os sinos de nagasaki · web viewtomita sobrevivera e corria de um para outro, oferecendo água...

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OS SINOS DE NAGASAKI PAULO NAGAI Paulo Nagaí faleceu em maio de 1951. Seu enterro, um cortejo de cinco quilómetros, foi a homenagem justa e visível que lhe prestaram seus amigos e admiradores. Na sua auto-biografia Os Sinos de Nagasaki, o Dr. Nagaí revela a sua alma de escol. Pagão até o 3." ano da Escola de Medicina, entregou-se com entusiasmo às pesquisas científicas. A leitura das Obras de Pascal abala as suas convicções materialistas e dedica-se então a novas pesquisas — as de ordem espiritual. . . Encontra a Verdade e essa descoberta dá-lhe nova feição à vida. Já formado, é professor da Escola de Medicina de Nagasaki. A bomba atómica surpreende- o em plena atividade profissional. No seu livro descreve as cenas terríveis, heróicas e comoventes que acompanham o cataclismo, e os seis anos que viveu ainda, estudando no próprio corpo os efeitos funestos da radioatividade. Perde a esposa na explosão i acarreta a difícil missão de educar dois filhos pequeninos. Apesar de todos esses infortúnios, as palavras do Dr. Nagaí são impregnadas de paz. Lança ao mundo um apelo de amor e concórdia que convence e comove profundamente. O AUTOR E SEUS FILHOS Depois da catástrofe atómica Tempos Atuais OS SINOS DE NAGASAKI PAULO NAGAÍ Tradução de CECÍLIA DE M. DUPRAT 2.° Edição FLAMBOYANT BIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALVALADE Título original Les Cloches de Nagasaki Êditions Casterman — Tournai • Paris Copyright by Dr. R. SHIKIIÍA — Japão Ilustração da capa TRUONG DINH KIM 1959 Todos os direitos reservados pela

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OS SINOS DE NAGASAKIPAULO NAGAI•Paulo Nagaí faleceu em maio de 1951. Seu enterro, um cortejo de cinco quilómetros, foi a homenagem justa e visível que lhe prestaram seus amigos e admiradores. Na sua auto-biografia Os Sinos de Nagasaki, o Dr. Nagaí revela a sua alma de escol. Pagão até o 3." ano da Escola de Medicina, entregou-se com entusiasmo às pesquisas científicas.A leitura das Obras de Pascal abala as suas convicções materialistas e dedica-se então a novas pesquisas — as de ordem espiritual. . . Encontra a Verdade e essa descoberta dá-lhe nova feição à vida. Já formado, é professor da Escola de Medicina de Nagasaki. A bomba atómica surpreende-o em plena atividade profissional. No seu livro descreve as cenas terríveis, heróicas e comoventes que acompanham o cataclismo, e os seis anos que viveu ainda, estudando no próprio corpo os efeitos funestos da radioatividade.

Perde a esposa na explosão i acarreta a difícil missão de educar dois filhos pequeninos. Apesar de todos esses infortúnios, as palavras do Dr. Nagaí são impregnadas de paz. Lança ao mundo um apelo de amor e concórdia que convence e comove profundamente.O AUTOR E SEUS FILHOS Depois da catástrofe atómicaTempos Atuais

OS SINOS DE NAGASAKIPAULO NAGAÍTradução de CECÍLIA DE M. DUPRAT2.° Edição

FLAMBOYANTBIBLIOTECA MUNICIPAL DE ALVALADETítulo originalLes Cloches de Nagasaki Êditions Casterman — Tournai • ParisCopyright by Dr. R. SHIKIIÍA — JapãoIlustração da capa TRUONG DINH KIM1959Todos os direitos reservados pelaLIVRARIA EDITORA FLAMBOYANTRua Lavradio, 222 - Tel.: 51-5837 - São PauloBiblioteca Municipal do Bairro da CRUZ VERMELHAApresentação dePAULO NAGAINo dia 14 de maio de 1951, um enterro de cinco quilómetros de comprimento caminhava lentamente em direção da igreja católica de Urakami, em Nagasaki. Através das ruínas, desfilava a elite da cidade. Nunca, sem dúvida, uma multidão semelhante, nunca tantas autoridades, mesmo de outros credos, se reuniram para uma cerimónia cristã.Esta multidão, estas autoridades homenageavam um médico católico: o Doutor Paulo Nagaí, morto após um longo martírio em consequência da explosão atómica. A sua vida tornou-o um herói nacional, um exemplo luminoso de dedicação profissional absoluta e de uma otimista fé cristã. . . É êle o autor deste livro.Paulo Nagaí é um convertido: mergulhado no materialismo pelo ensino universitário, quando ainda pagão, dali se ergueu, e encontrou a fé, frequentando assiduamente, nos últimos anos de seu curso, numerosos católicos de sua cidade natal.

Especialista em pesquisas radiológicas já fora atacado — e êle o sabia — quando o cataclismo de 9 de agosto de 1945 atingiu-o no seu corpo e na sua alma, carbonizando a esposa, matando numerososamigos e colaboradores seus, acelerando os danos de uma leucemia que o levaria ao túmulo em menos de seis anos.Assim condenado, quis todavia manter-se — como magnificamente se expressou um outro católico, antigo ministro, Tanaka — "a scientist with a message of hope": um sábio incansável, portador de uma mensagem de esperança. Sem esmorecer, continuou a estudar, no seu próprio corpo torturado, os efeitos dos raios X; educou os dois filhinhos, procurando aliar à força do pai, uma ternura maternal. A seus concidadãos prodigalizou os apelos ao perdão, à confiança, ao trabalho, à FÉ.Estes conselhos, ele os dava na sua cabana humilde, do leito onde o prendeu o progresso do mal. Todos aqueles que o ouviam, entretanto, pediam que aquelas palavras fossem difundidas mais largamente, e para isso, que fossem impressas. Com simplicidade aquiesceu, e seus livros espalharam através do país sacrificado, uma luz suave que, embora velada era imensamente confortadora.O seu primeiro livro chama-se "La chaíne du Rosaire" e logo veremos a razão deste título.6O segundo é: "Os Sinos de Nagasaki", fornecendo este o tema de um filme que, desde março de 1951, tem tido sucesso espantoso no Japão.Da união destes dois volumes — trechos do primeiro e o segundo integral — nasceu a presente edição.O terceiro volume "En quittant ses enfants" constitui o testamento espiritual, deixado por Paulo Nagaí a seu filho Makoto e a sua filha Kayano, que aparecerão frequentemente nestas páginas.Os exemplares destes livros foram espalhados em centenas de milhares: levaram a todo o Japão, mesmo não cristão, a mensagem humana e católica do médico, o Doutor Nagaí.Com a confiança das multidões, vieram as honras ao encontro deste moribundo que nunca as procurou. Nagasaki deu-lhe o título de prefeito; o Imperador visitou-o, e o país conferiu-lhe o Prémio do Mérito Nacional. Da parte de Sua Santidade o Papa Pio XII, o cardeal Gilroy e o legado apostólico, Monsenhor de Furstenberg, levaram-lhe palavras de apoio, elogio e conforto.iAceita todas as honrarias com humildade, esclarecido sobre o valor de tudo isso, pela morte que sentia aproximar-se.Expirou no dia 1.° de maio de 1951, ao romper do mês de Maria. Para chegar à igreja, seu enterro percorreu a famosa aléia das cerejeiras, que ele mesmo doara à sua paróquia, e deteve-se entre as paredes pintadas às suas custas.Mesmo depois de morto, as coisas ainda falavam dele. . .Bem mais, porém, do que nas pinturas ou nas flores, é nos livros que conservamos a lembrança essencial e a lição de sua vida. Uma lição que êle repetiu frequentemente, sob diversas formas, em diferentes tons. . . no correr dos dias, como se repetem as Ave-Marias ao longo do rosário.As contas do terço foram consumidas pela chama atómica. Mas a corrente resistiu; ela brilha sob o céu escuro, pois é feita deste metal indestrutível que chamamos: esperança cristã.J. MASSON, S. J.8INTRODUÇÃO

Há já dois anos que estou deitado, enfermo, inválido, nesta planície de Nagasaki. Se sobrevivi, foi graças às orações, ao encorajamento de tantos amigos conhecidos ou desconhecidos.O Doutor Shikiba amavelmente se oferece para publicar os pequeninos ensaios que escrevi ultimamente, e Miss Isae Yashida copiou-os para mim.Relendo esses manuscritos, uma vez terminados, não posso deixar de me sentir confuso, vendo assim meus defeitos postos à mostra. Todas as críticas dirigidas a essa relação sincera de uma vida destruída, serão por mim aceitas de bom grado.As vítimas de uma guerra tremenda começam enfim a trocar suas vestes rotas pela roupagem dos tempos de paz; também eu me disponho a entrar numa vida nova. Deixo atrás de mim, no campo de batalha, este livro simples, lembrança do que não existe mais. Desejo que a minha nova existência seja toda consagrada à reconstrução e não a uma volta ao passado; toda de esperança, não de lamentações.9Um único pensamento me anima: dar glória a Deus. Evidentemente não sou senão um inválido, um frangalho, que não espera mais poder ser útil. Desejo, todavia, serxiir a Deus com um coração sincero até o momento em que este fio de minha vida, cada dia mais frágil, por fim se rompa.A santa Eucaristia, que me é trazida todos os domingos pelo Padre Nakada, constitui uma força infinita, na comunhão com Deus. Por mim mesmo, nada posso. Creio, porém, firmemente que, pela força do sacramento que recebo, possa ainda glorificar a Deus. Suplico-Lhe conceda Suas bênçãos a todos aqueles que, conhecidos ou desconhecidos, deram estímulo e conforto a um infeliz.TAKASHI NAGAÍ25 de março de 1948Urakami-Nagasaki10IIMAGENS ANTERIORES AO DESASTREMeus pais.Meu pai não chegou a terminar a escola primária: era preguiçoso demais para tanto.Certa manhã de verão, êle atirou ao rio um ídolo de pedra, altamente respeitado: às pessoas que o barulho atraiu, teve ainda a audácia de responder friamente: — Vejam como ela sorri dentro d'água. O mergulho agradou-lhe, não há dúvida. . .Algum tempo depois, subiu um dia numa pereira, no pátio de sua escola, e de lá de cima ouvia a lição, enquanto se fartava de frutas ! Quando o diretor veio repreendê-lo, o insubordinado contentou-se em sacudir os galhos e deixar cair uma chuva de peras duras sobre a cabeça do indignado mestre, dizendo:— Que tal, professor ? Quer mais ainda ?— Desça, seu patife !— Nunca !.. .— Desça, estou mandando !E a batalha durou até o entardecer. Os adversários já não se enxergavam mais, e ouviam-se ainda11OS SINOS DE NAGASAKIressoar as altercações. Finalmente, num último esforço de sua voz já quase totalmente rouca, o diretor decretou a expulsão de meu pai.

Foi a primeira, seguida de cinco ou seis mais, até que numa extensão de dez quilómetros não houve uma escola que o aceitasse ! Meu avô acabou tomando um professor particular que também, pouco tempo depois, foi forçado a deixar o insuportável aluno.Decidiram então empregá-lo numa fazenda. Ali trabalhou até a idade de vinte anos, esquecido de todos. Ignoro o que, em seguida, determinou meu pai. . . Mas quando fêz vinte anos, desapareceu em busca de fortuna. Todos os camponeses repetiam: — Não adianta ! voltará sem vintém, após 50 anos de vagabundagem !Como se enganavam ! Quatro anos mais tarde, o filho pródigo reaparecia, exibindo ao velho pai o seu diploma de médico. Aquele vadio formara-se em medicina ! Os conterrâneos não acreditavam no que viam e ouviam ! Mesmo o meu avô, médico da velha guarda, que todos os dias rezara pelo filho, olhava-o com incredulidade; punha e tirava os óculos para melhor examinar o fugitivo, agora sentado diante dele, todo bem trajado, e para reler o diploma oficial!Depois de ter abandonado o lar, meu pai empregara-se no consultório de um clínico, servindo como porteiro, farmacêutico, assistente no seu escritório e nas suas visitas. À noite, tomava emprestados os livros do médico para estudar e, quando amanhecia, o dia encontrava-o debruçado sobre eles. Somente uma constituição enrijecida pelos trabalhos do campo lhe permitiria resistir a semelhante tensão. . . Foi depois12ANTES DO DESASTREpara Matsue e empregou-se no hospital de um ginecologista, o Dr. Tano, a maior autoridade sobre o assunto em toda aquela região. Ali também, trabalhando durante o dia, estudando à noite nos livros da excelente biblioteca, aumentou enormemente os seus conhecimentos. Por isso, até hoje, na família Tano, conservam a lembrança do "jovem Nagaí, tão aplicado e estudioso".Seus esforços tornaram-no capaz de passar, de uma vez, depois de 4 anos apenas, todos os exames de medicina. Em seguida, meu pai trabalhou com Tano perto de quatro anos: casou-se e eu nasci no seu quarto de assistente. Com 28 anos foi convidado a se estabelecer num vilarejo a 10 quilómetros de distância. .. Como êle e sua esposa viveram então naquela região isolada constituiria, em si, matéria para outra história. Moravam numa cabana onde os ursos passeavam no jardim, onde os macacos se escondiam no mato mais próximo, onde se podia ouvir o uivo de lobos; uma zona cujo nível de cultura não progredira desde os tempos mitológicos !. . .Meus pais lutaram para ali introduzir o seu jovem ideal de progresso. Juntos faziam seus passeios, estudavam, distraíam-se arranhando a shamisen (guitarra de 3 cordas), pescando trutas ou galopando por montes e vales.Nunca me forçaram a estudar. Eles pareciam tão felizes quando se debruçavam sobre os livros, que me inspiravam o desejo de imitá-los. Vejo-os ainda sob um pequeno lampião de querosene, um tratado de medicina entre os dois, enquanto no jardim arrulhavam as pombas com ternura.13OS SINOS DE NAGASAKIInfelizmente, meu pai morreu de câncer aos 59 anos. Minha mãe dera-lhe 5 filhos e deve ter trabalhado arduamente para educá-los, fazendo ao mesmo tempo todo o serviço da casa, ajudando o esposo médico, ocupando-se dos que o procuravam. Nunca a vi, entretanto, de fisionomia fechada: sorria constantemente.Como educadora, foi bastante severa, não em relação aos erros ou irreflexões, mas sim, ao egoísmo e à maldade. Aos 5 anos, recebi dela um castigo cuja lembrança guardei para sempre. Não me recordo das minúcias. . . devo ter respondido com insolência. Agarrou-me pelo braço, tirou-me a roupa e abriu a porta da casa. Nevava: de um só

golpe atirou-me sobre a camada de neve que devia ter 2 metros de espessura. . . Sinto ainda o tremor que se apoderou de mim, o medo que me causou aquele enorme lençol branco.Hoje é que avalio o trabalho que deve ter tido para transformar um bebe chorão, egoísta e obstinado, numa criança bem educada !. . .A carne e o sangue.Desde os meus cursos de humanidades, fiquei seduzido pelo materialismo. Logo que passei para os estudos médicos, deixei-me facilmente convencer de que o homem é somente matéria. Não nos mostravam, nas aulas de anatomia, elementos materiais que — conforme diziam os mestres — constituíam o ser humano ? A maravilhosa estrutura do corpo tomado14ANTES DO DESASTREcomo um todo, o complicado sistema de suas particularidades mínimas causavam nossa admiração; mas o que eu manejava assim não era, na verdade, senão matéria pura, sob todos os pontos de vista. Passando para a fisiologia, estudei as complexas e coordenadas funções do organismo, explicadas como fenómenos físico-químicos de excitação e de reação... As lições recebidas não deixavam aparentemente nenhum lugar à pretensa existência da alma e do espírito.Depois de termos dissecado os cadáveres, começámos a analisar, com a mesma frieza, os nossos próprios corpos vivos: o corpo é um composto orgânico de elementos tais como oxigénio, azoto, etc.. . . que, por si mesmos, nada têm de respeitável. A vida não é, pois, senão o encontro, a repartição desses elementos segundo os fenómenos físicos ou químicos. Coisa alguma permanecia, então, digna de veneração no homem: com a morte êle se decomporia, voltando àqueles elementos. A vida só durava até o túmulo: nada mais certo, portanto, do que passá-la na alegria, no prazer, até o momento de sermos despojados. Bebamos, cantemos, dancemos, divirtamo-nos antes que o sangue da juventude se arrefeça.Não tendo nenhum respeito pela carne, nunca tive escrúpulos em profaná-la. Persistia, é verdade, no fundo de meu coração, uma vaga inquietude que se recusava a acalmar-se; mas referir-se à voz da consciência teria sido, decididamente, uma volta a um mito caduco.A palavra suprema da moda era a ciência todo-poderosa, o positivismo. Lançavam-se no esquecimento do passado os fantasmas da consciência.15OS SINOS DE NAGASAKISe é real a existência de almas e espíritos, como o afirmam os velhos, que o mostrem; queremos vê-los com nossos próprios olhos ! Mas não; esses espantalhos foram inventados por despeito contra os jovens, para estragar os seus prazeres. . .Durante as férias da primavera, entre meu segundo e terceiro ano de universidade, minha mãe foi acometida de um ataque de apoplexia. No momento em que eu me precipitava à sua cabeceira, havia ainda nela um sopro de vida; expirou, olhando-me com insistência. Este último olhar maternal abalou completamente a minha filosofia materialista. Os olhos daquela mãe que me dera a vida, que me educara e me amara até o fim, aqueles olhos diziam-me claramente que, mesmo após sua morte, permaneceria sempre junto de seu querido Takashi. Fixei aqueles olhos, eu que negava a existência da alma, e instintivamente senti que a alma de minha mãe existia: ela separava-se do seu corpo, mas não pereceria jamais.Terminadas as cerimonias do funeral, nossa casa privada agora da voz alegre de minha mãe, recaiu na sua tranquilidade. Profunda transformação, todavia, operava-se em mim.

Apesar de todos os meus esforços, não conseguia convencer-me de que o que havia sido "minha mãe" estivesse completamente destruído. Meus olhos abriram-se, pela primeira vez, ao mundo espiritual.O 3.° ano de universidade nos iniciou à prática clínica nos seus diversos ramos. Começamos a estudar16ANTES DO DESASTREcorpos vivos. Diferiam bem dos cadáveres e outro tanto dos animais de experiências. Víamos também que não eram macacos superiores. Criatura à parte, o homem vivo é, certamente, "carne e sangue", mas com alguma coisa a mais.Foi no momento em que eu fazia estas constatações que li a obra de Pascal: "Pensées". Introduzir diretamente um prisioneiro do materialismo no pensamento de um sábio dotado de uma fé profunda, era como que mergulhar um profano no estudo da astronomia, sem nem ao menos o auxílio de um telescópio. Meus pés estavam presos ao solo; rneu olhar tentava em vão atingir os céus. Meu coração, cheio de impaciente emoção, agitava-se no vácuo. O que Pascal dizia parecia-me verdadeiro, irrefutável; mas não podia aceitar tranquilamente aquelas verdades como autênticas. As almas. . . eternidade. . . Deus. Nosso grande precursor, o físico Pascal admitira, pois, seriamente estas coisas ! Aquele sábio incomparável acreditara verdadeiramente nelas ! Que deveria ser esta fé católica para que um cientista como Pascal as pudesse aceitar sem contradizer a sua ciência ?E assim, muito naturalmente, a minha curiosidade orientou-se para o catolicismo. Bem ao lado da Universidade, erguia-se a igreja de Urakami, a mais bela catedral do Extremo Oriente; mais de dez mil católicos viviam à sombra de suas torres. Todos os dias, até então, pelas janelas do auditório, contemplei, com um olhar de admiração, o grande edifício de tijolos. Escutara, com misterioso espanto, o Ângelus do meio-dia. Muitas vezes, porém, vendo as 17OS SINOS DE NAGASAKIprocissoes de véus brancos saírem da igreja e tomarem o caminho que margeia a Universidade, para irem até o cemitério, desprezei-as como sendo formadas de escravos pervertidos de um culto ocidental. E este sentimento impediu-me de me interessar por eles. Agora, no entanto, que minha filosofia fora despedaçada por Pascal, começava a olhar a catedral com olhos diferentes.Resolvi, finalmente, estabelecer-me em Urakami. A fé daquela gente era simples, mas firme. Jamais tentaram doutrinar-me, mas muitas vezes vi-os reunidos para rezar por "intenções particulares". Como poderia adivinhar que eles se reuniam a fim de pedir por nós, seus irmãos pagãos ? Só o soube depois de minha conversão.Prosseguia eu no meu trabalho. Empreendendo por conta própria certas experiências precisas, verifiquei até que ponto os resultados podem variar segundo os métodos de experimentação; compreendi que existiam limites ao que este ou aquele sistema permitia concluir ou afirmar. Constatei, igualmente, que o domínio que pode ser explorado pelos métodos das ciências naturais e submetidos às suas leis, tem, êle próprio, suas fronteiras e dentro das quais jamais poderão ser resolvidos todos os problemas do universo: a existência da alma, por exemplo, não depende dos processos científicos. Mas esta existência pode ser provada por outros métodos: meu erro estava, precisamente, em teimar nas provas científicas. Eu negava a existência da alma por estar preso a um falso axioma: a ciência é o único meio para descobrir a verdade. Na continuação, fiquei 18

ANTES DO DESASTRErealmente surpreendido de encontrar o domínio da ciência tão imperfeito e cheio de contradições. Mais perturbado ainda fiquei, constatando que certas leis, geralmente admitidas,. não eram, na verdade, mais do que simples hipóteses. Cheguei assim a conhecer melhor a carência da ciência humana, a imperfeição de nossos sistemas de pesquisas, e a pensar que devemos ser mais humildes. Fazendo, por fim, a experiência pessoal do mundo sobrenatural, envergonhei-me do tempo em que negava a existência da alma. Foi então que, pela primeira vez, comecei a compreender os "Pensamentos" de Pascal.Logo depois que voltei do meu serviço militar na Mandchuria, recebi o batismo. Esclarecido pelo Espírito Santo, comecei a penetrar no âmago do Universo: o homem vivo, combinação de alma e de carne, que a morte dissocia, provisoriamente; o homem criatura, feito para a glória de Deus e a felicidade do céu; o homem, imagem de Deus, que não podemos profanar. Fatos que só aprendi a discernir depois de ter deixado a Universidade. Aprendi a conhecer a alma e sua dignidade e, desde então, compreendi igualmente o respeito que devemos à carne. De modo especial, indo comungar, repetindo esta experiência de união com Jesus Cristo, percebi que não podia tratar meu corpo de qualquer maneira. A hóstia santa, corpo do Cristo vivo, é dada aos fiéis durante a missa. A alma do comungante torna-se uma com o Cristo, enquanto seu corpo recebe o pão.Jesus disse também: Quem come deste pão viverá eternamente. Aprendi assim a respeitar meu19OS SINOS DE NAGASAKIcorpo porque êle ressuscitará no último dia, de novo unido à alma. Se o corpo, pela morte, deixasse de existir definitivamente, poderíamos, sem consideração, atirá-lo à cova como um chinelo de palha. Mas essa carne deve voltar à vida como corpo glorioso à face de Deus. Não pode, pois, ser mal tratada. Respeito agora este corpo de carne criado para Deus. E por isso pergunto a mim mesmo se essa leucemia provém de uma vontade amorosa do Pai ou se houve, na sua origem, uma negligência culposa da minha parte. Não terei contas a dar do meu julgamento individual ? (1).Até o último momento de minha vida tomarei todos os remédios que me ordenar a consciência. Além do mais, quero utilizar meu corpo para preciosas experiências na pesquisa de um tratamento específico da leucemia. Não farei coisas arriscadas, como um homem prestes a se afogar agarrar-se-ia ao menor fio de palha; nem tomarei qualquer remédio de charlatão. É com prudência e respeito que cuidarei deste corpo enfermo.Não deve êle contribuir à felicidade da geração desta nova época, época atómica, e, em última análise, à glória de Deus ?. . .(1) O Dr. Nagaí contraiu, de fato, esta doença nos longos anos de pesquisas no campo dos raios X, em benefício dos doentes.20ANTES DO DESASTRECivilização.Antes da guerra, minha mulher e eu fomos um dia convidados pelos Higashiyama. Éramos grandes amigos da família e, sem protocolos, fizeram-nos entrar no salão.Durante várias gerações os Higashiyama foram senhores feudais e, ao mesmo tempo, proprietários das principais pesqueiras das ilhas Goto. Nada apresentavam do "nouveau riche". O salão continha valiosas peças de mobiliário, cujo aspecto indicava cuidados seculares. Os membros da família receberam educação aprimorada: discutimos sobre os

romances de Bourget, ouvimos um belo disco de Mozart, enquanto saboreávamos um delicioso chocolate quente e uma fatia de melão, servidos pela senhora Higashiyama.Despedimo-nos de bom humor, em parte talvez, também, por causa do excelente vinho que nos foi oferecido !Aproximando-nos de nossa casa, ficamos chocados com a sua aparência miserável, como se a víssemos pela primeira vez. . . Entrando na nossa sala familiar, sentei-me e deitei um olhar em torno de mim: a escrivaninha barata, fabricada por sentenciados numa casa de detenção, e coberta de papéis, tudo numa desordem tremenda. Do outro lado do cómodo, a máquina de costura de onde pendia a manga de uma camisa em confecção.21OS SINOS DE NAGASAKI— Que maravilha a casa dos Higashiyama, exclamou minha mulher, repondo seu vestido caseiro. Suponho que isso é que se chama cultura ?. . .— Com certeza. Deve ser.— Não acha você que, mesmo à custa de um esforço permanente, nunca chegaríamos a levar vida semelhante ?— E ela não seria de utilidade alguma. Na nossa atual sociedade, os Higashiyama são o que se chama puros "consumidores". . .— Pode ser. . . Mas nós, então ?— Nós somos o contrário. Somos os "produtores", no ponto de vista cultural.— No fundo, é isso mesmo, concluiu ela, depois de um momento de reflexão.Parecia de novo tranquila. Sua máquina de costura retomou o ritmo habitual, enquanto eu recomecei as mensurações radiográficas, sobre minha mesa feita por um prisioneiro.Nesse pequenino cómodo de seis esteiras (1), nós dois constituíamos uma fonte de cultura: o médico-pesquisador, pobremente trajado, e a modista, manejando um corte de chita.Agora, mesmo esta humilde companheira me falta; o quarto foi reduzido a cinzas com a escrivaninha e tudo o mais. Sou um doente, abrigado(1) Os japoneses constroem e medem os cómodos de sua casa pelos múltiplos da "esteira" de palha clássica, que mede, aproximadamente 1,80 X 0,90 m. Um quarto de seis esteiras equivale a um quarto de 2,70 X 3,60 m.22ANTES DO DESASTREsob cobertas recebidas de esmola, alojado numa cabana, no meio de ruínas.Continuo, todavia, o trabalho de minha dissertação; prossigo nos meus estudos. . .E mantenho a minha convicção de que, pobre e doente, permaneço um homem de cultura.Maru-boro (Panquecas).Fui convidado para fazer uma conferência na Associação das Senhoras, num templo budista, no extremo da cidade de Tabira.Levaram-me à ante-sala e, depois das apresentações, as diretoras deixaram-me só, para os últimos preparativos. Arriscando-me a abrir o shoji (cortina de papel, servindo de porta, de janela, de parede...) vi-me em frente ao mar. . . Estava tão azul, que toda a paisagem parecia tinta de anil. Da altura em que me achava, meu olhar, penetrando através das águas, nelas via nadar, preguiçosas, milhares de lagostas magníficas. Seria por causa do mar azul que as lagostas pareciam tão belas ? E por que seriam tão vermelhas as libélulas, no ar do outono ? Como estas, meus pensamentos esvoaçavam de um lado para outro, até que fui trazido à realidade por uma voz musical.— Aceita uma xícara de chá, doutor ? Voltei-me e vi uma jovem sorridente, num

quimono de algodão brilhante.— Pronto ! aqui está a rainha das fadas, disse eu maquinalmente.23OS SINOS DE NAGASAKIA "rainha das fadas" enrubesceu fortemente. . . Sob os traços carmesins a curva clara do pescoço deu-me a impressão de algo irreal, de uma flor desabrochada do quimono azul escuro.A moça hesitou um instante, saudou-me profundamente e saiu. Uma xícara de gyokuro (chá verde) e um prato cheio de maru-boro (panquecas) permaneciam os únicos testemunhos de sua rápida passagem. De fato, somente uma fada poderia ter trazido aquele chá e aquelas panquecas com o sabor "dos bons tempos". Comi um maru-boro, apanhei um segundo, e estava pronto a devorar um terceiro. . . quando pensei nos meus filhos, que me esperavam em Nagasaki. Nunca, na sua vida, tinham provado semelhantes gulodices, feitas com verdadeiro açúcar, com verdadeiros ovos, e com farinha de verdade !. . . Disfarçadamente abri minha pasta e, no saco de palha em que trouxera minha merenda, empilhei as panquecas. Aliás, para parecer bem educado, deixei duas no prato. . .Terminada a conferência, três membros da diretoria acompanharam-me até à estação. Através de suas conversas superficiais, percebi que estavam ansiosas por dizer alguma coisa. A presidente falou, por fim:— Ficamos muito contentes, Doutor, que o senhor tenha gostado dos nossos maru-boro !Estremeci; minha pasta de repente tornou-se pesadíssima ! Deveria ter explicado, mas covardemente respondi:— De fato, há muito tempo não como panquecas iguais. . . Regalei-me e até me excedi sem perceber.24ANTES DO DESASTRENa certa, as senhoras nunca tiveram um hóspede que esvaziasse o prato !. . .— Tanto melhor, Doutor, mas às vezes ficamos pensando. . .— Em que ?— Como se arranjam em Nagasaki para alimentar as crianças ?— Ah ! eu dou sempre um jeito para os meus.— Suas crianças ? O senhor tem filhos, Doutor ? O espanto deixou-as perplexas, enquanto respondi:— Sim senhora, tenho dois filhos.Não puderam esconder certo desapontamento. Sentia-me cada vez pior, com a minha pasta pesando no braço. A tesoureira, por fim, propôs:— Não deveríamos dar ao Dr. Nagaí alguns maru-boro para os seus filhos ? Vou correndo buscá-los . . .Como que livre de um grande peso, correu em direção à cidade, enquanto as outras puseram-se a rir incontidamente. . . Diante de nós, o mar rolava as suas ondas. . . Não sei por que, pensei de novo na "rainha das fadas".— Diga-nos, Doutor, falou justamente a presidente, como que lendo o meu pensamento, e rindo-se ainda: Que achou o senhor da rainha das fadas ?— A senhora se refere à jovem que me serviu o chá ?— Exatamente.— Sem dúvida, era muito bonita; parecia ter surgido do oceano !... Mas provavelmente mora nesta cidade ?25

OS SINOS DE NAGASAK1— Mora, e pertence a uma família tradicional. Para dizer a verdade, Doutor. . .As duas senhoras riam de novo.— Por que riem ?— Pois bem; para dizer a verdade, nós a mandamos servi-lo com a esperança de que pudesse vir a ser um dia uma boa esposa para o senhor.— Para mim ?— É verdade. Desculpe-nos, mas o senhor parece tão jovem que nunca pensamos que fosse casado.Pus-me a rir também: — As senhoras não repararam nos meus cabelos brancos ?— De longe... na sala de conferências. . . era impossível ver. . .Chegávamos à cidade. Numa casa comercial, a tesoureira recebia o embrulho das panquecas. A presidente exclamou:— Contamos tudo ao Doutor. . . Foram-se as nossas esperanças em trazê-lo para morar na nossa cidade !. . .Neste momento, eu deveria ter feito a minha "confissão". E estava resolvido a fazê-la, quando a tesoureira, saindo da loja com o seu embrulho bem amarrado, disse num ímpeto:— Ah ! o senhor tem uma pasta, tanto melhor ! Dê-me aqui e não terá que levar dois pacotes.A ocasião de contar a verdade já se fora. Nada mais podia fazer senão amontoar mentira sobre mentira. E foi o que fiz, desesperadamente.— Ah ! muito obrigado. A pasta é tão pequena que o embrulho não caberia dentro. . .26\ ANTES DO DESASTRE— Mas não fica bem, a uma pessoa como o senhor, carregar um embrulho assim. Deixe-me fazer e darei um jeito. . .— Em absoluto ! Hoje em dia não temos mais esses preconceitos. Levo como está. . . está ótirno !. . .Uma transpiração fria inundava-me o rosto: entrava em jogo, naquele momento, a honra de ura médico. Se eu segurasse a pasta com a mão direita, a presidente tentaria tomá-la; se passasse para a esquerda, era certo a vice-presidente apoderar-se dela. . . Diante de mim, a tesoureira estava à espreita como um gato diante da sua presa. Esconder a pasta atrás das costas, seria ridículo !. . .Não sei mais qual o milagre que me tirou daquela situação !. . .Recebendo hoje de presente umas panquecas, a lembrança daqueles dias felizes veio-me à memória.Atualmente estou pregado a um leito. Não terei mais ocasião de recomeçar estas brincadeiras. . . e talvez as boas ações me sejam ainda mais difíceis.27

II O CATACLISMOÀs horas que o precederam.Como todos os dias, nasceu o sol por trás do monte Kompira; sobre Urakami apenas despertada, derramava êle a sua luz de ouro. O calendário indicava: 9 de agosto de 1945. A cidade embebia-se de paz pela última vez. Sobre a colina, no quarteirão residencial, as chaminés começavam a fumegar, enquanto as plantações de batata-doce, dispersas nos espaços livres da vertente, brilhavam sob o colorido do orvalho. Em

baixo, ao longo do rio, na fábrica de munições, colunas de fumaça branca erguiam-se das chaminés; e os telhados da rua principal confundiam-se, no horizonte róseo, com as águas do braço de mar.Na catedral majestosa, uma multidão de fiéis rezava pelos erros da humanidade, numa atitude piedosa. Um novo dia começava. . .Como de costume, os cursos da manhã, da Universidade de Medicina de Nagasaki, começaram exatamente às 8 horas. O Exército Nacional Voluntário29OS SINOS DE NAGASAKIdeterminara que os estudantes, embora cumprindo seus deveres militares, continuariam as aulas: classes, laboratórios, hospitais organizaram-se num Corpo Médico auxiliar, e cada um sabia o que teria de fazer em caso de emergência. Todos iguais, nos seus uniformes de defesa antiaérea, a bolsa de primeiros socorros pendurada a tiracolo, professores e estudantes já haviam iniciado seus trabalhos. Cuidadosamente exercitados, porém, estavam prontos para, em qualquer momento, socorrer as vítimas de um reide eventual.A sua eficiência já fora posta em prova, pela primeira vez, na semana anterior: a própria Escola sofrera um bombardeio. Resultado: três mortos, mais de doze feridos. . . Todavia, graças à ativa e corajosa intervenção dos estudantes, nenhum doente foi atingido. Depois deste batismo de fogo, o pessoal da casa estava para sempre familiarizado com a guerra. . .Repentinamente, soou a sirena em sinal de alarma: hoje, de novo, o Kyushu meridional seria objetivo de um ataque de grande envergadura. Com extraordinária rapidez os estudantes espalharam-se nos postos indicados. Os responsáveis percorriam os corredores, davam ordens através dos alto-falantes. A sereia soou ainda, anunciando a queda de bombas; no céu claro da manhã, formavam-se pequeninas nuvens que brilhavam ao sol. Fixando bem o olhar, podia-se entrever os aviões inimigos.Vagas de som, queixosas e enfeitiçadoras, sibilavam nos ouvidos.30\ OCATACLISMO— Parem com isto ! Este barulho maldito ! Já sabemos que elas vêm !, dizia cada um consigo mesmo. Mas as sirenas insistiam, ampliavam seus assobios. Era de enlouquecer: aquela queixa prolongada arrasava toda a coragem. . .As flores das murtas ostentavam-se vermelhas; vermelhas também as espirradeiras; e vermelho-sangue, as canas-da-índia. À sombra dessas flores, os enfermeiros e os estudantes do primeiro ano mantinham-se no seu posto, à entrada do hospital. Comprimiam-se no abrigo, prontos a se atirarem quando necessário fosse.— Como acabará esse diabo de guerra ? perguntou aquele que chegara da Escola Secundária de Kagoshima. . . Vários rapazes e eu juntamo-nos aos Cadetes do ar, acrescentou êle.— Gostaria de saber onde estão os nossos aviões, disse outro, no dialeto arrastado de Osaka.— Para que querer combater ? Não temos a menor chance !.. .Ninguém respondeu: todos, mais ou menos, pensavam como êle. Na verdade, o país achava-se entre a vida e a morte. Começamos a guerra, certamente, para ganhá-la; o governo não abrira o pano sobre esta tragédia numa perspectiva de fracasso. . . Mas desde a perda de Saipan, os comunicados do G. Q. G. revelavam uma posição indecisa e suspeita; os estudantes não tardaram em percebê-lo, e sen-tiam-se pouco à vontade. . .— Hein, seu capitão ? continuou o rapaz de Osaka. Como é que o senhor acha que essa guerra

310 5 SINOS DE NAGASAKIvai acabar ? Erguendo fora do abrigo o rosto redondo, sombreado por duas lentes grossas, fazia lembrar um polvo em miniatura.O capitão Fujimoto mantinha-se imóvel, braços cruzados, olhos fixos no céu. De estatura baixa, mas dotado de nervos de aço, parecia ao seu ordenança, impecavelmente correto no seu uniforme, desde o capacete até as polainas pretas, cuidadosamente calçadas.

Quantas vezes já não havia êle retirado dos escombros pessoas feridas e exangues, ganhando assim a confiança e estima de seus companheiros ?. . . Quando o viam atirar-se por dentro da fumaça e do fogo, todos o seguiam. Trazia sempre consigo o binóculo do pai, e assim que surgiam aviões inimigos, êle os focalizava. Era, sem dúvida, o seu único prazer na sombria realidade da guerra.— Meu capitão, insistiu o rapaz de Osaka; que vai ser de nós ?— Não se trata do que vai ser de nós, mas da maneira como nós reagiremos, respondeu Fuj imoto, com energia. Não é a guerra que decidirá os nossos destinos; somos nós que decidiremos os destinos da guerra. Trata-se de uma prova de fogo entre as juventudes dos dois países.— Sim. . . mas que diabo ! Do jeito que as coisas vão agora !. . . De mal a pior ! É só olhar a diferença dos recursos materiais. . . Que podemos fazer ?. . . Bater com a cabeça na parede ?— Você talvez tenha razão. Mas escute uma coisa, disse Fuj imoto com voz séria e decidida: as bombas vão cair — quem sabe ! — sobre nós; você32O CATACLISMOcontinua a querer discutir ? Claro que não, não é verdade ? Então cumpra o seu dever, estancando o sangue que correr. Eu, pelo menos, é isso que vou fazer.O jovem de Osaka calou-se, mas não se convenceu. Precisamente naquele momento aparecia o vice-capitão, carregando no ombro uma pesada trave de madeira. Era êle formado pela Escola Secundária de Kokura, e chamava a atenção pelo silêncio com que executava o seu dever. Naquela hora tinha apenas uma preocupação: reforçar as vigas das trincheiras de observação, e, trabalhando sozinho, estava alagado de suor.— Que faremos, vice-capitão, retomou o estudante de Osaka, se realmente o inimigo começar a atirar ?— Vivemos e morremos conforme o nosso destino, respondeu o interpelado, abrindo o leque e refrescando o rosto em brasa. O principal é viver e morrer de tal modo que ninguém venha a nos desprezar.Caiu sobre eles um silêncio pesado... As murtas, as espirradeiras e as canas-da-índia mantinham uma imobilidade de sangue coalhado. Através dos galhos fluía o canto estridente das cigarras.Naquele dia competia a mim comandar as equipes de defesa passiva do hospital. Entrei pela porta da frente, percorri o grande corredor, passei por todos os postos e saí, finalmente, pela porta dos fundos. Enfermeiras e estudantes, de uniforme, manti-nham-se alertados, na entrada de cada sala, prontos para qualquer eventualidade. Os baldes cheios33OS SINOS DE NAGASAKI

d'água; as mangueiras de incêndio desenroladas; picaretas, pás, enxadas, tudo preparado. Tudo preparado para desafiar o que viesse. . . Calmamente, transportavam os doentes para os abrigos. . .À entrada da sala de radioscopia, encontrei Ueno, estudante do 3.° ano, rapaz cheio de coragem e de audácia. Durante o último reide, quando a sala de ginecologia começou a incendiar-se, permaneceu êle sozinho, no telhado da sala contígua, até que soasse o fim do alarma. Enquanto carregávamos baldes d'água para o edifício em chamas, os aviões não cessavam de baixar e atirar bombas. Apesar de tudo, Ueno permanecia no seu posto, gritando com toda a força:— Eles vêm e vão ! Já estão indo, meus amigos ! Todos para fora agora; a sala está pegando fogo !E um pouco mais tarde:— Estão de volta ! Ei-los de novo ! As bombas estão caindo ! Depressa, para o abrigo !— Às suas ordens, Ueno, disse-lhe eu desta vez, cumprimentando-o.Perplexo, coçou a cabeça e disse sem outro preâmbulo:— Recebi, outro dia, uma recomendação de minha mãe. Ela me disse nunca fazer cenas; comportar-me de maneira a não chamar a atenção de ninguém. E acrescenta: "Você não é mais uma criança, meu filho." E Ueno calou-se, sorrindo. . .Serventes, com extintores na mão, mantinham-se na saída dos fundos. Nos limites do poder humano,34O CATACLISMOparecia que todas as precauções tinham sido tomadas. Satisfeito, dirigi-me para a ala direita do hospital. Os escombros nas salas de cirurgia, ginecologia e otorrinologia, bombardeadas no reide precedente, pareciam mais trágicos do que feridas humanas. Também ali as espirradeiras estavam cobertas de flores vermelhas, e um ligeiro odor de ácido carbónico flutuava pelo ar. Um súbito arrepio de temor percorreu-me a espinha. . .Entretanto, o sinal de fim de alerta rasgou o ar de lado a lado, como que rompendo os elos de dúvida e ansiedade que pareciam nos acorrentar. . .Quando entrei na minha sala, os estudantes conversavam ruidosamente, retirando seus capacetes. Miss Inoue, a enfermeira de olhos vivos, da Secção de Informações, dava notícias, os olhos mais acesos ainda que de costume:— Nenhum avião inimigo em Kyushu, concluiu ela, transmitindo um comunicado fornecido pelo rádio, alguns minutos antes. O suor cobria suas pálpebras avermelhadas sobre as quais pendiam três mechas de cabelo.Os responsáveis do Q. G. local puseram-se a gritar no corredor:— As aulas vão começar imediatamente !Docilmente, os estudantes voltaram a suas classes; o estudo recomeçou. A Escola readquiriu sua calma e a aparência de um palácio onde homens procuram a verdade.No hospital, os doentes afluíam ao ambulatório; estudantes de branco, juntaram-se a eles, preparando-se35OS SINOS DE NAGASAKIpara os diagnósticos preliminares. Da classe de medicina interna, situada em frente ao meu posto, do outro lado do corredor, chegava-me aos ouvidos a voz agradável do Dr. Tsuno-o, Diretor da Escola, dando o seu curso de clínica médica. . .E foi então que veio a coisa. . .A bomba.

Tsuchimoto está lidando com plantas no cume da colina de Kawabira. Deste local, êle descortina, a três quilómetros para o sudeste, a região de Ura-kami em Nagasaki. O sol do verão envolve a cidade e as colinas com tranquila indiferença.De repente, Tsuchimoto percebe o ruído fraco mas inconfundível de um avião. Ergue-se, foice na mão, e olha para cima. O céu está claro, excetuando uma nuvem larga com forma de mão, justo sobre sua cabeça; o barulho parece vir de dentro desta nuvem. O homem continua a observar, seguindo o som que se desloca, e por fim surge-lhe um B-29 ! O minúsculo objeto de alumínio está na extremidade esquerda da nuvem, a uma altura que êle calcula em oito mil metros. Fixa o olhar no pássaro de prata e diz consigo mesmo: Jogaram alguma coisa. . . preta, comprida; é uma bomba. Uma bomba !Tsuchimoto atira-se ao solo. Passam-se cinco segundos, dez, vinte, um minuto. Permanece na mesma posição, contendo a respiração. . . Brutalmente36O CATACLISMOatravés do firmamento, brilha uma luz. "Luz terrível, pensa êle, mas sem barulho; é estranho !" Nervosamente, receoso, ergue a cabeça. "É mesmo uma bomba e atingiu Urakami !" Do lugar onde se acha a catedral, começa a subir uma coluna de fumaça branca que se alarga cada vez mais.O que o aterroriza, porém, o que lhe congela o sangue, é o imenso sopro que se desprende por baixo da nuvem branca. Com uma velocidade espantosa, passa sobre colinas e campos que se despedaçam pela força do fenómeno. Antes que o espectador tivesse tempo de pensar, o sopro já ceifou a floresta em frente, vai arrasar o local onde Tsuchimoto se deitara.Dir-se-ia gigantesco mas invisível compressor, destruindo tudo à sua frente. "Pronto ! vou ser esmagado", pensa Tsuchimoto, e juntando as mãos, cola o rosto contra o chão, murmurando: "Meu Deus ! meu Deus !"Um barulho tremendo fere seus ouvidos: sente-se soerguido e atirado de encontro a um muro de pedra, a cinco metros de distância. . .Quando, por fim, cria coragem para abrir os olhos e olhar em torno de si, vê as árvores arrancadas, nem mais uma folha, nem mesmo a relva. Tudo foi levado. Permanece no ar um odor de resina. . .Furue voltava para casa, vindo de Michino-o para Urakami. Ladeando a fábrica de munições, pareceu-lhe ouvir o barulho de uma hélice. Ergueu os olhos e viu no céu, à altura do monte Inosa, na37OS SINOS DE NAGASAKIdireção do bairro Matsuyama, uma bola de fogo vivo. Uma bola incandescente não bastante forte para cegar, mas brilhante como estrôncio numa lanterna. A bola vinha descendo. Não podia calcular o que fosse: para se certificar, tapou uma das vistas e fixou melhor com a outra. Veio então a explosão, fulgurante como uma explosão de magnésio. Furue sentiu-se arrebatado no ar. . . Só muitas horas mais tarde voltou a si: fora atirado a um arrozal, juntamente com a sua bicicleta. Um de seus olhos irremediavelmente perdido...Escola primária de Kagakure, a 7 quilómetros de Urakami. No jornal dos alertas aéreos, Tagawa, um instrutor, registra os fatos do momento. Levanta-se depois e olha pela janela. Diante dele, em baixo, entre a região plana do país e o céu azul, estende-se a cidade de Nagasaki.Inesperadamente, o céu se ilumina um instante, ofuscando-o com uma luz que empalidece o próprio sol de verão.. .

— Que ideia de usarem faróis em pleno dia ! pensou o instrutor, debruçando-se para ver melhor. Mas que espetáculo se lhe depara então !— Corram aqui ! grita êle aos colegas que se achavam na mesma sala. Venham ver ! que é aquilo ?Precipitam-se todos para a janela. Uma coluna de fumaça branca ergue-se de Urakami e não cessa de avolumar-se. Que é aquilo ? que é aquilo ? exclamam os espectadores, vendo a tocha transformar-se num cogumelo gigantesco, de mais de um quilómetro de diâmetro...33O CATACLISMOSopra então tremendo vento: abala-se a sala, despedaçam-se as vidraças, cobrindo os instrutores de estilhaços.— É uma bomba, e a Escola foi atingida. Es-condam-se ! grita Tagawa, precipitando-se para o abrigo cavado na colina, atrás da escola.Reina ali absoluta calma. Todavia, enquanto se acomoda sobre a terra fresca, no escuro subterrâneo, como poderia supor que, naquele mesmo instante, na sua casa de Urakami, a esposa e os filhos exalam o último suspiro, chamando por êle !. . .A pequena cidade de Oyama estende-se sobre a vertente do monte Hachiro, ao sul do porto de Naga-saki, distante uns oito quilómetros de Urakami. Dali, para além da baía, vê-se, no horizonte nebuloso, a bacia de Urakami.Kato trabalhava no campo, com seu búfalo. Acabara de encontrar uns morangos vermelhos, destacan-do-se na relva muito verde. Morangos agrestes. Posse a comê-los tranquilamente. . . Neste momento viu um clarão. O búfalo também pressentiu algo e, sob o choque virou a cabeça. Uma nuvem igual a uma grande bola de algodão desfiado formou-se no céu, acima de Urakami. Começou a avolumar-se, avolumar-se cada vez mais. Dir-se-ia uma lanterna envolta em lã. O exterior era branco, mas dentro brilhava uma chama viva que, através da bola branca lançava relâmpagos de todas as cores do arco-íris. Belos relâmpagos vermelhos, roxos, amarelos... A seguir, a nuvem tomou a forma de uma brioche e a39OS SINOS DE NAGASAKIparte superior começou a subir, a subir, a subir, asse-melhando-se a enorme cogumelo. No mesmo instante, um negro remoinho de poeira e escombros ergueu-se do vale de Urakami. A impressão é que tudo estava sendo aspirado pelo cogumelo que continuava a subir.De repente, a nuvem principiou a descer e des-viou-se para leste. O torvelinho girou mais alto do que as colinas; depois, uma parte tornou a descer, enquanto outra se desprendia do mesmo lado que a nuvem. . .O dia estava lindo: colinas e mar banhados de sol; mas a região de Urakami, sob a nuvem, aparecia negra e desoladora.Veio o sopro gigantesco. As roupas de Kato foram agitadas; as folhas arrancadas das árvores, mas o sopro já perdera muito de sua força. O búfalo não se perturbou e Kato pensou: "Pronto ! mais uma bomba, e não muito longe daqui..."Takami reconduzia seu búfalo até Koba, caminhando ao longo da estrada de Odorize, a dois quilómetros de Urakami. De repente sente como que um bafo quente. Aparentemente, não é calor forte, entretanto, ele e seu animal ficam queimados. E logo a seguir, bolas de fogo caem sobre eles, assobiando. Uma delas atinge seu pé e explode, deixando um rasto de fumaça branca e um cheiro de parafina derretida. Aqui e ali, uma chuva de fogo ateia incêndios sem conta...40

O CATACLISMOAs horas seguintes.A distância que separava o centro da explosão dos prédios da Universidade, variava, conforme o caso, de 300 a 700 metros; assim sendo, esses edifícios foram atingidos em cheio pelo furacão. Num abrir e fechar de olhos, as salas de Medicina Fundamental, construídas de madeira e que se encontravam mais próximas, foram derrubadas, demolidas e incendiadas. Nenhum professor ou aluno sobreviveu para descrever a cena. Nos postos de Clínica Médica, construídos de cimento e mais afastados, algumas pessoas, entre as quais eu mesmo, tiveram a sorte de se salvar.Passava um pouco de 11 horas. Estava eu no meu quarto, no 1.° andar do edifício principal, em cima do ambulatório dos doentes externos. Separava as radiografias que deveria exibir aos estudantes. Repentinamente houve um relâmpago, um choque. Um breve instante julguei que uma bomba houvesse explodido na entrada. Quis me deitar no chão. . . não consegui: naquela hora as janelas foram impelidas para dentro, vento impetuoso suspendeu-me no ar, levando-me a certa distância, com os olhos abertos. Os estilhaços de vidro assobiavam, cortando o espaço como folhas num louco rodopio. "Estou perdido !" foi o que pensei.Enorme punho invisível parecia tudo revolver dentro da sala. Enquanto eu continuava estirado no chão, cama, cadeiras, armários, capacetes, sapatos, casacos, tudo foi igualmente despedaçado, dispersado,41O CATACLISMOlevantado e atirado novamente sobre mim. Um vento poeirento e nauseabundo, entrando-me pelas narinas, obrigou-me a tossir com força. . . Continuava de olhos abertos e olhava pela janela.Lá fora, as trevas invadiam o espaço, enquanto no interior, o vento desencadeava-se como o rumor de ondas, o ronco da tempestade: arrastando, consigo, de um para outro lado, pedaços de madeira, de roupa, folhas de zinco e toda sorte de objetos, numa dança demoníaca.Seguiu-se um silêncio estranho.— Que coisa espantosa ! pensei comigo mesmo. Deve ser uma bomba diferente... de mais de uma tonelada, com certeza. . . e caída perto da entrada. Aposto que há mais de cem feridos. Onde vamos colocá-los ? Temos que cuidar deles. . . mas como ? Em todo caso, a primeira coisa a fazer é pôr o pessoal trabalhando nas classes. O pior é que talvez muitos deles não estejam em condição de andar. . . De qualquer jeito, eu é que preciso sair daqui.Tentei esticar os joelhos, retirar as pernas de sob os escombros. Mas de repente tudo escureceu e não enxerguei mais. "E agora ? que devo fazer ?" pensei.Ferido na região dos olhos, imaginei a princípio que a hemorragia procedesse do globo ocular e me estivesse cegando; logo descobri, porém, que podia ainda mover com os olhos. Constatando que não ficara cego, avaliei, pela primeira vez, o horror de minha situação: "Todo o edifício deve ter sido destruído e eu estou enterrado vivo ! Engraçada e ridícula maneira de morrer ! Devo fazer tudo o que42O CATACLISMOpuder antes de chegar a isso !" Comecei então uma luta titânica para sair daquele amontoado de paus, vidros, cacos e objetos que me retinham prisioneiro. Mas estando achatado como uma folha no seu impressor, não me foi possível fazer o menor movimento. Nem o rosto podia virar, senão com imensa cautela, por causa da quantidade de vidro quebrado em volta de mim. Além do mais, a escuridão era completa

e eu nada sabia quanto à natureza e ao equilíbrio das coisas que me esmagavam. Um ligeiro movimento do ombro direito provocou o desmoronamento de uma porção de objetos. Gritei por socorro: todavia minha voz se perdeu na escuridão.A enfermeira Hashimoto encontrava-se na sala de raios X no momento da explosão. Teve a sorte de estar de pé entre as estantes, e não foi ferida. Durante os minutos horríveis em que os objetos inanimados pareciam dotados de vida, por um poder misterioso, e rodopiavam com assustador barulho, ela permaneceu presa à parede. Depois de alguns minutos, embora pairasse ainda no ar uma poeira bastante densa, teve a impressão de que pelo menos os objetos mais pesados tivessem parado. Lembrou-se de que era tempo de ir em socorro dos feridos, esgueirou-se entre as estantes derrubadas, e quedou-se estupefata diante do que a rodeava. Tudo estava de pernas para o ar. Trepando pelos escombros chegou à janela, e deparou então com uma cena que a fêz estremecer. Que teria acontecido ? Não podia compreender. Há poucos minutos atrás, uma cidade estendia-se ali em frente até as águas do estreito.43osSINOSDE NAGASAKIOnde estavam Sakamato-cho e Swakawa-cho e Hama-guchi-cho ? Desaparecidas ? Mas onde ?. . . E as fábricas que ainda há pouco ali se achavam, atirando penachos de fumaça ? E o monte Inosa que esta manhã ostentava um intenso verde e parece agora uma rocha árida e seca ? Todo verde, folhagem ou relva, tinha desaparecido. A terra fora despojada.Que fim levou aquela gente toda que estava perto da entrada ? Olhou naquela direção, viu o pátio em frente ao hospital coberto de árvores arrancadas, e entre elas, incontável número de cadáveres nus. Escondeu o rosto entre as mãos e exclamou: "É o inferno ! o inferno !" Mas era também um mundo morto. Um mundo morto onde não sobrara ninguém, nem que fosse para gemer. Enquanto mantinha as mãos no rosto, tudo escureceu; reabriu os olhos e olhou em torno: impossível distinguir alguma coisa: estava envolta em breu e nenhum som lhe chegava aos ouvidos.Imaginou de repente que somente ela continuava viva neste mundo, e o pavor imobilizou-a. De um minuto para outro a morte viria para ela também. . . Num relance viu sua casa no campo, e sua mãe; esteve a ponto de desatar no pranto, pois, apesar de tudo, tinha apenas 17 anos. . . Nesse momento, porém, ouviu uma voz. Alguém falava perto, cada vez mais perto. . . embora o som parecesse chegar a ela somente através das paredes.Ainda um grito: era a voz de seu chefe de serviço. Êle vivia, então ! E se êle vivia, os dois ao menos poderiam se ocupar dos cadáveres na frente do hospital. A coragem de Miss Hashimoto renasceu.44O CATACLISMOGuiada pela voz, tentou chegar a sala ao lado. Esbarrou no que lhe pareceu ser o aparelho de raios X e seus pés tropeçaram nos fios elétricos. Impossível prosseguir, pensou. Entretanto, conseguiu chegar a um canto, onde, habitualmente, havia uma pá guardada. Mas essa fora retirada dali e, no lugar, encontrou um alto-falante. Lembrou-se então de que, embaixo, na sala de radiografias, vira umas enxadas. Além do mais, ali estariam a enfermeira-chefe e outros. Quanto maior número de pessoas chamasse para ajudar, melhor seria. Animada por essa ideia, conseguiu sair da sala.Os black-outs tinham-na habituado a percorrer os corredores na escuridão; mas apenas dera alguns passos, esbarrou numa coisa de consistência mole. Abaixou-se, apalpou,

reconheceu um corpo humano e sentiu uma substância pegajosa que só poderia ser sangue. Procurou o braço, tomou o pulso: imperceptível. Juntou então as mãos para uma pequena oração e deu novos passos, até tropeçar de novo em outro corpo. Cabelos grudados aderiram à sua mão. A escuridão continuava completa; não podia determinar quantos mortos jaziam em torno dela. Enquanto apalpava o pulso, escancarava os olhos, tentando enxergar. . .De repente, lá fora, surgiu um clarão: fogo ! As chamas cresciam iluminando um espetáculo verdadeiramente alucinante. Deixando cair o braço do morto, a enfermeira manteve-se de pé, como um fantasma vivo. Por todos os lados do corredor, só havia cadáveres. Envoltos numa luz escarlate, uns tinham o rosto voltado para o céu; outros estavam caídos de45OS SINOS DE NAGASAKIlado ou de bruços; alguns tombaram de joelhos ou pareciam ainda, com seus braços rígidos, lutar em vão para se erguerem.Impossível fazer qualquer coisa sozinha, pensou a jovem. Era preciso uma equipe de socorro, um trabalho coordenado para chegar a um resultado. Antes de tudo, porém, o que se impunha era reunir os vivos e os válidos, no local onde o chefe de serviço jazia soterrado. Com essa ideia, Miss Hashimoto pôs-se a pular os corpos — desculpando-se interiormente, perante cada um — e desceu, com dificuldade, as escadas em ruínas até a sala das radiografias.Miss Tsubakiyama, jovem aluna de enfermagem, Shiro Tomokiyo e o Dr. Choro Si estavam preparando o aparelho de raios X. De repente, o barulho fraco mas agudo de um avião feriu-lhes os ouvidos.— Que será ? perguntou Miss Tsubakiyama.— Um B-29, respondeu Shiro, continuando a dispor o aparelho.— Jogaram uma bomba, disse Choro, que, durante o reide precedente fora ferido na perna.— É melhor fugir ?— Parece que sim, e o mais depressa possível. Escondam-se !Meteram-se os três debaixo de uma grande mesa. Houve o clarão e a seguir o estrondo.— Mais uma ! exclamou Shiro, mas sua voz per-deu-se no ruído da tempestade infernal que desencadeara na sala. Mantinham-se imóveis, esperando46O CATACLISMOo fim do tumulto. Miss Tsubakiyama continha a respiração; por fim falou:— Machucados ?— Não, e você ?— Também não sinto nada. . .— Enfermeira-chefe ! gritaram juntos.— Já vou ! respondeu da peça ao lado, a voz tão familiar. Esperem um pouco. Um mundo de coisas caiu em cima de mim !Houve então um estrondo terrível e uma escuridão completa os envolveu. A figura côr de cinza de Miss Tsubakiyama, sentada em frente dos dois outros, desapareceu aos seus olhos.— Que vem a ser isto ? murmurou Choro e prosseguiu: deve ser um novo tipo de bomba, como a que jogaram em Hiroshima. . . Ou será que o sol estourou ?— Pode bem ser; não notam como começou a esfriar de repente ? observou Shiro num tom pausado.

— Se o sol estourou, que nos vai suceder ? indagou a voz hesitante e cansada de Miss Tsubakiyama.— Será o fim do mundo. . .Choro parecia resignado. Esperaram, mas as trevas permaneciam. Um minuto passou. Num tique-taque fraco, o relógio de pulso da enfermeira marcava segundos eternos, num ritmo angustiante, dentro da tensão da noite.— Que vamos fazer para o almoço ? disse Shiro.— Eu já comi ! respondeu Choro. Vocês ainda têm provisões ?47OS SINOSDE NAGASAK1Parecia desejar uma última refeição, ar. Les de morrer.— Eu tenho. Vamos dividi-la, enquanto ainda vivemos...Mas, como um trem que vai saindo do túnel, o barulho cessou gradativamente. A luz voltou pouco a pouco. A dentadura branca de Choro apareceu de novo e seu nariz comprido, e a pintinha no rosto de Miss Tsubakiyama.— E o sol então ? Portou-se como devia, afinal, concluiu Shiro.— Estou com fome, apesar de tudo, declarou Choro; traga seu lanche !Saíram de sob a mesa, defendendo-se de uma camada de vidro quebrado, de instrumentos partidos, de cadeiras em pedaços, de fios embaraçados.— Onde poderá ter caído este diabo de bomba ? Para ter-nos sacudido assim, só tendo caído aqui em cima. Mas não vejo rombo no teto.— Você ouviu-a cair ?— Não!— Talvez seja uma espécie de mina aérea. .. Explosão no ar ?— Seja como fôr, é medonha ! Conversavam ainda quando a enfermeira-chefe,Miss Hisamatsu pulou dentro da sala como uma bola de borracha. Era, aliás, o seu sistema ! Arrumando com as duas mãos o cabelo em desalinho, perguntou: — Estão sãos e salvos ?Naquele mesmo instante, uma enfermeira do 1.° ano, saindo não se sabe de onde, veio, soluçando, agarrar-se à enfermeira-chefe.48O CATACLISMO— Que bobinha ! disse esta. Você ainda está viva, isso não basta ?Mas a jovem continuava em prantos. Provavelmente alguém fora atingido a seu lado.— Vamos, ponha a sua touca, procure umas bandagens, prosseguiu a chefe com voz doce mas firme...Um cano tinha sido furado e um filete de água escorria. Miss Hisamatsu aproximou-se, lavou as mãos, o rosto e gargarejou.— Tenho a sensação de ter sido gaseada, disse ela, e recomeçou a gargarejar com mais força. Parecia que arrancava os pulmões da gente !— Tsubakiyama-san, venha lavar as mãos, ordenou ela. Se você tocar nas feridas com essas mãos sujas, elas se infeccionam imediatamente. Você também, Tomokiyo-san; lave as mãos e o rosto. E você, Si-san, prepare-se depressa. Há uma infinidade de feridos.Todos a atenderam e prepararam-se para enfrentar o trabalho. Mas eis que ouvem um crepitar: Miss Tsubakiyama corre à janela e exclama:— Tudo está pegando fogo !Os recém-escapados, agarrando baldes, precipi-tam-se então para o local onde irrompera o incêndio.

Uma pilha de madeira velha, proveniente de demolições anteriores, já formava braseiro imenso no local da antiga sala de radiologia. Puseram-se eles a atirar água sobre as chamas, concentrando seus esforços sobre um único lugar, conforme lhes haviam determinado. Mas este foco não era o único. A cantina demolida estava envolta em chamas; de al-49OS SINOS DE NAGASAKIguns edifícios de madeira, as labaredas surgiam também. Somente os pavilhões de cimento mantinham-se intactos.Durante algum tempo continuaram seu trabalho, mas era bem pequena a superfície atingida e o incêndio alastrava-se rapidamente. Verificaram logo que os baldes de água de nada serviam. As chamas erguiam altas colunas de fumaça preta; pela aparência, o incêndio se generalizava.— Salvemos os instrumentos, propôs Shiro.— Vamos ver os feridos, sugeriu Choro.— São os hospitalizados que devemos mudar primeiro, resolveu Miss Tsubakiyama.— Peçamos ordens, determinou a enfermeira-chefe, procurando evitar inútil dissipação de esforços.Foi precisamente nessa hora que Miss Hashimoto apareceu para avisar que o Dr. Nagaí, chefe da Seção de Radiologia, fora enterrado vivo.— Como ? exclamaram todos. O Dr. Nagaí soterrado ?— Meu Deus ! murmurou Miss Tsubakiyama; êle é tão gordo ! como vamos tirá-lo de lá ?— Não se preocupe, havemos de conseguir, disse Choro encaminhando-se para a porta.Seguindo Miss Hashimoto, as cinco pessoas, ajudando-se mutuamente, puseram-se a escalar as vigas, os móveis, os escombros. Passaram pelas janelas, agarraram-se aos canos e chegaram por fim à sala de raios X. Para alcançar a janela alta da farmácia, tiveram de subir nos ombros uns dos outros.50O CATACLISMONa câmara escura, o Dr. Si revelava uma fotografia, quando um estudante que se achava num posto de observação, atrás do prédio da escola, gritou inesperadamente, com toda a energia:— Um avião diferente está voando em cima de nós ! Escondam-se 1 escondam-se depressa !O médico interrompeu o trabalho para ouvir melhor: escutou o ruído agudo de uma hélice, pensou que o aparelho estivesse descendo para aterrissar. Quis ainda molhar as chapas e pô-las no fixador. Terminava de fazê-lo, quando uma força irresistível arrastou-o e fê-lo cair inconsciente. Quando recobrou os sentidos, estava comprimido entre duas pesadas vigas. Moveu-se com tanta habilidade que conseguiu desembaraçar os membros inferiores, depois os braços, retirou os cacos acumulados sobre si e libertou-se. Quis saber o que acontecera com suas fotografias, mas tendo perdido os óculos, não enxergava coisa alguma. Lembrou-se então de Miss Moriuchi que trabalhava com êle: chamou-a diversas vezes, sem obter resposta; olhou sob os escombros, mas não havia nenhum vestígio dela. "Com certeza conseguiu fugir antes de acontecer a coisa", pensou o médico. Pulando por sobre os entulhos saiu para o corredor e ficou estarrecido: parecia-lhe estar num local onde jamais tivesse pisado: tudo irreconhecível ! Diversas vezes, esfregando os olhos, olhou em volta de si, não compreendendo o que sucedera.

As testemunhas da explosão atómica que depuseram até aqui, achavam-se todas no interior de um edifício de cimento armado; tiveram, pois, a felicidade51OS SINOS DE NAGASAKIde escapar dos efeitos diretos da radioativi-dade. . . Outros trabalhavam fora. Também estes forneceram o seu testemunho,O professor Seiki cavava um abrigo, com seus estudantes, atrás do Instituto de Farmácia. Era êle quem revolvia, enquanto os rapazes transportavam a terra. Nenhum deles poderia supor que, um instante mais tarde, aqueles que estavam fora do abrigo morreriam, enquanto que viveriam os que se achavam dentro. Dorso nu, trabalhavam com ardor. Estavam a quatrocentos metros do ponto do impacto. Inesperadamente, viram um clarão que iluminou o abrigo até o fundo, seguindo-se um estrondo.Tomita, que se achava na entrada, de lata na mão, esperando a sua carga, foi impelido para o interior e atirado violentamente sobre as costas do Dr. Seiki que, curvado, cavava a terra.— Que é isso ? gritou êle, erguendo-se furioso.Pedaços de pau, tiras de roupas, cacos de telha entraram pelo abrigo a dentro, acompanhando Tomita: uma viga pesada atingiu em cheio o professor. Êle caiu inanimado no buraco que escavava. . .Quando voltou a si, após alguns instantes, estava estirado no chão; o abrigo tornara-se um inferno de chamas e fumaça. Camadas de ar quente entravam assobiando. Levantou-se cambaleando, e, num esforço desesperador, atravessou as chamas até a entrada. O sentimento de alívio que experimentou então, durou somente uma fração de segundo. Sem querer, deixou cair a pá que conservava na mão e, apavorado com o que vira, parou petrificado.52O CATACLISMOOs pavilhões do Instituto de Farmácia tinham desaparecido, assim como os de Bioquímica. Os muros não existiam mais, nem as casas em volta. Até quanto podia ver, estendia-se um mar de chamas.Mesmo este físico, especialista em energia nuclear, não presumiu tratar-se de uma bomba atómica: ignorava que a ciência americana tivesse progredido a este ponto.E os estudantes ? perguntou a si mesmo. Inclinou-se para procurá-los e um arrepio de terror percorreu-o todo: seria possível que todas aquelas formas inanimadas, estendidas pelo chão, fossem os seus alunos ? Pensou que estivesse ainda inconsciente. "É um pesadelo ! é um pesadelo I" repetia êle. "Mesmo em tempo de guerra, coisas assim nunca sucederam !" Apalpou-se, pegou no pulso: vivia ! então era verdade ! Sacudiu um corpo a seu lado: "Vamos, levante-se !" Silêncio absoluto. Ergueu então o corpo pelos dois braços e tentou carregá-lo. Sob seus dedos, a pele saiu em pedaços, como fruta que se descasca. Õkamoto estava morto. Ouvindo um gemido, o professor voltou-se e correu para outra vítima. "Murayama, Murayama !" gritou êle, enquanto colocava sobre os joelhos o rapaz atingido. "Professor. . . ah ! professor !" murmurou o infeliz e a cabeça tombou para o lado. Com um suspiro de dor, o professor estendeu o corpo, fêz uma oração e passou para o seguinte: Araki. O rosto todo inchado, a pele saindo em tiras. Tentou abrir os olhos que pareciam dois fios de linha branca entre as pálpebras intumescidas, e disse calmamente: "Eles me venceram, doutor". E acrescentou: "Creio que é o fim.53OS SINOS DE NAGASAKIO senhor fêz tudo por mim; muito obrigado". E calou-se para sempre.

Das orelhas e narinas de alguns cadáveres, o sangue filtrava. Evidentemente tiveram o cérebro esmagado. Noutros, com o sangue, uma espuma saía também da boca. Pelo menos, a agonia desses fora rápida: tinham sido atirados ao solo e calcados por uma força terrível.Tomita sobrevivera e corria de um para outro, oferecendo água àqueles que ainda respiravam, confortando com palavras de carinho. Nenhum sobrevivente podia mover-se por si mesmo. Cada vez que ouviam um gemido, Tomita ou o professor precipitavam-se em direção ao corpo tombado, mas quase sempre para constatar que nesse ínterim o homem calara-se, morrendo com expressão convulsa. Uns vinte estudantes morreram assim, ao lado um do outro...Aqueles dois homens não podiam, sozinhos, fazer coisa útil; precisavam de ajuda. O professor pôs-se a gritar, com toda a força, em todas as direções: Socorro ! há alguém aqui ? Parava, ouvidos atentos. Mas o vento só lhe trouxe outros gritos de desespero, que saíam de casas demolidas, angustiados, terríveis: Salvem-me ! socorro ! estou sufocando ! acudam-me, pelo amor de Deus! estou sufocando ! água ! água ! mamãe !O professor sentiu-se vacilar e perdeu novamente os sentidos. Quando, logo depois, voltou a si, uma nuvem preta cobria o céu, escondendo o sol; um inesperado crepúsculo envolvia a terra. Fazia frio.54O CATACLISMOJá ouvia menos gritos. Sem dúvida, muitas vítimas haviam sucumbido; sem dúvida, a criança que chorava fora queimada viva, longe de sua mãe. . .Estudantes do 1.° ano tomavam suas notas, tranquilamente. As insólitas palavras latinas que se sucediam nos seus cadernos, davam-lhes a sensação de já serem médicos. E escrever em letras ocidentais era motivo de orgulho para eles !Explodiu então a bomba e foi como que o fim do mundo. A voz do professor não se extinguira ainda nos seus ouvidos; não tiveram tempo de olhar para cima ou para o lado. O teto soterrou-os na própria posição em que estavam.Fujimoto, chefe da classe, viu-se preso pelos quadris. A escuridão era total e a poeira que empestava o ar sufocava-o. Conseguiu, finalmente, mover-se no espaço vazio entre os bancos. Gemiam feridos perto dele, outros gritavam alto. Mas, contando as vozes, verificou que muito poucos eram os sobreviventes. Bem depressa, aliás, o cheiro de queimado filtrou pelas frestas, enquanto uma fumaça quente e picante invadia a sala. Evidentemente, o incêndio irrompia. Fujimoto compreendeu, com horror, que bem pouco tempo lhe sobrava para agir. Tentou remover o que o prendia; mas as traves, as tábuas e telhas amontoadas eram pesadas demais para êle afastar. Avolumava-se o crepitar da madeira queimando. Êle empurrava, afastava, batia. . . esforço vão. . . Com toda a sua força escorou a cabeça, ombros e pescoço contra o montículo que o cobria. . . mas nada se55OS SINOS DE NAGASAKImexeu. Calculando, desesperadamente, o peso que o recobria, tentou ainda.O ar tornava-se cada vez mais quente; o reflexo das chamas dançantes era mais e mais brilhante. . . Alguém pôs-se a cantarolar uma trágica canção de soldado: "Irei dormir no fundo das águas. . . ou na encosta das colinas". Fujimoto sentiu fugir toda sua coragem e parou para escutar o canto do amigo. "Não lastimarei..." A canção foi interrompida, mas o cantor acrescentou ainda: "Até logo, camaradas. Meus pés estão começando a queimar".Dentro de alguns minutos, seria a sua vez. Fuji-moto juntou as mãos para rezar. Surgiu-lhe no pensamento a figura do pai: fique calmo, parecia dizer-lhe. Depois a sua mãe, seu

irmão mais moço, Masao. Masao provavelmente tomaria o lugar dele como médico. . . Em seguida pensou nos seus colegas de radiologia, um por um. Até o dia em que entrara para a Universidade como estudante, aplicara-se como técnico nessa secção. "Oue terá sucedido — pensou ele — a meu amigo Tako-chan que passou comigo o seu exame de admissão e formou-se comigo?. . ." As poucas palavras que, cada manhã e cada noite, trocava com seus colegas, voltavam-lhe agora à memória. "Vamos com calma. Para que se alterar quando se perdeu a liberdade, quando se é prisioneiro, em ponto de se torrar sem compaixão; de tornar-se um monte de cinza ?" O corpo estava sem defesa, sem atividade, mas bem depressa a alma se erguerá, cantando, através do universo imenso. Questão de poucos minutos. O cheiro de carne queimada56O CATACLISMOchegou até êle, cheiro adocicado dos joveris corpos aniquilados. . ."Isso é o que se pode chamar de uma situação crítica, pensou fleumàticamente. É isso mesmo. Aliás, de que serve esse corpo que não pode senão assimilar e rejeitar..."Lembrou-se do que seu professor, o Dr. Si, lhe dissera um dia: "Quando você não puder resolver um problema, pense nele em termos contrários." Essa sugestão iluminou-o. Em vez de tentar se erguer, Fujimoto passou a mão pelo chão e encontrou uma fenda entre as tábuas. Toda a força concentrada nos dedos, puxou freneticamente. A tábua cedeu com um estalo. O choque terrível da explosão arrancara os pregos do assoalho. . . Fuj imoto passou a mão por baixo, e a tábua se desprendeu com um som delicioso. O ar chegou até êle. Uma segunda, depois uma terceira tábua retiradas facilmente e de repente, Fuj imoto caiu sobre o chão fresco do andar térreo.A Doutora Yamada e Miss Tsujita abriram a janela dos fundos, na sala de bacteriologia, para se refrescar da longa caminhada que fizeram. Tinham ido à estação buscar suas passagens para Tóquio, pois deviam fazer lá, um curso sobre a manipulação de soros. Nagasaki não tardaria em ser sitiada — pensavam — e era preciso, rapidamente, preparar-se para a eventualidade. Como a maioria dos homens partira para o fronte, essas duas jovens médicas, dedicadas à ciência, tomaram a si a séria responsabilidade.57OS SINOS DE NAGASAKIO mato crescia nas quadras de ténis: esportes e jogos eram coisas do passado, esquecidas desde o dia em que a guerra dominou. Só ela contava agora. . . Por trás das quadras cresciam pinheiros, canforeiras e através dos seus galhos podia-se ver o terreno do estádio, transformado em cultura de batata-doce. Mais atrás e mais alto, a certa distância, erguia-se, majestosa, a catedral. Duas moças, de calças largas e compridas, que atravessavam o pátio, acenaram as mãos: eram Hama-san e Oyanagi-san, ambas enfermeiras da Seção de Radiologia onde Tsujita trabalhara até então. . . No estádio, Yamashita-san, Yoshida-san e Inoue-san, enfermeiras do mesmo ramo, de cócoras, arrancavam as ervas daninhas que prejudicavam a plantação. Sobre as colinas, em redor de Urakami, nos campos em primeiro plano, os fazendeiros faziam o mesmo, aproveitando aquele fim de alerta. Uma fila de pessoas caminhava em direção da catedral. Ao longo da estrada brilhava o colorido das sombrinhas. . .— Bela região a de Nagasaki ! Não me canso de olhá-la. . .— É verdade; mas. . . será que a veremos ainda assim, quando voltarmos daqui a dois meses ?— Tenho a impressão de que a cidade será destruída.— E eu creio que será a única poupada. . .A explosão cortou esse diálogo... A Doutora Yamada atirou-se ao chão e escapou. Miss Tsujita, a seu lado, morreu asfixiada. . .

Verdadeiro pesadelo, repentino, irreal. . . mas sobretudo, verdadeiro e pavoroso. A sala de bacteriologia58O CATACLISMOjá estava em chamas. Somente a doutora sobreviveu. Todos devem ter morrido instantaneamente.Quando Yamada conseguiu sair, a escuridão era absoluta e soprava o vento demolidor. Diante do vasto espaço vazio à sua frente, parou, imobilizada de espanto. Verificou que as árvores tinham sido arrancadas, que os edifícios estavam desmoronados. Toda a parte superior da catedral, inclusive as torres de 50 metros, foram levadas pelo tufão. O que restava do edifício parecia uma antiga ruína. Corpos pendiam, cabeças para baixo, braços e pernas arrancadas; o mesmo se via sobre os muros de pedra, nas estradas, e em número incontável, no campo.A médica lembrou-se das enfermeiras que estavam no estádio. Olhou naquela direção: seus cadáveres jaziam imóveis, mutilados pela explosão. Quem estivesse fora deveria ter morrido instantaneamente. Ela não ficara seriamente ferida; todavia, sentia como que enorme peso sobre os ombros. Depois de alguns passos, os joelhos dobraram e caiu sobre o cimento. A seu lado, viu atirado um velho compêndio alemão de bacteriologia. "Não servirá para mais nada", pensou ela, e colocando-o sob a cabeça, transformou-o em travesseiro. E ali, perdida num doloroso sonho, esperou socorro.59

III SOCORROSAssim acabou a Universidade.No dia 9 de agosto de 1945, às 11 horas e 2 minutos, uma bomba atómica explodia a 550 metros de altitude, acima de Matsuyama-cho, centro do bairro de Urakami, em Nagasaki. Um tufão, com velocidade de 2 000 m por segundo, derrubou, pulverizou, dispersou tudo quanto encontrou; em seguida, o vácuo formado no centro da explosão aspirou os escombros para cima, a uma grande altura, e por fim deixou cair essa massa gigantesca.Além disso, o calor de 9 000 graus gerado pelo fenómeno queimou tudo que existia. E os fragmentos da bomba, caindo em chuva de metal incandescente, atearam incêndios por todos os lados.Uma nuvem de resíduos, provocada pelo cataclismo, encobriu o sol, produzindo uma escuridão completa, como se fosse um eclipse total. Após três minutos, aproximadamente, a nuvem pôs-se a baixar gradativamente, enquanto as partículas se dispersavam e uma luz ténue iluminava de novo o campo da carnificina.61OS SINOS DE NAGASAKIHouve uns 30.000 mortos, mais de 100.000 feridos. Dezenas de milhares de outras pessoas foram vitimadas pela chamada doença atómica, causada pela radioatividade.Desde o princípio tudo se fêz para prestar o maior socorro às vítimas.Eu mesmo, soterrado, como já contei, sob um monte de ruínas, e tendo gritado para que me acudissem, acabei por libertar-me sozinho. No momento em que entrava na câmara fotográfica, o Dr. Si apareceu. Atrás dele, a equipe de socorro, conduzida por Miss Hashimoto. A enfermeira-chefe irrompeu na sala, naquele seu jeito impetuoso, abraçando-me efusivamente, expressando vivos parabéns e congratulações. Eu olhava para aqueles recém-escapados, um após outro, e pensava: "Vidas preciosas !. . . essas foram poupadas !. . ." Uma profunda gratidão me invadia. . . "Mas deviam ser mais numerosas. . . Onde estão as outras ? Yamashita ? Inoue ? Umezu ?"

— Procurem os outros. Removam-nos, ordenei. E voltem aqui dentro de 5 minutos.Todos partiram em direções diferentes. O Dr. Si e Shiro se esgueiraram entre os escombros da câmara escura, tirando aqui uma tábua, ali pulando uma viga e gritando nomes diferentes. Nenhuma resposta se ouvia.Choro trouxe Umezu, bastante ferido; retirou-o do meio dos aparelhos, na sala de radioscopia. Coberto de sangue, sem forças e como que paralisado, Umezu arrastava-se pelo corredor, gemendo: Meus olhos ! perdi meus olhos !62SOCORROS— Vamos ! respondeu Choro, examinando-lhe os ferimentos. Deixe de bobagem. Seus olhos aí estão.Umezu sofrera um ferimento profundo na arcada superciliária, sem mencionar os inúmeros cortes e contusões no rosto e no corpo.— Não se preocupe, tudo acabará bem, animava-o a enfermeira-chefe, enquanto lavava a ferida e colocava a bandagem.Tomei o pulso de Umezu e comecei a dar ordens de socorro e de tratamento imediatos.Sem saber como, vi-me subitamente envolvido por uma multidão de criaturas fantasmagóricas e seminuas:— Salve-me, doutor !. . . Um remédio, por favor ! Que frio ! Dêem-me roupas, pelo amor de Deus.Todos me chamavam ao mesmo tempo: eram doentes do hospital que tinham sobrevivido ou melhor, não tinham ainda morrido. . . Como a explosão se dera na hora de maior movimento, na que funcionava o ambulatório para doentes externos, os corredores, salas de espera, laboratórios eram um amontoado de corpos, corpos nus de feridas expostas, corpos nus com a pele em tiras, corpos nus que pareciam de argila pela cinza que aderira a eles. Espetáculo tão tremendo, que não se podia imaginar que se tratasse de seres humanos, nem que semelhante quadro pudesse jamais existir. . . Dessa alucinante massa de carne, arrastavam-se lentamente aqueles em que existia ainda um sopro de vida; cercavam-me, agarravam-me as pernas: "Salve-me, doutor !" gemiam eles. Alguns, impossibilitados de falar, exibiam63OS SINOS DE NAGASAKIapenas as suas chagas. Um pulso de onde jorrava sangue, ergueu-se diante de mim. Uma menina corria de um lado para outro, gritando: mamãe ! mamãe ! Mães, contorcidas de dor, chamavam os filhos pelos nomes. Um adolescente alucinado, rosto em sangue, cambaleava, perguntando: "A saída? onde fica a saída ?" Estudantes transitavam num movimento louco, gritando à procura de macas. Confusão desesperadora.Começamos os primeiros socorros, mas bem depressa acabaram-se as bandagens, e tivemos de improvisá-las, servindo-nos das tiras de nossas camisas. Dez, vinte, trinta pacientes: o número crescia. Não havíamos terminado um curativo e outra vítima já nos implorava: "Salve-me, doutor !" Os meus próprios ferimentos dificultavam enormemente o trabalho. Tinha de comprimir com a mão uma pequenina artéria, que recomeçava a sangrar cada vez que a largava. Todas as vezes que um curativo exigia as minhas duas mãos, o sangue imediatamente espirrava até a parede. Era, entretanto, uma artéria pequena e eu calculava poder me sustentar assim umas três horas. Tomando meu pulso de vez em quando, continuei a cuidar das vítimas.Hashimoto e Tsubakiyama, que tinham saído à procura de suas companheiras, voltaram sem encontrar nenhuma e disseram: "Pensávamos que estivessem no campo de batatas. Tentamos ir até lá, mas o caminho está bloqueado pelas árvores caídas, o incêndio e os

cadáveres. Não resta mais nenhum dos edifícios de Medicina fundamental, tudo é um mar de fogo. O Centro do hospital está em chamas e é64SOCORROSimpossível atingir a entrada por trás. Incontáveis são os feridos".Yamashita, Inoue, Hama, Onyanagi, Yoshida. . . Meu espírito evocava as suas fisionomias: estariam mortas ? ou morrendo ? ou contorcendo-se no chão como aqueles coitados a meus pés ? Quem sabe conseguiram se salvar e estão abrigadas nalgum lugar ? Não é possível. Se vivessem, teriam certamente vindo para perto de nós. . .Sentei-me no chão para refletir, enquanto o Dr. Si e uma enfermeira tratavam, enfim, de minha ferida: "Explosão incomum, situação sem precedentes, acontecimento histórico. Temos de enfrentá-la com sangue frio e determinação."Sem resultado, o Dr. Si enrolava as bandagens em volta de minha cabeça: o pano muito fino ficou logo embebido e um filete vermelho recomeçou a escorrer pelo meu rosto. Dei ordens para que se dispersassem, procurando pinças e instrumentos indispensáveis. De novo sozinho, pus-me a pensar: "A região tornou-se um verdadeiro campo de batalha; nosso dever é permanecer ali, aconteça o que acontecer. Provavelmente o inimigo vai empregar de novo este tipo de bomba, dentro de uma semana para poder desembarcar. Não perder a cabeça. Tomar as coisas como elas são, sistematicamente. Reunir, pois, os membros do grupo e dividi-los em equipes; garantir as reservas medicinais e alimentares; organizar acampamentos. Poder-se-ia estabelecer depois, um sistema de coordenações e ligações, e escolher um local apropriado para um hospital de emergência. Sem dúvida alguma, Nagasaki será bombardeada pelo lado do65OS SINOS DE NAGASAKImar; os pacientes têm que ser removidos para o interior. . .Lá fora, a floresta já se transformara num mar de chamas, e o edifício onde estávamos não tardaria a pegar fogo, julgando-se pela força crescente do crepitar.Os que tinham saído à procura de instrumentos, voltaram uns após outros com as mesmas palavras: tudo quebrado, as válvulas partidas, fios arrebentados, o transformador deslocado e irremovível. Os espécimens espalhados por todo o laboratório.Olhavam-me, atentamente, esperando de mim uma palavra. Professores, enfermeiras, estudantes de outras seções, cobertos de sangue, e amparando-se dois e três pelas mãos, passavam rapidamente perto de nós, sem pronunciar uma palavra.Os estalos do incêndio cresciam; as cinzas incandescentes começaram a chover pela janela. Que fazer ? Limitava-me a olhar para o grupo e aconselhar calma, mas exigindo que fizessem alguma coisa. Ficar ali seria morrer queimado. Nesse momento, não pude impedir que um sorriso nervoso passasse pelos meus lábios. Reação tão inesperada que todos se puseram a rir. Alguns segundos de incontida hilaridade. Disse-lhes depois:— Vejam um pouco como vocês estão ! Nesse estado não poderão trabalhar. Preparem-se e encontrar-nos-emos perto da porta principal. E não se esqueçam da merenda. Ninguém se defende com o estômago vazio !Minhas ordens foram acolhidas com entusiasmo. "Sim, senhor !" "É isso mesmo !" E enquanto se66SOCORROSencaminhavam para os seus quartos, compreendi que tinham reagido, voltando a ser o que eram.

O Dr. Si encontrou meus sapatos; a enfermeira-chefe trouxe meu casaco e chapéu. Dirigi-me para o corredor de entrada. Em frente da sala de ginecologia, uma enfermeira, olhos esbugalhados, girava sem parar. Segurei-a energicamente pelo ombro, mas nem o notou: continuou a girar. O choque enlou-quecera-a momentaneamente.O pátio diante da entrada estava coberto de mortos e feridos. Além disso, cada vez mais numerosas eram as pessoas que vinham da cidade e subiam a colina, procurando o posto de socorro ou o hospital. Pessoas carregando feridos e agonizantes sobre os ombros, saíam cambaleando dos edifícios poupados.Novamente vi-me ante o mesmo doloroso dilema: Que fazer, e como ? Toda vida é preciosa. Para cada um desses coitados, seu próprio corpo era mais importante do que tudo: seu ferimento, grande ou pequeno, absorvia toda a sua atenção; queria ser tratado por um bom médico. Meu dever era satisfazê-los.Todavia, se as vítimas eram incontáveis, os recursos médicos revelavam-se nulos; as chamas caminhavam rapidamente e nós éramos pouquíssimos. Cuidei de três ou quatro feridos mais próximos, mas compreendi nitidamente que, a menos que olhasse a situação em conjunto e a encarasse de frente, corria o risco de ser tragado pelas chamas com aqueles dos quais me ocupava.Vinte minutos tinham se passado depois da explosão. Toda a região de Urakami ardia em grandes67OS SINOS DE NAGASAK1labaredas. O próprio centro do hospital já pegara fogo. Somente a ala direita, ao longo da colina, permanecia intacta. Mas não tínhamos mais material ou ajudantes; era deixar propagar-se o incêndio e contemplar o espetáculo medonho: corpos nus cambaleando, tropeçando, continuavam a escalar a colina para fugir da fornalha. Duas crianças passaram, arrastando o pai morto. Uma mulher jovem corria, apertando contra o peito o filho decapitado. Um casal de velhos, mãos dadas, subiam juntos, lentamente. Outra mulher, com as vestes repentinamente ateadas, rolou pela colina abaixo como uma bola de fogo. Um homem enlouquecera e dançava em cima de um telhado envolto em chamas. Alguns fugitivos voltavam-se a cada passo, enquanto outros caminhavam firme para frente, apavorados demais para voltar. Um rapaz que tomara a dianteira, gritava à irmã que andasse mais depressa; o menorzinho, atrasado no seu caminhar, chorava para que o esperassem. Por de trás desta gente, as labaredas avolumadas aproximavam-se cada vez mais.Felizes ainda eram esses dez por cento que escaparam do inferno; os outros, presos e soterrados sob escombros, morriam queimados vivos. As rajadas de vento faziam roncar o incêndio, e traziam gritos de socorro e de agonia. Nunca em minha vida senti-me tão impotente, tão insignificante, olhando de braços cruzados o terrível panorama de medo, de agonia, de morte e destruição. Nada podia fazer: absolutamente nada ! "Professor, o senhor parece o deus do fogo !" disse uma voz perto de mim. Eram Nagai e Tsutsumi, estudantes do 3.° ano de Medicina.68

SOCORROSMinha turma de radiologia reunira-se também. No fim, apareceu Moriuchi, que pudera se refugiar num abrigo, e logo após, Miss Kozasa, técnica de raios X em ginecologia. Seus cabelos estavam ruivos e cheirava a carne queimada; as roupas em tiras desfiadas. Contaram-nos que ela salvou duas enfermeiras do fogo, mas ela mesma não sabia como conseguira atravessar as chamas e chegar até nós. Estavam apenas Miss Sakita e Miss Kaneka, técnicas de raios X das seções de dermatologia e de cirurgia.

— Os instrumentos podem esperar, disse eu. Ajudemos primeiro as vítimas !Para salvar o maior número de doentes, grupos de socorro penetravam de dois em dois no hospital que ardia. Kozasa e Moriuchi mergulharam de novo nas chamas, à procura de Sakita e Kaneka. Choro subiu a colina, atrás do edifício, com Umezu nas costas: parecia um destes cromos da guerra russo-japonêsa.Do prédio em que estávamos, fugiam aqueles que já conseguiam locomover-se. Chamei-os, mas não responderam. Olhos esbugalhados, não me deram a menor atenção e corriam desordenadamente. Quem poderia apanhá-los e tratar deles, se se afastavam do hospital ? Gritei, pedindo que voltassem, que se acalmassem. Mas debalde.Caminhando até a sala de operações, encontrei-a inundada: rutura de um cano. Chafurdei-me até a ante-sala onde estavam as reservas medicinais. Diante do que vi, toda a energia se foi: padiolas e macas estavam inutilizadas, os instrumentos espalhados. Garrafas, tubos, cápsulas, recipientes de vidro transformados

69OS SINOS DE NAGASAKInum monte de cacos e seu conteúdo misturado na água que corria.Tremenda ironia ! Não fora para utilizá-los, num dia como hoje, que fizéramos essas reservas ?Tudo estragado; ruína completa. Tínhamos que enfrentar dezenas de milhares de mutilados e feridos, praticando, unicamente com as nossas mãos, a mais primitiva das medicinas. Teríamos que salvar vidas, empregando tão-sòmente a nossa inteligência, nossa caridade e nossos braços.Com o coração pesado subi as escadas e em pé, diante da entrada, examinei a situação uma vez mais. Embora desencorajado, tinha comigo, afinal das contas, uma duas dezenas de voluntários: médicos, enfermeiras, estudantes que ajudariam os meus esforços. Eles passavam, dois a dois, de sala em sala, carregando os feridos.Esses eram colocados no depósito de carvão, perto da entrada. Era o único lugar onde as lingiietas de fogo não caíam. Mantive-me no meio deles sem nada fazer, enquanto se alastrava o incêndio: uma fumaça negra subia para o céu, e as nuvens ameaçadoras estavam vermelhas pelo reflexo do fogo. . .— Salvamos o Diretor, exclamou alguém ali perto. Voltei-me e vi Tomokiyo de pé, na entrada. Nas costas, carregava uma massa escarlate: o Dr. Tsuno-o. Seus cabelos, rosto, avental branco, calças, meias, tudo coberto de sangue. Perdera os óculos. . .— Ah ! Nagaí, disse-me êle; que coisa tremenda ! você deve ter passado momentos bem duros !Tomei-lhe o pulso: regular e forte. E como a colina de trás era ainda um lugar seguro, disse a70SOCORROSTomokiyo que levasse para lá o Diretor e lhe proporcionasse a calma necessária, num abrigo. O Dr. Si acompanhou-o com uma seringa nas mãos.O Dr. Tsuno-o estava examinando os doentes externos quando passou o tufão. O Dr. Ko, embora gravemente ferido também, conseguiu transportá-lo até o corredor e em seguida caiu exangue. Foi ali que Tomokiyo os encontrou. ..Pouco depois Miss Maeda, enfermeira-chefe de Medicina Interna, saía correndo do prédio, perguntando pelo Diretor. Informei-a de que êle estava atrás da colina, a 300 metros de distância e que o Dr. Si acompanhara-o.

A enfermeira estava côr de cinza; o sangue corria abundantemente das suas pálpebras. Assim que ouviu a resposta, dirigiu-se para a colina, com uma agilidade espantosa para uma pessoa tão corpulenta. . .Miss Hashimoto tinha 17 anos e Miss Tsuba-kiyama, 16. Numa e noutra, a proporção entre a altura e a largura do corpo saía do normal. Numa pilhéria cheia de afeição, os colegas apelidaram-nas de "Pipazinha" e "Favinha".Quando entraram juntas na sala de espera, encontraram sete ou oito pessoas, pacientes e estudantes gemendo no chão. Levaram as vítimas até o depósito de carvão e foram depois para a sala das consultas. A "Pipazinha" ali encontrou uma enfermeira que ela só conhecia de vista e de nome. Ao transportá-la, sentiu uma alegria como jamais experimentara. A vítima, Hamasaki-san, gemia de tempos em tempos, alheia ao que se passava. Se mais tarde,71OS SINOS DE NAGASAKIas duas enfermeiras não lhe disserem nada, ela nunca saberá. . . Pensando nisso, a "Pipazinha" sorriu e a sua imaginação transpôs o tempo, levando-a aos dias de sua infância. Como eram vermelhos aqueles morangos que colhia então ! Pareciam-lhes rubis, jóias verdadeiras. E ela de fato os havia conservado como um tesouro, escondendo-os no celeiro por trás de um monte de pipas. Todas as manhãs e todas as tardes ali vinha para saborear um deles e contemplar o resto, com admiração. Nem sua irmã mais velha, nem o irmãozinho pequeno jamais desconfiaram. . . Aqueles morangos pertenciam a ela só, e que alegria boa eles lhe proporcionaram !A "Favinha" pensava noutra coisa: estava admirada de constatar o quanto os adultos, que ela transportava, pesavam pouco ! Lembrava-se daqueles treinamentos em que tivera de carregar doentes da ambulância ao posto de socorro. Lembrava-se de como eram pesados aqueles pacientes reais que ela, noutros tempos, transferira da maca para a mesa. Talvez esses sejam leves porque já perderam muito sangue !. . . concluiu a jovem.Seus pensamentos tomaram depois outro rumo: por que o Professor Nagaí fora tão severo naqueles exercícios ? Se a realidade não é mais terrível nem mais dolorosa do que esta, então não era necessário. . . Hoje que ela lidava com verdadeiros cadáveres e feridos, não experimentava medo algum. Era tão fácil. . . Mas veio-lhe depois uma sensação de abandono, de isolamento. Koyanagi-san e Yoshida-san, com as quais vivera o ano anterior, repartindo suas alegrias ou tristezas, com as quais fizera os treinamentos, não72SOCORROSestavam a seu lado. As chamas separavam-nas e agora não sabia mais se as amigas estavam vivas ou não. Tinha a impressão de que iam aparecer, que não estavam longe. Pôs a cabeça fora da janela e gritou longamente: Yoshida-saaan ! Yoshida-saaan ! Com um estrondo terrível, o prédio fronteiro, todo em brasa, começou a desmoronar em sua direção.Cada vez que as duas enfermeiras voltavam para buscar uma vítima, uma sala a mais pegara fogo. Todavia, nenhum trabalho lhes parecera tão agradável e encorajador do que introduzir-se assim, uma toalha cobrindo-lhes o nariz e a boca, para retirar um ferido de uma sala onde as labaredas tudo devoravam. Saindo dali sentiam ainda queimar-lhes os braços e verificavam que suas mangas estavam em fogo. Durante aqueles poucos minutos compreenderam, de uma só vez, toda a grandeza e todo o privilégio de serem enfermeiras. . .As vítimas desacordadas não eram difíceis de tratar; mas as que ainda tinham consciência causavam-lhes inúteis perdas de tempo. Queixavam-se de dores, pediam

que tivessem cuidado, imploravam aos enfermeiros que as transportavam que voltassem para buscar algo esquecido. Não avaliavam a tragédia da situação.Eram duas horas da tarde no relógio de Tsuba-kiyama, o único que possuíamos. Três horas eram passadas sem que nos tivéssemos dado conta: e a catástrofe atingia agora o seu apogeu. Desde pouco, o vento soprava do oeste; erguiam-se labaredas a 50 metros de altura e, rebatidas pela corrente de ar, inclinavam-se com direção a leste. O depósito de carvão73OS SINOS DE NAGASAKIjá não oferecia segurança. Resolvi transportar os feridos para os campos de batatas, na colina.Não era fácil: a estrada estreita, coberta de escombros e tínhamos que carregar as vítimas por cima de rochas numa subida penosa. Eu mesmo transportei dois, mas quando tentei levantar um terceiro, senti-me completamente sem forças. A artéria continuava sangrando: já três vezes mudara o curativo. A enfermeira-chefe disse-me que eu estava pálido e desfeito; o pulso enfraquecera consideravelmente.Podíamos ver a "Pipazinha" e a "Favinha" subir a colina carregando, alegremente, vítimas muito mais volumosas do que elas. Um bebé de 2 meses chorava junto de sua mãe inanimada; como o fogo se aproximava, quis ao menos salvar a criança: transportei-a para cima e deixei-a perto de Hamasaki. Neste momento, a mãe gemeu: era o fim. chamada e a enfermeira-chefe, não querendo separá-la de seu bebé, levaram-na também. A criança chorou mais alto. . . Respirava-se com dificuldade, pois o oxigénio do ar fora aspirado pela explosão, e em troca o óxido de carbônio espalhara-se por toda parte. As pessoas trabalhavam ofegantes.Grossas gotas de chuva começaram a cair grandes e pretas. Pareciam vir da nuvem escura que pairava sobre nós, e marcavam como um pingo de petróleo onde tombavam. A cena tornou-se mais trágica ainda. . .Quando olhei de novo o relógio de Tsubaki-yama, eram 4 horas. Os feridos estavam estendidos lado a lado nos campos da colina; os estudantes circulavam74SOCORROSà procura de um teto. Mas na vertente, não se via senão fogo e fumaça. . . Só restava sentarmo-nos sob a chuva e contemplar o incêndio.— Vocês precisam descansar e comer, disse eu então.As enfermeiras alegavam não ter apetite, mas insisti que o fizessem, pois teriam de enfrentar por dias e por meses um trabalho insano. Obedeceram, e uma vez alimentados, sentimos mais confiança em nós mesmos. Recomeçamos a nos ocupar das vítimas, ouvindo-as, tratando-as: era preciso atar, dar pontos, aplicar desinfetantes, dar de beber. Tudo quanto conseguimos salvar em matéria de lençóis ou cobertores foi colocado sobre os feridos e improvisamos talas, como foi possível. De repente alguém gritou: Fogo na sala dos espécimens !. . . "Dez anos de trabalho árduo que desaparecem num segundo", pensei eu, lembrando-me também das insubstituíveis fotografias.Nova exclamação: Fogo na sala de radiologia ! Adeus aos nossos aparelhos ! Levamos tanto tempo para retirar os pacientes que não pudemos pensar nos espécimens, nos instrumentos e na aparelhagem ! Tudo isso subia para o céu em fumaça e em chamas. . . E nós, silenciosos, acompanhávamos com o olhar.O fogo progredia: deve ter chegado à sala dos filmes, pois com uma explosão surda, as labaredas tomaram maior vulto, enquanto lançavam uma fumaça negra. Senti os joelhos dobrarem-se, e caí no chão, murmurando: "É o fim !" As enfermeiras começaram a chorar. . . Toda a Escola estava agora

75OS SINOS DE NAGASAKIem chamas. Dos professores de Medicina, somente seis tinham escapado; 80% dos estudantes e enfermeiros estavam aparentemente desaparecidos. Os dois grupos sobreviventes de socorro — o meu e o outro que colocamos na porta dos fundos — contavam no máximo 50 pessoas.Homens, equipagem e toda a Escola estavam praticamente destruídos. Em pé, sobre a colina, assistindo aos seus últimos momentos, nós nos sentíamos como restos de um exército vencido.Nesta hora, o Dr. Okara apareceu, trazendo um grande lençol branco, retirado de uma das salas. Com o sangue que me corria no rosto, da têmpora ao maxilar, desenhei no centro do lençol um grande disco vermelho. Prendemos num bambu este estandarte do Sol Levante. Quando o erguemos, uma rajada de vento tórrido agitou-o no céu de chumbo. Um dos estudantes, mangas arregaçadas, bandagem branca em volta da cabeça, levou a bandeira até o cume da colina, entre nuvens de fumaça preta. Todos nós o seguíamos em silêncio. Eram cinco horas da tarde.Assim findou a Universidade.A noite rubra.Em grupos, os professores encaminharam-se até o local onde estava deitado o Diretor. Não pude conter as lágrimas ao vê-lo encolhido sob um sobretudo, num canto do campo de batatas e açoitado pela76SOCORROSchuva. Os membros do corpo médico e os estudantes, sob a direção do Professor Shirabe, corriam de um lado para outro a serviço dos feridos. Relatei ao Diretor os últimos acontecimentos e depois afastei-me. Mal dera uns vinte passos, uma tontura obscureceu-me totalmente a vista. Caí no local em que Umezu estava deitado, assistido por Choro. Também êle estava molhado pela chuva. De joelhos, tomei-lhe o pulso e fiquei surpreendido ao verificar que batia mais forte do que era de esperar. Tirei meu casaco e coloquei-o sobre êle. Levantei-me vacilando, dei ainda alguns passos e perdi os sentidos."Comprima a artéria jugular", falou o Dr. Si. Percebi que me apertavam as têmporas; gradativamente reabri os olhos e contra o cenário das nuvens escarlates, divisei os rostos ansiosos do Dr. Si, da enfermeira-chefe, de Miss Kaneko e da "Favinha", todos debruçados sobre mim.— Fio de sutura, um agrafo e gaze, pediu o médico. Senti uma dor aguda enquanto êle enfiava alguma coisa na ferida, perto da orelha. Ouvi um barulho metálico; sangue quente deslizou pelo meu rosto.— Mantenha apertada ! Enxugue ! Mais gaze ! ordenava o médico. A ponta do agrafo parecia beliscar as próprias fibras dos nervos; picadas dolorosas percorriam todo o meu corpo, crispando-me todo; agarrava nervosamente as raízes das ervas que meus dedos encontravam.Como o Professor Shirabe tivesse também se aproximado, o Dr. Si disse-lhe alguma coisa em voz77OS SINOS DE NAGASAK1baixa. O professor tomou-me o pulso e eu fechei os olhos, disposto ao pior.— A extremidade da artéria deslizou para trás do osso, disse o médico.Repetidas vezes tive de suportar aquela dor horrível que me retesava e fazia arrancar a relva do chão. Finalmente terminou, com êxito, a operação.

O rosto do professor perdeu a sua expressão ansiosa: "Vai tudo bem, Nagaí", disse-me êle, erguendo-se. Agradeci-lhe e uma lassidão me invadiu. Perdi de novo os sentidos. Quando voltei a mim, o sol já havia desaparecido. Sobre a terra o fogo crepitava incansavelmente e o céu, coberto por uma monstruosa nuvem negra, refletia seus rubores. Via-se apenas, no ocidente, uma pequenina faixa de céu claro, ao lado do monte Inasa, onde brilhava serena a Lua crescente.No vale, para além d* seção dos tuberculosos, alguns homens reuniam tábuas, folhas de zinco e palha para construir um galpão, enquanto as mulheres cozinhavam abóboras dentro de capacetes de aço. Os estudantes Nagai e Tajima encaminharam-se para os escritórios da Prefeitura, a fim de obter rações de urgência. Sentamo-nos em círculo, tendo no centro o fogo onde cozinhavam as abóboras. Um pobre grupinho de vidas poupadas ! Olhávamo-nos mutuamente, compreendendo que um destino misterioso mantinha-nos unidos e, sem nada dizer, apoiávamo-nos um ao outro. Do mato sombrio, atrás de nós, erguiam-se clamores pungentes !. . . "Uma maca, por favor !. . ." "Tragam-me uma injeção !. .." Umas78SOCORROSvítimas gritavam os nomes de seus amigos, outras o de seus parentes; algumas vozes nos pareciam familiares. Por vezes, grupos inteiros punham-se a gritar ao mesmo tempo.Silenciosos, pensávamos nos sete companheiros nossos os quais já não contávamos mais encontrar. Disseram-nos que Miss Sakita, do pavilhão de dermatologia, jazia numa trincheira, a perna fraturada e impossibilitada de mcxer-se. Fujimoto a custo conseguira retirar-se de sob o assoalho do auditório e passara por nós, apoiando-se num pau; conservara energia bastante para voltar para casa. Entre as cinco outras enfermeiras estavam Yamashita, Kataoka (afetuosamente apelidada de "Polvinho") e Tsujita. Se lhes tivesse restado um sopro de vida, teriam encontrado meios para voltar às suas seções; mesmo às portas da morte e a alma presa ao corpo por um fio, ter-se-iam arrastado até junto de nós. . . para morrer. Elas eram assim. . . Oito horas haviam passado, porém, e como até agora não tinham aparecido, já não contávamos vê-las com vida.Por essas boas companheiras, cada um de nós rezou em silêncio. . .De repente, como que brotando das chamas, surgiu um homem nu, diante de nós: "Dr. Nagaí ! exclamou êle, enfim eu o encontro !"— Dr. Seiki ! O senhor vive ainda ?— Sou o único, respondeu, sentando-se pesadamente.O pedaço de pau que lhe servira de bengala caiu no chão com um ruído seco. A vista do Dr. Seiki,79OS SINOSDENAGASAKIsem fôlego, suspendendo os ombros, ícz-me pensar num grande búfalo ferido !— Venha imediatamente, disse êle, arquejando. Os estudantes estão agonizando. A metade já morreu. É preciso aplicar injeções nos que ainda vivem. Não podemos deixá-los morrer assim. . . Estão num abrigo da Escola de Farmácia.— Está bem, Professor; iremos com o senhor. Mas. . . aceita antes um pouco de abóbora ?— Não tenho tempo para pensar em abóboras. Cem abóboras não salvariam esses rapazes. Vamos imediatamente.

Levantou-se com dificuldade, apoiando-se em Shiro e murmurou: "A Escola acabou. Parece incrível. E tantos mortos..."O Dr. Si, a enfermeira-chefe Hashimoto e Ko-zasa levantaram-se também, levando suas bolsas de socorros urgentes.— O caminho está horrível, disse o Professor Seiki. Embora seja a 300 metros daqui, gastei uma hora para vir. Eu voltarei, Nagaí. Fiquei muito contente por encontrá-lo. Você verá como salvaremos esses estudantes.Apoiando-se no ombro da enfermeira, o professor penetrou de novo na Escola em chamas. Nosso grupo passou a noite toda tratando dos feridos sobre a colina, atrás da classe de Medicina Fundamental.O Dr. Okura, a enfermeira Yamada e aqueles que ficaram com eles, fizeram o mesmo nos arredores do hangar agora terminado. O ar estava silencioso e pesado: todos os insetos que habitualmente animavam80SOCORROSas noites de verão com seus gritos variados, haviam sido exterminados.Iluminado pelas labaredas, guiado pelos gemidos, o heróico grupo de socorro passava de vítima em vítima, lavando, tratando, passando bandagens, dando injeções, e finalmente, transportando os feridos para cima da colina. Por vezes, os enfermeiros encontravam o caminho cortado por uma cortina de fogo; se tomavam outra direção davam numa barreira intransponível de árvores tombadas. Arriscando-se na noite sobre uma pontezinha estragada, caíam às vezes em buracos fundos, com uma vítima às costas. Seus pés ensanguentados torturavam-nos em cada passo que davam, pois os pregos furavam as solas de seus sapatos; os joelhos retalhados pelos cacos de vidro e as calças ásperas pelo sangue ressecado.Nossa equipe encontrou o Professor Takagi, chefe da Seção de Medicina e levou-o até o galpão. Para lá conduziram também os Professores Ishizaki e Matsuo. Enquanto o abrigo se enchia, cresciam os gemidos. Toda sorte de pessoas reunia-se ali: a filha do Dr. Tani, responsável da farmácia, fora também levada, em péssimas condições. Um funcionário de seguros que passava pediu que o recebessem e logo depois dois prisioneiros. Durante a noite, aviões inimigos sobrevoaram duas vezes e lançaram bombas, contendo manifestos. Por volta de meia-noite, o incêndio começou a declinar. Ou porque as vítimas estivessem mortas, desesperadas ou simplesmente adormecidas, gritos e gemidos foram cessando. Nenhum ruído entre o céu e a terra: momento solene em Nagasaki. . .81OS SINOS DE NAGASAKIMomento solene também no Palácio Imperial de Tóquio, onde Sua Majestade, o Imperador, dera ordens de capitular.A segunda guerra alastrara-se pelo mundo; os danos que causou atingiram uma violência que ninguém pudera prever. A bomba atómica marcou o paroxismo e de repente a cortina caía sobre um dos conflitos mais sangrentos da história humana. Momento solene, realmente. Ergui os olhos para o céu, onde flutuava ainda, em reflexos apocalíticos, a monstruosa nuvem radioativa. . . Pensamentos estranhos vieram-me à mente: para onde iria esta nuvem ? que mensagem continha ela ? A energia atómica revelar-se-ia de agora em diante — benéfica ou maléfica ? Serviria à causa do bem, ou a da injustiça ?De qualquer maneira, começava uma nova era.O dia seguinte.

No dia 10 de agosto de 1945, quando o sol despontou de novo por trás do monte Kompira, não iluminava mais a magnífica paisagem de uma cidade próspera na sua vegetação, mas o trágico quadro de uma cidade em ruínas e incendiada. Em vez de uma região viva, um amontoado de colinas mortas. Sob as chaminés derrubadas, as usinas não exibiam senão os seus escombros; as ruas bloqueadas pelo acúmulo de telhas partidas e entulhos. De todo um quarteirão residencial, restavam apenas os muros de pedra; campos despojados e matas acabando de se consumir:82SOCORROSárvores enormes atiradas aqui e ali como palitos de fósforos. Cenas de desolação. . . Nada se movia, nem mesmo um cão ou outro animal passava por ali para dar um pouco de vida à natureza. A catedral católica que, por volta da meia-noite, irrompera em fogo, lançava ainda labaredas rubras para o alto, como que proporcionando ao drama seu último e supremo quadro.De madrugada deixamos o abrigo do Departamento Médico e começamos nosso trabalho entre as ruínas da Seção de Medicina Fundamental. Encontramos um homem atirado sobre uma folha de zinco ondulado, numa ponta do terreno de esportes. Era o Dr. Yamada; êle contou-nos como morreu Miss Tsu-jita. . . Dirigimo-nos a seguir para a Seção de Bacteriologia e ali vimos, entre as cinzas que cobriam o local do laboratório, montes de ossos calcinados: sem dúvida, eram os restos dos professores que trabalhavam lá. Descobrimos também um esqueleto feminino; pelos meus cálculos ali era a sala onde — pelo que dissera Yamada — Miss Tsujita morrera queimada. Esse esqueleto !. . . Ela não diria mais "Está vendo ?". . . com aquele seu sorriso suave. Recolhendo os ossos para colocá-los num pedaço de papel, perguntava a mim mesmo: Quando acordarei desse pesadelo ?Chegamos ao auditório. No meio de um amontoado de cinzas acariciadas pelo sol, havia quarenta ou cinquenta esqueletos alinhados em fila. Entre esses, certamente estava o de Kataoka, nossa "pequenina lula". Eis tudo o que restava desses estudantes cuja vida fora tão violentamente ceifada enquanto —83OS SINOS DE NAGASAKIlápis na mão — tomavam notas da aula. E naquela manhã, como tinham entrado alegres na escola !Nossa apreensão em relação às outras cinco enfermeiras logo se confirmou quando descobrimos seus cadáveres no campo de batatas. Não é de admirar que não nos tenham respondido ! Yamashita, Yoshida, Inoue deviam estar trabalhando no campo quando Hama e Koyanagi aproximaram-se delas, saudando-as com a mão: e as outras três, provavelmente, retribuíram com o mesmo gesto quando a morte as colheu. Jaziam ali as cinco, os braços acima da cabeça; os dois grupos estavam separados pela distância de alguns metros.As vítimas pareciam tão jovens e tão inocentes que a enfermeira-chefe não pôde se conter e tomou-lhes o pulso, chamando-as pelo nome. Mas os cadáveres não têm mais voz !Tivesse eu previsto que morreriam tão cedo, jamais as teria repreendido como tantas vezes fiz ! Passando a mão pelas cabeças frias, fixei meu olhar em Yamashita, a jovem difícil, que eu, no entanto, talvez ainda preferisse a Inoue, sempre tão ajuizada e boa. Seu broche, em forma de cachorrinho, estava ainda preso à blusa, e seus lábios sem côr, sujos de terra. . . Que projétil poderia ser aquele, capaz de numa única explosão causar tantas mortes e estragos ?

A enfermeira-chefe chegou-se a mim e deu-me um dos folhetos lançados à noite pelos aviões. Comecei a ler e, compreendendo de repente, exclamei: a Bomba Atómica !84SOCORROSO pânico da noite anterior assaltou-me de novo... Se eles possuíam a bomba atómica, o Japão estava perdido... A ciência conhecera, pois, um novo triunfo, mas ao mesmo tempo, a derrota de meu país apresentava-se inevitável. Dentro de mim entre-chocavam-se a exultação do físico especializado e a dor do japonês patriota. . .Esbarrei com os pés num bambu; êle rolou até certa distância com um barulho seco. Apanhei-o então e levantei-o bem alto para o céu, enquanto as lágrimas rolavam pelas minhas faces. Um bambu contra uma bomba atómica !. . . Cena trágica demais para que se possa exprimir. Daqui por diante não haverá mais uma guerra, pensei. É melhor colocar-mo-nos em longas filas nas praias para sermos mortos sem resistência !. . .O folheto espalhado continha o seguinte aviso:AO POVO JAPONÊSLede atentamente o seguinte:"A América conseguiu inventar uma bomba mais poderosa do que toda outra arma existente até hoje. Contém força igual à carga total que 2.000 grandes B-29 poderiam transportar juntos. Refleti nesse terrível fato do qual certificamos a verdade. Começamos a utilizar esta arma no Japão. Se tiverdes dúvida, procurai saber o que uma única bomba atómica fêz em Hiroshima.85OS SINOS DE NAGASAK1Antes de destruir pela bomba atómica todos os recursos militares que vos permitissem continuar esta guerra insensata, nós vos pedimos que envieis petições ao Imperador para que êle cesse as hostilidades.O Presidente dos Estados Unidos já vos forneceu, numa proposta de treze artigos, as condições de uma rendição honrosa. Nós vos aconselhamos a aceitar essas condições e a começar a construir um Japão pacífico, novo e melhor.Tomai, imediatamente, as medidas necessárias para sustar a resistência armada. Do contrário, não hesitaremos em utilizar esta bomba e toda espécie de armas ainda superiores, a fim de terminar esta guerra, rápida e decisivamente."A primeira leitura abateu-me... a segunda encheu-me de desprezo e a terceira provocou em mim uma raiva incontida. Reli de novo o manifesto e meus sentimentos modificaram-se: tive a impressão de que o texto era razoável, e além disto, absolutamente realista. . .Com o bambu na mão direita, o folheto na esquerda, voltei ao abrigo onde encontrei o Professor Seiki. Mostrei-lhe o apelo: êle leu, deixou escapar dos lábios um som estranho e deitou-se novamente no chão, ali permanecendo imóvel e silencioso, o olhar perdido, durante quase uma hora.Enquanto permaneci junto àquele homem aniquilado, era esta a pergunta que me ocupava o espírito86SOCORROS: que acontecia quando um átomo explodia? Energia, átomos, ondas eletromagnéticas, calor, foram os quatro elementos nos quais pensei primeiro.Pouco a pouco, Choro e os outros agruparam-se em torno do Professor Seiki e estabeleceram uma conversa animada.— Quem está conseguindo isto ? Compton ? Lawrence ?

— Einstein deve ter tido o seu papel, assim como Bohr e outros sábios da Europa, refugiados na América.— O inglês Chadwick, que descobriu o neutron e o casal Curie terão certamente participado dos trabalhos.— Nosso isolamento científico durante esses últimos anos deixou-nos alheios a muitos progressos e a muitos nomes. . .— Devem ter mobilizado milhares de sábios, dividindo os campos de pesquisas e trabalhando com a máxima eficiência.— Não é fruto de um trabalho experimental de laboratórios. Extração, refinagem, análise, etc, devem ter exigido uma formidável força industrial.— Que género de átomo terão utilizado ? O urânio ?— Um elemento talvez mais leve ? O alumínio ?— Pequeninos átomos como o alumínio não dão senão pouca energia !— De fato, mas o mineral de urânio é raro e seria preciso uma grande quantidade.— Existe em abundância no Canadá. . .87OS SINOS DE NAGASAKIA conversa prosseguia, e cada um revelava os seus conhecimentos sobre o assunto.— Se sabíamos de tudo isso, por que não fizemos o mesmo ?— Tentamos: houve até experiências para isolar o urânio 235. Mas os Militares acharam que era dispendioso demais !— Que estupidez !— Agora não adianta chorar pelo passado. É a sorte dos sensatos que se deixam levar pelos doidos.— De qualquer modo, concluímos, conseguiram um êxito completo !Assim, pois, especialistas e pesquisadores, éramos nós mesmos as vítimas da bomba; servimos-lhe de cobaias e achavamo-nos agora em boa situação para observar seus efeitos ulteriores sobre as vítimas.Sob a dor, a cólera e o angustioso despeito da derrota, eis que despertava em nossos corações um desejo profundo de procurar a verdade. Entre as ruínas da cidade devastada, revivia em nós, pouco a pouco, a paixão científica.Yamashita.Entre as vítimas da bomba atómica, havia enfermeiras que tinham trabalhado comigo. Uma delas, Hideko Yamashita, deixou-nos uma impressão que os anos não podem apagar.Nos primeiros tempos, essa jovem egoísta e irrequieta, deu-nos um trabalho imenso: o dia inteiro88SOCORROSprovocava minhas repreensões ! É costume, na Escola de Enfermagem da Universidade, designar cada estagiária para uma seção determinada onde ela aprenderá, assim, a fundo, as minúcias da prática médica. Teoricamente, essas designações deveriam ser feitas de acordo com a vontade dos interessados; mas, na execução do plano, esse acordo é muitas vezes impossível.De fato, Yamashita nunca desejara trabalhar em raios X; assim que, tudo que fazia era a contragosto e de má vontade. Não se aplicava no serviço e raramente manipulava os aparelhos de modo correto. A técnica radiológica exige o uso da eletricidade em alta tensão. 60.000 a 300.000 volts, e os raios podem ser prejudiciais se ultrapassam certo volume. . . Quando uma responsável não trabalha bem, as consequências recaem sobre os pacientes ! Assim sendo, todas as manhãs eu rezava sinceramente para que não

sucedesse nenhum acidente; e quando chegávamos à noite sem qualquer contrariedade, agradecia a Deus com alívio ! Uma canção estudantil daquele tempo alertava: "Se confundires o cobre com o alumínio, serás expulso aos empurrões..." fazendo alusão ao erro clássico: o emprego do filtro de alumínio para os Raios, em vez do filtro de cobre ou vice-versa. Bastava usar o alumínio em vez do cobre para expor o paciente a uma inflamação grave. . . Para incutir nos estagiários os perigos desses erros, e fazê-los compreender, tomei o hábito de dar no culpado uma boa pancada com o próprio filtro errado. Yamashita apanhava quase todos os dias mas sem nenhum resultado, pois não tinha interesse em acertar.89OS SINOS DE NAGASAKIQuanto mais a repreendia, mais se tornava preguiçosa, induzindo outras a imitá-la. Muitas vezes tive ocasião de aconselhar e ensinar estagiários, enfermeiros ou internos. Mas nunca um deles me deu tanto trabalho. "Não adianta o senhor querer ensinar essa pequena", dizia-me muitas vezes a enfermeira-chefe. Mas eu insistia. . .Por fim, Yamashita fugiu e ficamos sem notícias, até que uma carta de seus pais avisou-nos que ela estava com eles, na sua ilha natal, Amakusa. Perguntavam na carta se lhe tínhamos realmente concedido aquelas férias, como ela afirmava, e diziam que não parecia nada disposta a reiniciar o trabalho no hospital. . . É fácil adivinhar qual foi a nossa resposta ! O pai trouxe-a de volta e pediu-me que a corrigisse severamente: era a caçula da família — contou-me êle — e totalmente diferente dos outros irmãos. Após esse incidente, Yamashita melhorou um pouco e sua arrogância desapareceu... O egoísmo é, muitas vezes, uma consequência do orgulho. Talvez pensasse que nós nos ocupássemos dela de um modo especial por causa de seu talento pouco comum. Com maldade pueril, resolvera aborrecer-nos pela sua preguiça e fuga. Mas depois de duas ou três semanas ficamos completamente indiferentes e os comentários começaram a se propalar na vila. . . Assim teve ela a primeira revelação de seu "valor" verdadeiro !Tornou-se evidentemente mais dócil e, como era inteligente, progrediu com rapidez. O que muito contribuiu para fazê-la se apegar a nossa seção, foram os reides aéreos. As experiências de salvamentos90SOCORROSperigosos entre bombas e balas de metralhadora, nas quais trabalhávamos em união de alma e de esforços, fizeram-^os esquecer as desavenças anteriores. Lembro-me bem daquele dia em que um navio de transporte militar foi atacado um pouco fora do porto: como ela se mostrou corajosa, saltando rápida da ambulância e cumprindo o seu dever, de capacete de aço e com as insígnias do grupo de socorro universitário. No intervalo dos reides verdadeiros, o exército convoca-nos para operações fictícias. Certo dia, num desses exercícios, uma pseudobomba incendiária foi lançada sobre nossa Escola. Enquanto trabalhávamos na extinção do fogo imaginário, outra bomba explodiu teoricamente sobre nós. Yamashita e eu representávamos as vítimas e. . . morremos. Transportaram "nossos corpos" em duas macas, para a reserva da sala de dissecação. Enquanto nos levavam, eu conservava os olhos bem abertos, fixando o céu azul, e sentia uma curiosa paz de alma, como se estivesse realmente morto !Os enfermeiros deixaram-nos. . . Ficamos ali sobre as mesas, quietos como múmias, de medo que um dos oficiais de vigilância nos caísse em cima, numa de suas rondas. Estávamos tranquilos como verdadeiros mortos e tínhamos a impressão de que se começássemos a conversar e nos ouvissem, um oficial teria gritado: "Que é isso, vocês dois aí ? defunto não conversa..."

Esperamos, esperamos. . . ninguém apareceu e comecei a me espreguiçar. Yamashita, deitada na mesa ao lado, estourou na gargalhada. Olhei-a com um sorriso, mas pensando comigo mesmo: apesar\191/OS SINOS DE NAGASAK1 /de tudo, não é de admirar que um dia como esse, uma única bomba nos mate os dois. . . /Depois disso, não repreendi mais Yámashita; aliás, ela deixara de dar maiores motivos para isso. Tornou-se uma enfermeira eficiente e cheia de boa vontade. Pensei mesmo em mandá-la para a sua ilha, em férias verdadeiras desta vez, para a Festa das Lanternas, a fim de que seu pai pudesse verificar por si mesmo os progressos que fizera. Mas, em 9 de agosto as sereias soaram. Naquele dia Yámashita estava na equipe dos avisos e transmitia notícias do rádio. Que atitude de responsabilidade assumira ela quando, toda banhada em suor e os olhos brilhantes, exclamou: "Último boletim do Q. G. !. . ."E aí caiu a bomba !Quando o cataclismo se amainou, o pessoal sobrevivente reuniu-se na grande sala demolida. Mas Yámashita não apareceu. Em vão pronunciei o seu nome junto de cada uma daquelas figuras enegrecidas, irreconhecíveis, que surgiam, uma após outra, das chamas e das ruínas. . .O cadáver de Yámashita foi encontrado pela enfermeira-chefe no campo de esportes, entre outros corpos calcinados. Ela levou-me até lá. Ajoelhei-me, chorando. O rosto estava queimado mas reconhecível. Transportamos seus restos ainda quentes para inumar, provisoriamente, num abrigo. Não pude conter os soluços enquanto desprendia do uniforme rasgado um pequenino broche em forma de boneca. Se eu tivesse previsto que tão cedo iria morrer. . . E eu me censurava e arrependia por tê-la tantas vezes repreendido com severidade.92SOCORROS. . \Na ilha de Amakusa, cresce abundantemente a sazahka (1) branca. Desejei plantar um pé sobre seu túmulo. Mas sou agora um inválido; como poderei fazê-lo ?Reflexões Posteriores.— Doutor, o senhor não acha que respirei gás ? Estou tão atordoado. . .— Doutor, sinto-me doente sem poder levantar-me. . . não será daquele vento da explosão ?— Doutor, fui soterrado mas não me feri. Entretanto, hoje é que tenho a impressão de que vou morrer. . .Assim falavam-me as vítimas que não se podiam mover, refugiadas à sombra dos muros de pedra, pelos cantos dos prédios desabados. Eu mesmo, enquanto percorria aquelas ruínas, sentia sintomas análogos: uma espécie de enjoo, lassidão dos membros, dor de cabeça, náuseas, tonteiras, fraqueza generalizada . . .Quando noutros tempos fizera experiências com o rádio, senti tudo isso, por ter-me exposto durante muito tempo aos raios gama. O mal-estar, portanto, nada tinha a ver com os gases e o ar aspirado; provinha dos raios X, que atravessam não somente a madeira, mas o cimento das casas.Conhecia bem os efeitos dos raios gama e dos neutrons. Sabia também que esses efeitos não se

(1) Variedade decorativa de chá, muito semelhante à camélia.93/OS SINOS DE NAGASAKIrevelavam senão depois de um período de incubação; a incapacidade em que estava de prevê-los exatamente, deixava-me inquieto e aflito. Eis assim, pensava eu, uma nova espécie de doença criada pelo próprio homem.O dia passou-se entre os cuidados aos doentes. A nuvem atómica desaparecera e novamente o sol queimava as cinzas quentes de Urakami. Sensação de estar numa fornalha. . . Muitos daqueles que tinham fugido para as colinas, a custo escapando da morte, lá encontraram seu último repouso. Jaziam sob rochedos, sob arbustos, incapazes de um movimento. Alguns viviam ainda; imploravam água e gemiam. Como tinham se dispersado ao acaso, não havia meio de procurar alguma pessoa determinada segundo um plano preconcebido. O único recurso era gritar. . . e ir ao encontro dos que respondiam. Sobre o monte Kompira apenas, jaziam centenas — quiçá milhares — de vítimas. Os departamentos da Saúde Pública na Prefeitura e na cidade, a Associação dos Médicos e a polícia colaboraram para estabelecer um serviço de socorro metódico e eficiente. As Associações da juventude de toda a região foram postas à disposição. O Hospital Naval de Omura enviou imediatamente um destacamento sob o comando do Dr. Yasuyama, seu diretor. Outro destacamento chegou do Hospital Militar de Kurume. Que a nossa Escola — considerada desde sempre como a primeira força de socorro de toda a zona — fosse obrigada agora a pedir ajuda. . . parecia-nos incrível ! Esta realidade nos confrangia o coração !94SOCORROSEntrementes, o Professor Koyano, apesar da destruição de sua casa e dos membros feridos de sua família, tomara a direção da Escola, como Diretor em função. O Professor Shirabe, que perdera dois de seus filhos, prodigalizava atenções às vítimas, esquecido dos seus mortos tão queridos. A maioria dos outros estudantes e professores, desprezando a própria desgraça, ocupava-se em procurar pessoas cuja ausência se fazia notar e em estabelecer ordem na confusão que reinava. O Dr. Tsuno-o e o Professor Takagi, estirados no abrigo úmido, continuavam a dar ordens, apesar da alteração progressiva de seu estado. O Professor Yamane, gravemente ferido, fora trazido para perto deles. Aliás, assim que vagava um lugar neste abrigo, novos feridos vinham ocupá-lo.Aviões inimigos passavam. . . Uma segunda bomba teria sido o fim de tudo. A custo nossos nervos resistiam ainda quando, ao menor ruído de motor, corríamos para nos abrigar. Enterramos muitos mortos, tratamos de inúmeros feridos; e pudemos, depois desta experiência, reunir nossas observações sobre os estragos da bomba atómica.Os ferimentos diretos provinham dos elementos da explosão: vento, calor, raios gama, neutrons, fragmentos de bomba incandescentes. Os danos indiretos eram causados pelo desmoronamento das casas, pelo arremesso de objetos, pelo fogo e pela radioatividade das coisas e das pessoas; é nesta segunda categoria que se devia classificar a loucura temporária. No caso da bomba atómica, os estragos por fragmentos eram insignificantes em comparação aos efeitos%OS SINOS DE NAGASAKIda radioatividade: esseÿÿdeviam-se ÿÿÿÿonÿÿr ÿÿ vÿÿtude do fenóÿÿÿÿ de perduração.A pressão imediata foi tamanha que, no raio de um quilómetro, todo ser humano que se encontrava do lado de fora ou num local aberto, morreu instantaneamente ou dentro de

poucos minutos. A 500 metros da explosão, uma jovem mãe foi encontrada com o ventre aberto, seu futuro bebe entre as pernas. Muitos cadáveres perderam suas entranhas. A 700 metros, cabeças foram arrancadas, e por vezes, os olhos saltaram das órbitas. Alguns, em consequência de hemorragias internas, estavam brancos como folhas de papel, os crânios fraturados deixavam destilar o sangue pelos ouvidos. O calor chegou a tal violência, que a 500 metros os rostos foram atingidos a ponto de ficarem irreconhecíveis. A um quilómetro, as queimaduras atómicas tinham dilacerado a pele, fazendo-a cair em tiras, dando-lhe um tom marron avermelhado e deixando à vista a carne sangrenta. A primeira impressão não foi, segundo parece, a de calor, mas sim a de dor intensa, seguida de frio excessivo. A pele levantada era frágil e saía facilmente. A maioria das vítimas morria com rapidez.A uma distância de um a três quilómetros, as queimaduras eram comuns; nem todos os feridos sentiam logo o calor; a sensação de um excessivo calor e dor só vinha mais tarde, quando depois de uma hora ou mais, a pele tornava-se rubra e cobria-se de bolhas. Os efeitos ulteriores dessas queimaduras não podiam ainda ser previstos.96\\ SOCORROSOs fragmentos de bomba variavam de volume: de uma bola de gude à cabeça de uma criança. Espalhavam uma luz de um branco esverdeado e caíam assobiando, causando queimaduras extremamente perigosas.Os casos de esmagamento sob ruínas, ferimentos por estilhaços, morte pelo fogo, igualavam-se aos casos similares dos reides habituais. As irradiações produziam, além de uma fraqueza geral, a diminuição das secreções salivares, urinárias etc.No abrigo estreito, mortos e feridos estavam estendidos lado a lado. Os sobreviventes não podiam fazer o menor movimento. Quando um paciente parava de gemer, é que a morte chegara. . .A discussão sobre o átomo, sobre a classificação das vítimas continuou pelo dia a fora, deixando todos extenuados. A água que pingava do teto parecia ritmar a fuga do tempo dentro da escuridão que se tornara de novo silenciosa.As cenas horrorosas, vividas desde o dia anterior, obcecavam o espírito de todos, e o pensamento oscilava entre o sono e a consciência. Durante a noite, a enfermeira-chefe, que repousava perto de mim, foi de repente assaltada por uma espécie de alucinação: sacudiu-me pelos ombros, gritando: Oyanagi, Oya-nagi. . . Era o nome de uma das enfermeiras mortas na véspera.Na madrugada de 11 de agosto, enquanto a temperatura estava ainda suportável, todos os pacientes foram removidos para o Hospital Militar e licenciar am-nos. Tendo entregue os vivos em boas97/OS SINOS DE NAGASAKI Imãos, encetamos novo trabalho: o de queimar os mortos e procurar aqueles cuja ausência aos poucos íamos notando. Enquanto chamas vermelhas subiam dessas cremações, grupos de duas ou três pessoas contemplavam-nos silenciosos.Sepultamos Yamashita e as outras quatro enfermeiras. Não nos parecia justo separarmo-nos delas assim tão simplesmente, sem nenhuma cerimónia. Colocamos, então, sobre o local, placas de madeira com seus nomes inscritos. Flores não tínhamos para oferecer-lhes.Conhecedores do desastre, acorreram imediatamente ao local as famílias dos estudantes e enfermeiras. Andavam de um lado para outro, gritando o nome dos que buscavam,

atirando-se para desconhecidos que, de costas, assemelhavam-se aos seus entes queridos, prorrompendo em choro convulso quando encontravam um colega ou amigo de seus filhos. Juntei-me a muitos desses pais na sua busca vã e dolorosa, confundindo as nossas lágrimas. Nenhuma palavra poderá descrever esse quadro.A maioria não chegava mesmo a descobrir os corpos que buscavam; sabendo que seus parentes deveriam estar nesse ou naquele pavilhão ou classe no momento da explosão, procuravam entre os cadáveres ou esqueletos enfileirados. Mesmo quando pensavam reconhecer os despojos, o rosto estava tão desfigurado que somente o nome, bordado no avental, fornecia a identificação decisiva. E quantos, após esse reconhecimento, não conseguiam mais chorar: a dor petrificava-os.98\ SOCORROS\O dia em que perdi a metade de meu coração.Havia três anos que deixara a Universidade, quando me casei com Midori. Meu salário mensal, naquela época, não ia além de 40 yen. Foi durante a questão da Mandchúria, e a vida estava barata; todavia, deve ter sido difícil à minha mulher organizar a nossa subsistência dentro desse orçamento. Nunca, porém, ouvi-a murmurar, ou queixar-se de alguma coisa. Jamais tive meios para comprar-lhe um quimono novo; não frequentávamos teatros ou restaurantes. Nossa única distração consistia em, uma vez por ano, passar algumas horas de folga à beira-mar.Dia após dia eu permanecia até tarde no meu ♦ laboratório, enquanto ela se ocupava com os trabalhosdomésticos. Assim vivemos durante sete anos. A roupa de toda a casa era feita por Midori: desde as minhas meias e camisas até os aventais, tudo foi sempre confeccionado por ela, à custa de seu cansaço e mãos ativas. Vendo-me assim vestido, as moças do laboratório gracejavam comigo: "O Doutor Nagaí está sempre abraçado pela esposa !"Num tempo em que tão facilmente se compravam batons de Paris e perfumes da Itália; numa época em que as senhoras exibiam suas toaletes pela cidade, Midori mantinha-se indiferente a tudo isso e nunca se pintou.A alimentação era tão abundante naqueles dias, que chegava a se estragar e ser jogada fora. Mas ai99OS SINOS DÊ NAGASAK1económica Midori tratava de seu pomar, trabalhando nele sempre que o tempo bom o permitia. Quando chovia, dedicava seus dias à costura e ao tricô.Exercia ainda o pesado cargo de presidente dos clubes femininos, na nossa cidade de Urakami. E além de tudo, tinha a tarefa ingrata de ser minha mulher, de velar por um marido distraído, todo absorto nas suas pesquisas.Com efeito: quando eu iniciava novas experiências tornava-me outro homem. Meu espírito concentrava-se e, durante dias seguidos, conservava-me fechado em bibliotecas, a fim de estudar as obras de diferentes autores. Comparava fichas e relatórios; construía aparelhos e dava início a longas experiências donde saía um artigo. . . Mas eram precisos meses para isso ! Durante esse período, nada mais me interessava. Só falava quando me interrogavam; só comia quando me davam alimento; se as crianças gritavam, olhava-as com espanto. Seria incapaz de dizer o que comi ou o que fiz.Por duas vezes Midori disse ter-se cruzado comigo na rua, quando voltava da Universidade. Confesso que não a reconheci ! "Tenho às vezes a impressão — confiou-me ela — que lido com um sonâmbulo!"...

Mesmo para os assuntos importantes de casa, nunca pôde contar comigo. Esforçava-se em preparar pratos especiais que me proporcionariam forças necessárias para meu trabalho intelectual. Infatigavelmente, cuidava de minha roupa e do meu modo de vestir, pois não seria de estranhar se eu saísse sem gravata. Quebrava a cabeça diariamente100\SOCORROSpara saber se fichas, cadernos, fotografias e papéis de toda espécie, espalhados sobre as esteiras do chão, poderiam ou não ser arrumados. Não havia hora certa para coisa alguma, e é um milagre que seus braços frágeis possam ter dado conta de tudo !A única recompensa de todos os seus trabalhos e fadigas era ver os meus artigos publicados em revistas científicas. Esses periódicos, que outros leitores percorriam, sem dúvida, com olhos distraídos, ela recebia-os com respeito, saudando-os com profunda reverência. Sentava-se muito tesa e lia-os atentamente. Os artigos encabeçados por meu nome, que ainda rescendiam a tinta da tipografia, não continham senão termos técnicos ou explicações profissionais. Pouco importa; Midori sabia que eles estavam impregnados da vida e do espírito de seu marido. Ela os lia com lágrimas nos olhos. Eu contemplava-a, carregando nos braços, em seu lugar, o nosso último filho: e era como se uma nova primavera despertasse de repente no meu coração. . .A hora de suprema felicidade, na nossa casa, era no domingo pela manhã, quando, todos juntos, saíamos para a missa. Seguíamos, através dos campos, o caminho que subia pela colina até o santuário. Eu segurava pela mão o nosso filhinho mais velho. Midori levava o pequenino nas costas. Os sinos, com sua doce voz clara, chamavam os paroquianos. As pessoas apareciam daqui, dali, de dentro das suas casas, trajes domingueiros e alegres, para reunir-se ao cortejo sempre mais numeroso. Chegávamos à igreja; através dos vitrais, o sol matinal envolvia nosso canto: minha voz, a de minha mulher, a mo-101OS SINOS DE NAGASAKIdulação hesitante da criança, a antífona rude do camponês sentado perto, todos juntos, louvando o Pai dos céus. . . Infelizmente esses dias felizes não voltarão mais para mim.Tínhamos poucas relações; meus amigos eram, como eu, cientistas pobres. Certo dia em que eu conversava com meu colega Nakamura no nosso jardim, êle me contou que praticara a partenogênese das rãs. Midori nos ouvia, enquanto costurava minhas roupas. Nakamura disse-me, gracejando: "Quem sabe, Dr. Nagaí, se chegará o dia em que os esposos não serão mais necessários para ter os filhos..."Então Midori retrucou: "Admitamos que sim ! mas acham então que o único fim do casamento seja o de pôr filhos no mundo ?"Quando me nomearam livre docente, meu salário foi aumentado para 100 yen. Grande alívio para minha mulher que, sem isso, ficaria realmente embaraçada, visto nosso filho já estar em idade escolar. Este aumento, aliás, não nos favorecia com o "luxo" de um teatro de vez em quando. . .Cinco anos se passaram. Minhas longas pesquisas no perigoso terreno dos raios X acabaram por alterar minha saúde e contraí uma leucemia. Quando me certifiquei dessa realidade e ciente de que tinha poucos anos de vida, contei tudo a Midori, perguntando-lhe o que pretendia fazer. Recebeu minha terrível confidência sem pestanejar, o que me confortou muitíssimo: era bem o que esperava. Quando terminei de falar ela disse: "Há muito tempo, eu previa isso..."102SOCORROS

E eu pensava: Está certo; depois de minha morte, uma mulher corajosa assim, educará perfeitamente os meus filhos, e eles prosseguirão nas minhas pesquisas. . . Posso dedicar-me, com afinco, ao meu trabalho, sem preocupações com o futuro. . .Depois desta conversa decisiva, Midori redobrou de ternura e cuidados para comigo; meu estado, porém, piorava cada vez mais. Quando soavam as sirenas de alarma, acontecia-me cambalear sob o capacete de aço. Certa vez ela chegou mesmo a precisar me transportar até o laboratório.No dia 8 de agosto, Midori despediu-se de mim com seu bom sorriso habitual. . . Depois de ter dado alguns passos, lembrei-me de que havia esquecido de trazer a minha merenda. Voltei sem que ela esperasse, e encontrei-a banhada em lágrimas. Foi assim o nosso adeus. Aquela noite fiquei na Escola por ser o meu plantão. Na manhã do dia 9, explodiu a bomba atómica e fui atingido. Como um relâmpago, vi em pensamento o rosto de Midori na minha frente. Mas estava por demais ocupado com as vítimas; cinco horas mais tarde uma hemorragia tomou conta de mim. Tive então o pressentimento da morte de Midori: ela não viera me buscar, e a distância que separava nossa casa da Escola era apenas de um quilómetro. Mesmo arrastando-se, não seriam precisas 5 horas para cobrir aquela distância. E eu sabia que uma mulher como ela, embora ferida, enquanto tivesse um fio de vida, teria tentado vir para meu lado.No terceiro dia, terminados os trabalhos mais urgentes, voltei para casa: casa que se tornara um103OS SINOS DE NAGASAKY

monte de cinzas. . . No que fora a cozinha, imediatamente descobri alguns vestígios ainda quentes e completamente calcinados: tudo que me restava de Midori; mas, bem perto, brilhava a corrente de seu Rosário e a cruz pequenina.Em volta de nossa casa todos os vizinhos também morreram. Muitos ossos — igualmente enegrecidos — estavam visíveis entre as cinzas, sob a luz do poente.Para conservar os restos de minha mulher, encontrei apenas um balde de ferro, retorcido pelo fogo. Foi assim que a levei ao cemitério, apertando-a de encontro ao peito.Destino estranho ! Tantas vezes pensei ser levado ao túmulo por Midori. . . Agora, seus pobres restos repousavam nos meus braços. . . Sua voz parecia murmurar: perdão, perdão. . .104IVO POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAAté a Assunção.Ao norte de Nagasaki, um grupo de montanhas cobertas de verde destaca-se sob o fundo azul do céu. No mapa, elas são designadas como Kuradake, mas os moradores da região chamam-nas, mais simplesmente, Mitsuyama, as Três Montanhas. No vale, além daqueles picos, existe uma fonte mineral, conhecida através dos séculos, como infalível para curar queimaduras.Essa zona atraía numerosos doentes e lá construíram, há mais de vinte anos, uma hospedaria para recebê-los. Imaginamos que suas águas seriam ainda o melhor meio de curar nossos milhares de vítimas, e um posto de socorro foi, pois, instalado em Koba.No dia 12 de agosto, carregando de encontro ao peito as caixas que continham os ossos de nossos mortos, deixamos Urakami, em direção a Koba. Largando atrás de nós uma paisagem despojada, calcinada e triste, vimo-nos rodeados por árvores e folhagens

exuberantes. A brisa fresca da montanha aliviava nossos corpos exaustos e reanimava os espíritos105OS SINOS DE NAGASAK1abatidos. De vez em quando parávamos para respirar profundamente, limpando os pulmões da poeira e das impurezas do incêndio e da carnificina. Cada aspiração lenta tinha o efeito de uma purificação.Em Fujino-o, arrabalde de Koba, alugamos uma casa para transformá-la em ambulatório. Antes, porém, caminhamos até a floresta que se estendia em frente ao nosso prédio: dentro dela serpenteava um riacho claro e fresco. Tirando nossas roupas, deitamo-nos na corrente. Seu leito servia-nos de colchão e algumas pedras, de travesseiro. Olhadas de baixo para cima, as margens pareciam subir a pique, as árvores cruzando os seus ramos acima de nós. As cigarras entoavam uma sinfonia estival e, na faixa estreita de céu azul que se estendia sobre nossas cabeças, leves nuvens brancas moviam-se preguiçosamente. "Como é bom viver !" pensei comigo mesmo. Lembrei-me de um poema que compus no fronte: "Hoje ainda sobrevivi; e nas minhas mãos, a vida me parece tanto mais maravilhosa..." Repeti essas palavras diversas vezes.Enxugando-me, descobri, com surpresa, que todo o lado direito do meu corpo estava coberto com inúmeros cortes, feitos por estilhaços de vidro. Tomava agora conhecimento deles pela dor que me causavam. Lavei minhas roupas manchadas de sangue e, enquanto esperava que secassem, tentei dormir sob uma árvore. Foi a primeira vez — desde a explosão — que consegui um bom sono. Ao despertar, vi que todas as enfermeiras também haviam adormecido e alegrei-me com isso: deviam estar terrivelmente fatigadas.106O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAÀ tarde, de casa em casa, visitamos os doentes. Em primeiro lugar, Okamurasan, chefe do grupo da região de Koba: encontramo-lo deitado, seriamente ferido. Disse-nos que era difícil saber quantas vítimas havia em cada cabana. Com efeito: quando fomos visitar Takamisan, o conhecido fazendeiro da zona, a mulher nos afirmou que mais de cem pessoas refugiaram-se na sua casa. Enxugando o suor que lhe corria da testa, ela cortava em fatias, enorme quantidade de abóboras. . . Muitos feridos e grande número de religiosas budistas do mosteiro de Junshin jaziam sob os mosquiteiros. Morriam, aliás, um após outro, e o fazendeiro saiu uma vez mais para abrir sepulturas. Os feridos tinham sido transportados de Urakami, conforme estavam; ninguém lhes tocara ainda nos ferimentos, cobertos apenas com os trapos que tínhamos encontrado no primeiro momento. Por isso mesmo, muitas feridas já supuravam e quando suspendíamos as bandagens improvisadas, o pus corria com cheiro nauseabundo. Limpando as feridas, encontrávamos, quase sempre, cacos de vidro, lascas de madeira, fragmentos de argila. Lavávamos os ferimentos com dureza, mas eficazmente, usando creosoto. Por mais empedernidos que estivéssemos, arrepiavamo-nos ao fazer isso.Como cada vítima tinha, pelo menos, dez a vinte lesões, os cuidados não eram fáceis. Levávamos tempo enorme com cada um daqueles infelizes para lavar, limpar, coser, ajustar e passar as bandagens. O recorde foi de cento e dez feridas numa pessoa !As queimaduras também eram graves, sobretudo quando afetavam os braços, o peito e o rosto. Gran-107OS SINOS DE NAGASAKIdes placas de pele tinham-se desprendido, deixando exposta a carne viva. Os rostos incharam monstruosamente, dificultando o falar. As queimaduras que foram tratadas

com óleo — de acordo com nossas instruções — apresentavam-se em boas condições, mas em muitos casos empregaram batatas amassadas, casca de abóbora ou até mesmo terra. Nessas, a infecção era seríssima ! Desinfetamos e ensinamos os doentes a aplicar compressas de água nas fontes.De uma casa para outra, através dos campos, a vista dos mosquiteiros indicava-nos a presença de vítimas. O pensamento de que contavam conosco, renovava a nossa coragem.Às dez horas da noite, tínhamos visitado todas as casas de Inutsugi e voltávamos a Fujino-o pelo caminho da montanha, atentos às cobras que ali existem. O orvalho já cobria a relva tenra e os insetos zumbiam. No céu, a Grande Ursa desaparecera e o Escorpião espreitava-nos por cima das Três Montanhas. Na noite anterior, Antares — vista do abrigo, entre as ruínas — tinha um brilho vermelho de sangue; mas hoje, quando a contemplei do fundo daquele vale calmo, parecia que me acenava amigavelmente. Ninguém falava. Enquanto caminhava pelo atalho estreito, trazia meus amigos mortos no íntimo de meu coração, pensando também nos que ainda viviam. Ergui de novo os olhos, procurando no limite do horizonte a constelação da Virgem. Sentia necessidade de contemplar sua luz clara e azulada. E minha oração subiu ao céu, numa súplica fervorosa, pelas enfermeiras vitimadas.108O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAO dia 13 de agosto despontou límpido e quente. Após termo-nos banhado no rio descemos até Ro-kumai-ita, no intuito de visitar aquela cidade, assim como Toppomizu, Akamizu e Odorize. Era uma volta de uns oito quilómetros, aproximadamente, e pensávamos terminá-la em Rokumai-ita antes do almoço. Encontramos um número de feridos muito maior do que tínhamos previsto e, à notícia de nossa chegada, afluíram muitos outros: trabalhamos, sem descanso, até dez horas da noite.Prepararam nossa refeição na casa do fazendeiro Matsushita e tivemos uma agradável surpresa quando penetramos na sala. Sentado na esteira, saboreando um arroz branco e fumegante, pensei outra vez: que sentimento curioso o de estar vivo ainda ! E as lágrimas me subiram aos olhos.O dono da casa insistia para que comêssemos à vontade. "Todas as cidades precisam dos senhores e não podemos deixá-los com fome. Comam bastante para terem forças..."Tínhamos terminado de visitar Akamizu quando ouvimos um forte ruído de motor. Rapidamente deitamo-nos, colocando-nos à encosta de um rochedo. Uma explosão atómica seria o fim de tudo e rezei para que tal não sucedesse. As bombas comuns, as rajadas de metralhadoras, já nos eram familiares; com certa prudência podíamos escapar delas. Mas, da bomba atómica nada sabíamos: nem de onde e quando vinha, nem como nos defender. . . Era de admirar se nos sentíamos trémulos e nervosos ?O ronco extinguiu-se por fim. Voltando para a estrada, continuamos em fila indiana, com cuidado109OS SINOS DE NAGASAKIpara não projetar, sobre a estrada branca, nossas sombras pretas e movediças.Não tínhamos mais casa, nem família, nem bens; íamos de vilarejo em vilarejo nos trajes miseráveis achados entre as ruínas. Quem acreditaria ser aquele grupo composto de médicos, professores, assistentes e alunos de uma Faculdade de Medicina ?Tinham alguns, em volta da cabeça, bandagens trespassadas de sangue; outros mancavam com um pé ferido; outros, atingidos no peito, respiravam penosamente. Era impressionante a palidez desses; a radioatividade afetara-lhes o sangue. Muitos havia, que andavam às apalpadelas, tendo ficado sem os óculos.

Mas nós prosseguíamos, sustentando-nos em bengalas improvisadas ou apoiando-nos no ombro de um dos companheiros. Dávamo-nos a mão fraternalmente e continuávamos a marcha. Uns calçavam sapatos arrebentados, outros, chinelos, tamancos de madeira ou botas de borracha. Sangue seco cobria as calças rasgadas e as camisas em farrapos. Alguns protegiam a cabeça com uma toalha, um lenço, enquanto outros conservavam o capacete de aço. Cobrimos as cabeças e os ombros com folhagens, camuflando-nos contra os aviões. Parecíamos soldados derrotados, mas animava-nos o desejo da verdade e da ação. Sob o sol ardente e o ronco de aviões inimigos, íamos ao encontro dos feridos, impelidos pelo entusiasmo profissional. Ajudar os homens: era o que queríamos, pois continuávamos a ser uma Escola Médica ! Mas era também para a investigação da verdade que ficamos vivos: eis que se nos oferecia um campo110O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAde observação absolutamente novo: desprezá-lo seria não somente cruel em relação às criaturas, mas uma falta contra a ciência.Tinha começado a sentir os sintomas da doença atómica; sabia que, esgotando-me como estava fazendo, em breve morreria ou cairia seriamente enfermo. Não tínhamos nenhum instrumento de experimentação, nem ao menos um lápis ou uma folha de papel. Somente alguns escalpelos, pinças, agulhas e uma pequena reserva de desinfetantes e bandagens que carregávamos nas nossas bolsas. Conservávamos, porém, nossas cabeças, nossos olhos, nossas mãos, e o desejo ardente de fazer alguma coisa !— Aviões ! Todos deitados !Atiramo-nos sobre a relva poeirenta. Formigas circulavam sobre as hastes que encostavam nos nossos rostos.. .— Já se foram ! Continuemos. Levantávamo-nos vacilantes e, com maior zeloainda, prosseguíamos.— Outro avião ! um caça ! Depressa, sob os rochedos!— Cuidado com os vidros de remédio ! São os ^s> únicos !Abrigar-se contra os aviões, correr para recuperar o tempo perdido, descansar exaustos sob árvores, olhar o relógio e tornar a partir, assustados com o adiantado da hora. . . assim foi todo o nosso dia. A ronda das cidades levou mais tempo do que tínhamos previsto. Nossos pés doíam-nos barbaramente e à noite, estávamos física e moralmente extenuados.111OS SINOS DE NAGASAKIHavia um número de doentes cinco vezes maior do que pensávamos: pelo menos um em cada casa. Muitos eram desconhecidos dos próprios moradores, mas tombavam à sua porta, incapazes de dar mais um passo, e recolhidos com carinho, eram por eles tratados da melhor forma possível. Outros jaziam nos bosques de bambu, sobre esteiras. . . Em pouco tempo faltaram-nos bandagens. A enfermeira-chefe e Tsubakiyama tiveram de caminhar uma hora, até a Escola, sob um sol abrasador, para refazer nossas provisões. No momento em que se afastavam, disse-mo-nos, meio rindo e meio sérios: "Se houver ainda uma explosão, adeus para sempre !"Mas à noite elas voltaram vivas e alegres, com seus sacos de emergência. A enfermeira Oishi veio junto. Na manhã do dia 9, antes da explosão, sabendo que seu irmão morrera em combate, ela fora para casa. No outro dia, informada da destruição da Escola, voltara imediatamente de Kita Matsuura, numa viagem de dez horas, para oferecer seus préstimos.— "Queria ao menos encontrar os seus restos !" disse-nos ela, chorando. A vinda daquela jovem, forte e enérgica, reanimou-nos de verdade: às 10 horas da noite,

pudemos acabar nossa tarefa e voltar para Fujino-o. Em torno do fogo, fazíamos cozinhar batatas e abóboras. Discorremos sobre os sintomas da doença atómica; as perturbações digestivas já começavam a aparecer: herpes purulentos da boca, estomatites. . . Atirando lenha no fogo e argumentos nos debates, depressa tivemos diante de nós uma sopa fumegante.112O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA14 DE AGOSTO DE 1945Hoje, num raio de nove quilómetros, tínhamos quatro cidades para visitar: Azebetto, Kawadoko, Tobita e Kotani. A estrada serpenteava por montes e por vales; muitas vezes, olhando uma casinha solitária no cume de uma montanha, hesitávamos em ir até lá. Pensando, porém, no serviço que poderíamos prestar, na observação a fazer, empunhávamos o nosso bastão e, passo a passo, vencíamos a subida.As famílias recebiam-nos com alegria e gratidão. Os doentes sentiam-se melhor já com a chegada dos médicos. Percebíamos o cortar dos pepinos na cozinha, e o chá que preparavam para nós. . .À noite estávamos arrasados pelo cansaço, a fome e dor. Voltamos dois a dois, sem conversar, seguros pelas mãos, enquanto a Lua olhava-nos do alto.— O dia está declinando e ainda temos muito que andar, murmurou o Professor Seiki. . . Nesse momento tive uma câimbra no pé direito e caí em cheio. Todos acorreram para levantar-me.A Lua desapareceu e a escuridão envolveu-nos. Não enxergávamos ninguém. Fujino-o ainda distava três quilómetros. . . Após meia hora, os músculos de minha perna se relaxaram; apoiado no ombro da "Favinha", consegui andar, mas depois de uns mil metros, foi ela que não resistiu. Duas enfermeiras sustentaram-na, colocando seus braços sobre os ombros, enquanto Choro me carregava nas costas.113OS SINOS DE NAGASAKIFinalmente chegamos à casa de Takamisan, onde paramos. A dona da casa, desolada em ver-nos naquele estado, preparou uma ceia. Por demais famintos não protestamos: Devoramos o arroz e as abóboras, as batatas e as ameixas como pobres cães famintos . . .15 DE AGOSTO DE 1945Para celebrar a Assunção, houve missa na igreja de Koba. Foi interrompida, entretanto, por aviões inimigos que roncavam muito perto. Apressadamente, o Padre Shimizu transportou a Santa Hóstia para o abrigo, atrás da igreja.Terminada a cerimónia, recomeçamos as visitas aos feridos de Inutsugi. Os pacientes continuavam a morrer, enquanto o afluxo de casos novos entrava em regressão. Sentíamo-nos como que nos limites de nossas forças: seria interessante verificar se não constituíamos, nós mesmos, os casos mais graves. Os pacientes, pelo menos, exprimiam-se sem cuidados; mas nós, para articular as mais simples respostas, deveríamos refletir. . . É a guerra; não podemos entregar-nos agora, pensávamos.Choro que havia saído cedo, esta manhã, para procurar abastecimento no quartel-general da Escola, voltou à tarde, visivelmente emocionado. O saco de arroz, o pacote de farinha, de feijão e as conservas foram recebidas com júbilo. Mas que notícias transmitiu-nos êle !— Parece que a guerra acabou, disse-nos.— Acabou ? como assim ?114O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMA

— Rendição sem condições. Aceitação total da declaração de Potsdam.Um silêncio opressivo caiu entre nós. Afinal exclamei:— É impossível !— A cidade está um caos. Uns afirmam isso, outros o negam. Houve uma transmissão especial ao meio-dia pelo rádio. Não se conseguiu captar. . . mas a palavra "nós", reservada ao Imperador, foi ouvida muitas vezes e há quem pense que foi o próprio Imperador quem falou. Por outro lado, a polícia fêz a volta da cidade em caminhões, proclamando que tudo aquilo era propaganda inimiga, na qual não deviam crer. Gritavam mesmo: Combateremos até o fim, mesmo em nossa terra, ou coisa semelhante. Confusão completa. Muitas pessoas foram espancadas por terem dito: a guerra acabou !Não conseguíamos falar. Será verdade ? Não, não pode ser. Ainda um boato !. . . Mas, quem sabe ?. . . E nessas alternativas de dúvidas e incertezas meus pensamentos se agitavam.De novo soaram dez horas e encerramos os trabalhos; mas o jantar, embora enriquecido pelas conservas de Choro, pareceu-nos insípido.Após a Assunção.16 DE AGOSTO DE 1945"Não há dúvida; é uma bomba retardatária; uma bomba atómica retardatária. Num minuto ela vai explodir. . . tenho certeza. . . ou quem sabe den-115OS SINOS DE NAGASAKItro de cinco minutos. . . Mas ninguém sabe que ela caiu aqui... Só eu sei !. . . Devo destruí-la ! Tenho um bambu na mão e lutarei. . . Perto de mim há uma porção de dardos; lanço-os um atrás do outro. Desespero-me, transpiro. . . Ela vai explodir... Eu sei !. . . Escutem o barulho ! o clarão ! A luz no meu rosto." Grito: "Ela atingiu-me !"— Doutor, doutor: que é isso ?A enfermeira-chefe debruça-se sobre mim; a "Favinha" escancara as janelas... o sol fere meus olhos...— O senhor está com febre, diz a enfermeira, passando sobre minha testa uma toalha. Tento levan-tar-me, fico atordoado, e uma dor forte na perna direita impede-me de movê-la.— Não é de estranhar: todas as suas feridas estão infeccionadas e supuram, disse a enfermeira, examinando-me. Por que não nos disse antes ?— É a guerra, respondi com uma falsa vaidade, mas sem poder erguer a cabeça.Depois de me terem tratado e dado uma injeção, os outros foram para Kawabira. Tsubakiyama saiu para a cidade, em busca de notícias. Fiquei, pois, sozinho, abatido e cheio de dor. Algum tempo mais tarde ouvi de novo a voz de Tsubakiyama. Com ar tristonho entregou-me um jornal. Um olhar bastou-me: eram bem esses os títulos que, durante anos, receávamos ler: Uma decisão imperial põe término à guerra. O Japão derrotado.Desatei em pranto: durante vinte, trinta minutos, chorei como vima criança; mesmo já sem lágrimas, os soluços não cessavam. Tsubakiyama e eu116O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMApermanecemos deitados no chão, os ombros sacudidos pela nossa dor.À noitinha, revendo meus companheiros que chegavam de seus trabalhos, pus-me de novo a chorar. Juntos derramamos nossas lágrimas durante horas a fio. Nem chá, nem jantar. Nenhum pensamento, nem uma palavra sequer. Nossos espíritos estavam mergulhados num oceano de mágoa. Somente o cansaço conseguiu adormecer-nos.

17 DE AGOSTO DE 1945"Os montes e os rios permanecem, embora pereçam os impérios." Abrindo as janelas, revimos as três montanhas, perfilando-se no céu, tranquilas como sempre, alheias às nuvens que passavam sobre elas. Naquele momento, todas as coisas, para nós, não valiam uma fumaça. Nossa fé na inviolabilidade do Império desvaneceu-se num segundo. No céu de verão, aviões americanos voavam vencedores. Passavam baixo, examinando o país à vontade. Um B-29 apareceu e sumiu, sua cauda gigantesca quase tocando os três cumes.A guerra terminou e nós a perdemos. Resolvemos nada fazer nesse dia. Depois do almoço ficamos estendidos nas nossas esteiras, olhando as nuvens, as colinas, os aviões. Copos e pratos abandonados em volta do fogo. NÃO sentíamos vontade de fazer coisa alguma... OS SINOS DE NAGASAKIUm homem veio pedir que fôssemos ver um doente. . . Estávamos derrotados; que importava um doente, quando cem milhões de homens choravam ? Que valiam um ou dois feridos ? Sua salvação em nada iria alterar o destino de nossa pátria. Despedimos o homem. . . Êle retirou-se, acabrunhado. Fiquei olhando para êle, enquanto se afastava. De repente meus sentimentos se modificaram: Façam-no voltar ! exclamei. Salvar vidas humanas, eis o que conta ! O país foi vencido mas as vítimas vivem ainda. A guerra terminou, mas continuamos a ser uma equipe de socorros. O Japão pereceu, mas a Medicina permanece ! Este é nosso trabalho e o nosso dever: velar sobre a saúde e a vida das pessoas, independentemente da sorte do Estado. O Japão chegou a este ponto por não ter dado o devido valor à vida individual. . . Respeitar esta vida poderia ser — começava eu a compreender — o princípio de uma nova visão do mundo.Essas pessoas, às quais fizeram crer que seu país podia ganhar a guerra, foram na verdade atingidas de tal forma, como se elas é que a tivessem perdido. Eram, de fato, os mais desesperados. . . Eu, eu podia dar-lhes alívio e reconforto. Competia a mim aproximar-me deles. Levantei-me, cambaleando; os outros imitaram-me; nossa coragem voltou; a determinação de continuar nosso trabalho deu-nos força e alegria. Não era mais em nome da guerra que nos animávamos a agir. íamos com espontaneidade, compreendendo que nos cabia salvar a vida de nossos compatriotas. Extenuados fisicamente, sentíamos intensa força espiritual.118O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAAviões de caça com bandeira branca nos sobrevoavam; mas hoje era tudo indiferente. Caminhávamos em grupo, ao longo da estrada; a cada avião que passava, um sentimento curioso nos assaltava: o de não precisar correr; o de não mais nos escondermos.18 DE AGOSTO DE 1945Espalharam-se boatos de que as tropas aliadas desembarcariam e que as mulheres e crianças deveriam evacuar a cidade. Espetáculo triste e, ao mesmo tempo, ridículo: ver os japoneses, meio desvairados, fugir com o que podiam levar, abandonando suas casas e sua cidade para um destino incerto. Durante várias semanas a desordem, consequente da capitulação, manifestou-se de maneiras diferentes. A nós não afetou: tendo perdido tudo que tínhamos e não nos restando senão os doentes e os feridos, continuamos tranquilamente a nossa tarefa. Nosso sofrimento interior era profundo e pesava-nos na alma. Nosso Japão, simbolizado pelo Fuji que penetra as nuvens na luz do sol levante, esse nosso Japão sucumbira. Ao nosso povo, esmagado no fundo de um abismo, só restava viver na desonra. Felizes os nossos amigos, ceifados pela bomba atómica.

Todas as noites, após o jantar, ao ar livre, sob a claridade da Lua, ou dentro de casa, quando chovia, conversávamos horas a fio, com o coração nas mãos. Debatíamos, por vezes, dúvidas angustiosas: que fa-119OS SINOS DE NAGASAKIremos no futuro ? E, em torno deste problema atual, giravam nossos assuntos. Durante o dia, porém, o cuidado com os doentes absorvia totalmente os nossos pensamentos.Progressivamente, a terrível doença atómica apareceu nos nossos pacientes, nos refugiados que até então pareciam indenes, e em nós mesmos. Certos sintomas eram-nos familiares, graças às nossas experiências anteriores e sua presença, confirmando as nossas teorias, deixava-nos quase vaidosos. Outras perturbações, porém, eram inesperadas e não sabíamos como tratá-las. . .Enquanto isso, o Posto de Saúde de Mitsuyama continuava seu trabalho. Só fechou no dia 8 de outubro.Um depois do outro, caíram doentes os membros da equipe: esgotamento, má alimentação e irradiação atómica solaparam nossas forças. No Dr. Si, os glóbulos brancos estavam reduzidos à metade. Em Moriuchi apareceram pontos de hemorragia. A en-fermeira-chefe perdeu seus cabelos. Aqueles que estavam acamados eram os únicos que ficavam no Posto durante o dia. Os outros voltavam à tarde e à noite, a fim de cuidar deles e partiam de novo na manhã seguinte, para as visitas aos doentes. Faziam, regularmente, uns oito quilómetros pela estrada abrasadora do vale, passando de vila em vila, casa por casa.Quando algumas pessoas se refizeram, caíram enfermos aqueles que os haviam cuidado. Tratar e deixar-se tratar, dar injeções e recebê-las; buscar120O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAágua no rio quando esse doente tinha sede, trazer umas peras quando outro não queria aceitar uma alimentação comum; fazer quinze milhas até a cidade principal para buscar os remédios necessários; era neste ritmo que se unia a nossa equipe.Nessa época, nossa amizade era sincera e profunda. À noite, à luz de uma lanterna, reuníamo-nos para rezar pelos nossos mortos queridos. Se Takami trazia-nos flores do campo, lembrávamo-nos dos olhos brilhantes de Inoue e se Harada-san mandava bolos de arroz, pensávamos em Hama. Se se tratasse de cerejas, vindas da mulher do cesteiro, recordávamos do narizinho vermelho de Yamashita, e se as batatas-doces chegavam da família de Mitsushita-san, lamentávamos Oyanagi e Yoshida que estavam no campo de batatas, na hora da explosão. Meus olhos ficaram cheios de lágrimas, pensando o quanto seríamos felizes se Fujimoto e Kataoka e Kozasa estivessem ali conosco, saboreando o que comíamos. . .No dia 20 de setembro, meu estado agravou-se e perdi toda esperança de cura. Durante mais de uma semana a doença atómica me atacou com toda a intensidade e febre alta. Nesse período, imploraram-me que fosse ver um doente, no alto de uma colina, a alguma distância de onde estava. A extensão podia precipitar minha morte, mas achei que dar minha vida por um irmão desconhecido seria um belo sacrifício e pus-me a caminho. As pernas pareciam não poder sustentar-me. Depois de um breve descanso no prédio improvisado do Mosteiro Junshin em Kawadoko, onde fui repreendido pelo Abade, por121OS SINOS DE NAGASAKI

causa de minha temeridade, consegui afinal, com esforço, fazer a visita a meu doente. Quando, tarde da noite cheguei, fui diretamente para a cama, da qual nunca mais deveria levantar-me.Acordando de uma espécie de coma doloroso, notei uma curiosa modificação no meu ritmo respiratório. Ansioso pus-me a ouvir e reconheci os sintomas de Cheynes-Stock. . . a respiração dos moribundos . . . "Todas as aparências de Cheynes-Stock" disse eu em voz alta. Neste momento, vi à minha cabeceira o Dr. Tomita que estudou outrora na nossa seção, partira para a guerra e acabara de chegar. "É verdade", concordou êle com certo embaraço.— Foi muito amável de sua parte ter vindo de tão longe, falei, estendendo-lhe a mão.Notei também, nessa hora, a presença de Miss Morita, enfermeira-chefe do Hospital da Marinha.— Não se preocupe, Doutor Nagaí, o senhor vencerá essa crise. Mas fique calmo.Aplicou-me uma injeção no braço. Pela dor que senti, calculei tratar-se de coramina. Nesse caso — pensei — meu pulso deve estar bem fraco. Sentia, com efeito, no coração, um peso doloroso, mas a enfermeira tranqúilizou-me... Se ela dizia isso, quem sabe eu venceria realmente ? Toda espécie de ideias invadiram minha mente, desapareceram, voltaram ainda e se apagaram. Não podia mover a cabeça e custava até para abrir os olhos. Parecia-me, entretanto, haver uma porção de pessoas em volta de mim, ora cochichando, ora se movimentando. Apesar disso, assaltou-me um sentimento de solidão.122O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAPerguntei pelo Dr. Si. Responderam-mc que saíra por alguns instantes, mas logo voltaria.— Onde ? murmurei, e caí de novo inconsciente.O Dr. Si lutara o dia todo para salvar minha vida, e naquela hora fora chamar os Professores Koyano, Shirabe e Kagura, a fim de trocar ideias com eles sobre meu estado. Concluíram que não havia esperanças. Sem que o soubesse, muitos amigos estavam se afligindo para tirar-me daquela triste situação.O Padre Togawa veio trazer os últimos sacramentos. Preparei-me para o fim, pronto para qualquer eventualidade. Aquele estado de semi-incons-ciência durou até a tarde. Todos os amigos me rodeavam e essa presença me reconfortava. Meu coração já começara a lutar contra a morte, e eu sabia que outra crise seria decisiva. . . As janelas estavam abertas e as Três Montanhas, símbolo da Trindade, recortavam-se no céu azul escuro, que falava do outono. "A nuvem do outono desaparece na luz do céu." Repeti o poema duas vezes, antes de mergulhar numa última inconsciência. . .Quando saí dessa situação crítica — uma semana mais tarde — não havia quem não falasse em milagre !Sintomas e remédios.Os efeitos da radioatividade sobre seres vivos já eram — em muitos pontos — conhecidos pela experiência. Diferem conforme tenha a pessoa sido exposta123OS SINOS DE NÂGASAK1brevemente a uma ação intensa, ou longamente a uma ação fraca; mas o princípio geral é sempre que a radioatividade destrói as células de todo ser vivo e provoca a degenerescência dos tecidos. Essas consequências não são, entretanto, imediatas: intercala-se um período de incubação cuja duração difere segundo os órgãos afetados. Na ocasião, nenhuma dor, nenhum ferimento: a penetração dos raios não afeta os centros nervosos; a vítima não se apercebe senão mais tarde, quando surgem os

sintomas. Algumas partes do organismo resistem muito mais do que outras. As mais vulneráveis são: a medula, as glândulas linfáticas e genitais.A medula dos ossos é a oficina onde se fabrica o sangue. Qualquer mal que a atinja diminui, em geral, a produção de glóbulos vermelhos e brancos. Ao contrário, em casos de afecção crónica, a medula degenera, emitindo enorme quantidade de glóbulos brancos, popularmente chamados de "o sangue branco" (leucemia). Esse caso apresenta-se, de modo particular, sob a influência prolongada de uma radioatividade franca. As amídalas, por exemplo, são muitas vezes atingidas e frequentemente exterminadas. As glândulas genitais diminuem ou cessam suas funções: as vítimas tornam-se estéreis ou a progenitura é mal conformada. As mucosas também são facilmente afetadas: congestão, inflamação, e até úlceras. A inflamação dos órgãos digestivos produz uma forma de disenteria. Atingidos nas pontas e nas raízes, os cabelos caem. Esses efeitos, todavia, são passageiros.Se os pulmões forem tomados, a consequência é a pneumonia; se se tratar dos rins, é a atrofia.124O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAEntre os efeitos iniciais, sentidos algumas horas depois e podendo durar vários dias, salientam-se uma espécie de astenia, torpor e náuseas. Quanto mais jovem fôr a vítima mais intensos os efeitos: pessoas idosas podem resistir a uma irradiação que mataria um moço.Cada variedade de radioatividade é mortal em determinada dose, mas como um período de incubação é necessário, a morte nunca é imediata. Entretanto, não existe nada que possa salvar a vida de quem passe pelo efeito da dose funesta. . .Evidentemente, o maior dano foi causado pelos neutrons e os raios gama que a própria bomba desprendia. A radioatividade residual foi logo muito mais fraca, mas também mais difícil de ser combatida. Isso fêz nascer a ideia de que, durante setenta anos, a região seria inabitável.Os rumores em relação aos gases envenenados, a convicção de que o vento da explosão era nocivo, tudo isso, na verdade, eram efeitos da radioatividade.. . É esta, aproximadamente, a ordem dos sintomas: umas três horas após a explosão, náuseas e torpor aumentavam durante um dia e desapareciam gradativamente. A partir do terceiro dia manifes-tavam-se as perturbações digestivas e, nesse caso, os doentes morriam após oito dias. Na segunda semana produziam-se as hemorragias, devido às desordens sanguíneas. A maioria das vítimas morria. Na quarta semana revelavam-se os graves distúrbios causados pela diminuição dos glóbulos brancos, distúrbios quase sempre fatais.125OS SINOS DE NAGASAKIA perda dos cabelos começava na terceira semana; a irregularidade das glândulas sexuais vinha mais cedo, prolongando-se durante umas dez semanas.Em todos os casos, as crianças eram acometidas mais depressa e violentamente do que os adultos.Em setembro, quando as manhãs já eram mais frescas e o perfume do outono pairava no ar, a confusão produzida pela capitulação tornou-se, por assim dizer, amainada. Os sobreviventes, na maioria, consideravam-se garantidos e davam suspiros de alívio.Entretanto, lá pelo dia 5 deste mês, isto é, durante a quarta semana depois da explosão, houve novo surto de mortandade. Essa hecatombe, provocada pela diminuição dos glóbulos brancos, causou pânico geral. Pessoas que estavam a uma distância de um quilómetro, dentro de suas casas, que nada tinham sofrido e que se achavam

aparentemente bem, tratando dos enfermos ou removendo escombros, de repente caíam doentes: abatimento, palidez por todo o corpo, temperatura acima de 40°, estomatite e aftas. Faringite, amidalite, impediam-nas de engolir o que quer que fosse. Manchas sanguíneas, de um vermelho-escuro, apareciam na pele, primeiro nos braços e depois nas coxas. Variavam de tamanho entre uma cabeça de alfinete e uma fava, inchando às vezes muito mais. Verificava-se, geralmente, uma queda dos glóbulos brancos, e quando o número desses caía abaixo de 2.000, a morte era quase sempre inevitável. Aliás, o processo da moléstia era rapidíssimo e dentro de nove dias os pacientes vinham a falecer.126O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAEntre os casos mais curiosos figuravam as vítimas indiretas da radioatividade. Árvores e plantas, entre dois a sete metros de altura, mudaram de côr, tornando-se vermelho-claras. A relva sobre a qual caiu a chuva radioativa, murchou em seguida. No dia da explosão, dois fazendeiros de Kawabira cortaram esta relva e levaram-na para casa como combustível. Na manhã seguinte, seus braços e pernas, que estiveram em contacto com a planta, cobriram-se de uma erupção vermelha, acompanhada de prurido intenso. Mas esses se curaram dentro de poucos dias.Nos primeiros sintomas, os remédios mais eficazes foram as injeções de vitaminas B e de glicose.Para as queimaduras, as fontes minerais impuseram-se à experiência, de preferência aos remédios e injeções: aquelas curavam as feridas numa média de 24 dias, enquanto esses exigiam de 38 a 40. Os banhos de água mineral também foram úteis para os traumatismos e eu mesmo, fui um dos mais beneficiados. As fontes são uma farmácia natural.Fomos nós os primeiros a experimentar o tratamento pelo auto-sôro, que foi rapidamente adotado por outros médicos, com diferentes resultados. . . Tirávamos do paciente dois centímetros cúbicos de sangue e os injetávamos de novo. Os melhores resultados foram obtidos nos moribundos: sem exceção voltavam à vida, e depois disto cessou a mortandade.Quanto ao regime que dávamos aos doentes, consistia sobretudo de fígado de qualquer animal, ora cru ora ligeiramente cozido, assim como legumes frescos, o quanto podiam comer. O sistema revelou-se eficaz.127OS SINOS DE NAGASAKITambém o vinho de arroz produziu excelentes resultados. Houve mesmo diversos casos em que os doentes, abandonados pelo médico, e desejosos de fazer o que bem quisessem antes de morrer, beberam como esponja e. . . restabeleceram-se !Os efeitos da radioatividade residual nas zonas próximas do centro da explosão constituíram, em seguida, o objetivo de meus estudos. . . Depois de fechado o posto de Mitsuyama, em outubro, mandei construir uma cabana em Ueno-Machi, a uns 600 metros do local da explosão e é aí que estou hoje deitado, observando cuidadosamente tudo quanto se passa em volta de mim, enquanto escrevo "Os Sinos de Nagasaki".É inútil dizer que uma radioatividade notável subsistiu algum tempo nesta região. Foi diminuindo aos poucos, mas ainda hoje, um ano depois da explosão, existe certa quantidade de bário e de estrôncio radioativos, produzidos pela separação dos átomos de urânio, e que emitem mínimas quantidades de raios.Naturalmente os efeitos dessa radioatividade residual foram tanto mais graves quanto mais cedo as pessoas vieram morar aqui. Aqueles que mudaram para cá três semanas depois do cataclismo, sentiram as náuseas atómicas durante um mês, acompanhadas de

violento desarranjo intestinal. Os que vieram depois de um mês sofreram menos, mas os sintomas foram iguais. As pessoas que mais padeceram foram as que tinham transportado cinzas ou telhas para desobstruir suas casas incendiadas, ou que removeram cadáveres. Além disso, qualquer picada de128O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAmosquito ou um pequeno arranhão supuravam facilmente: nova consequência da falta de glóbulos brancos...Depois de três meses não se observaram outros distúrbios graves. Em grande número, as pessoas começaram a construir suas cabanas e a habitar nesta região. Eram, sobretudo, os desmobilizados, refugiados de outros setores bombardeados e, por fim, repatriados. Fato que observamos: os glóbulos brancos desses últimos chegados aumentavam a ponto de dobrar durante o primeiro mês. Esse fato, revelador de uma exposição contínua a uma radioatividade fraca, demonstra que existe ainda uma quantidade infinitesimal de radioatividade na zona, como, aliás, haviam-nos prevenido os americanos. Mas, visto o ritmo relativamente rápido do decréscimo dessa radioatividade, a teoria dos 75 anos perigosos é absolutamente falsa, e todo perigo cessará, é de prever, dentro de muito pouco tempo.As pessoas cujos glóbulos brancos tanto aumentaram, estão, aliás, em ótimas condições de saúde. Durante o tempo que ali morei nunca me vieram consultar senão para doenças parasitárias. No inverno, essa gente dormiu em cabanas expostas a todas as intempéries; a neve entrava nelas e as estalactites de gelo formavam-se no teto: para se cobrir tinham apenas os cobertores que foram distribuídos. Entretanto, nunca se ouviu falar de pneumonia nem de simples resfriados: pelo contrário, nesses últimos tempos, as feridas cicatrizavam sem supurar. . .No campo da fecundidade cessaram os acidentes. Olho o futuro com otimismo. Os únicos casos du-129OS SINOS DE NAGASAKIvidosos ou desanimadores são as queimaduras atómicas, que diferem das queimaduras comuns. É sabido que esse género de queimadura desenvolve os quelóides; provocam uma comichão horrível que ninguém contém. Depois de alguns anos tornam-se úlceras e, mais tarde, câncer. O câncer virá das queimaduras atómicas ? Pergunta difícil, que somente o futuro responderá.ISOV A VIDA É MAIS FORTERenasce a vida.Pés gretadosNo dia 16 de outubro, terminei o meu trabalho no posto de socorro de Miyama. Voltei a Urakami para estabelecer-me entre as suas ruínas calcinadas. Os primos de minha mulher haviam construído ali uma cabana; pedi-lhes hospitalidade, para mim e meus filhos.Já moravam lá cinco pessoas, de duas famílias; somos mais quatro agora. Nove habitantes sobre uma área de pouco mais de um "tsubo", isto é, de quatro metros quadrados. Para dormir, somos obrigados a nos deitar de lado, apertando-nos uns contra os outros, a cabeça de um virada para os pés do outro. Por vezes, os pés rachados de um vizinho passam pelo meu rosto. Consciência viva da intimidade que existe entre todos aqueles aos quais a morte poupou.131OS SINOS DE NAGASAKI

Buracos de pregosNossa cabana é feita de vigas, tábuas, folhas de zinco, grampos e pregos. Uma parede de pedra, de um metro e meio de altura, milagrosamente conservada, foi utilizada, tal qual, como outra parede mestra. As vigas são sustentadas pelos ganchos de ferro; sobre elas pregaram o zinco. É uma miscelânea de material, recolhido aqui por perto e que o fogo desprezou. Uma coberta velha que nos foi dada serve de tapete; temos até uma porta de madeira. O problema é o da luz: não existe janela, de sorte que, quando fechamos a famosa porta, a escuridão é completa; se a abrimos, há claridade, mas que frio entra também !. . .A porta dá para o leste, a "parede" para o oeste, as folhas de zinco para o norte e o sul (1).Nas quatro faces, foi preciso tapar os buracos dos antigos pregos, cobrindo-os com papel ou fazendo uma bucha de madeira. Apesar de tudo, é maravilhoso nas noites de lua. Em cada parede refletem os buracos, como um céu semeado de estrelas.Acender o fogo!A estação chuvosa começa em novembro. Nosso fogão, por enquanto, funciona do lado de fora, perto da entrada. Como não tem proteção, dificilmente o(1) Os povos do Médio e Extremo Oriente situam os objetos em relação aos pontos cardeais e não como diríamos nós: à direita e à esquerda, em frente e atrás.132A VIDA É MAIS FORTEfogo acende. Fósforos não existem. Quando o fogo se extingue, é uma tragédia. Chego a chorar de verdade. Pelas minhas faces correm gotas frias: é a chuva; mas essas gotas quentes, não há dúvida ! são lágrimas.Enquanto me mantenho sentado, sozinho, encharcado, eis que uma criança da cabana ao lado aparece correndo com uma mecha acesa. Imediatamente o nosso fogo crepita. Kayano, minha filha, bate palmas de alegria. A prestativa vizinha volta depressa de onde veio, a cabecinha baixa e os ombros curvos...SamambaiasA bomba atómica espalhou por toda parte uma camada de cinzas, de telhas e restos queimados. O lugar onde antes se achavam as casas e os campos, está igualmente recoberto de quinze centímetros de escombros. A explosão provocou um vácuo que aspirou todos os objetos leves; e esses, num contra-choque, foram atirados por todo lado.Foi assim que um cartão postal, dirigido a mim, voou para o quintal de um amigo, em Yagami, a 12 quilómetros de distância ! Êle deduziu que minha casa tivesse sido destruída. Conclusão exata, aliás.Agora, milhares de samambaias começaram a brotar sobre o local de minha casa; as sementes foram, sem dúvida, trazidas do monte Inasa, pelo vento do oeste. Nossa colina, desembaraçada de toda construção, c invadida pelas samambaias, parece uma floresta virgem.133OS SINOS DE NAGASAKITrigoTambém o trigo germinou por toda parte, proveniente de espigas guardadas nas casas. Muitos desses estoques queimaram, mas algumas sementes resistiram e cresceram rapidamente entre as ruínas férteis. Em fins de novembro, sem mesmo ter semeado, contentamo-nos em transportar essas hastes tenras (1) que já haviam atingido 20 ou 30 cm. Pensávamos que esse trigo, germinado antes do tempo, amadureceria cedo também; todavia, as espigas só apareceram na época normal, no fim da primavera. Eram, aliás,

pequenas e a colheita foi fraca. Creio que se pode atribuir esse fato à radioatividade residual.PorcelanasO que atrai os olhos para o solo calcinado são os pedaços de pratos ou tigelas que refletem os raios do sol. Como é triste reconhecer as pinturas vermelhas sobre fundo branco de uma preciosa porcelana de Imari (2). Os deuses da fortuna, no bocal de um vaso de Kutani, são quebrados em grupos de dois e cinco, mas corajosamente continuam a sorrir. O famoso tom alaranjado das porcelanas de Kakiemon, passou a ter uma côr de tâmaras secas, e aquele vaso(1) A transplantarão da semente já germinada é normal para o arroz, mas não para o trigo.(2) Esse nome e os que se seguem designam a região onde são fabricadas essas preciosas porcelanas.134A VIDA É MAIS FORTEde Hagi revestiu-se de umas curvas mais fantasistas. Sento-me entre as cinzas e, enquanto o tempo corre, distraio-me com a beleza desses tesouros escondidos. Tantas peças quantas as recordações das alegres reuniões de um passado feliz.Muito tempo e de longe procurei uma tigelinha de arroz de Hasami, pela qual Midori tinha especial preferência. Esforço inútil. Mesmo que a tivesse encontrado, tê-la-ia imediatamente enterrado de novo nas cinzas.CinzasComeço a retirar os escombros de minha casa. Choveu muitas vezes depois do dia fatal e as cinzas petrificaram-se. São de diversas qualidades. Onde era meu escritório, encontro montes de cinzas ora brancas, ora pretas: diferença de papel ? Algumas cinzas pretas conservam a forma de página. Pode-se ainda mesmo ler fragmentos do texto:"Na profundeza das montanhas, encontro folhas de bambu que balançam ao vento E me fazem pensar em você !"Enquanto leio as palavras do velho poema, perpassa uma súbita brisa; os suspiros enviados pelo poeta viajante à sua esposa que o esperava no seu lar longínquo, espalharam-se aqui e ali em lantejoulas pretas.135OS SINOS DE NAGASAKIDecoraçõesMedalhas, decorações surgem nas cinzas. Eis aqui uma da Águia de Ouro: perdeu sua forma e seu esmalte, e a pequenina águia de ouro que a remata está retorcida.No reverso ficou uma decoração do Tesouro Sagrado: dir-se-ia dois nómades que, trémulos de frio, encostam-se um ao outro para aquecer-se. A Ordem do Sol Levante não possui senão um furo no lugar do Astro. Duas medalhas militares viraram chapinhas vulgares, como que para mostrar que tudo não passa de um sonho.A Ordem da Águia foi-me conferida por ter eu, sob uma chuva de balas, conseguido salvar grande número de soldados feridos. Pergunto às vezes a mim mesmo se não os terei salvo para receber esta medalha, mais do que por amor ao próximo ?Não quero dizer que o meu gesto tenha sido errado ou tolo. Censuro apenas a minha intenção, achando que eu me contentava então com essas distinções passageiras.CrucifixoVirando as cinzas num canto do terreno, descobri afinal este Crucifixo que pertencia ao oratório familiar. Evidentemente, a cruz de madeira desapareceu no fogo, mas o Cristo de bronze permanece intacto, sem um defeito, sem um arranhão. Relíquia136

A VIDA É MAIS FORTEpreciosa do tempo em que os Tokugawa perseguiam o cristianismo.Tudo me foi tirado; esse Crucifixo somente me resta !FloresArrastando-me apoiado à bengala, acompanhei minha filha Kayano até o antigo pomar. Ela me guiava e de repente exclamou:— Flores ! olha as flores !Dentro de um mar de telhas partidas vi desabrochada, solitária, uma epoméia. Diante deste esplendor azul-forte, tive ímpetos de me ajoelhar, ali mesmo e agradecer a Deus — apesar de tudo — por este dom magnífico: primeiro presente de Sua bondade, no meio destas ruínas desoladoras. Sinal que o Senhor não nos esqueceu. . .A grande árvoreHavia outrora, atrás de nossa casa, uma grande árvore espinhosa. Seus galhos cobriam quase toda a casa e diziam ter quase três séculos. Dela, agora, resta apenas um tronco enorme. Traz exposta a ferida branca de sua madeira, quebrada justo na altura do primeiro galho. Dias e meses se passaram, benfazejas noites de chuvas. Todavia, da árvore grande não saiu mais nem um broto.Aos seus pés, entretanto, floresceu uma epoméia. . .137OS SINOS DE NAGASAKICinco vinténsQuando o fogo me expulsou de minha casa, trazia no bolso do meu uniforme de defesa passiva uma moeda de cinco vinténs. . . Toda a minha fortuna. Consegui arranjar um cartão postal, escrevi nele a minha desgraça, e confiei-o (com os cinco vinténs para o selo) a uma enfermeira que voltava para o seu país natal.Recebendo o meu recado, meu primo Otomi-sen enviou-me 100 yen. Uma fortuna ! quase tanto quanto o meu salário mensal. Bem depressa, porém, dei os 100 yen a um monge polonês que voltava do campo de concentração para o seu convento. Um mês depois do mosteiro já reaberto, enviaram-me uma Bíblia e uma imagem de Nossa Senhora.Com meu Crucifixo na parede, não tenho necessidade de mais nada. Rezando pelos meus benfeitores, considero-me o homem mais rico do mundo. Presumo que o Senhor retribuirá ao bom Otomi-sen pelo menos um milhão de yen !AbastecimentoOs campos foram danificados, recobertos de entulhos, mas apesar disso, frutas machucadas espalham-se por todo lado. Ninguém sabe a quem pertencem; resolvemos, então, que aquelas que estiverem na nossa área são nossas. Terminadas as frutas, plantamos batata-doce. Suas folhas, porém, foram comidas por138A VIDA É MAIS FORTEuma espécie de lagartas de 3 centímetros, pretas, listadas de amarelo. Lembram as calças dos soldados, no tempo da guerra russo-japonêsa. Devoraram toda a folhagem e além disso, havendo ainda um resto de radioatividade, a colheita não produziu 10% do rendimento normal.Mas não morremos de fome: como quase toda a população desapareceu, esse punhado de batatas foi suficiente para alimentar os sobreviventes.Cupidez castigadaAqui e ali, nas colinas e nos vales, as cabanas vão surgindo. Dizem os velhos que isso lhes recorda a volta da "Grande Viagem". Referem-se à expulsão que, no princípio da era Meiji, baniu para o Japão do Norte os "Kiristans" de Urakami.

Só puderam voltar após muitos anos: campos e casas entregues ao abandono e imediatamente tiveram de lutar contra a carência de alimentos. Mas no pantanal dos arrozais, não cultivados desde tanto tempo, descobriram cardumes de caborjes. Alimentaram-se, pois, com esses peixes e puseram-se a trabalhar. Como não tinham enxadas ou ancinhos, cavaram a terra com bambus e nela plantaram batata-doce.Enquanto isto, parecendo que os peixes eram inesgotáveis, três homens tiveram a ideia de revendê-los na cidade. . . Desse dia em diante os caborjes desapareceram !139OS SINOS DE NAGASAKIOs anciãos que nos contam isso, não deixam nunca de acrescentar: Não vos preocupeis: Deus é bom e Êle vos alimentará hoje, amanhã e mais tarde ! Mas se deixardes crescer em vós desejos ambiciosos, Êle deixará de vos abençoar...FantasmasComo o local da explosão atómica está coberto de esqueletos, não é de admirar que fantasmas sejam vistos por ali ! Garantem que, se alguém atravessar de noite os campos de Urakami, ouvirá os soluços abafados de uma mulher. É tudo falso: Urakami, cidade cristã, não pode ter tais superstições: mas resolvi certificar-me pessoalmente do fato.Enceto um passeio noturno na região danificada. Sobre a extensão de ruínas, a luz fria e azulada da Lua de inverno cria uma atmosfera que parece exigir a presença de fantasmas. Não ouço, porém, soluço algum. Estendo minha exploração de Hashiguchi a Haranoda, indo até Sajono-saka.Apenas um trilho está aberto, ladeado de um duplo deserto: nem uma cabana. Chego à altura de Shuku. O vento gélido da noite, vindo do porto, açoita-me o rosto e sem querer, estremeço.Foi então que ouvi os "ahn, ahn" dos soluços. Paro. A leste, a planície da Universidade, do lado onde eram as salas de anatomia. A oeste, branca como um espectro, na luz da Lua, uma árvore morta. Ahn !140A VIDA É MAIS FORTEahn ! Os soluços partem dali; mais distante, as mulheres parecem chorar em grupos. E, dir-se-ia, crianças também. . .Aqui, o quarteirão da Escola; assistentes e estudantes viviam entre as lojinhas de cigarros, de selos, e as que vendiam laranjas no inverno e refresco no verão. Lembro-me daquela mocinha pálida que contava três vezes, sem um sorriso, os dois cartões que nos vendia. O gigante que o dia inteiro amestrava cães pastores. A menina que, durante horas, tocava exercícios ao piano. Sobre seus tamancos de pau, o velho doutor que nenhum caso urgente jamais conseguiu fazer andar mais depressa. Os ossos de toda essa gente estão aqui, sob este luar. . . Penso neles e isso aumenta o trágico da situação. A mocinha deve ter morrido contando seus cartões postais; o gigante protegendo os cães com seu próprio corpo. Será que a pianista ouviu arrebentar as cordas de seu piano, no momento fatal ? O velho doutor deve ter sido envolto pelas chamas, enquanto calmamente se encaminhava para o posto de socorro. Enveredo por dentro das ruínas. Mais nada ! Nenhum barulho !. . . E aqueles soluços ? Uma ilusão ?O vento volta a soprar na direção do porto, roçando a colina. "Ahn, ahn !" Eis que ali mesmo, junto de mim, renascem os lamentos. Paro, escuto e então compreendo ! São as telhas que choram ! Amontoadas em desordem, oferecem ao vento inúmeras formas irregulares nas quais êle sopra o seu queixume. É bem verdade que aqueles cochichos se assemelham a soluços !. . .141OS SINOS DE NAGASAK1

Telhas, chorai !. . . chorai já que ninguém sobreviveu aqui para lamentar as famílias exterminadas. Que ao menos, sobre seus túmulos, chorem as telhas no vento frio da noite.Volta de um soldadoUm soldado desmobilizado apareceu sobre a colina. Êle vacila sob o peso da mochila, pára, olha em volta. Dá mais alguns passos; de novo se detém, examinando a redondeza. De repente, parece ter achado uma rocha de jardim (1) ou qualquer outro ponto de mira. Titubeia e, olhando para o chão, cai pesadamente. Bastante tempo fica imóvel como um morto. De cada cabana, os olhares observam-no, mas ninguém tem coragem de sair. A voz embargada pela emoção não consegue mesmo chamá-lo. Todos pensam: É Yamada que volta do Sul. . . Toda sua família desapareceu. E êle ficará sozinho, assim: êle que se preparou para morrer pelo seu país. . .O sobrevivente de uma esquadra-suicida murmurou: a guerra não devia existir !. . .PobrezaComo sabem, não possuo mais nem um vintém ! Ainda uma vez disse eu hoje essa frase a uma visita. Desde há algum tempo, são essas as minhas palavras(1) Os jardins japoneses apresentam um misto de vegetação e de blocos de pedras de formas curiosas.142A VIDA É MAIS FORTEfavoritas. No fundo, há muita vaidade dentro delas: é exatamente o mesmo sentimento que faz aquele outro dizer: Eu sou milionário. Face positiva e face negativa de uma idêntica busca de si mesmo.Vangloriar-se de ser pobre não é uma pobreza honesta; poderíamos chamá-la de pobreza viciosa. A pobreza viciosa procura escapar das responsabilidades sociais, refugiando-se por trás de um escudo de pobreza.Saudações"Como ? você ainda está vivo ?" Eis o que dizem uns aos outros, os que se encontram entre as ruínas. É natural, visto serem os mortos muito mais numerosos do que os que vivem. Mas, pensando bem, essas palavras não revelam a amizade verdadeira. Aquele a quem minha sorte realmente preocupou deveria vir a meu encontro, de braços abertos e dizer: "Enfim ! cansei-me de procurá-lo, amigo velho ! Em que diabo de lugar você se escondeu ?. . ."Minha irmã mais moça veio de Sampeiyama, lá na região de Iwani, para ver-me. Atirou-se para mim antes mesmo de se desfazer do seu saco de viagem e, vendo o meu estado, desatou no pranto. . . Seu marido foi morto na Birmânia.Digo-lhe que se desfaça de sua bagagem e eis que a vejo tirar do saco, com um barulho de campainhas, um grande relógio de parede, muito antigo:143OS SINOS DE NAGASAKIrecordo-me da minha infância, com aquele relógio pendurado na sala de nossa casa.— Durante todo o caminho olharam para mim com espanto, meu irmão ! O relógio não parava de tilintar !. . .E ela pôs-se a rir, sem mesmo lembrar de enxugar as lágrimas. Pendurou o relógio na parede, dando-lhe corda.Com o ritmo desse tique-taque, a cabana parece ter adquirido vida.— Um relógio, disse ela, é o coração de uma casa. Consulta o seu próprio relógio e acerta os ponteiros nas 2 e 50. Dentro de dez minutos vai bater. O velho e conhecido som ressurgiu da minha memória de criança.

— Psiu, Kayano, minha filha. Fique quietinha ! Daqui a dez minutos, quando o ponteiro grande chegar ali em cima, o relógio vai bater três vezes: Den. . . den. . . den. . . Assim ! escute. . .— E quando tocar, é a hora do chá ?— É sim, Kaya querida. Mamãe. . . não, titia vai lhe dar uma laranja de Iwani. . .A tia deve estar chorando de novo, pois virou-se de costas e não acaba de remexer no seu saco de viagem.Mas eu e Kayano, contendo a respiração, olhávamos o ponteiro grande caminhar lentamente, lentamente . . .144A VIDA t MAIS FORTEEscombrosCom Majoto (1) comecei a retirar os escombros calcinados. Cavamos a camada de cinzas, de escombros e de telhas. Peneiramos e espalhamos as cinzas pelos campos, enquanto as telhas eram enterradas no antigo abrigo. O trabalho é lento e difícil, pois não passo de um inválido e Seiichi é uma criança.Enquanto sacudia a peneira, percebi entre os cacos de telhas um belo objeto: pegando-o, vi que era a fivela de um cinto (2). As cores daquela porcelana de Fajima estavam um pouco desmaiadas, mas enquanto mantinha o objeto entre as mãos, inúmeras cenas familiares povoaram a minha mente: pensei naqueles dias, quando comprei essa peça, perto da grande ponte de Matsue, na região de San-In, voltando de minha primeira viagem a Kyoto, onde fui para um congresso, logo depois de meu casamento. Midori gostava imensamente desse "obi-dome" e usou-o muitas vezes. Era tão simples, entretanto. . .Penso também nas cortinas brancas da varanda, e nas flores, nas abelhas. . . Seiichi faz-me voltar à realidade; sobre as cinzas, o sol poente alonga minha sombra e o vento frio gela as minhas pernas. Ajoelho-me no local onde encontrei os restos de Midori: rezo o meu rosário e volto.(1) Filho do autor.(2) Obi-dome. O "obi" é o cinturão largo das mulheres japonesas, que elas usam sobre o quimono.145OS SINOS DE NAGASAKIDepois disto, não quis mais mexer nos escombros. Se tivesse continuado, outras relíquias teriam aparecido e não suportaria tanta dor. Não que queira esquecer, mas somente evitar recordações por demais penosas.DesentulharToizumi, um de meus amigos, ofereceu-se para vir remover os escombros, com três alunos da escola secundária.Infinitas recordações prendem-se aos objetos que pertenceram aos seres que amamos — ainda que esses objetos não possuam, por si mesmos, nenhum valor.Oh ! essa roda da máquina de costura !. . . Mas os braços indiferentes de um dos rapazes atiram-na no antigo abrigo: "Não presta, diz ele, é apenas uma velha máquina de costura". Um. . . dois. . . três. . . Joga-a longe !Oh ! esse ferro elétrico ! Mas Toizumi decreta: "Esse negócio não serve mais ! Para o lixo !" e atira-o fora. . .Esses vestígios, carregados de imperecíveis recordações, são jogados no monturo, pelas mãos indiferentes de meus quatro ajudantes. Mas já nessa noite, o campo de carnificina transformou-se num belo jardim.E Toizumi diz: "Plantaremos aqui uma roseira para você..."

146A VIDA É MAIS FORTEMeus visitantes.Tínhamos chegado há pouco em Mitsuyama, quando decidiram reabrir a Escola: os sobreviventes reuniram-se; estudos e trabalhos médicos foram reiniciados no prédio da escola primária de Shinkozen. No dia 2 de novembro realizou-se uma cerimónia comemorativa, na qual rezamos pelos nossos 807 companheiros desaparecidos.Morava eu numa cabana de folhas de zinco — com seis pés de comprimento, construída, para mim, em Ueno-machi, e ali morei desde então. Apoiava-se ela contra uma parede cujos buracos se revelaram logo extremamente úteis para guardar papéis. Nos dias de chuva, porém, a coisa era diferente ! Os membros da Faculdade, que frequentemente me visitavam, não se referiam à minha "casa", mas à minha "caixinha". Um capelão militar americano perguntou-me um dia: "É esse o seu palácio ?"Constantemente recebia visitas das mais variadas, desde o bispo de Fukuoka, até mendigos. Certo dia em que eu conversava seriamente com um dos professores da Escola, vieram-me oferecer, com grande estardalhaço, um par de sapatos velhos do Exército, pertencentes a nossos estoques de socorro !. . .Yamannoto e Hazamoto, dois alunos meus, voltaram da guerra e vieram visitar-me. Sentados a meu lado, olhavam-me em silêncio. Pressentíamos que uma só palavra desencadearia o pranto.— É medonho, não é verdade ?147OS SINOS DE NAGASAKI— De fato; e vocês lutaram bem. Obrigado, meus amigos. . .— Mas nós não esqueceremos: eles nos pagarão ! Pouco importa se não fôr já !— É realmente esse o sentimento de vocês ?— Claro que é.— É o que a gente pensa quando perde uma guerra que poderíamos ter ganho ! E quando existe ainda no país força bastante para prosseguir. . .— Exatamente ! O Japão não estava tão enfraquecido que precisasse render-se. Tínhamos ainda muita energia.— Vocês acham ? Se o Japão rendeu-se incondicionalmente, não é por reconhecer que toda resistência era vã ?— Ora essa ! olhe para nós ! Não somos fortes bastante para lutar ?— Por que não o fizeram antes da derrota ? Como sobrariam forças nos indivíduos, quando o Estado se esgotou ? É como se uma família falisse e sofresse toda a consequência, enquanto o filho caçula se vangloria de ter escondido a sua conta no banco.Eles não responderam e eu continuei:— Durante a guerra, fiz pelo meu país tudo que pude. A Escola também funcionou até o fim. Durante os reides aéreos socorremos os feridos, sem medo, no espírito da Cruz Vermelha. Até o dia da explosão atómica, estivemos sempre a postos e a Escola mantinha o seu ideal de estudo e de ensino. Mesmo depois da guerra, destruída a Escola, permanecemos no nosso posto até o último momento,148OS SINOS DE NAGASAK1abandonando-o somente após ter feito o que era humanamente possível. Que os nossos rapazes tenham continuado os seus estudos e se mantido nos cargos que lhes competiam, eis, com efeito, e independentemente de nossa derrota ou de nossos objetivos de guerra, uma coisa maravilhosa !

— Realmente ! E compreendo o que o senhor quer dizer. Excluindo a nossa derrota, o trabalho deles e seu espírito de sacrifício, foram algo de muito belo e nobre.— A Escola foi destruída; os prédios viraram cinzas; morreu a maioria dos que ali viviam, e muitos sobreviventes ficaram, como eu, inválidos. Perdi meus bens, minha casa e até minha mulher. Perdi tudo. O fracasso depois de um esforço total. Mas como posso considerar isso uma coisa horrível ? Por que haveria de me lastimar ? Lutamos conscienciosamente até o último momento: estou agora nas disposições do homem que contempla a Lua após a chuva.— O senhor nos confunde, Professor.— Talvez eu também ficasse revoltado e sofresse espiritualmente, se a capitulação me atingisse enquanto eu tivesse ainda minha mulher, minha casa, meus bens. Sofreria pelo meu país arruinado, pelos meus compatriotas que o incêndio expulsou de seus lares. Mas na verdade, tudo o que eu tinha desapareceu com a minha nação; e no meio de minhas dores, isto me é consolo.— Está certo, Professor. . . mas, e esses aproveitadores de guerra, que nunca viveram tão bem na sua vida ?149OS SINOS DE NAGASAKI— Existem, e deviam ser liquidados. Acham que uma guerra, cada dez anos torná-los-ia multimi-lionários. Esses miseráveis serão a fonte inesgotável do militarismo; são eles que desencaminham uma juventude inocente e lhes põem na cabeça ideias de vingança ! Bando de canalhas, que vive às custas da nação !— Mas, não é justamente a guerra que traz proveito ao país ?— Talvez. . . se o país vencê-la.— Uma guerra começada pelo interesse, pode ser uma guerra justa ?— Como poderia sê-lo ? Não pode haver vitória numa guerra que é injusta aos olhos de Deus.— Mas nós rezamos todo o tempo, especialmente ao deus da guerra. . .— O deus da guerra ?. . . Criação do homem, como o deus do soluço.— Perdão; êle sempre existiu no Japão.— Foi inventado, na realidade, por nossos antepassados, cuja teologia e cuja filosofia eram as mais primitivas. . . Nós fabricamos nossos deuses e, em seguida, pedimos-lhes que nos concedessem o que desejamos !. . . E foi assim que chegamos a crer na invencibilidade de nosso país e em lendas como "O vento divino" (1). Rendíamos homenagens a imagens mortas.— Então, o senhor acha que não éramos bastante sinceros ?(1) Alusão a um tufão que, em 1281, destruiu uma frota mongó-lica que partira do continente para invadir o Kyushu, e que assim salvou o Japão.150A VIDAÉMAIS FORTE— Não é uma questão de sinceridade, mas é inútil crer em coisas que não existem. Não podemos esperar triunfar contra inimigos que tinham a graça do verdadeiro Deus ao lado deles.— Mas assim como há um espírito japonês, é preciso também haver deuses para o Japão.— Pois sim... se esses deuses são admitidos livremente pelo povo, e não impostos a muque. Em todo o caso, a sua maneira de ver realça uma fé nacionalista primitiva, julgada desde há uns 2.000 anos.

— Ponhamos de lado a questão dos deuses. Mas a guerra não é, como dizem, a mãe do progresso para as ciências ? A bomba atómica, por exemplo.— Teríamos mais proveito ainda se todas essas vidas, todo esse material fossem consagrados a invenções pacíficas. A guerra não compensa. . . E que lhe disseram os seus oficiais, quando vocês deixaram o Exército ?— Para usar de rodeios durante algum tempo, fazer o que os americanos mandassem. Esperar: mas um dia nós nos reergueremos, fuzil na mão, como fêz a Alemanha. O importante é estar prontos para esse dia.— Afastem essas ideias, categoricamente, se vocês crêem em mim. A estratégia dos amadores só pode acabar em desastre. . . Esses oficiais tinham alguma experiência do combate real ?— Para dizer a verdade, não, não tinham. Sempre fizeram parte do comando.— Era o que eu imaginava. Ler livros de guerra, recostado num sofá, não é nada difícil: tudo ali parece -151OS SINOS DE NAGASAKIbelo, heróico, empolgante e nos incita a imitar. Mas a realidade é totalmente diferente: como descrever a crueldade de um combate real ? Alguns livros, que expunham a feição exata da guerra, foram interceptados pela censura. Há um lado pitoresco nas batalhas de Yoshitsune e alguma poesia no retrato do General Nogi; mas, na bomba atómica ?Se vocês tivessem experimentado esse inferno na terra, não continuariam com essas ideias tolas. . . Numa nova guerra, haverá, por toda parte, explosões atómicas: milhões de pessoas serão massacradas num segundo. Nada de histórias heróicas, de poesia, de pintura, de música. Nada, senão a morte sem frases. Como um rolo compressor sobre uma fila de formigas. É terrível demais para imaginar !— O Japão deve então ficar vencido para sempre ?— Deus disse na Escritura: "A vingança me pertence, e Eu é que a retribuo." Êle se incumbe de castigar aqueles que são injustos a Seus olhos, sem ter necessidade de nossas guerras.— Que faremos daqui por diante ?— É o que me pergunto. Penso, tento resolver o problema enquanto permaneço aqui deitado. Mas não consegui ainda achar uma solução.— Talvez também devêssemos retirar-nos num lugar tranquilo para refletir sobre esse problema ?— A ideia é boa. Vão para as montanhas. Se ficarmos no turbilhão dos homens, contentamo-nos em correr de um lado para outro na agitação, sem saber nem o que fazer, nem aonde ir. Mas as mon-152A VIDA É MAIS FORTElanhas permanecem lá onde elas estão, enquanto as nuvens fogem. Muitas vezes contemplo as montanhas para refletir melhor.Meus dois visitantes deixam-me, levando sentimentos novos. Um silêncio calmo invade a choupana. Kayano, minha filha de cinco anos, fala sozinha, mexendo nos seus brinquedos: uma cabeça de boneca, vidrinhos vazios, pedaços de espelho catados nos escombros. Tem que brincar sozinha: todas as suas companheiras morreram.— Nós tínhamos uma casa grande, diz ela na sua conversa. Com um sobrado. E mamãe fazia doces. Eu dormia em cima de um colchão, e havia eletricidade na nossa casa. ...Escutava-a falar do passado, e, fechando os olhos, senti subir em mim uma visão desaparecida: como num conto de fadas, um palácio maravilhoso no fundo do mar. . . Depois abri os olhos. . . e qual o pescador que durante cem anos tivesse vivido nesse

palácio encantado, toda a beleza de meu sonho desapareceu diante do espaço árido que eu contemplava.Soprava o vento do outono, fazendo um ruído estranho no teto da cabana.Ichitaro-san apareceu de repente, desnorteado e miserável como de costume. Usava ainda o velho uniforme, com a boca da calça amarrada nos tornozelos. Desde a sua desmobilização, voltara depressa. . . para procurar entre as cinzas os ossos calcinados de sua mulher e dos cinco filhos.153OS SINOS DE NAGASAKI— Não tenho mais razão para viver, disse-me êle.— E alguém tem, depois desta derrota ? perguntei.— É verdade. . . Dizem que a bomba atómica foi uma vingança celeste; que todos os que morreram eram pecadores; que os que escaparam tiveram uma graça celestial de Deus. Mas então, quer dizer que minha mulher e meus filhos eram pecadores ?— Não sei; sobre toda essa questão, tenho um modo de pensar diferente. Acho que foi a Providência que destinou para Urakami — por uma graça — a bomba atómica. A nossa cidade deve agradecer-Lhe.— Agradecer ?— Como não ! Escute: depois de amanhã eu vou representar os leigos, numa cerimónia fúnebre pelas vítimas, na Catedral. Escrevi uma mensagem. Gostaria de lê-la ?. . . Ela explica tudo isso.Ichitaro-san tomou o manuscrito e começou a ler, primeiramente em voz alta e sem prestar muita atenção ao sentido, mas depois em voz baixa, parando de vez em quando para refletir. Uma lágrima desceu pela sua face.Meu texto dizia o seguinte:"No dia 9 de agosto de 1945, às dez e trinta da manhã, reuniu-se o Conselho Superior de Guerra, a fim de decidir se deviam capitular ou resistir. Naquele momento em que resolviam para a humanidade uma solução de paz ou uma carnificina maior, exatamente às 11 horas e 2 minutos, uma bomba atómica explodiu sobre a região de Urakami, em Nagasaki.154A VIDA É MAIS FORTEOito mil almas católicas foram enviadas, num décimo de segundo, ao tribunal de seu Criador, e um incêndio devastador, em poucas horas, reduziu a cinzas essa cidade cristã. Nessa mesma data, à meia-noite, a Catedral foi destruída pelas chamas. Também nessa mesma hora, Sua Majestade, o Imperador, fêz pública a sua decisão de terminar a guerra.No dia 15 de agosto, o Rescrito Imperial, que suspendia as hostilidades, foi formalmente promulgado, e a paz concedida ao mundo inteiro. Celebrávamos, nesse dia, a Assunção da Virgem Maria, a quem — devem estar lembrados — era dedicada a Catedral de Urakami.Poderão ser fortuitas todas essas coincidências ? Não devemos, ao contrário, ver nisso a ação delicada da vontade divina ?Disseram-me que a segunda bomba atómica, feita para dar o golpe decisivo ao poder combativo do Japão, tinha sido primeiramente destinada a outra cidade. Mas sobre aquela, o céu coberto de nuvens tornou impraticável a execução do plano. E esse foi alterado no último momento. E assim é que Nagasaki, "alvo de reserva" até então, foi finalmente escolhida. Mais ainda: soube que, quando lançaram a bomba, o vento fê-la desviar-se, do norte das fábricas de munições — que constituíam o objetivo — para

explodir sobre a Catedral. Assim sendo, Urakami não foi, em hora alguma, visada pelos pilotos americanos. Foi a Providência que orientou a bomba.Deixaríamos então de reconhecer uma profunda conexão, uma relação misteriosa entre a cessação da155OS SINOS DE NAGASAKIguerra e a destruição de Urakami ? Urakami, o único setor católico e santificado de todo o Japão, não fora escolhido como vítima apropriada, para ser sacrificada e queimada, sobre o altar da expiação, por todos os crimes cometidos pela humanidade nessa guerra mundial ? Pela humanidade, herdeira do pecado de Adão e do sangue de Caim; pela humanidade esquecida de sua filiação divina e toda entregue aos ídolos; por essa humanidade que ignora a caridade e se odeia, matando-se a si mesma. . . A fim de que acabem todos esses horrores e floresçam, uma vez mais, as bênçãos da paz; para essa grande redenção, não era bastante um simples ato de arrependimento: era preciso obter o perdão de Deus por um sacrifício conveniente. . .Antes dessa hora, inúmeras ocasiões já se haviam oferecido para acabar-se a guerra: cidades inteiras tinham sido destruídas. Deus não aceitara essas oferendas que não possuíam dignidade suficiente. Mas quando Urakami foi destruída, Êle aceitou, enfim, esse sacrifício, perdoou os homens, inspirou ao Imperador que terminasse a guerra.Nossa igreja de Urakami guardou sua fé intacta durante 400 anos, num Japão que a proscrevia; sangrou sob todas as formas de perseguição e durante esta guerra ela não cessou de rezar por uma paz duradoura. Essa igreja não era, verdadeiramente, o único sacrifício que poderia ser oferecido sobre o altar de Deus ? Por este ato, dezenas de milhões de homens se salvaram, criaturas que, de outra forma, teriam tombado, vítimas dos malefícios da guerra.156A VIDA É IÇAIS FORTEPensemos na grandezá\ no esplendor do holocausto que, no dia 9 de agosto, ergueu suas chamas diante da Catedral, enquanto desapareciam as trevas da guerra, já deixando entrever a luz da paz. Nós o contemplávamos então, e no meio de toda a nossa dor, não podíamos deixar de pensar: como é belo, puro, sublime !. . .Oito mil católicos, inclusive os padres da Catedral, foram sacrificados. Gente boa, cuja lembrança a todos comove. Como são felizes por terem deixado a vida sem conhecer a derrota ! Quão alegremente voltaram, a alma sem mancha, para junto do seu Senhor ! Comparada à deles, nossa sorte é de fato miserável. O país foi vencido, a cidade destruída: um deserto de ruínas e cinzas estende-se a perder de vista. Não temos nem casas, nem roupas, nem alimentos. Nossos campos estão devastados; contam-se os sobreviventes. Sustentamo-nos em grupos de dois ou três, no meio das ruínas, contemplando vagamente o céu. . .Por que não morremos nós, naquele dia, naquela hora, naquela Catedral ? Por que devemos continuar essa vida miserável ? É que tínhamos pecado. Ah ! sim ! Agora reconhecemos a enormidade de nossas faltas. Se fomos deixados para trás, é que não tínhamos ainda expiado bastante. Ficaram somente aqueles que estavam por demais mergulhados nos seus crimes para constituir uma digna oferenda.Um futuro cheio de dor e de sofrimento abre-se diante de nós, habitantes de uma nação vencida ! As reparações impostas pela Declaração de Potsdam são um pesado fardo. Todavia, a estrada difícil pela157

OS SINOS DE NAGASAKI

qual devemos levar nossa carga é a única esperança que nos foi deixada: ela nos favorece a oportunidade de expiar nossas faltas.Bem-aventurados aqueles que choram, porque serão consolados. É fielmente e até o fim, que devemos percorrer essa via dolorosa. Caminhando nela, famintos, sedentos, desprezados, açoitados, suaremos, sangrentos, seremos certamente ajudados por Aquele que, até o alto do Calvário, carregou a Cruz: Jesus Cristo.Deus nos dá e Deus nos tira. Que Seu Nome seja bendito ! Agradecemos-Lhe por ter sido Ura-kami a escolhida para o sacrifício. Sejamos-Lhe gratos, já que, por esse sacrifício, a paz foi devolvida ao mundo e a liberdade de crer, ao Japão. Que as almas dos fiéis defuntos descansem em paz pela misericórdia de Deus. Assim seja !"Ichitaro-san leu esse discurso até o fim e fechou os olhos ao terminá-lo. Após alguns momentos, murmurou:— Depois disso, chego a pensar que minha mulher e meus filhos não foram para o inferno. Mas então, doutor, quem somos nós, nós que fomos deixados para trás ?— Diria que fomos reprovados no nosso exame de admissão ao céu !— Reprovados?. . . Ah! agora compreendo!. . . Pusemo-nos os dois a rir: sentíamo-nos muitomais à vontade agora.— Devo trabalhar, prosseguiu êle, para reunir-me a minha mulher, no céu. Os mortos da guerra158A VIDA É MAIS FORTEsacrificaram-se, penando até o fim, sem pensarem em si. Temos que nos apressar para igualá-los.— É exato; comecemos, pois, imediatamente a reconstruir esse deserto atómico, o maior do mundo, esse deserto solitário e terrível de cinzas e telhas quebradas. Choremos sobre os restos de nossos falecidos, mas choremos, trabalhando.— Sou um pecador, e assim sendo, expiar minhas faltas pelo sofrimento ser-me-á uma alegria. . . Por isso, trabalho rezando.E o rosto de Ichitaro iluminou-se ao dizer essas palavras.. .As quatro idades da reconstrução.No deserto atómico, vivemos quatro idades de reconstrução: a idade do abrigo, a idade da barraca, a idade da casa provisória, a idade da casa definitiva.A primeira durou, aproximadamente, um mês e poderia também chamar-se a idade da vida em comum, pois as pessoas, na falta de habitações, agrupavam-se, conforme as afinidades de vizinhança, numa existência comunitária; em relação à autoridade, a distribuição do reabastecimento tornava-se mais fácil. Havia grande número de feridos nos abrigos, e as raras pessoas indenes, compreendendo sua comunhão de sorte, ajudavam-se mutuamente, e dividiam suas parcas riquezas. Na sua pobreza extrema, na sua calamidade física e moral, esta vida tinha os seus encantos. Naquele momento, todos se sentiam perdidos

159OS SINOS DE NAGASAKI os dias se passavam unicamente a preparar refeições e a procurar os corpos dos entes queridos. Nenhum de nós sabia o que fazia, e muito menos, o que tinha para fazer.A idade das barracas assistiu aos preparativos de uma vida nova. As pessoas recomeçaram a fazer projetos. Estavam agora mais informados sobre o destino de seus parentes e amigos. Após enterrar seus mortos, começaram a lutar pelo reabastecimento, retirando dos bancos suas economias: em resumo, preparavam-se para reconstruir.

Pessoas aparentadas reuniam-se e construíam, com vigas e folhas de zinco, cabanas de alguns metros quadrados. Ajudavam-se mutuamente, mas já era mais fraca a alegria de ter escapado: os interesses se defrontavam. A vida comum começava a suscitar animosidades e dificuldades com os estranhos. Entre parentes próximos, tudo era mais simples. As cabanas davam apenas para se abrigarem da chuva: viviam todos como carneiros debaixo de um rochedo.No quinto mês após a explosão, isto é, em dezembro, os ventos frios começaram a soprar, o granizo a cair e a umidade a penetrar pelas frestas. Era impossível continuar a morar naquelas bibocas. Vieram carpinteiros das redondezas com material apropriado. Irmãos e primos ajudavam-se entre si para construir casas provisórias. As paredes, de barro; não havia tetos mas somente uma coberta de palha, semelhante às casas dos camponeses. Embora construídas rapidamente, essas casas tinham esteiras no chão e janelas ao longo dos corredores. Eram verdadeiros palacetes em comparação com as barracas.160A VÍDA É MAIS FORTEAproveitam-se os novos estabelecimentos para realizar casamentos: uma média de dez famílias por semana 1O período da reconstrução definitiva está por vir. Não podemos pensar nisso, antes de o país readquirir fundações mais estáveis. No momento, apesar de sua carência, o povo encontrou uma razão de viver; estão ricos já que estão contentes, e estão contentes porque trabalham para o futuro. Esta vida, sob um teto temporário, num deserto atómico é, a meu ver, a maior expressão do valor humano.Quando entrei na minha nova casa, meu velho professor, o Dr. Suetsugu, entregou-me um quadro onde estavam escritas essas palavras: "Inesgotável riqueza na ausência de tudo..." Quando se olham, da janela, as colinas de Urakami, ainda tão desoladoras, tão pouco habitadas, podemos pensar que nada foi feito, e que a reconstrução é impossível. Mas as pessoas trabalham e padecem; removem escombros e constroem. Pouco a pouco, sem que se perceba, renasce uma cidade. Um punhado de gente, devotos fervorosos que encontram sua felicidade nas lágrimas e nos sofrimentos, realizam um dos deveres desse século: o dever da expiação. Os que não têm fé, não voltaram. É ela o único estímulo da obra que se faz aqui. . .De novo repicam os sinos.A igreja de Urakami era construída de tijolos vermelhos; sua fachada ornamentada por duas torres de trinta metros, com dois sinos: um grande e um161OS SINOS DE NAGASAKImenor. O grande era tocado todos os dias na hora do Ângelus; mas o pequeno só repicava nos dias de festa. Diziam que êle continha mais ouro. De qualquer forma, possuía um som encantador que podia ser ouvido a três quilómetros de distância. Desapareceram os sinos: os fiéis indagavam ansiosamente que fim teriam levado, até que um dia Tagawa descobriu o menor, absolutamente intacto, debaixo de um monte de tijolos. O grande estava fendido.Esse velho Tagawa, trabalhando com o pai na sua juventude, ajudara a montar os sinos e agora êle repetia a todos que encontrava: "Nada no mundo me impedirá de recolocá-los, assim que a torre fôr de novo construída !. . ."Mas Tagawa era uma vítima da bomba: abandonado dos médicos, incapaz de um trabalho pesado.Enquanto isto, os paroquianos suspiravam:

"Se ao menos os sinos pudessem repicar de novo nesse deserto !" Quantos meses já haviam passado desde o dia em que foram impedidos de espalhar seu som ! Hoje, estavam livres e em paz, mas os seus corações continuavam tão devastados quanto suas casas ou seus campos.Que ressonâncias celestes despertariam neles se os sinos do Ãngelus soassem novamente, límpidos e suaves, sobre a cidade arruinada.Foi no dia 24 de dezembro que Ichitaro Yamada teve uma ideia, alegremente recebida por todos os162A VIDA É MAIS FORTErapazes de Motoo. Dirigiram-se para a Catedral e eu os acompanhei, apoiado sobre minha bengala. Não sentia forças e tudo quanto pude fazer foi sentar-me nas proximidades e rezar. . .Por que delicadeza da Providência chegamos a encontrar uma roldana com a corrente, justo no local onde se achava o presbitério ?Primeiramente, todos se ajoelharam. Recitamos o Terço, pedindo que o sino, sepultado sob os tijolos, pudesse ser de novo suspenso, para entoar, nessa vigília de Natal, a glória de Deus.Enquanto trabalhavam, continuei de joelhos.Conseguiriam eles retirar o sino de sob aquele amontoado de escombros ? Com os músculos retesados seguram a corrente. . ."Nosso Pai que estais nos céus. . ." Dão o primeiro arranco, depois param."Santificado seja o vosso nome. . ." Um segundo esforço, a corrente se estende."Venha a nós o vosso Reino. . ."Esforçam-se por erguer esse sino que proclamará de novo o Reino de Deus."Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu..."Eis que o sino se balança. . . é suspenso no ar; as correntes, lentamente puxadas, entre fervorosas invocações, alçaram-no, afinal !No momento em que o sol se deita, tingindo de escarlate a colina de Inasa, nosso sino, entre163OS SINOS DE NAGASAKIas ruínas da torre, esboça a sua forma elegante. Eu fico a olhá-lo, cativo, incapaz de mexer-me.Longe, bem longe, na direção do porto, outros sinos agora fazem-se ouvir sobre a terra queimada. Sinos de Omura, a seis quilómetros de distância, mas cujo som percorre livremente os campos de morte.— O Ângelus, diz Yamada e êle se ajoelha.Todos o imitam. No nosso sino, Iwagana, dando com o badalo de encontro ao lado interno, também toca o Ângelus. . .Pela primeira vez depois de tantos e tantos meses, o sino ressoou sobre as colinas de Urakami. De todas as barracas, de todas as cabanas, os cristãos saem depressa. É como se estivessem assistindo a um milagre. Aqui, ali e acolá, todos se ajoelham e começam a rezar.As frases santas confundem-se com o badalar.. . . E o Verbo se fêz carne.. . . . . Rogai por nós, pecadores. . .E até onde chega o som dos sinos de Urakami, homens e mulheres, com lágrimas nos olhos, erguem a suas preces, carregadas de esperança, sobre esse deserto apocalítico.164VI MEUS FILHOS

Kayano, a criança sem lágrimas.Somos quatro irmãos e irmãs. Uma de minhas irmãs morreu de depressão nervosa, enquanto o marido estava na guerra. A outra perdeu o marido da mesma maneira como fui privado de minha mulher. Somente meu irmão, estabelecido no continente asiático, sobreviveu com sua família. Precisou, porém, voltar para o Japão e resolvemos que êle, e os seus, viriam morar comigo.No mesmo dia em que sepultei minha mulher, fui para as montanhas, para onde haviam levado meus filhos. Quando abri a porta da casa, encontrei-os brincando com uma cigarra que apanharam. Tiveram um gesto de susto, vendo-me coberto de sangue. Olharam-me fixamente por um instante e precipitaram-se para a porta, olhando em torno. Não ! não apareceu a figura que esperavam... A cigarra fugiu das mãos de Makoto.Depois desse dia, nos lábios de meus dois filhos, jamais floresceu o nome de Mamãe. . .Mandei depois meu filho Makoto para Omura, de maneira que ficamos, em Nagasaki, minha filha165OS SINOS DE NAGASAKIKayano, uma velha empregada e eu. Tínhamos o hábito de falar baixo. Talvez Kayano achasse que isso seria melhor para mim, o doente. Sempre ajuizada, entrava em casa sem dizer palavra, até mesmo quando, brincando, se machucava. Quanto a mim, mesmo quando acontecesse estar de mau humor, não erguia a voz, pois temia ferir os sentimentos de uma criança que não tinha mãe para consolá-la. A desgraça insensibiliza: depois de certo tempo não se percebe a dor. Habituamo-nos a viver assim, sem jamais gritar, e, sem dúvida, ela veio a pensar que a vida era assim mesmo. . . Foi nessa ocasião que chegou a família de meu irmão. . .Repentinamente minha casa, tão deserta desde o grande desastre, encheu-se de barulho e de alegria. Para um observador atento, que felicidade profunda se desprende de uma família poupada, com todas as suas crianças, isentas de recordações tristes. . .Não posso dizer que só ouvíamos palavras amenas ! Não ! O dia todo era um grito permanente, misto de choro, por vezes. Entretanto, essa atmosfera de gritos, repreensões e lágrimas contribui a criar um clima de felicidade inefável.Nos seus acessos de raiva, o pai parece perfeitamente feliz; é com beatitude que a mãe castiga os filhos, e esses, por sua vez, parecem chorar com inteira satisfação.A menorzinha só abre a boca para murmurar: Mamãe, mamãe ! e a mãe não cessa de responder: "Estou aqui, filhinha, estou aqui !. . ."Cada vez que Kayano ouve a palavra "Mamãe", com a resposta afetuosa, é como se recebesse um166MEUSFILHOSgolpe no coração. Minha cunhada e a filha, inconscientemente, involuntariamente, não cessam de torturá-la.Um dia, acordando-se a pequenina e não vendo a mãe perto dela, perguntou a Kayano: "Onde está mamãe ?" Kayano, — que provavelmente pensava na própria mãe, — respondeu: "Mamãe está no céu, você sabe. . ." Nesse mesmo momento, porém, minha cunhada entrou e a criança correu a seu encontro, gritando: Mamãe, mamãe ! Kayano não disse uma palavra: encaminhou-se para fora e pôs-se a tamborilar na grade de madeira.Kayano tornou-se uma criança sem lágrimas. Certas noites, a lembrança de minha companheira dá-me vontade louca de chorar, mas vejo Kayano que, silenciosamente,

morde os lábios, contemplando a nossa solidão. . . Mesmo quando cai e esfola os joelhos, ela mesma enxuga o sangue. Uma vez um cachorro perseguiu-a: entrou em casa correndo, mas sem dar um grito. Tornou-se uma criança na qual a solidão ou a tristeza, o desgosto ou o medo não provocam mais lágrimas; morder os lábios é a sua única manifestação exterior.Os vizinhos, as visitas, todos dedicam a Kayano uma ternura especial, sabendo que ela perdeu a mãe; graças a essas pessoas ela parece, por vezes, esquecer um pouco a sua solidão. Depois que começou a frequentar a escola, aprendeu a cantar, a brincar, e já chegou mesmo a dançar no seu quarto pequenino.No princípio, ela e Makoto eram as únicas crianças daqui; mas à medida que os repatriados cons-167OS SINOS DE NAGASAKItroem na redondeza, eles fizeram novos amigos. Nesses últimos tempos, Kayano parecia feliz e com o rostinho iluminado. E eu, radiante, por vê-la de novo contente. Foi então que a família de meu irmão chegou: pai, mãe e dois filhos.Para dizer a verdade, as crianças choram demais. A caçula, de três anos, grita uma hora inteira quando acorda, e mais ainda durante o dia: chora por tudo e por um nada. Creio que passa um bom terço de seu tempo a gritar e a chorar, até que a mãe venha ocupar-se com ela. Outras vezes, fica rouca à custa de berrar, mas continua tenazmente, tanto tempo que ela mesma não sabe, no fim, por que chora. No íntimo, deseja ser mimada pela mãe.Pela mãe só; quando esta não está, é inútil tentar consolar as duas crianças. Gritam como sereias de alarma. A presença da mãe termina, instantaneamente, o concerto. Certa vez, o menino, voltando do colégio, gritou pela mãe: "Mamãe, já cheguei !. . ." Minha cunhada havia saído e o pequeno desatou no choro e começou a correr desastradamente pela casa, sempre gritando pela mãe.Kayano estava sentada perto de minha cama. Olhou, primeiramente para aquele espetáculo, com sorriso irónico: "Ridículo, não é mesmo ?" perguntou-me ela. Depois, seu rosto foi aos poucos se tornando sério, como se estampasse as recordações que lhe vinham do coração. Acompanhava com olhar de inveja o menino que procurava a mãe, e uma dor insuportável fê-la esconder a face nas duas mãos. Esse menino faz então uma cena dessas, só porque a mãe ausentou-se por algum tempo ? Ainda esta manhã o168MEUSFILHOShavia beijado e dentro de poucos minutos voltaria. Não tinha a pequenina Kayano mil razões mais para chorar ? Entretanto, não chorou. Mordeu mais fortemente os lábios e abraçou-se a mim. E eu então compreendi, intimamente, por que ela se tornara uma criança sem lágrimas.Chamam de infelizes aqueles que desaprenderam de rir. Mas quanto mais devemos lamentar as crianças que não sabem mais chorar, porque não têm mãe para consolá-las !. . .Carta ao professor de meu filho.Prezado Senhor Ikeda,Foi com grande alegria que li sua carta. . . Já que o senhor se encarregou de meu filho Makoto, creio dever expor-lhe, como pai, os meus pontos de vista e pedir seus conselhos.Como é do seu conhecimento, a mãe de Makoto morreu na explosão atómica, e eu mesmo, na Universidade, fiquei gravemente ferido. Makoto e a irmã salvaram-se por

terem ido, justamente naquele dia, para a casa da avó. A escola de meu filho foi quase completamente destruída e soube que sobreviveram apenas quatro de seus companheiros.Construímos então uma cabana de 2,00 X 2,00 m no local da antiga casa, e tentamos recomeçar a viver. Naquele momento, meu principal objetivo era pesquisar os efeitos da radioatividade residual no corpo169OS SINOS DE NAGASAKIhumano, tanto nos adultos como nas crianças. Vivi assim, naquela cabana, cerca de seis meses, com Ma-koto e Kayano, e pude verificar que a radioatividade residual diminuía muito rapidamente. Após dois meses não produzia mais nenhum efeito, salvo um ligeiro aumento de glóbulos brancos no sangue. Convicto dessa experiência é que insisti com os refugiados, para que voltassem o mais depressa possível e reconstruíssem suas moradas. Agindo dessa forma, estava certo de cumprir a minha obrigação de médico e de cidadão de Nagasaki.Durante os primeiros seis meses vivemos num regime escasso. Quando chovia, nosso fogão muito úmido negava-se a cozinhar o arroz; e certa manhã em que nevou, encontramos uma camada de neve sobre nossos cobertores. Mas, muito mais do que todas as privações, o que tornava Makoto realmente triste, era acordar cada manhã para constatar a ausência de sua mãe. . . se bem que desde o dia terrível, êle sempre evitou de pronunciar a palavra mamãe. . .Um dos motivos que me levou a impor a Makoto essa vida no meio de esqueletos e ruínas, foi o desejo de inspirar-lhe um profundo ódio à guerra. Uma permanência no deserto atómico transformará o mais extremado nacionalista num pacificador decidido. Estou certo de que meu filho, daqui por diante, só optará pela paz, aconteça o que acontecer.O Japão declarou que se tornaria uma nação civilizada e pacífica. Mas talvez exista, em certos rincões não atingidos de nosso país, pessoas que ainda considerem a guerra como coisa boa e útil; pessoas170MEUS FILHOSque não podem conter seus instintos batalhadores, e que, talvez um dia, ponham a perder de novo a opinião pública.Minha esperança é que Makoto se lembrará de sua experiência, conservará sua fé e ajudará assim a salvar a humanidade de uma destruição total.Que carreira escolherá Makoto ? A êle compete decidir; nem mesmo eu, seu pai, tenho o direito de influenciá-lo. No fundo do coração tenho, porém, um anseio: espero firmemente que êle se torne um pesquisador atómico. O estudo da medicina nuclear foi o objetivo de minha vida. Os segredos do átomo exigem existências inteiramente consagradas em explorá-los. Apesar do perigo deste trabalho, continuo a achar que não há nada mais apaixonante. . . Embora eu mesmo tenha sido vitimado pelos raios, não posso deixar de sonhar com a volta a meu laboratório, assim que puder me locomover, a fim de prosseguir no meu trabalho.Se digo a Makoto que estude o átomo, não falo como pai, querendo impor ao filho uma carreira: mas é o pesquisador veterano, dirigindo-se ao noviço. E ficaria alegre se êle me respondesse: "Concordo !" Deixaria então este mundo inteiramente feliz. Era meu propósito prepará-lo para semelhante escolha quando resolvi viver no nosso deserto. Todo homem sente-se assombrado quando se vê nessa planície vazia e verifica os efeitos da energia atómica. Esse assombro, esse espanto faz nascer a curiosidade; essa curiosidade aumenta o interesse que, por sua vez, gera o espírito de pesquisa.

171OS SINOS DE NAGASAKIEspero, no íntimo de meu ser, que quando meu filho atingir a idade do curso secundário e começar a investigar sobre sua vocação, a resposta que muito naturalmente há de surgir a seu espírito, seja: a ciência do átomo.Entretanto, um abrigo precário, no meio de escombros, não é um lugar ideal para a educação: as crianças juntam ossos e brincam de coveiros; roubam pratos e louças nas ruínas dos vizinhos; descuidam-se de lavar as mãos. Suas apreciações estéticas e morais vão por água abaixo e é impossível, em tais circunstâncias, incutir-lhes delicadeza e bons modos. Foi por isso que achei útil afastar Makoto e colocá-lo em condições mais normais, até que essa região seja restaurada, a fim de que êle adquira maneiras mais finas. Quando, pois, minha Faculdade universitária se estabeleceu provisoriamente em Omura, aproveitei a ocasião para me instalar nessa cidade, trazer Makoto e matriculá-lo na sua escola. Por um feliz acaso, o Dr. Tomonaga, que me recebeu, mora perto de seu instituto e permitiu que morássemos na sua casa.Tudo aqui contribuiu para apagar dos olhos da criança o aterrorizante espetaculo atómico: a baía magnífica, as colinas verdejantes, a escola bem equipada, a afetuosa autoridade do Sr. Yajima e do Sr. So, a atmosfera alegre dos companheiros de estudo, e a vida metódica em casa.Suas experiências matemáticas, Doutor Ikeda, e suas experiências de física, exerceram sobre Makoto a fascinação da ciência; as suas excursões no parque172MEUS FILHOSdespertaram nele os atrativos do belo. Como parecia feliz no dia em que representou a Escola no concurso de canto ! Conforme o senhor mesmo pôde constatar, na visita que nos fêz há pouco tempo, a casa do Dr. Tomonaga é um centro de amor e de verdade. Êle é um sábio, especializado em medicina interna. Sua esposa, uma mãe de família amável e culta. Educam Makoto como se fora um filho e esse, de corpo e alma, tornou-se um membro da família: ora malcriado, ora mimado; repreendido de vez em quando e elogiado quando o merecia.Durante três meses morei com os Tomonaga, mas como me sentia cada dia pior, adquiri o mau hábito de deitar-me no meu quarto, sobre as esteiras, quase que o dia todo. Muito contra meu gosto, Ma, de 5 anos, filhinho dos Tomonaga, começou a imitar-me (1). Nesta época, mais ou menos, minha Faculdade transferiu-se de novo para Nagasaki e resolvi voltar também. Hesitei muito tempo se levaria Makoto comigo, mas por fim decidi deixá-lo com meus amigos. Quando revi Nagasaki, o local da explosão havia sido todo desembaraçado e o povo a êle voltava, numeroso. A região perdera o seu aspecto desolador e retomara uma aparência pacífica. Pode-se levar agora uma vida civilizada, sem condenar o meio como impróprio para uma obra de educação. A escola(1) Os quartos japoneses têm seu chão coberto de grossas esteiras de palha. Facilmente nelas se deitam, como sobre um colchão. Este hábito é, porém, pouco educado, sobretudo para as crianças. A doença justificava Dr. Nagaí... mas não havia desculpas para Ma...173OS SINOS DE NAGASAKIprimária foi reconstruída, a população cresce com rapidez. Eu mesmo, tenho uma casa e se bem que conste de um só quarto, rosas brancas e perfumadas crescem no meu jardim. Numa palavra: tudo está pronto para receber Makoto. Poderão então perguntar por que continuo a manter o menino afastado ?É justamente para explicar meus motivos, e ter a sua opinião, que lhe escrevo esta carta.

Makoto é um futuro órfão: sua mãe já morreu e o pai está estirado sobre o que será seu leito de morte. A criança está, pois, destinada a ver-se privada, dentro em breve, do pai e da mãe. Quando se vir sozinho, nesse mundo cruel, será ele capaz de manter-se no caminho reto, sem hesitação, e prosseguir corajosamente no rumo traçado na infância ?O Cristo disse-nos: "Olhai para os pássaros dos céus que não semeiam nem ceifam, nem amontoam nos celeiros. E todavia Deus os sustenta. . . Olhai como crescem os lírios: eles não trabalham, nem fiam. E contudo eu vos afirmo que nem Salomão, com toda a sua glória, se vestia como um deles. Se, pois, Deus assim veste uma planta do campo, que hoje existe mas que amanhã se lança ao fogo, quanto mais velará por vós, ó homens de pouquíssima fé ?"Pensando nesse texto, convenço-me de que se me preocupo, é devido à fraqueza de minha fé. Diga-me uma coisa: estarei iludido pelas ideias loucas de um pai amoroso em excesso ? Não posso, contudo, deixar de pensar que, se acostumo Makoto a essa vida de semi-órfão que êle leva entre estranhos (só vem aqui uma vez por semana), o choque que experi-174MEUS FILHOSmentará com minha morte será muito atenuado. Se, ao contrário, eu permitir que viva comigo, sem familiarizá-lo com as dificuldades de uma vida com outras pessoas, não será êle levado pela maré deste mundo, quando nela fôr atirado, lutando para levar consigo a irmãzinha ? Ah ! queira Deus que não se torne um desses órfãos mendicantes 1Makoto, Kayano; já que de qualquer forma vocês têm de ser órfãos, sejam fortes e leais; caminhem corajosamente e com um sorriso, através da vida. . .Eis, Dr. Ikeda, o pensamento e as preces que se ocultam sob minha decisão de deixar meu filho nas suas mãos.Mas, para ser franco, como desejaria ter Makoto perto de mim ! Como gostaria de poder, durante o dia, contemplar o seu rostinho, ouvir sua voz, deixar que suas mãos tratassem de minhas pernas doentes. Não sei por quanto tempo terei vida ainda; sinto, todavia, que o fim se aproxima. Mais uma razão imperiosa para eu desejar passar com meu filho, no mesmo quarto, os meus derradeiros dias.Todos os sábados à noite êle chega, dizendo: "Papai ! estou aqui !" Sai domingo de manhã para a missa e passa o resto do dia dispensando-me toda espécie de cuidados. Parte novamente na segunda-feira, muito antes de nascer o sol. Ouço, ao longo da colina, arquejar o trem que leva Makoto: o barulho decresce pouco a pouco. E, às vezes, quando o silêncio de novo invade a minha casa, pergunto a mim mesmo se a alma da mãe de Makoto não estará triste comigo. . .175OS SINOS DE NAGASAKIDiscussão por causa de uma boneca.— Porque você não arruma as coisas ? Não tenho culpa de ter pisado nela. Por que a deixou no chão ?O racionamento de eletricidade, naqueles anos difíceis, obrigava-nos a levantar no escuro e foi assim que, certa manhã, ouvi Makoto brigar com Kayano. O menino pisara na boneca da irmã. Kayano, na noite anterior, levara a boneca nos braços, quando se deitou, mas com certeza, ao dormir, deixou-a cair. Logo que acordou, lembrando-se da filha, pôs-se a procurá-la no escuro, quando ouviu o irmão — que se levantara primeiro — quebrá-la sob os pés. Da minha cama ouvia a discussão e duas coisas eram claras: nenhuma das partes agira de propósito, mas ambas mereciam uma censura por seu descuido. Acima de tudo, porém, agira aí, visivelmente, o acaso. Aparentemente, o mais

prejudicado era eu, pois deveria fornecer a Makoto os meios para comprar uma boneca nova para a irmã.As duas crianças recorrem a meu tribunal. É bom ver como argumentam, procurando expor suas razões com clareza e sem chorar, quando pela morte da mãe pareciam tão desamparados. Quantas vezes, ansiosamente, perguntei-me se era possível, para um pai só e doente, realizar, com êxito, a obra da educação.Eis que já se passaram três anos desde o dia em que recolhi os restos de minha mulher e enterrei-os sob um pinheiro, indo a seguir visitar meus filhos176MEUS FILHOSno seu refúgio, entre as colinas. Estavam a uns seis quilómetros daqui. Uma ansiedade vaga, indefinida, me impacientava contra minhas pernas feridas que tão lentamente me conduziam até lá. Alcancei, afinal, o vestíbulo da casa onde moravam as crianças. Abrindo a porta apareci a eles, assustando-os com a minha aparência tão diferente: apoiado sobre o ombro de uma enfermeira, tendo a cabeça e mãos envoltas em bandagens.Eles me olharam atentamente, recuando pouco a pouco. A cigarra com a qual brincavam escapou das mãos de Makoto. Foi nesse momento que tive o sentimento vivo da paternidade. Nunca, antes ou depois desse dia, senti, de maneira tão profunda, as relações íntimas que unem o pai aos filhos. Evidentemente já os amava antes disto; mas um pai, não tendo que passar por sofrimento algum para pôr os filhos no mundo, não sente sua paternidade tão fortemente quando a mãe experimenta a sua maternidade.Se, naquele dia, vivi tão nitidamente minha qualidade de pai, foi sem dúvida porque a morte de minha mulher levou-me a ser também, de certo modo, a mãe deles. Não quero com isso dizer, no sentido rigoroso, que o espírito da morta tenha entrado em mim; mas — até certo ponto — é pura verdade. Desde esse primeiro encontro, após o que sucedeu, tentei orientar a educação das crianças tendo sempre presente esse pensamento: que faria a mãe deles em meu lugar ?Tirei de meu bolso uma caixa de pêssegos cristalizados, uma das provisões que encontrei no meu177OS SINOS DE NAGASAKIabrigo depois do desastre. Mandei Makoto trazer os pauzinhos de bambu (1). Abri a caixa e ofereci a eles:— Provem como é bom !Eles hesitaram, nervosos; seus olhinhos iam de meu rosto para a caixa, da caixa para os pauzinhos. Estavam sérios e não se moviam. Entretanto, foi para eles que trouxe da cidade, a pesada caixa. Comecei a impacientar-me:— Então ? por que não comem ?Meu tom áspero chocou-os e percebi que a custo continham as lágrimas. Continuei a olhar para ambos e, com o coração apertado, compreendi. . . Eles estavam esperando a mãe. Essa caixa de pêssegos foi, tempos antes, comprada por ela. Viam agora a caixa aberta diante deles: mas por que a mamãe não tinha vindo também ? Tudo teria sido tão diferente ! Os doces não teriam sido dados de maneira tão brusca, os pauzinhos colocados ao contrário, e as palavras tão ásperas ! Envergonhado percebi tudo: tinha resolvido desempenhar o papel de mãe e, desde o primeiro ensaio, fracassei miseravelmente.Fui à cozinha, apanhei dois pratos pequenos, coloquei os pêssegos neles e, com ternura, ofereci-os às crianças. Desta vez aceitaram e então me lembrei de que Midori

recomendava-lhes sempre que não comessem dentro das caixas, mas usassem os pratinhos para isso.(1) Pauzinhos que, no Japão, servem de talher.178MEUS FILHOSDepois de cada um comer dois pedaços, sobraram ainda dois na caixa. Era a parte de Midori. Teríamos comido tão alegremente se estivéssemos juntos, mesmo no abrigo, mesmo sob as bombas. . . Meu pensamento revia o passado; voltando-se depois para o futuro pareceu-me ver a longa e difícil estrada que nós três devíamos ainda percorrer.. . . Desde então, três anos se passaram; três longos, longos anos: das vinte e quatro horas de cada clia, posso dizer que nenhuma foi fácil. Se o tempo pareceu-me tão longo, é que cada dia, cada hora, encerrou uma luta penosa contra o sofrimento e a solidão, contra a angústia e a miséria. Como foram pesados esses anos, e no entanto, as cinzas de Midori eram tão leves !. . .As crianças desenvolveram-se bastante e espero que minha mulher aprove, lá do céu, o trabalho que fiz, trabalho bem penoso para um homem sem apoio. Não tenho dúvidas sobre um ponto: eles seriam bem melhores se a mãe estivesse aqui para educá-los. . .

Cai a noite enfim, o céu tinge-se de sombras. Os sinos da igreja tocam matinas. A discussão sobre a boneca terminou pacificamente: Makoto comprará uma cabeça nova: Kayano lhe fará um novo vestido. Ela herdou da mãe o gosto pela costura e consegue fazer o que quer com suas mãozinhas desajeitadas. Makoto e Kayano, de mãos dadas, saem para a missa."Senhor ! guardai-os hoje ainda e derramai sobre eles a abundância de vossas graças..."179

VII AMANHÃ PODE SER MELHORO fim de uma época.— É a sua vez ! diz a enfermeira, introduzindo dois novos clientes.Um casal de idade, cuidadosamente trajado, entrou no meu laboratório. O marido avança, com todo o respeito. Apresenta-se e solicita um exame médico. . . Cada vez que abre a boca, a longa barba branca estremece.— Sou, diz-me êle, o padre xintoísta de Onsen Jinja. Acabo de chegar e trago uma carta de apresentação do médico de minha cidade. . .Li a carta. De acordo com as informações, o que primeiramente alertou o velho, foi o fato de que o som do gongo que êle batia todas as manhãs perdera muito de sua força, nos últimos tempos. Notara também que, quando mais jovem, a modulação clara de suas entoações subia além do primeiro "torii" (o pórtico mais afastado do seu templo), mas, no último festival do outono, já se sentiu incapaz de fazer realçar a sua voz e, bem no meio do canto, experimentou perturbações respiratórias bastante incómodas. Os fiéis, percebendo essa diminuição de vigor, ,atribuíram-na à dureza dos tempos. Quanto181OS SINOS DE NAGASAKIao sacerdote, continuara todos os dias, da melhor maneira possível, a rezar, a bater o gongo, confiando plenamente na vitória final do Japão Sagrado.Mas eis que, em vez de ser beneficiado pelo vento divino que o salvaria, o país foi derrotado, arrastando no seu desastre, deuses e mitos. E quando suprimiram as contribuições regulares que os fiéis pagavam aos templos, foram os padres os que mais vieram a sofrer. A guerra levara tudo dessa pobre gente. Seus deuses revelavam-se

impotentes; e essa própria gente tinha sido ingenuamente iludida: honra, meios de vida, tudo lhes faltava ao mesmo tempo.O velho padre encarava o futuro com apreensão. Se ao menos o filho mobilizado voltasse da Birmânia, que grande apoio seria ! Mas nem notícias tinha dele !Contou que começara a emagrecer rapidamente. Os outros atribuíam ao racionamento, mas — coisa curiosa ! — mesmo comendo pouco, não sentia fome. Convencera-se de que a austeridade dominava o seu estômago; e quando os fiéis queixavam-se das restrições, êle respondia com sinceridade: Vocês sofrem, sobretudo, de fraqueza espiritual !O infeliz ignorava que essa perda de apetite tinha uma causa terrível, e que êle era portador de um câncer. Mas a esposa começava a desconfiar de qualquer coisa: via que o marido tocava nos alimentos cada vez menos e seus gostos se modificavam de modo estranho. . . Um dia, não se contendo mais, apresentou-lhe um espelho: Olhe ! veja como você está ! Êle reconheceu que havia emagrecido, mas o que mais o chocou foi o aspecto de sua barba: aquela barba outrora tão branca e sedosa, perdera por com-182AMANHÃ PODE SER MELHORpleto o brilho e adquirira um tom acinzentado, doentio. Baixou os olhos e examinou os braços: a pele flácida e sem vida parecia a pele velha de uma serpente."Não creio que esteja realmente doente", disse o padre quando, naquele mesmo dia, entrou no consultório do médico de sua cidade. Mas os dedos experientes do seu médico bem depressa encontraram no estômago um volume duro, suspeito. Um câncer !Nenhum médico pronuncia de chofre tão terrível veredicto. Limitou-se a dizer: "Alguma coisa não está bem no seu estômago. Vou dar-lhe um medicamento que o senhor tomará com regularidade. Além do mais, acho-o muito enfraquecido: procure alimentar-se antes que seja tarde..."Mas o velho não compreendeu as últimas palavras do doutor. Voltou tranquilamente para casa, remédio no bolso e transmitiu à mulher o vago diagnóstico. Ela não se contentou com isso. Sem nada dizer ao marido, procurou o médico e dele ouviu, com toda a clareza, a terrível sentença: câncer. . . operação inútil. . . talvez uns três meses de vida. . . nada a fazer. Mas, sobretudo, que o doente não venha a saber ! recomendou o clínico.A mulher dispunha-se a voltar para junto do marido, esmagada sob o peso do segredo. Ah ! pensava ela, se ao menos êle vivesse até a volta do nosso filho... Gostaria de poder rezar, mas já que os deuses são falsos !Enquanto atravessava a cidade, um soldado desmobilizado chegou-se a ela ! Conhecera seu filho, lá. . . na Birmânia !183OS SINOS DE NAGASAKI— E quando voltará ? perguntou a mãe. . . mas logo interrompeu suas palavras, pois notou que uma nuvem cobria o rosto de seu interlocutor. O homem tentou falar uma vez, duas vezes: a voz não saiu. O coração da mãe parou de bater. Os olhos do soldado se toldaram e deixaram cair uma lágrima. Ela compreendeu tudo: baixou a cabeça e tombaram-lhe os braços. "Mas pelo menos êle. . . nada saberá !" decidiu ela com energia, pensando no marido. "Se tem apenas três meses de vida, em breve encontrará o filho num mundo melhor."Erguendo os olhos, disse ao soldado:— Meu amigo, prometa-me sob sua palavra de honra que nada dirá!Correndo depois para o prefeito da cidade, pediu-lhe que cancelasse qualquer notificação oficial que chegasse.

As más notícias, infelizmente, acabam sempre por espalhar-se: toda a cidade logo soube que o padre estava desenganado e que o filho morrera. Entretanto, a mulher persistira no seu silêncio heróico e no risco em que incorria. Uma palavra indiscreta, uma carta de pêsames e tudo se revelaria ! Tanto mais que o padre ainda saía e conversava com todos. Era preciso, sem cessar, estar de sobreaviso, prevenir as visitas, suster a correspondência. . . Era preciso, sobretudo, escondendo as lágrimas, manter o sorriso !.. .Também ela agora se modificara muito, esgotada pela tensão nervosa. Empalidecera, emagrecia a olhos vistos e, certa manhã, foi o padre quem — por sua vez — estendeu o espelho à esposa.184AMANHÃ PODE SER MELHOREla olhou distraidamente e devolveu-lho: "Qual nada ! não estou doente, não sinto coisa alguma. Cansaço de espírito, talvez. . . São tantas as preocupações !. . ." Parou de repente, verificando a imprudência que cometera. Mas o padre não desconfiou: pensou que ela se referisse às dificuldades domésticas e, alisando a barba, pôs-se a rir, dando-lhe coragem:— Vamos para a frente ! suportemos ainda alguns aborrecimentos ! Quando nosso filho chegar, nós lhe arranjaremos uma boa esposa, e aí, nós dois não teremos mais nada a fazer, senão plantar crisântemos.Com íntimo desespero, a mulher refreou suas lágrimas ardentes e riu um riso sem vida. Mas no dia seguinte, o marido levava-a ao médico. . . Esse, naturalmente, não encontrou nada no físico. Aproveitou, todavia, a ocasião para mandar o padre, com a esposa, ao Hospital Universitário a fim de fazerem um exame: é claro que mesmo o Hospital em nada modificaria a situação, mas ao menos, em caso de morte, sua responsabilidade estaria coberta. Declarou num tom falsamente indiferente: Não vejo nada de grave na sua esposa. Mas poderíamos pedir umas radiografias, lá na Universidade. Acompanhe-a e aproveite para passar também pelos raios X.O padre concordara e era êle quem agora eu examinava. Na câmara apagam-se as luzes, brilha a chapa fosforescente, mostrando-se a parte interna daquele homem: um câncer reconhecível à primeira185OS SINOS DE NÀGASAK1vista. O médico da vila acertara: diagnóstico e prognóstico indubitáveis. Num instante o exame termina, acendem-se as luzes. . . A diminuta estatura óssea, ainda em pé no aparelho, parece tão frágil quanto um velho pinheiro retorcido à beira de um precipício. Sob a barba branca, a mancha amarela de um medicamento. . .O padre sai do aparelho e sua esposa que manteve as roupas quentes de encontro ao peito, ajuda-o, maternalmente, a vestir-se. Pode-se ler, nos seus gestos, a intensidade do seu amor para com o inconsciente condenado.— Então, doutor, que acha o senhor ?— Bem... eu. . .Não posso dizer mais nada. Na Universidade, esperam de nós uma sinceridade absoluta, mas aqui, nesse caso, como falar alguma coisa a esse ancião que se veste calmamente em frente a mim ? Diante da minha restrição, os olhos da mulher, por trás do marido, transmitem-me uma mensagem desesperada . . .— Quer dizer que não tenho nada de sério, não é verdade ? Foi o que o outro médico me disse também. Sobretudo não me venham a falar de câncer ou de outro horror. . .— Bem. . . é justamente isso — e a sua pergunta me salva — é justamente o que disse o outro médico.

— Era o que eu pensava: aliás, o remédio que êle deu, tem-me feito um bem enorme. E com essas palavras, retirou-se da sala.186\AMANHÃ PODE SER MELHORO exame da senhora confirma, igualmente, o diagnóstico do clínico. Organicamente, nada de especial: tudo deriva de uma tensão psicológica. Pronta, ela me interroga acerca do marido, agarran-do-se ao que eu dizia, como um náufrago à sua tábua. . . Mas devo-lhe ser franco. Dentro de um mês os alimentos não passarão mais. Deve-se acamar e quando adquirir uma côr amarelada, será o sinal do fim. . . Os dois ou três últimos dias se escoarão num sono calmo: o fim será sereno; vai-se extinguindo como uma chama.Enquanto falo, a mulher me ouve, sentada, olhos pregados no chão. Aperta, nervosamente, entre os dedos, o lenço que antes tirara da bolsa. Mas sua dor está acima do pranto. . . Não perde nem um instante o seu domínio: modelo perfeito da digna reserva japonesa. Quando parei de falar, levantou-se suavemente, cumprimentou-me e foi para junto do marido que a esperava.Custou-me sair do laboratório, nessa tarde, pensando na sorte trágica daquela família. É assim que, enquanto o povo japonês enceta, com uma coragem renovada, a reconstrução de uma nação democrática, essa pobre gente está condenada a desaparecer com os sonhos do Japão Sagrado, e sem culpa da parte deles. O pai viveu, sem dúvida, honestamente; o filho tombou com coragem, lutando contra o inimigo, e a mãe levará uma existência desoladora, amaldiçoando os deuses que eram, eles mesmos, os frutos de sua imaginação. É todo o povo japonês que merece a censura, por não ter tido a coragem de buscar a verdade. . .187OS SINOS DE NAGASAK1Deito um olhar sobre a cadeira onde a senhora se sentou. Uma coisa branca está ali perto, caída no chão: seu lenço. Posso ter achado desumana a coragem dessa mulher japonesa, mas no fundo, ela se mantém mulher: na agonia das suas lágrimas interiores, perdeu o lenço. Meu primeiro movimento é de entregar a ela, com palavras de simpatia. Chego mesmo a me aproximar da porta. . . mas ouço falar e me detenho. É o padre: êle fala lentamente, parando, repetindo-se; a mulher cala-se, derramando lágrimas silenciosas, com certeza.— Mas, que isto ? Não se preocupe !. . . Pois o médico já não disse que você não tem nada ? Então, para que chorar ? Não há motivos para se afligir. . . É apenas uma depressão nervosa, e é o que a emociona à tôa, sem razão. . . Vamos ! Lembre-se do que o médico disse do meu estômago que tanto a atormentava também. . . Não é nada. . . O próprio raio X. . .Êle insiste. Trágica inadvertência desse padre, consolando sua mulher sadia, enquanto ela, a êle, nada pode dizer. . . é um condenado inconsciente.— Está bem, respondeu por fim. Procurarei ser mais corajosa.— Isto mesmo ! replicou o homem. Nós não podemos morrer, não é verdade ? Não podemos morrer antes que o nosso filho volte !A mulher não respondeu: vagarosamente, eu me afasto da porta, e entregando o lenço à enfermeira, digo-lhe:— Tome ! você o devolverá a ela. . . dentro de pouco tempo !. . .188AMANHÃ PODE SER MELHORQuestões de pão.

Pouco depois da volta de meu irmão, vindo do continente, o marido de minha irmã voltou da Sibéria.Ambos moram agora conosco, depois de terem vivido com os russos, como prisioneiros: campo de concentração, trabalhos forçados. . . Passam horas confrontando suas experiências e, ouvindo-os, do meu leito, vejo, consternado, como todas as suas conversas giram unicamente em torno de pão.Incessantemente rememoram, comparam e discutem sobre as rações de pão que recebiam lá; esse assunto parece exercer sobre eles uma invencível fascinação. Seus dois anos de Sibéria foram, de princípio a fim, baseados sobre o pão e sobre o pão somente.Durante o tempo que ali estiveram, nenhum outro pensamento ocupou-lhes o espírito. Na verdade, onde estavam, a vida era organizada de tal maneira que nenhuma outra ideia, a não ser a do pão, prendia-lhes a atenção. Naquela existência, literalmente, o homem "vive só do pão".— Quanto lhe davam lá ?— Puxa ! isso era quase normal !. . .— Felizardo ! minhas rações eram extremamente pequenas: o campo ficava nas colinas e, por cúmulo do azar, morávamos a dois passos do Quartel-General. Por isso o regime era seguido à risca.189OS SINOS DE NAGASAKI— Que é que vocês faziam ?— Terraplenagem, fossas. Rações teóricas de trabalhador manual. Classe C. |— Ah ! você era um desses privilegiados de 300 g por dia ?— Sim, se você acha. . . mas no inverno o solo gelava e não conseguíamos nunca atingir o 100% do trabalho mínimo. Deste modo, só nos davam 250 g.— Você deve ter passado fome. . . Eu, para dizer a verdade, estava de serviço na enfermaria.— É mesmo ? Classe C também, então ? Quer dizer que você recebia 300 g completas ?— É, 300.— Na enfermaria sua ração era permanente. Mas nós, trabalhadores de terra, comíamos na medida do trabalho. Por isso viviam alguns a fazer cálculos complicadíssimos ! "Se eu der mais 30 cm, terei 50 g a mais". Ou o contrário: "Chega ! o que fiz já me dará 400 g !" Calculava-se a quantidade de pão pelas pás de terra !. . . E nem assim o sistema é eficaz; cada um pensava mais no pão do que no trabalho. . .quanto mais cavávamos, mais deveríamos cavar. O fiscal soviético coçava a cabeça, pensava, e depois concluía: "Cavem mais !"Um dia, criei coragem e perguntei: "Mas afinal, que é que procuramos ?"— A junção de duas canalizações de água, respondeu.190AMANHÃ PODE SER MELHOR— O senhor sabe onde está ?— Hein ? deve ser por aqui mesmo. .. Comecei a fazer um reconhecimento do terrenoe localizei quatro captações de água e perguntei de novo:— O senhor não acha que o que procuramos deve estar na interseção de duas linhas retas, unindo duas a duas as captações opostas ?Êle me olhou, cheio de espanto e depois objetou:— Como é possível estabelecer duas linhas retas em semelhante distância ?— Não é preciso. Coloque um soldado em cada captação e tire uma visada. . .

Fiz isso num instante. Cavamos, e dois minutos depois estávamos, realmente, sobre a junção. Interrompemos o trabalho mas o fiscal disse: "Cavem agora uma fossa entre seus trabalhos precedentes e este cruzamento."— Para fazer o que ?— Ora essa ! Se deixamos a coisa assim, o inspetor não tomará em consideração senão a nossa última pequena escavação e não teremos quase pão hoje. Liguem a grande terraplenagem ao fosso ! É o pão de vocês que está em jogo !E desde aquela hora até à noite, cavamos inutilmente aquela fossa, levados por um só motivo: pão !. . .As conversas desse género prolongavam-se horas a fio ! Um de meus amigos, voltando da Rússia, foi191OS SINOS DE NAGASAKIum dia ver-me: também êle só tinha um assunto: pão e calorias.Parece que todos, soldado ou oficial, operário ou intelectual, todos se tornavam incapazes, uma vez na Rússia, de pensar noutra coisa senão em pão. Não podia deixar de admirar a astúcia diabólica do sistema empregado para fazê-los chegar a isso. Quando o homem tem fartura de pão, não precisa se preocupar e sobra-lhe tempo para pensar na alma. Quando, pelo contrário, não tem pão nenhum, pensa também em sua alma porque vê-se em face da morte.Mas dai a um homem justo um pouco menos que o mínimo requerido, fazendo que se sinta sempre faminto: êle começará a não se preocupar senão com o pão. Se, além do mais, todo o sistema fôr ligado ao trabalho: trabalho intensificado, alimento suficiente; baixa de produção, diminuição das rações, o homem, dentro em breve, só pensará no trabalho em termos de pão. Seu pensamento, da manhã à noite, estará preso nesse problema. Como, então, poderá ainda pensar na alma ?A "norma de produção" é o meio mais eficaz para matar qualquer maneira de viver conforme a palavra de Deus.Os avarentos.Os avarentos não são amados. . .Nesse tempo de mercado negro, o dinheiro prolifera nos bolsos de alguns fazendeiros e comerciantes.192AMANHÃ PODE SER MELHORDizem que esses fazem agora a "festa dos 30 centímetros". Trata-se de uma reunião íntima onde os aproveitadores, com suas famílias, regozijam-se em ver sua pilha de notas de 100 yen elevar-se até 30 centímetros !. . . Estou certo de que devem ter trabalhado muito tempo e penosamente, para atingir esta altura. E terão mais trabalho ainda para guardar do que para ganhar. Mas deixemos de lado as "festas dos 30 centímetros". A questão é saber como vão gastar esse dinheiro. Se resolverem financiar os trabalhos de utilidade pública, está muito bem; se o dessem aos pobres, melhor seria. O mais comum, porém, é olhar duas vezes o dinheiro, antes de gastá-lo, ou então fazer com suas riquezas toda sorte de chantagens: "Se precisa que eu lhe empreste dinheiro, venha mendigá-lo !. . . Se quiser que eu dê para suas escolas, ponha-me na Comissão patrocinadora !" Evidentemente, aqueles que falam assim, estão condenados pela opinião pública. Mas existe outra espéj cie de avarentos. Não os conhecemos como tais, nem os proscrevemos da coletividade. Ao contrário; o mundo considera-os como grandes homens, e as cidades homenageiam-nos. Refiro-me a certos sábios que são como que os avaros da ciência e que encontramos entre professores, pesquisadores, técnicos de indústria, bibliófilos. Guardam para si seus conhecimentos, suas

descobertas, seus livros raros. É uma avareza verdadeira. Essas pessoas constituem-se oráculos, fecham-se na sua tôrre-de-marfim com um olhar de desprezo para a massa; recusam revelar ao público uma invenção útil; rejeitam cooperar na educação e na promoção do país; alegam que não193OS SINOS DE NAGASAKIlhes compete tornarem-se "apregoadores da ciência". E são respeitados !Com efeito, eles lutam para acumular a ciência que adquiriram; empregaram muito mais esforço, é certo, do que o fazendeiro para vencer nas suas colheitas. Mas o trabalho dos sábios não é destinado a ajudar toda a humanidade ?. . . Aliás, os próprios avaros não começaram, certamente, com suas ideias egoístas. Essas só nasceram quando eles empilharam seus estoques intelectuais nos celeiros do seu espírito. O desejo da influência, da honra, da superioridade, do ganho material que a ciência pode favorecer, esse desejo cresceu com os anos.Competirá a eles condenar os fazendeiros pelas suas "festas dos 30 centímetros" ? E eu me pergunto, por vezes, sem pretender, aliás, que meu capital de ciência mereça crédito: não serei um desses avaros do espírito ?. . .Será feliz a era atómica ?É com razão que se pergunta se o progresso da ciência traz, à humanidade, felicidade ou miséria.Os sábios — ao que parece — nada inventam senão para a guerra: explosivos, aviões, rádios, energia atómica; tudo isso tem sido utilizado para a carnificina. Os próprios sábios foram mobilizados para sustentar o esforço militar. . . Entretanto, seria194AMANHÃ PODE SER MELHORlamentável se concluíssemos que os sábios voltaram-se somente para a guerra, a maior das tragédias humanas. Uma única bomba, caros concidadãos de Nagasaki, arruinou todo o vosso meio de vida. Mas é inconcebível que Marie Curie, precursora das pesquisas sobre a energia atómica, a ela se tenha dedicado prevendo as atuais aplicações. . . Vós sabeis ainda que tremendas angústias torturaram os últimos anos de Nobel, o inventor da dinamite. Calculo que os sábios que trabalharam na execução da bomba atómica pensam agora, nas suas orações cotidianas e com o coração despedaçado, no horrível espetáculo de Nagasaki, semeado de cadáveres. . . Mas não é aos sábios que devemos censurar.De fato, a bomba atómica demonstrou à humanidade que existem ainda formidáveis recursos latentes no universo. Depois de ter entrevisto a ruína quando o carvão e o petróleo fossem esgotados, eis que a humanidade, com a explosão da "pika-don" (nome popular japonês da bomba), foi de repente introduzida num domínio completamente novo. Até agora, dadas as exigências de combustível, de alimento, de energia, os políticos do mundo inteiro, colocados diante dos problemas de terra e de população, só podiam recorrer à diplomacia ou à guerra, isto é, sempre à luta. A utilização da energia atómica, a meu ver, poderia eliminar muitas causas de competição e de conflitos. Basta uma pesquisa paciente para fazer surgir, nos lugares mais inesperados, novos recursos que tornarão a vida mais confortável.Inútil querer multiplicar as provas. Olhai simplesmente em torno de vós: observareis as transfor-195OS SINOS DE NAGASAKI

mações advindas nesses últimos cinquenta anos, e chegareis à conclusão de que, nesse ritmo, a vida poderia ser, para nós, se todos colaborassem, verdadeiramente confortável e agradável. E quais seriam os problemas da humanidade ?Nesse momento, no Japão, para muita gente falta o essencial, e todos se preocupam com questões de subsistência; ninguém possui reserva mental suficiente para ocupar-se com sua alma. Os comunistas mantêm também os homens na miséria, para retirar deles o vagar que favorece os assuntos da alma. Se lhes dessem bastante de comer, roupas à vontade, não teriam de consagrar todas as forças do seu espírito aos problemas da vida material. Começariam a pensar seriamente nos mistérios da eternidade.É lamentável que as questões de abastecimento constituam ainda um dos principais assuntos de nossas conversas. Não posso deixar de pensar que os sábios podem fazer qualquer coisa para alterar nossas maneiras, tão materiais, de encarar a vida.Devem os sábios esforçar-se para criar um mundo no qual a humanidade não tenha mais necessidade de consagrar todo seu esforço e todo seu trabalho unicamente às necessidades terrenas. Sei que acusam a civilização técnica de ser um obstáculo à cultura espiritual. Mas aqueles que fazem esta objeção não enxergam todo o cenário: a civilização técnica é, precisamente, o fundamento necessário sobre o qual, daqui por diante, com toda a liberdade, poder-se-á edificar uma cultura espiritual.196AMANHÃ PODE SER MELHORDe um Ângelus a outro.Quando desce a noite, como não há eletricidade, enrolo-me nas minhas cobertas, com Kayano nos braços.— Um átomo é grande ? pergunta meu filho Makoto, que está no 4.° ano primário.— Ah! não; é pequeníssimo, digo-lhe; um centimilionésimo de cm em diâmetro.Por longo tempo continua com suas perguntas: explico-lhe o núcleo, os neutrons e o resto.— E será que se pode utilizar os átomos sem ser para fazer bombas ?— Claro que sim, meu filho, e de várias maneiras. Se nós os fizermos explodir pouco a pouco, com regularidade, sua energia propulsará navios, trens, aviões. . . sem carvão, sem gasolina e sem eletricidade. Não haverá mais necessidade de máquinas pesadas e os homens viverão felizes.— Quer dizer que um dia tudo será movido pelos átomos ?— Sim. . . Você e Kayano estão vivendo a era atómica.— A era atómica. . . murmurou Makoto, e adormeceu logo em seguida.Sob meu travesseiro, um grilo cantava. . .Será a humanidade feliz ou desgraçada na idade atómica ? Essa arma de dois gumes escondida por197OS SINOS DE NAGASAKIDeus no Universo e agora descoberta pelo homem; que farão dela ?O seu justo emprego fará progredir vertiginosamente a nossa civilização; o seu mau emprego destruirá o mundo. A decisão repousa no livre arbítrio do homem. Êle tem nas mãos o seu destino. Pensando nisso, um terror nos percorre e, convenço-me cada vez mais de que um verdadeiro espírito religioso é a única garantia neste terreno.... O grilo continua cantando. Kayano, quase adormecida nos meus braços, tateia como que à procura do regaço materno. Depois de um instante, recorda-se, sem dúvida, e choraminga docemente, pegando de novo no sono. . . Não somos os únicos infelizes, pensei eu. Quantos órfãos, quantas viúvas choram nesta noite nas casas vizinhas ?. . .

A noite é longa, mas o sono é curto. O último sonho é afastado pelos clarões da aurora que filtram através das frestas das janelas.Os sinos batem. Nasce um novo dia. . . Makoto e Kayano saltam de seus leitos e ajoelham-se perto de mim para recitar suas orações. As notas claras ressoam no ar da manhã, enviando sua mensagem de paz. . . até os confins do mundo.O céu proíbe que se pense noutra guerra: com a bomba atómica, seria a destruição da humanidade. Partindo de nossas pobres casas na encosta de Ura-kami, na cidade de Nagasaki, lançamos este apelo a todos os povos da terra: Renunciai à guerra. 198AMANHÃ PODE SER MELHORCooperemos, trabalhemos juntos, num espírito de amor e fraternidade universal. De joelhos, sobre as cinzas deste deserto atómico, rezemos para que Urakami seja a última vítima da bomba.O sino bate... Ó Maria, concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a vós. . .Makoto e Kayano acabaram suas preces e fazem o sinal da cruz. . .

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ÍNDICEApresentação de Paulo Nagai ................. 5Introdução .................................. 9I — IMAGENS ANTERIORES AO DESASTREMeus Pais ........................ 11A carne e o sangue ............... 14Civilização ........................ 21Maru-boro (Panquecas) ............ 23II — O CATACLISMOAs horas que o precederam......... 29A bomba ......................... 36As horas seguintes ................. 41III — SOCORROSAssim acabou a Universidade ...... 61A noite rubra ..................... 76O dia seguinte .................... 82Yamashita ......................... 88Reflexões posteriores ............... 93O dia em que perdi a metade do meucoração ....................... 99IV — O POSTO DE SOCORRO DE MITSUYAMAAté a Assunção .................... 105Após a Assunção .................. 115Sintomas e remédios ............... 123201OS SINOS DE NAGASAKIV — A VIDA É MAIS FORTERenasce a vida .................... 131Meus visitantes .................... 147As quatro idades da reconstrução ... 159De novo repicam os sinos.......... 161VI — MEUS FILHOS

Kayano, a criança sem lágrimas..... 165Carta ao professor de meu filho .... 169Discussão por causa de uma boneca .. 176VII — AMANHÃ PODE SER MELHORO fim de uma época............... 181Questões de pão ................... 189Os avarentos ...................... 192Será feliz a era atómica ?.......... 194De um Ângelus a outro............ 197202•Obra executada nas oficinas da São Paulo Editora S. A. - São Paulo, Brasil

* /I1lPara além doORIENTE E DO OCIDENTEJOHN WU•JOHN WU — Este chinês ilustre, tão notável jurista quanto filósofo e homem de letras, relutou em escrever a história de sua vida. A insistência de amigos e sobretudo do editor americano Frank Sheed persuadiu-o, finalmente, a dar-nos o sua biografia. Daí resulta este livro cheio de colorido, de frescura, de espontaneidade, rico de conteúdo humano, recebido com entusiasmo nos Estados Unidos e na Europa.E' uma palpitante narrativa de aventuras: o filho de um simples comerciante de Ningpo torna-se Embaixador da China junto ao Vaticano. A história verídica é tecida de pitorescos e saborosos ditos da velha China e marcada por autêntica poesia. E' uma vida humana intensamente vivida.E é também o longo itinerário espiritual de uma alma que busca a Verdade e a encontra por fim na luz que brilha "para além do Oriente e do Ocidente". Educado nas três religiões da China, John Wu convertendo-se ao catolicismo não abandona por isso a sua cultura oriental: conserva-se um autêntico Chinês, sendo um católico autêntico.