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1 OS RECORTES NA TERRA DOS “FILHOS DO GUARANÁ”: IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DAS SOBREPOSIÇÕES DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NA TERRA INDÍGENA ANDIRÁ-MARAÚ Luly Rodrigues da Cunha Fischer RESUMO Analisa o regime jurídico que deverá prevalecer no caso de sobreposição de terras indígenas (TIs) e unidades de conservação (UCs) usando como referência o caso de sobreposição da TI Andirá-Maraú e das UCs “Parque Nacional da Amazônia” e “Floresta Nacional Pau Rosa”. Constata que não existe no ordenamento jurídico brasileiro uma solução para o caso, sendo necessário analisar o regime jurídico das TIs e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) para concluir qual deverá prevalecer no caso em estudo. O SNUC classifica as UCs em dois grupos: (a) proteção integral e (b) uso sustentável, tendo cada UC um regime específico de fruição que afeta o uso dos recursos naturais e, algumas vezes, a permanência de populações no seu interior. As terras indígenas são garantidas aos índios como direito originário pela Constituição de 1988. Identifica três hipóteses para solucionar a questão das sobreposições de TIs e UCs: (1) a defendida pela FUNAI, organizações indígenas e movimentos de apoio aos índios que considera nulo qualquer ato ou fato visando à posse, propriedade ou exploração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios; (2) a sustentada pelo IBAMA que subdivide as terras indígenas em homologadas ou não, somente considerando nula a sobreposição de UC em TI homologada; e (3) a posição que considera viável a coexistência das sobreposições, desde que a UC criada comporte a utilização direta dos recursos naturais pelas comunidades indígenas. Conclui que a primeira posição é a que melhor se adequou à nova ordem constitucional. No caso das sobreposições existentes na TI Andirá-Maraú o regime das duas UCs não poderá se sobrepor ao usufruto exclusivo garantido aos indígenas sobre suas terras. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Proteção Ambiental”, bolsista CAPES, orientada pelo Prof. Dr. José Heder Benatti. Artigo baseado no trabalho elaborado como requisito para aferimento de conceito da disciplina “Etnologia Indígena”, ministrada pela Prof. Dra. Jane Beltrão.

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OS RECORTES NA TERRA DOS “FILHOS DO GUARANÁ”: IMPLICAÇÕES

JURÍDICAS DAS SOBREPOSIÇÕES DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO NA

TERRA INDÍGENA ANDIRÁ-MARAÚ

Luly Rodrigues da Cunha Fischer∗

RESUMO

Analisa o regime jurídico que deverá prevalecer no caso de sobreposição de terras

indígenas (TIs) e unidades de conservação (UCs) usando como referência o caso de

sobreposição da TI Andirá-Maraú e das UCs “Parque Nacional da Amazônia” e

“Floresta Nacional Pau Rosa”. Constata que não existe no ordenamento jurídico

brasileiro uma solução para o caso, sendo necessário analisar o regime jurídico das TIs e

o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) para concluir qual deverá

prevalecer no caso em estudo. O SNUC classifica as UCs em dois grupos: (a) proteção

integral e (b) uso sustentável, tendo cada UC um regime específico de fruição que afeta

o uso dos recursos naturais e, algumas vezes, a permanência de populações no seu

interior. As terras indígenas são garantidas aos índios como direito originário pela

Constituição de 1988. Identifica três hipóteses para solucionar a questão das

sobreposições de TIs e UCs: (1) a defendida pela FUNAI, organizações indígenas e

movimentos de apoio aos índios que considera nulo qualquer ato ou fato visando à

posse, propriedade ou exploração de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios; (2) a

sustentada pelo IBAMA que subdivide as terras indígenas em homologadas ou não,

somente considerando nula a sobreposição de UC em TI homologada; e (3) a posição

que considera viável a coexistência das sobreposições, desde que a UC criada comporte

a utilização direta dos recursos naturais pelas comunidades indígenas. Conclui que a

primeira posição é a que melhor se adequou à nova ordem constitucional. No caso das

sobreposições existentes na TI Andirá-Maraú o regime das duas UCs não poderá se

sobrepor ao usufruto exclusivo garantido aos indígenas sobre suas terras.

∗ Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Proteção Ambiental”, bolsista CAPES, orientada pelo Prof. Dr. José Heder Benatti. Artigo baseado no trabalho elaborado como requisito para aferimento de conceito da disciplina “Etnologia Indígena”, ministrada pela Prof. Dra. Jane Beltrão.

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Palavras-chave: TERRA INDÍGENA - UNIDADE DE CONSERVAÇÃO -

SOBREPOSIÇÃO.

ABSTRACT

This paper analyzes which norm should prevail in the cases of superposition of

Indigenous lands (TI) and protected areas (UC) in the case of superposition of the

Indigenous Land Andirá-Maraú and the National Park of Amazonia and the National

Forest of Pau Rosa. Considering there is no answer for this problem in the Brazilian

Legal System, we analyze the legal discipline of Indigenous Lands and the National

System of Protected Areas (SNUC) to conclude which one should prevail in this case.

The SNUC classifies protected areas in two groups: (a) whole protection and (b)

sustainable development, but each type of protected area has a different type of use of

natural resources, and sometimes, the existence of populations in the area. The Federal

Constitution of 1988 guarantees Indigenous lands as original rights to Indians. There are

three possibilities to solve the problems of superposition of TIs and UCs: (1) a

supported by FUNAI, indigenous organizations and support groups that, considering

null any act or fact of possession, property or exploration of lands traditionally occupied

by indigenous groups; (2) a supported by IBAMA that distinguishes demarked lands

and not demarked lands, only considering null the superposition in demarked ones; (3) a

possibility of harmonization of TIs and UCs, since the UCs allow the sustainable use of

natural resources by indigenous communities. We conclude that the first position is the

best solution for the matter in the lights of the new Constitutional Order. In the case of

superposition of the TI Andirá-Maraú and UCs it is not possible impose any restriction

to the exclusive use of natural resources guaranteed to the Indians in their lands.

KEYWORDS: INDIGENOUS LAND - PROTECTED AREAS - SUPERPOSITION.

INTRODUÇÃO

Os Sateré-Mawé, que se auto denominam “filhos do guaraná”1, são um grupo indígena

composto por aproximadamente 7.300 pessoas2 que habitam a divisa dos Estados do

1 Na língua Sateré-Mawé, do tronco lingüístico Tupi, Sateré significa “lagarta de fogo” e Mawé “papagaio inteligente e curioso”. A esse grupo indígena é atribuída a invenção da cultura do guaraná,

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Pará e Amazonas. Seus integrantes vivem, primordialmente, na Terra Indígena Andirá-

Maraú3, que foi demarcada em 1982 e homologada em 1986, perfazendo uma área total

de 788.528 hectares4.

A Terra Indígena Andirá-Maraú, apesar de ter sido homologada, apresenta uma

particularidade: de sua área total demarcada, 90.593 hectares coincidem com duas áreas

também declaradas como unidades de conservação (UCs)5 – o Parque Nacional da

Amazônia, criado em 1974, e a Floresta Nacional Pau Rosa, instituída em 2001 – o que

gera conflitos entre uma multiplicidade de agentes: índios, órgãos governamentais,

populações não diferenciadas etnicamente, ONGs, pesquisadores, etc.

A sobreposição de terras indígenas e unidades de conservação é uma questão

complexa e ainda sem solução que envolve diretamente dois elementos que são

resguardados pela Constituição Federal de 1988: os direitos indígenas (art. 231) e a

proteção do meio ambiente (art. 225). Sabe-se que historicamente tanto os direitos dos

indígenas no Brasil quanto o direito a um meio ambiente sadio para as presentes e

futuras gerações6 foram muito mais garantidos no plano formal que no material.

Apesar dos problemas enfrentados tanto na demarcação de terras indígenas

como na implementação das unidades de conservação, a situação da região Amazônica

se apresenta, ao menos numericamente, melhor que as demais regiões do país. Segundo

dados fornecidos pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON),

a Amazônia legal (que corresponde a 59% do território nacional) possui 21,1% de seu

território ocupado por terras indígenas e 15,5% de sua área total declarada como produto bastante consumido nos Estados que integram a Amazônia brasileira, bem como em outros lugares do mundo. 2 ROLLA, Alicia; RICARDO, Fany. Mapas das sobreposições. In: Terras Indígenas & Unidades de Conservação da natureza: o desafio das sobreposições. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004. p. 647. 3 Segundo o Instituto Socioambiental estima-se que cerca de 500 índios deste grupo vivam na periferia de Manaus (In Povos Indígenas do Brasil. Disponível em: <www.isa.org.br>. Acesso em: 19. ago. 2006). 4 Id. 5 Essa situação de “incongruência fundiária” não é um caso isolado. Segundo levantamentos realizados, existem, atualmente, “55 casos de sobreposição de UCs em Terras Indígenas (...) num total de 12.941.061 ha. Desses 55 casos, 31 são ocorrências de UCs de uso sustentável, 23 são ocorrências de UCs de proteção integral, e em um caso ocorre a sobreposição de uma UC de uso sustentável sobre uma UC de proteção integral e ambas sobre uma terra indígena” (ROLLA, Alicia; RICARDO, Fany. Op. cit.,. p. 592). 6 A criação de unidades de conservação no Brasil apresenta problemas de regularização fundiária. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente das 683 unidades de conservação federais inseridas no Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, apenas 4 possuem situação fundiária regularizada, contra 43 parcialmente regularizadas, 84 não regularizadas e 552 em que a questão fundiária não foi informada (Cadastro nacional de unidades de conservação. Disponível em: <http://www.mma.gov.br> Acesso em: 28 ago. 2005).

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unidade de conservação, somando um total de 36,6% de terras com algum tipo de

proteção legal7.

Considerando a porção significativa do território Amazônico destinado a terras

indígenas e unidades de conservação e a existência de sobreposições entre essas duas

áreas – que possuem muitas vezes finalidades completamente distintas –, iremos

analisar os problemas decorrentes da existência de distintas tutelas jurídicas sobre um

mesmo espaço com o intuito de responder à seguinte questão: no caso de sobreposição

de terras indígenas e unidades de conservação, o que deve prevalecer? Para ilustrar a

questão, tomaremos por base as sobreposições existentes entre a Terra Indígena Andirá-

Maraú, o Parque Nacional da Amazônia e a Floresta Nacional Pau Rosa.

Para desenvolvermos a análise proposta, dividimos o presente trabalho em três

partes. Em um primeiro momento iremos analisar as bases do Sistema Nacional de

Unidades de Conservação (SNUC), pois é essencial – para responder à pergunta que foi

posta – entender como as diferentes categorias existentes no SNUC afetam o usufruto

dos recursos naturais e a própria presença de pessoas em seu interior.

Em seguida, faremos um apanhado sobre a tutela jurídica das terras indígenas no

ordenamento jurídico brasileiro, por considerarmos que “a questão da terra se

transforma no ponto central dos direitos constitucionais dos índios, pois, para eles, ela

tem um valor da sobrevivência física e cultural”8.

Na terceira e última parte, analisaremos a questão das áreas sobrepostas que

envolvem a terra indígena Andirá-Maraú, onde teceremos considerações finais – sem ter

a pretensão de dar uma resposta conclusiva ao problema – sobre qual regime jurídico

deverá prevalecer no caso de sobreposição de terras indígenas e unidades de

conservação.

2 O SISTEMA NACIONAL DE UNIDADES DE CONSERVAÇÃO (SNUC)

7 LENTINI, Marco Fatos florestais da Amazônia 2005. Belém: Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, 2005. p. 35. 8 SILVA, José Afonso da. Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. In: SANTILLI, Juliana (Coord.) Os direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: NDI/ Fabris Editor, 1993. p. 45.

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No Brasil, a criação de unidades de conservação9 não é recente10, mas por muito

tempo foi feita de maneira aleatória11. Segundo Mercadante, de fato, até a década de 60

a criação de unidades de conservação no Brasil não obedeceu nenhum planejamento

mais abrangente12. Para adereçar o problema, foi então elaborado um projeto de lei, que

tramitou de 1992 a 2000, culminando com a edição da Lei do SNUC, resultado dos

embates entre os preservacionistas e socioambientalistas13. Com a edição desta lei, além

de terem sido criados três novos tipos de áreas, houve a unificação da terminologia a ser

utilizada para as unidades de conservação, estabelecendo critérios e procedimentos, para

sua criação e administração.

Segundo o art. 22 do SNUC, as unidades de conservação serão criadas por ato

do Poder Público, cabendo não só ao legislador, mas igualmente ao administrador e ao

juiz, através dos instrumentos cabíveis (por lei, decreto ou termo de compromisso,

respectivamente), a instituição de tais áreas. Sua alteração ou supressão, no entanto,

9 A lei n. 9.985/2000 definiu unidade de conservação como espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais com características naturais relevantes, legalmente instituídas pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção (art. 2º, I). 10 Segundo Silva, a preocupação legislativa com as unidades de conservação surgiu com a criação dos Jardins Botânicos, a começar pelo jardim botânico do Rio de Janeiro, criado pelo Alvará de 01.03.1811, seguido mais tarde pelos Jardins Botânicos da Bahia (1825), Cuiabá (1825), Aracaju (1825), Ouro Preto (1825), Olinda (1825) e São Luiz (1830), de alguns Hortos Florestais, criados a partir de 1910 (Gávea/RJ; Ubujara/CE; Ibura/SE; Lorena/SP). Fora isso, as demais formas de unidades de conservação só vieram a ser instituídas a partir da década de 30. Deu início a isso o Decreto que criou o Parque Nacional de Itatiaia (1937). Depois vieram: o Parque Nacional do Iguaçu (1939) e o Parque Nacional Serra dos Órgãos (1939). (Direito ambiental constitucional. 4.ed., 2. tir., São Paulo: Malheiros, 2003. p. 232). 11 Conforme menciona Benjamin “as áreas protegidas nacionais foram casuística e assistematicamente determinadas e administradas, reféns do seu desenho teórico, legal e prático, da diversidade de filiação filosófica e paternidade política, daí resultando, de forma inevitável, freqüente confusão de regimes, sobreposições de unidades e, pior, ineficiência na consecução de suas finalidades” (Introdução à lei do sistema nacional de unidades de conservação. In: BENJAMIN, Antônio Herman V. (Coord.). In: Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 285-286). 12 MERCADANTE, Maurício. Uma década de debate e negociação: a história da elaboração da Lei do SNUC. In BENJAMIN, Antônio Herman (Coord.). Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p.190-231. 13 A tramitação do projeto de Lei que deu origem ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação demonstrou as diferentes concepções existentes no Brasil sobre a forma mais apropriada para a proteção da natureza, acirrando os debates entre os conservacionistas (categoria na qual se enquadram os socioambientalistas) e preservacionistas. Pela concepção preservacionista a natureza deveria ser defendida contra o desenvolvimento industrial e, para isso, seria necessário a criação de “ilhas” protegidas da ação destruidora das indústrias e da vida moderna. Já a visão conservacionista apregoava que a natureza poderia ser utilizada, mas dentro de parâmetros que possibilitassem o uso racional dos recursos naturais. Esta linha de pensamento criticava o desperdício e propagava a democratização dos recursos naturais em benefício da maioria da população e não somente de uma minoria.

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somente pode ocorrer através de lei específica, ou seja, que exclusivamente aborde a

matéria14.

Observe-se que a criação de unidades de conservação, não mais pode ser

aleatória. Devem ser realizados estudos técnicos e consultas públicas prévios para a

instituição das unidades que permitam identificar a localização, dimensão e os limites

mais adequados da unidade15 (art. 22, § 2º), sendo o Poder Público obrigado a fornecer

informações adequadas e inteligíveis à população local e outras partes que tenham

interesse na questão (art. 22, §3º)16. Apenas estão isentos desse último requisito, o

processo de criação de estação ecológica e da reserva biológica. Nos termos da lei, o

Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) é

o órgão executor da implantação do SNUC, assistindo e orientando os estabelecimentos

das respectivas unidades. Outro ponto relevante desta lei foi definir a dominialidade que

cada tipo de unidade pode possuir17.

No que toca às populações tradicionais18, dependendo do tipo de unidade de

conservação a ser criada, será realizada ou não a remoção da população tradicional

14 Como ressalta Benjamin “a exigência de lei em sentido estrito vale tão só para aquelas hipóteses em que o Poder Público ameaça a existência de unidade de conservação já estabelecida, seja com supressão ou descaracterização, seja com redução de sua área”. Assim, a ampliação das unidades poderá ocorrer pelo mesmo procedimento de sua criação (Introdução à lei do sistema nacional de unidades de conservação..., 2001. p. 237). 15 A Medida Provisória n. 239, de 18 de fevereiro de 2005, convertida em lei (Lei n. 11.132, de 4 de julho de 2005), introduziu o art. 22-A e §§1º e 2º no SNUC, que faculta ao Poder Público, ressalvadas as atividades agropecuárias e outras atividades econômicas em andamento e obras públicas licenciadas, decretar limitações administrativas provisórias ao exercício de atividades e empreendimentos efetiva ou potencialmente causadores de degradação ambiental, para a realização de estudos com vistas na criação de Unidade de Conservação. Essa medida visa impedir o desencadeamento de processos de degradação de recursos no procedimento prévio de criação de unidades de conservação. 16 O Decreto regulamentador do SNUC (Decreto n. 4.340/2002), em seus arts. 2º, 3º e 4º, dispõe sobre os requisitos que devem constar no ato de criação das unidades de conservação, indicativos da denominação a ser dada às áreas criadas, a competência para a execução de estudos técnicos e de consulta pública, bem como as finalidades, definição e os requisitos da última. Os critérios de identificação dos limites da unidade de conservação no que tange o subsolo e o espaço aéreo estão previstos no art. 6º do referido Decreto. 17 Nas palavras de Figueiredo e Leuzinger das 12 diferentes espécies de unidades de conservação da natureza elencadas na Lei n. 9.985/2000, uma das unidades - reserva particular do patrimônio natural – somente admite implantação em terras de domínio privado; sete outras delas não são, a priori, compatíveis com o regime de propriedade particular – estação ecológica, reserva biológica, parque nacional, floresta nacional, reserva extrativista, reserva de fauna e reserva de desenvolvimento sustentável. Restam quatro unidades de conservação que podem indistintamente ser implantadas em terras de domínio privado ou público: monumentos naturais, refúgios da vida silvestre, áreas de proteção ambiental e áreas de relevante interesse ecológico (Desapropriações ambientais na Lei n. 9.985/2000. In: BENJAMIN, Antônio Herman (Coord.). Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 483-484. 18 Os arts. 35 a 39 do Decreto n. 4.340/2002 regulamentaram os artigos da Lei do SNUC que dispõem sobre o reassentamento das populações tradicionais.

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residente19. Nesses casos, haverá indenização pelas benfeitorias existentes, sendo as

comunidades remanejadas pelo Poder Público, para outro local e em condições

acordadas pelas partes envolvidas (art. 42). Entretanto, enquanto o remanejamento não

ocorrer serão estabelecidas normas e ações para compatibilizar os objetivos da unidade

como modo de vida das populações residentes (§2º, art. 42).

Todas as unidades de conservação devem possuir plano de manejo20 (art. 27 e

§1º), abrangendo a área de da unidade, sua zona de amortecimento e corredores

ecológicos, sendo assegurada a participação da população residente em sua elaboração

(§2º).

Cada unidade de conservação prevista no SNUC possui um regime próprio de

fruição e pode ser criada tanto pela esfera federal, estadual ou municipal. A lei definiu

12 diferentes espécies de unidades, classificadas em dois grupos: a) unidades de

proteção integral (uso indireto); e b) unidades de uso sustentável (uso direto). Neste

trabalho serão abordadas somente uma unidade de conservação de proteção integral

(Parque Nacional) e outra de uso sustentável (Floresta Nacional), pelo fato de serem

essas as categorias de unidades de conservação que estão em sobreposição com a terra

indígena Andirá-Maraú.

Segundo o art. 2º, VI do SNUC entende-se por proteção integral a “manutenção

dos ecossistemas livres de alterações causadas por interferência humana, admitindo

apenas o uso indireto de seus recursos naturais”. Esse grupo de unidades é composto

por: estação ecológica, reserva biológica, parque nacional, monumento natural e refúgio

da vida silvestre. Dentre as áreas acima, destaca-se o parque nacional, que também pode

receber a qualificação de estadual ou municipal. Em regra, são criados em áreas

extensas, quando presentes determinados atributos21. O art. 11 do SNUC, disciplina que

19 Os casos de unidades de conservação criadas em áreas de ocupação de populações nativas configuram um exemplo emblemático de sobreposição de diferentes valores, tradições e concepções acima expostos (preservacionistas x conservacionistas). Como ressalta Waldman “paisagens usualmente apontadas (...) como ‘naturais’ correspondem a áreas extensamente manipuladas pelos homens, ainda que raramente o papel das populações tradicionais seja levado em conta. Tal veredicto decorre do fato de o pensamento ocidental, introjetando como válida exclusivamente a sua modalidade de transformação da natureza, ter recusado legitimidade, quanto à ocupação do espaço, para os entendimentos pautados pelas sociedades diferentes da sua” (Meio ambiente & Antropologia. São Paulo: editora SENAC São Paulo, 2006. p. 116). 20 Plano de manejo é definido no art. 2, XVII do SNUC. Após a aprovação o Plano de Manejo deve estar disponível para consulta do público, na sede da unidade de conservação e no centro de documentação do Órgão executor (art. 16 do Decreto n. 4.340/2002). 21 Os requisitos estão previstos no art. art. 2o do Decreto n. 84.017/1979)

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o Parque Nacional tem como objetivo à preservação de ecossistemas naturais de grande

relevância ecológica e beleza cênica, possibilitando a pesquisa científica, atividades de

educação e interpretação ambiental, de recreação em contato com a natureza e de turismo

ecológico.

Essa modalidade de unidade de conservação de uso múltiplo (estudo científico e

lazer) é de domínio público. Caso sua extensão atinja áreas de propriedade particular

estas devem ser desapropriadas, surgindo o dever de indenizar por parte do Poder

Público. No interior dessas unidades, a superfície deverá ser mantida intacta, sendo

inadmissível a exploração de seus recursos naturais. Porém, tal vedação não significa

que não se possa fazer uso econômico de tais áreas. Segundo o art. 10, §2º do SNUC, é

possível sua exploração econômica desde que compatibilizada com a preservação dos

ecossistemas, como, por exemplo, através da realização de pesquisa científica e da

cobrança de ingressos para a visitação pública22.

O Parque Nacional da Amazônia, criado em 1974 (Decreto n. 73.683, de

19.12.1974, retificado pelo Decreto n 90.823, de 18.01.1985 e ampliado pelo Decreto

s/n de 13.02.2006) é formado por uma área de 945.851,00 hectares, com objetivo de

preservar vários ecossistemas amazônicos naturais, com a finalidade científica,

educativa e recreativa. Apesar de sua grande extensão, possui apenas 1 funcionário

encarregado23 e apresenta situação fundiária parcialmente regularizada, tendo sido

registrado usos conflitantes com a unidade como: invasões, posseiros, população

tradicional (indígena), extrações e explorações de produtos florestais e minerais, caça e

pesca.

Já a segunda categoria de unidades de conservação, permite o uso direito dos

recursos naturais, desde que a exploração se dê de forma sustentável24. O art. 14 do

referido diploma legal lista as seguintes unidades como de desenvolvimento sustentável:

área de proteção ambiental, área de relevante interesse ecológico, floresta nacional, 22 Arts. 32, 33 e 36, do Decreto n. 84.017/1979. A forma em que essa exploração se dará, contudo, deverá ser estabelecida através do plano de manejo, sob orientação do órgão responsável pela administração do parque. 23 O número reduzido de pessoal é uma característica das unidades de conservação no Brasil, devido aos parcos recursos destinados às unidades de conservação. Contudo, de um modo geral, a UC está em melhores condições que grande parte dos Parques Nacionais existentes, pois possui plano de manejo elaborado (mas não disponibilizado para consulta pública ainda) e o Conselho Gestor da UC instituído (Portaria n. 86, de 26.11.2004). 24 É “exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável” (art. 2º, XI, Lei n. 9.985/2000).

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reserva extrativista, reserva de fauna, reserva de desenvolvimento sustentável e reserva

particular do patrimônio natural.

A floresta nacional, tal como ocorre com o ocorre com o parque nacional, pode

receber a qualificação de estadual ou municipal, dependendo da esfera estatal que o

criar. Segundo o art. 17 do SNUC, “é uma área com cobertura florestal de espécies

predominantemente nativas e tem como objetivo básico o uso múltiplo sustentável dos

recursos florestais e a pesquisa científica, com ênfase em métodos de exploração

sustentável das florestas nativas”. É também uma área de domínio público (§1º). Suas

dimensões são variadas e esse tipo de unidade de conservação admite a permanência de

populações tradicionais (§2º) que habitassem a área anteriormente a sua criação, sendo o

uso da área determinado por plano de manejo25.

A visitação pública é admitida se for compatível com as determinações do órgão

responsável por sua administração (§3º). Já a pesquisa científica, além de permitida é

incentivada26, mas está sujeita a autorização prévia do órgão responsável pela

administração da unidade e à observância do regulamento vigente na área (§4º).

A Floresta Nacional Pau Rosa é uma área de 827.877,00 hectares no Município

de Maués (AM) (Decreto s/n de 07.08.2001), em que parte de sua extensão está em

sobreposição com a Terra Indígena Andirá-Maraú e com a Floresta Estadual de Maués.

Tem por objetivo, segundo seu Decreto de criação “promover o manejo de uso múltiplo

dos recursos naturais, a manutenção e a proteção dos recursos hídricos e da

biodiversidade, a recuperação de áreas degradadas, a educação ambiental, bem como o

apoio ao desenvolvimento sustentável dos recursos naturais das áreas limítrofes”.

Conforme informações obtidas junto ao IBAMA, trata-se de uma área ainda não

implementada, ou seja, é um caso de unidade de conservação que existe “somente no

papel”.

3 TERRAS INDÍGENAS

25 Segundo Benatti, além da exploração de recursos florestais, é possível também que seja realizado o manejo de fauna na área (Posse Agroecológica e manejo florestal. Curitiba: Juruá, 2003. p. 158). 26 Segundo Saint-Clair Santos, a pesquisa neste tipo de unidade de conservação deve ter “ênfase em métodos para a exploração sustentável das florestas nativas” (Direito ambiental: unidades de conservação, limitações administrativas. 2.ed. atual., 2 tir., Curitiba: Juruá, 2004. p. 108).

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A proteção jurídica das terras indígenas, apesar de existir desde a época do

Brasil colônia, foi pouco efetiva27. De fato, a primeira norma jurídica que tratou da

questão das terras indígenas no Brasil foi o Alvará n. 1 de 01.04.1680, que declarava

que as sesmarias concedidas pela Coroa Portuguesa não poderiam desconstituir os

direitos dos índios sobre as suas terras, que as possuíam como primários e naturais

senhores28. Esse instituto jurídico foi, posteriormente, denominado de “indigenato”29.

Segundo Leitão, todas as constituições brasileiras (art. 129, CF/1934; art. 154,

CF/1937; art. 216, CF/1946; art. 186, CF 196730, art. 231, CF/1988), ressalvada a de

1981, também reconheceram aos índios a posse dos territórios por eles originária e

efetivamente habitados31. Porém, a Constituição de 1988, diferentemente das demais,

avançou consideravelmente sobre a questão da proteção dos diretos territoriais

indígenas, já que além de reconhecer sua organização social, costumes, línguas, crenças

e tradições, garantiu-lhes o direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas,

estabelecendo o dever da União de demarcá-las, protegê-las e fazer com que sejam

respeitados todos os seus bens. Essas terras são inalienáveis e indisponíveis, e os

direitos dos grupos indígenas sobre elas são imprescritíveis (art. 231, §4º).

27 Segundo Benatti, “desde o tempo do descobrimento do Brasil, as legislações portuguesas sempre reconheceram aos índios o direito à propriedade de suas terras (pelo menos formalmente). O que se modificou no conjunto de leis até a contemporaneidade foram alguns aspectos conceituais” (op. cit,. p. 84). 28 “Esse alvará, ressalte-se, referia-se tão somente aos índios do Grão-Pará e do Maranhão. Pelo Alvará de 8 de maio de 1758, essa disposição foi igualmente estendida a todos os índios do Brasil” (TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Os direitos originários dos índios sobre as terras que ocupam e suas conseqüências jurídicas. In: SANTILLI, Juliana (Coord.) Os direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: NDI/ Fabris Editor, 1993. p. 10). 29 “Indigenato não se confunde com a ocupação, com a mera posse. O indigenato é a fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação e título adquirido. O indigenato e legítimo por si” (SILVA, José Afonso da. Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios..., 1993. p. 48). Essa determinação foi ratificada com a confirmação das sesmarias e suas transformações em propriedades plenas, o que ocorreu com as Lei de Terras (Lei n. 601 de 18.09.1850), pois se manteve a obrigação de reservar terras para a colonização dos indígenas. Segundo Carlos Souza Filho “esta reserva era (...) a reafirmação do indigenato, instituto da colônia, que vem desde 1680, com o alvará de 1º de abril, que garantia, quando das concessões de terras, sempre [ser] reservado o direito dos ‘índios’” (O renascer dos povos indígenas para o direito. Curitiba: Juruá, 1998. p. 125). 30 Todas as constituições subseqüentes mantiveram disposições similares sobre a questão, mas em 1967, as terras indígenas foram incluídas entre os bens da União (op. cit. p. 129). 31 Natureza jurídica do ato administrativo de reconhecimento das terras indígenas – A declaração em juízo. In: SANTILLI, Juliana (Coord.) Os direitos indígenas e a Constituição. Porto Alegre: NDI/ Fabris Editor, 1993. p. 66.

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O § 1º do art. 231 da Constituição em vigor dita quais são as terras

tradicionalmente32 ocupadas pelos índios: (a) as por ele habitadas em caráter

permanente; (b) as utilizadas para suas atividades produtivas; (c) as imprescindíveis à

preservação dos recursos necessários ao seu bem-estar; e (d) as necessárias a sua

reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Sobre essas terras

cabe-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nela existentes

(§2º). Por esse motivo, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse

de terras indígenas, ou a exploração dos recursos naturais nela existentes, deverão ser

considerados nulos ou extintos, salvo se forem ocupações de boa-fé (§6º).

Afora a Constituição vigente, o principal diploma legislativo que trata a questão

indígena no Brasil é o Estatuto do Índio33 (Lei n. 6.001, de 19.12.1973). A referida lei

disciplina, em seu art. 23, que posse do índio ou silvícola é a ocupação efetiva das terras

que, de acordo com os usos, costume e tradições tribais, detém e onde habita ou exerce

atividade indispensável à sua subsistência ou é economicamente útil. Esse mesmo

diploma, em seu artigo 17, diferencia o regime jurídico das terras indígenas em três

categorias: (a) as ocupadas ou habitadas por silvícolas; (b) as reservadas; e (c) as terras

de domínio das comunidades ou de silvícolas34.

A primeira modalidade é a assegurada pela Constituição de 1988, ou seja, as

terras congenitamente ou tradicionalmente ocupadas, segundo seus usos, costumes e

tradições tribais. Segundo Carlos Souza Filho,

esta ocupação tradicional determina a existência do fenômeno jurídico chamado “terra indígena” Quer dizer, basta que haja a ocupação tradicional, basta que haja posse permanente dos índios sobre a terra que a terra é indígena, com as conseqüências jurídicas próprias dentro do sistema. (...) Os direitos que advêm destas conseqüências são imprescritíveis e indisponíveis35.

32 “O tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ai modo tradicional de produção, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam etc. Daí dizer que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições” (SILVA, op. cit. p. 48). 33 O Estatuto do Índio foi recepcionado pela nova ordem constitucional, ressalvados os dispositivos que contrariem a Constituição. 34 Segundo Carlos Souza Filho, todas essas modalidades devem ser protegidas, demarcadas e todas devem ser “destinadas ao uso e posse direta dos indígenas, em todas está permitida a caça e a pesca e a extração e coleta de frutos” (op. cit., 1998. p. 129). 35 Ibid. p. 130.

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Já as terras reservadas são aquelas estabelecidas pela União e destinadas à posse

e ocupação pelos índios. Assim, entendemos que essas áreas poderão ser novas36. São

espécies de área reservada: (a) reserva37, (b) parque38, (c) colônia agrícola39 e (d)

território federal indígena40. As terras privadas41 são aquelas adquiridas pelos índios,

como qualquer outro cidadão (nos termos do Código Civil de 2002).

Segundo disposto no art. 19 do Estatuto do Índio, as terras indígenas serão

administrativamente demarcadas. O referido procedimento administrativo é disciplinado

pelo Decreto 1.775, de 08.01.1996, que determina que a demarcação seja fundada em

estudo antropológico de identificação e delimitação, elaborado por um grupo técnico

especializado coordenado por um antropólogo, formado com o fim de apurar a natureza

étnica, histórica, sociológica, jurídica, cartográfica e ambiental dessas terras (art. 2º,

§1º)42. Durante esse procedimento, em todas as fases é assegurada a participação dos

indígenas (art. 2º, §3º). No prazo de 30 dias da constituição do grupo técnico é

obrigatório aos órgãos e facultado as entidades civis, prestar informações sobre a área

objeto da identificação (art. 2º, §5º).

36 Carlos Souza Filho, sobre a questão, tece o seguinte comentário: “são terras não indígenas, destinadas aos índios. Ao contrário das ocupadas, são primeiro propriedade da União e depois, por afetação ou destinação, transformada em terras indígenas. Depois de entregue aos índios, a terra é indígena com todas as suas características jurídicas” (Ibid. p. 130). 37 A reserva, segundo o art. 27, “é uma área destinada a servir de habitat de um grupo”. 38 Parque indígena “é a área contida em terra na posse de índios, cujo grau de integração permita assistência econômica, educacional e sanitária dos órgãos da União, em que se preservem as reservas de flora e fauna e as belezas naturais da região” (art. 28). 39 Define-se colônia agrícola indígena como uma “área destinada à exploração agropecuária, administrada pelo órgão de assistência ao índio, onde convivam tribos aculturadas e membros da comunidade nacional” (art. 29). 40 Território federal indígena “é a unidade administrativa subordinada à União, instituída em região na qual pelo menos um terço da população seja formado por índios” (art. 30). 41 Segundo os artigos 32 e 33 “são propriedade plena do índio ou da comunidade indígena, conforme o caso, as terras havidas por qualquer das formas de aquisição do domínio, nos termos da legislação civil” 42 Segundo Christian Silva, “falar em “trabalho de campo” ou “levantamento de campo”, nesse caso é um eufemismo, pois a idéia antropológica de campo, enquanto campo de pesquisa ou etnografia encontra-se aqui reelaborada e ajustada aos termos e demandas do órgão indigenista (...) o campo (...) tendeu a ser construído como uma pratica de co-residência ao invés de viagem ou até residência. No contexto de uma situação de investigação e delimitação, o campo passa a ser concebido como uma investigação in loco ou levantamento. A partir dessa perspectiva, a preocupação em assegurar uma porção territorial que permita a “reprodução física e cultural do povo indígena” encontra seus limites na difícil tarefa de enxergar, em um tempo restrito e previamente estipulado, os elementos da cultura indígena e do meio ambiente físico que melhor possam se adequar à idéia jurídica e não como uma cultura tradicional indígena reproduzindo-se um dado ambiente físico” (Considerações sobre o poder e a antropologia na identificação e delimitação das terras indígenas 2005. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza; Baretto Filho, Henyo Trindade (Orgs.). Antropologia e identificação: os antropólogos e a definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/ LACED/ CNPq/ FAPERJ/ IIEB, 2005. p. 251).

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Concluídos os trabalhos, o grupo deverá apresentar relatório à FUNAI,

demonstrando a área a ser demarcada (art. 2º, §6º). Aprovado o relatório, dar-se-á

ciência as partes interessadas através de publicações no Diário Oficial e no Diário da

Unidade Federada onde localizada a terra, no prazo de quinze dias do recebimento do

relatório (art. 2º, §7º). Desde o início do procedimento até noventa dias após as

publicações do relatório, os Estados e Municípios poderão se manifestar e produzir

provas (art. 2º, §8º)43.

Após o transcurso do prazo de sessenta dias do encerramento do período de

impugnação pelos interessados, o procedimento é encaminhado ao Ministro de Justiça

que, em até trinta dias, desaprovará a identificação ou declarará através de uma Portaria

os limites da terra indígena, e determinará sua demarcação (art. 2º, §§9º e 10º). A

demarcação é homologada com a edição de Decreto44 que servirá como prova para fins

de registro do Cartório Imobiliário da localidade e na Secretaria de Patrimônio da

União.

A Terra Indígena Andirá-Maraú foi declarada como área de ocupação dos índios

Sateré-Mawé através da Portaria n. 1.216, de 06/05/1982 (D.O.U. 12.05.1982). Mas

somente em 6 de agosto de 1986, o Decreto n. 93.069 (D.O.U. 07.08.1986) é

homologada a demarcação administrativa da área indígena acima, de posse imemorial 43 Para a solução de questões relacionadas com demarcação de terras indígenas, quando não raro são apresentados títulos de posse fornecidos não sejam anteriores ao ano de 1680, se apresenta imprescindível à realização de perícia histórico-antropológica para a correta e inquestionável apuração de o local ser, ou não, habitat indígena. Sobre essa questão, grandes dúvidas existem em relação aos aldeamentos extintos, pois várias normas jurídicas determinaram que os aldeamentos indígenas se transferissem ao domínio do Estado ou da União, depois de 1891. No entanto, a dificuldade está em se estabelecer se a terra é ou não um aldeamento extinto, pois somente as terras espontânea e definitivamente abandonadas por comunidade indígena podem integrar o domínio pleno da União (art. 21, Lei n. 6.001/1973). Assim, sem dados precisos, poderíamos chegar a admitir que todas as terras do Brasil algum dia foram aldeias indígenas em algum momento e por alguma razão abandonadas. Segundo Carlos Souza Filho, esse efeito “é conhecido como a síndrome de Copacabana, isto e, a devolução para os atuais povos indígenas das terras que seus ancestrais efetivamente ocuparam na Praia Copacabana (...) A síndrome de Copacabana, porem, não pode servir de pretexto para desconhecer os direitos dos povos indígenas que efetivamente ocupam ou ocuparam e delas foram removidos” (O renascer dos povos indígenas para o direito..., 1998. p. 135). 44 “A demarcação de terras indígenas somente é necessária para sua própria proteção física, mas não se pode deixar de protegê-las juridicamente ainda que não haja demarcação (...) Isto significa que não há ato constitutivo de terra indígena, ela e se presume que sempre o foi” (op. cit. p. 149). Pode-se afirmar ao menos que nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a demarcação possui caráter meramente declaratório, pois o Estatuto do Índio assim determina em seu artigo 25: “O reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do Artigo 198 [o artigo que atualmente versa sobre a questão na Constituição vigente é o art. 231], das Constituição Federal, independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação, sem prejuízo das medidas cabíveis que, na omissão ou erro do referido órgão, tomar qualquer dos Poderes da República”.

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do grupo indígenas, abrangendo terras dos municípios de Maués, Barreirinha e

Parintins, no Estado do Amazonas e em Itaituba e Aveiro, no Estado do Pará.

Neste caso, portanto, a declaração de referida terra indígena é decorrente do

direito originário dos Sateré-Mawé previsto na Constituição, possuindo o ato

demarcatório apenas efeito declaratório, isto é, o direito à terra dos índios é congênito,

devendo este ser assegurado pelo Estado, independentemente de qualquer demarcação.

Dessa forma, por se tratar de direito originário decorrente do “indigenato” deverão ser

considerados nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por

objeto a ocupação, o domínio e a posse de áreas pertencentes às terras indígenas,

independentemente se públicos ou privados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBREPOSIÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS E

UNIDADES DE CONSERVAÇÃO: O QUE DEVE PREVALECER?

Devido aos embates que existem sobre as diferentes concepções de natureza, isto

é, entre conservacionistas e preservacionistas, até hoje ainda não foi posta em prática à

disposição do SNUC para resolver a questão das sobreposições45. Desse modo, como

não há uma resposta oficial para solucionar as 55 sobreposições identificadas entre

terras indígenas e unidades de conservação, a doutrina dividiu-se em três opiniões.

A primeira hipótese, defendida pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI),

organizações indígenas e movimentos de apoio aos índios, é resultado da interpretação

dos direitos indígenas previstos na Constituição (art. 231) que assevera que é nulo

qualquer ato ou fato visando à posse, propriedade ou exploração de recursos naturais do

solo, dos rios e lagos existentes nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios,

enquadrando-se aí a criação de unidades de conservação que se sobreponham às terras

declaradas indígenas (§6º)46. Porém, para Carlos Souza Filho não são em todos os casos

45 Segundo dispõe o SNUC, “os órgãos ambientais responsáveis pela execução das políticas ambiental e indigenista deverão instituir grupos de trabalho para, no prazo de 180 dias a partir da vigência desta Lei, propor as diretrizes a serem adotadas com vistas à regularização das eventuais superposições entre áreas indígenas e unidades de conservação”. Em outubro de 2000, o referido grupo foi criado, mas o mesmo extingui-se em 30.12.2000 sem ofertar uma resolução para a questão. 46 “Qualquer ato administrativo (...) que crie unidade de conservação especifica em terras indígenas, é nulo, por força de dispositivo constitucional (...) Assim, o ato que cria uma unidade de conservação é nulo se for praticado depois da demarcação e, extinto, se antes fora feito” (O renascer dos povos indígenas para o direito..., 1998. p. 145-146). No mesmo sentido destaca Lauriola “seguindo ao pela da letra o texto constitucional, qualquer ato que limite o direito dos índios a posse permanente e ao uso exclusivo de

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de criação de unidades de conservação devem ser consideradas nulas, especialmente

quando se tratam de locais que preexistem à ocupação dos grupos indígenas:

há determinadas situações em que a preservação deve ser feita, preferentemente de maneira suasória, nos sítios arqueológicos e paleontológicos e de cavidades naturais, porque estas, a primeira fundamental à cultura e a última à natureza, são preexistentes a ocupação indígena”47.

A segunda posição, sustentada pelo IBAMA, subdivide as terras indígenas em

homologadas ou não. Na primeira hipótese, quando as terras indígenas são

homologadas, a parte que se sobrepor será considerada nula, nos termos da

Constituição48 (§6º do art. 231). Já nos demais casos, isto é, nas terras indígenas

tradicionalmente ocupadas, nas áreas identificadas e as áreas que somente foram

demarcadas o Decreto (e também a Lei ou Decisão Judicial não mais passível de

modificação), prevaleceriam, seguindo a hierarquia de leis, sobre os demais atos

administrativos (relatório circunstanciado do grupo de trabalho entregue a FUNAI,

Portaria do Ministro de Justiça, etc.).

Para os defensores dessa posição a homologação é um ato que constitui o direito

dos povos indígenas sobre as terras tradicionalmente habitadas. Somando-se a isso, há

expressa disposição na Constituição (art. 225, §1º, III) que determina que a alteração ou

supressão de espaços territoriais especialmente protegidos somente podem ocorrer

através de lei, o que impossibilitaria a revogação do ato por Decreto49.

suas terras não tem validade jurídica, independente do tempo necessário para identificar, demarcar e homologar as Terras Indígenas. Seria, portanto, inconstitucional a regularização da sobreposição de uma UC e TI, porque as atividades dos índios, neste caso, estariam sujeitas à autorização e controle do IBAMA” (Recursos comuns indígenas ou conservação global na Amazônia? O Monte Roraima entre o Parque Nacional e Terra Indígena Raposa-Serra do Sol. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza; Baretto Filho, Henyo Trindade (Orgs.). Antropologia e identificação: os antropólogos e a definição de terras indígenas no Brasil, 1977-2002. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria/ LACED/ CNPq/ FAPERJ/ IIEB, 2005. p. 209) 47 op. cit., 1998. p. 148. 48 “O IBAMA reconhece a existência de 28 sobreposições de UC e TI, que correspondem aos casos onde a UC se sobrepõe a uma TI homologada” (LAURIOLA, Vincenzo. Recursos comuns indígenas ou conservação global na Amazônia? O Monte Roraima entre o Parque Nacional e Terra Indígena Raposa-Serra do Sol..., 2005. p. 209). 49 Nesse sentido é a decisão do STF em relação à reserva legal vinculada à modificação dos espaços territoriais especialmente protegidos, conforme se pode perceber pelo excerto do acórdão da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.540-1: “Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal” (STF – ADI-MC 3540-1 – DF. Relator: Min. Celso de Mello. Data do Julgamento: 01.09.2005. Publicação no DOU: 03.02.206). No caso em tela, como o direito dos índios sobre a terra é originário, o

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A terceira posição considera viável a coexistência das sobreposições50. Contudo,

como nem todas as unidades de conservação comportam a utilização direta dos recursos

naturais existentes em seu interior, seria necessário compatibilizar as unidades de

conservação com os usos permitidos nas terras indígenas. Conforme dispõe o SNUC,

em seu art. 55,

[a]s unidades de conservação e áreas protegidas criadas com base nas legislações anteriores e que não pertençam às categorias previstas nesta lei serão reavaliadas, no todo ou em parte, no prazo de até dois anos, com o objetivo de definir sua destinação com base na categoria e função para as quais foram criadas.

Portanto, seria legalmente possível compatibilizar unidades de conservação de

uso direito com terras indígenas51, que poderia ocorrer, segundo Leitão, somente com o

respeito aos “direito[s] dos índios de decidirem sobre o uso dos recursos existentes no

seu território, limitado tão somente pelas exceções previstas no próprio texto

constitucional e pela legislação infraconstitucional de proteção ao meio ambiente”52.

Mesmo que as terras indígenas sejam consideradas áreas de preservação

permanente, nos termos do art. 3º do Código Florestal53 (Lei n. 4.771/65) com a

ato de criação da UC seria nulo, mas a nulidade somente seria decretada após atestado o direito dos índios sobre a terra em litígio, isto é, após a homologação. 50 Segundo Ricardo e Macedo, na região amazônica “mesmo nos casos de UCs criadas em área de reconhecida ocupação indígena, a despeito da incompatibilidade legal, efetivamente a sobreposição não necessita efetivamente incorrer em enfrentamentos, podendo até representar uma proteção adicional à terra”. Porém, ressaltam que “[b]oa parte dos conflitos mais recentes de sobreposição decorrem da demarcação de TIs em UCs de uso sustentável. Nessas unidades, o lastro de desentendimentos das comunidades residentes (ou usuárias) com representantes locais dos órgãos ambientais, bem como a consolidação de direitos indígenas, tem estimulado alguns grupos a reivindicarem o reconhecimento oficial da identidade indígena. Os problemas surgem quando a demarcação de TI em área incidente a UC em questão acaba por restringir o acesso de outras comunidades (que não se reconhecem como indígenas) aos recursos naturais da área. Ou então quando o manejo regulado tendo em vista sua sustentabilidade ambiental – geralmente fruto de um longo processo de negociação entre as comunidades e destas com os pesquisadores, funcionários de UC e entidades de apoio – deixa de ser uma orientação compartilhada pela comunidade indígena, que passar a ter direitos de usufruto exclusivo do território e sem restrições para o uso tradicional dos recursos” (Apresentação..., 2004. p. 9). 51 Devido aos altos índices de desmatamento presenciados na Amazônia, poderá ser que muito em breve as unidades de conservação e terras indígenas sejam as únicas áreas florestadas remanescentes. Segundo Ricardo e Macedo, as terras indígenas têm grande relevância para a floresta: “a plotagem de imagens de satélite do Inpe de 2003 com o mapa do ISA das TIs e UCs no Brasil flagrou um índice de desmatamento de 1,14% nas Terras Indígenas e, no total de áreas protegidas (TIs e UCs) de 1,96%. Já o desmatamento for a dessas áreas foi de 18, 96%” (op. cit., p. 9, rodapé). 52 Superposição de leis e vontades – Por que não se resolve o conflito entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação?..., 2004. p. 19. 53 “Tem sentido esse dispositivo se for interpretado como coerente com o comando constitucional que considera terras indígenas as imprescindíveis à preservação dos recursos naturais necessários a reprodução física e cultural do grupo. É evidente que seria uma interpretação inconstitucional – é portanto inaceitável – traduzir este dispositivo da lei florestal como a impossibilidade do uso da floresta tanto para

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finalidade de manter o ambiente necessário para as populações indígenas54, os índios

podem usufruir da terra e dos recursos naturais nela existente.

[Portanto], os indígenas podem fazer roça, aldeia, extrair lenha e alimentos para o uso da comunidade, sem qualquer restrição (...). Por outro lado, as populações indígenas produzem excedentes que comercializam para a aquisição de bens e serviços que não dispõem internamente. A extração destes excedentes deve ser orientada segundo os padrões legais de proteção ambiental nacional, levando-se em conta as normas gerais aplicáveis55.

Assim, para o último posicionamento, nos casos das áreas sobrepostas, deve-se

observar se o uso tradicional feito pelas comunidades indígenas é compatível com os

usos possíveis das unidades de conservação que comportam o uso direito, pois o

usufruto indígena sobre as terras comporta tanto usos tradicionais como não

tradicionais, sendo que neste último caso, as leis ambientais se aplicam. Ressaltamos, no

entanto, que mesmo que algumas vezes o uso das terras indígenas e de unidades de

conservação não seja conflitante, terras indígenas e unidades de conservação não se

confundem.

Tendo em vista as três posições apresentadas, consideramos que a primeira é a

que melhor se adequou à nova ordem constitucional, pois, diferentemente das

Constituições anteriores, esta estabelece novos elementos jurídicos para fundar as

relações entre índios e não índios e garantir a proteção de seus direitos perante a

sociedade nacional. Aos grupos indígenas foi reconhecido “o direito à alteridade, isto é,

fins produtivos, ou de habitação ou ainda para gerar bem-estar na comunidade. Isso porque são terras indígenas aquelas utilizadas para as atividades produtivas da comunidade, as habitadas e as necessárias ao bem-estar, alem das necessárias a reprodução física e cultural. Esta interpretação, de acordo com a norma constitucional, está reforçada pelo Estatuto do Índio que, em seu artigo 46, autoriza o corte de madeira nas florestas indígenas consideradas de preservação permanente, condicionando-o a programas de exploração e aproveitamento das terras” SOUZA FILHO, Carlos Marés de. O renascer dos povos indígenas para o direito..., 1998. p. 144). 54 “O fato de alguns povos indígenas hoje utilizarem recursos naturais de suas terras de forma degradadora é contraria à legislação ambiental, também é fato que muito povos têm mantido as florestas existentes em suas terras intactas e protegidas da exploração predatória. É certo que as Terras Indígenas concentram grande parte das áreas consideradas de megadiversidade biológica do país, o que impõe uma abordagem diferenciada por parte da administração, a começar pela realização se parcerias entre IBAMA e FUNAI (...) não só para compatibilizar Terras Indígenas com Unidades de Conservação, mas também à implementação de atos de fiscalização e proteção dessas terras” (LEITÃO, op. cit., 2004. p. 22) 55 SOUZA FILHO, op. cit., p. 145.

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respeita-se a sua especificidade étnico-cultural, garantindo-lhe o direito de ser e

permanecer índio”56.

Ressaltamos, contudo, que ao considerarmos que os direitos indígenas se

sobrepõem à criação de unidades de conservação, não estamos afirmando que os povos

indígenas ou qualquer outra população tradicional são “ecologicamente inocentes”, isto

é, admitimos que esses grupos não são estáveis, isentos de contradições ou conflitos, ou

mesmo não propensos à mudanças e transformações57. Como qualquer outro cidadão, se

um índio ou grupo indígena, passa a desenvolver atividade econômica que tenha

impacto adverso ao meio ambiente e que não esteja diretamente ligada à sua

subsistência, deverá ser a ele imposta à observância das leis ambientais, e

conseqüentemente, de todas as sanções decorrentes de seu descumprimento.

No caso das sobreposições existentes na terra indígena Andirá-Maraú, adotando-

se o entendimento acima, o regime das duas unidades de conservação não poderá se

sobrepor ao usufruto exclusivo garantido aos indígenas sobre suas terras. Portanto, no

caso do ato de criação do Parque Nacional da Amazônia, que ocorreu alguns anos antes

da demarcação e homologação da terra indígena, este deve ser considerado extinto no

que se refere à área que se sobrepõe à terra indígena homologada. Já no caso da criação

da Floresta Nacional Pau Rosa, área ainda não implementada, o ato de sua criação deve

ser considerado nulo, no que tange à parte delimitada no Decreto de criação que

importar em sobreposição à terra indígena.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENATTI, José Heder. Posse Agroecológica e manejo florestal. Curitiba: Juruá, 2003.

56 COLAÇO, Thais Luiza. Os “novos” direitos indígenas. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.) Os “novos” direitos do Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 88. 57 “[N]ão se pode afirmar que, em qualquer circunstância, os povos indígenas são preservadores da natureza. Antes do contato com a sociedade não-índia, os povos que viviam e vivem no Brasil sempre mantiveram uma relação de sustentabilidade com a natureza, porque mudam constantemente de lugar as roças, as aldeias e os campos de caca, de tal forma que dá folguedo à natureza para que se recomponha (...) A prática sustentável exige espaço territorial amplo, quase ilimitado, e manutenção dos hábitos culturais. Hoje é avassaladora a quebra dessas condições, os contatos interétnicos com a sociedade envolvente restringem a área e, evidentemente, altera os hábitos indígenas. Com a redução do espaço vai ficando cada vez mais difícil manter a relação de sustentabilidade com a natureza e os próprios não índios começam a exigir dele atividades altamente degradadoras, como a extração de minérios e madeira” (SOUZA FILHO, op. cit. p. 146-147).

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o

, que regulamenta o art. 225, § 1 , incisos I, II, IIIo e VII da Constituição Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Disponível em: <www.mct.gov.br>. Acesso em: 12 out. 2005. COLAÇO, Thais Luiza. Os “novos” direitos indígenas. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.) Os “novos” direitos do Brasil: natureza

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