuralmente simple – de “comprensión” y, com ello, de “interpretación” en sentido amplio.” (p.33-4)

No particular, portanto, a atividade jurisdicional, informada por uma interpretação

constitucional compromissada, ao aplicar a norma constitucional lhe atribui efetividade. E para

tanto é essencial que os princípios constitucionais sejam adequadamente percebidos e

compreendidos de modo que o resultado constitucionalmente “correto” seja atingido.

É neste contexto, visando dar uma visão da aplicação prática do princípio da isonomia, que

foram selecionadas duas decisões proferidas, em 1° grau, nas ações ordinárias, processos n°

93.0007947-6 e 93.0013105-2, com trâmites na 10° e 30° Varas Federais, respectivamente, da

Justiça Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, ainda não transitadas em julgado.

A escolha se deu por ter sido o princípio da igualdade a linha mestre da fundamentação para

invalidar ou validar a legislação infraconstitucional questionada.

Ademais, por conta das diferentes estruturas argumentativas adotadas pelos juizes,

prolatores das decisões, é possível se aquilatar a grandeza de compreensão da igualdade, em suas

diversas manifestações e a extensão que pode ser dada ao princípio, e sua importância na relação do

cidadãos entre si e com o próprio Estado.

Ambos os casos tratam de questões que colocam em cheque as relação mantidas entre as

mulheres, quer como membro ativo da corporação, quer como membro da família de um militar e às

Forças Armadas; e o tratamento normativo dispensado às mesmas, a partir da condição que

apresentam, em relação ao efetivo masculino e a própria posição ocupada pelo homem na

sociedade.

Nos dois casos são dispensados tratamentos diferenciados, mais benéficos, à situação

feminina, que frente ao princípio da isonomia assumem colorações diversas. Como se verá, em uma

situação a normatividade tem abrigo no mandamento constitucional ; na outra, ao contrário, a

disciplina legal viola o princípio da isonomia, e portanto se revela inconstitucional.

É interessante observar que os dois exemplos selecionados, apresentam pontos de

coincidências sem que as decisões sejam uniformes, ao revés, as mesmas são diametralmente

opostas - o que revela a textura aberta do princípio, permitindo uma aplicação mais ponderada,

maleável e flexível da norma constitucional.

Por outro lado, se colocadas num mesmo plano, não é a divergência de decisões que se faz

ressaltar; é a complementariedade das mesmas que exsurge de imediato, eis que abordam e

reconhecem o princípio da isonomia em suas diversas facetas: a vocação para diminuir o fosso das

desigualdades fáticas e a vedação de privilégios de uns em detrimento de outros.

Em razão de maior objetividade metodológica, as sentenças selecionadas, doravante, serão

chamadas de CASO A e CASO B, sem referência expressa às partes que integraram a lide, ainda

que no Anexo I possam ser encontradas em sua íntegra.

O CASO A trata do processo 93.0007947-6.

Nele se discute a constitucionalidade da legislação (especificamente , Lei n.º 6.924, de 29 de

junho de 1991 e Portaria n.º 120/GM3/84, do Ministro da Aeronáutica) que atribui tratamento

diferenciado ao Corpo Feminino da Força Aérea, destinando-lhe regras mais benéficas de

promoção nos quadros das Forças Armadas, em preterição dos cabos varões.

A Lei n.º 6.924 foi a responsável pela criação do Corpo Feminino da Aeronáutica, dispondo

sobre condições de recrutamento, seleção inicial, matrícula, condições de habilitação e outras

matérias específicas, determinando a existência, tanto fatual quanto jurídica, de um Corpo próprio,

integrado por Quadros específicos, sendo regulamentada pelo Decreto n.º 86.325, de 1º de

setembro de 1991.

A Portaria n.º 120/GM3/84, por sua vez, determinou que:

“Art. 1.º - Autorizar o Comandante-Geral do Pessoal a baixar as normas para a realização do exame de conhecimentos especializados para as atuais cabos do QFG, que o requererem e comprovem ter habilitação profissional correspondente ao ensino de 2º grau.

Art. 2º - Autorizar que os aprovadas no exame de que trata o art. 1º desta Portaria sejam promovidas à graduação de Terceiro-Sargento, satisfeitas as demais condições legais e regulamentares aplicáveis ao Corpo Feminino da Reserva da Aeronáutica.”

Assim, discute-se, a constitucionalidade da regra mais favorável às mulheres, em face do art.

5°, I que prescreve a igualdade, entre homens e mulheres, de direitos e obrigações.

Ao analisar os argumentos apresentados, basicamente, o juiz entendeu, em síntese, que:

1.Em razão dos novos espaços que a mulher vem assumindo na sociedade contemporânea, ela

não pode mais ser vista como um cidadão de segunda categoria.

2. Tal percepção não afasta a existência de nichos sociais onde a dominação masculina se

encontra nitidamente presente, e a presença feminina é de difícil aceitação e integração naquele

ambiente - histórica e tradicionalmente as Forças Armadas tem sido entendidas como o baluarte do

poderio masculino.

3. A consolidação da igualdade jurídica entre homens e mulheres, deve ser compreendida

no bojo de um tal processo que não é apenas normativo, mas fundamentalmente civilizacional.

4. A determinação da igualdade tem alterado as estruturas normativas cujo esforço vem no

sentido do tratamento ativo da superação das desigualdades, com incidência na realidade fática.

5. O direito não se conforma, hoje, em manifestar no corpo dos textos legislativos apenas

uma igualdade formal e abstrata, exige-se a adoção concreta de medidas ativas para a superação

fática das desigualdades, chamadas de “discriminação positiva”, ou “políticas de ação afirmativa”.

6. O estabelecimento de normas próprias para promoção e acesso a certos níveis da carreira

para as integrantes do corpo feminino de qualquer Força deve ser analisado no âmbito das

chamadas discriminações positivas. Deve-se verificar se o discrímen estabelecido na norma jurídica

encontra-se dentro dos limites constitucionalmente aceitáveis para tal desnivelamento,

correspondendo de forma razoável ao atendimento da norma geral de igualdade, incidindo sobre o

mundo da vida de forma a realizar tal igualdade fática, e não só abstrata, ou se, ao contrário, excede

estes limites constitucionais e viola ela própria a norma garantidora de igualdade.

7. As razões do tratamento diferenciado residem no fato de que às mulheres, em que pese o

fato de corresponderem à maior parte da população brasileira, eram vedados inúmeros espaços

sociais, inclusive no que tange à participação e ao desenvolvimento na carreira militar. Textos

legislativos com a Lei 6.924/84 visam reverter parcialmente tal situação, ao mesmo tempo que sanar

problemas de falta de efetivo, de forma a integrar as mulheres em tal espaço, antes exclusivamente

masculino, e melhor compor as necessidades das Forças Armadas.

8. A integração parcial das mulheres nas Forças Armadas, ainda que demandando

provisoriamente especificação de condições e procedimentos um tanto distintos daqueles previstos

para os militares homens, é razão suficiente para comandar o tratamento diferenciado, ampliando a

capacidade de atração de maiores contingentes femininos para a área militar, tanto quanto a

exigência legal de número mínimo de candidaturas femininas nas eleições proporcionais é útil e

necessária ao respectivo fim para a composição das casas legislativas.

9. A própria Lei 6.924 ao estatuir Corpo Feminino distinto do masculino da Aeronáutica, o

fez para atender às necessidades do Ministério da Aeronáutica relacionadas com atividades técnicas

e administrativas, exercendo suas funções na forma da respectiva lei, e havendo atribuições

específicas, distintas daquelas pertinentes ao corpo masculino da Aeronáutica, não há competição

direta com a promoção dos cabos homens, integrantes de outros quadros da Força, não há

preterição.

10. A Lei n.º 6.924 estabeleceu que as promoções no QFO e no QFG ocorreriam nas mesmas

épocas e nas mesmas condições previstas para os Oficiais e Graduados da Ativa do Ministério da

Aeronáutica, respeitados os interstícios previstos na regulamentação da Lei , estatuindo assim

orientação geral de igualdade; mas tal dispositivo deve ser entendido sistematicamente, integrado ao

conjunto da mesma Lei que criou o CFRA como Corpo próprio e com atribuições próprias.

11. Sob o ponto de vista infraconstitucional não há ilegalidade a ser corrigida pelo Judiciário,

posto que tanto o Decreto 86.325/91 quanto a Portaria n.º 120/GM3/84 atenderam a seus requisitos

próprios de validade jurídica, não excedendo os limites traçados pelas normas hierarquicamente

superiores, assim como a Lei n°. 6.924 não padece de inconstitucionalidade; eis que o tratamento

aplicado tem abrigo na isonomia constitucional, quando, almeja, faticamente, facilitar o acesso de

contingente feminino à espaço tradicionalmente masculino.

12. Em conclusão, não se trata, na hipótese, de norma violadora do princípio de igualdade,

mas sim de norma que tende a realizá-la, , através da promoção de políticas de ação afirmativa e de

tratamento diferenciado em face daqueles que ainda são factualmente diferentes, no caso concreto,

apesar da cláusula constitucional de proclamação e reconhecimento jurídico de igualdade.

O CASO B trata do processo 93.0013105-2.

Nele se discute a constitucionalidade da legislação (Lei 3765/60 e na Lei 4242/63) que

disciplina as pensões devidas pelo Estado, aos beneficiários dos servidores militares, em especial, a

suas filhas mulheres, em razão de falecimento.

A legislação observada erigiu uma sistemática diferenciada, para o deferimento e

permanência do benefício (pensão), entre os filhos varões e mulheres , criando, ao fim, pensões

vitalícias e temporárias.

A concessão do benefício e sua duração são informadas pelos seguintes critérios: a) ao filho

homem seria devida pensão, enquanto menor, e alcançada a maioridade, a mesma cessaria; b) às

filhas mulheres, independentemente de idade ou estado civil, receberiam pensão não sujeita a termo

fixado para a sua extinção, sendo portanto, concedida em caráter vitalício; c) aos filhos

(independentemente de sexo, idade, ou estado civil) interditos ou inválidos era dispensado o mesmo

tratamento dado às mulheres, isto é, concessão de pensão vitalícia.

Desta forma, o ordenamento legal regulava a matéria diferenciadamente, elegendo dois

grandes critérios de classificação legislativa: o sexo e incapacidade.

Assim, discute-se, a constitucionalidade da regra mais favorável às mulheres, (que lhes

concede pensão vitalícia) em face do art. 5°, I que prescreve a igualdade, entre homens e mulheres,

de direitos e obrigações.

Ao analisar os argumentos apresentados, basicamente, o juiz entendeu, em síntese, que:

1. O princípio constitucional da isonomia pressupõe tratamento igualitário se as situações

consideradas apresentarem circunstâncias iguais, e autoriza tratamento diferenciado, se as

situações forem diversas. O Estado está autorizado a estabelecer tratamento normativo desigual aos

particulares, desde que o faça JUSTIFICADAMENTE, sem a agressão dos valores constitucionais,

sob pena de instituir tratamento incompatível com o Texto Constitucional.

2. A constitucionalidade do discrímen adotado fica condicionada a um “teste” de

razoabilidade, onde a proporcionalidade assume feições de parâmetro e não de uma medida em si.

Desta forma, o princípio da razoabilidade é utilizado com o intuito de aferir se as distinções de

tratamento, considerando o resultado perseguido, são ou não compatíveis com a igualdade.

3. O princípio da razoabilidade - dirigindo-se ao legislador - pressupõe uma correlação

precisa entre meio adotado e fim a ser atingido, de modo que a solução mais satisfatória, coerente e

menos gravosa seja a escolhida.

4. O papel assumido pela mulher moderna, evidencia espaços conquistados, com a

reivindicação de identidade e vontade próprias, sendo assim dispensada e descabida a tutela

protetora e inibidora do pai ou marido.

5. Por um lado, se a liberação feminina trouxe bônus, também os ônus correspondentes

devem ser assumidos, sob pena de se admitir situações extremamente injustas e inadequadas, com

nítidos contornos de privilégio.

6. A previsão legal de concessão de pensão vitalícia à filha mulher de militar

(independentemente do estado e capacidade civis) evidencia que tratamento dispensado à filha

mulher é o mesmo dispensado aos filhos inválidos e interditos, subentendendo-se o

reconhecimento de uma maior fragilidade e dependências femininas, as mesmas que ostentam os

incapazes.

7. Esta concepção, mais benéfica e complacente, não mais se ajusta à sociedade moderna,

evidenciando a falta de razoabilidade no discrímen adotado, que institui fonte de privilégios

inconstitucionais.

8. As reflexões quanto a legitimidade da pensão vitalícia para filhas mulheres, maiores de 21

anos, a despeito de seu estado civil, perante a Constituição Federal de 1988, apontam para a

violação da ordem constitucional, pela norma ordinária (art. 7º, II, da Lei 3.765/60), que macula o

princípio da isonomia, por estabelecer tratamento diferenciado desproporcional, entre filhos

homens e mulheres.

9. Em conclusão, por sustentar tratamento discriminatório desarrazoado entre homens e

mulheres, o dispositivo que concede privilégio às filhas mulheres, apresenta-se materialmente em

desacordo com a nova ordem jurídica constitucional; e, portanto, por ela não é acolhido, restando

REVOGADO, devendo a Administração Pública indeferir os pleitos nesse sentido.

10. Quanto às pensões que vêm sendo pagas devem as mesmas serem cessadas, eis que o

direito adquirido, que materialmente violar norma constitucional, só será preservado, se houver

EXPRESSA DETERMINAÇÃO, no novo texto constitucional quando gozará de legitimidade já

que oriundo do poder constituinte; portanto, a preservação da percepção de pensão por aquelas

filhas beneficiárias - MAIORES DE 21 ANOS, NÃO INVÁLIDAS E NÃO INTERDITAS - fenece

frente à proibição de tratamento discriminatório por motivo de sexo.

Por fim, nesse capítulo, buscou-se, mediante o estudo dos dois casos selecionados – CASO

A e CASO B – estabelecer uma ponte entre a teoria e a práxis efetiva do princípio da isonomia.

Pretendeu-se ressaltar as diferentes possibilidades de utilização e aplicação prática do princípio da

isonomia, colocando-se em evidência sua versatibilidade exegética – o que pode ser visualizado, em

síntese, da seguinte forma:

DECISÕES FUNDAMENTOS DA ARGUMENTAÇÃO

CASO A Igualdade material e discriminação positiva

CASO B Igualdade formal e discriminação odiosa