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Os negros e as negras nas peças teatrais de Martins Pena e José de Alencar, uma
sociedade de contradições no Brasil do século XIX
Andresa de Angeli Viotti (UEM)
Resumo: O presente artigo tem por objetivo discutir como as personagens negras figuravam
nas peças teatrais do século XIX. Para isso, utilizaremos duas comédias: Os Dous ou o Inglês
Maquinista (1842), de Martins Pena e O Demônio Familiar (1857), de José de Alencar. A
análise dessas peças possibilitará evidenciar a relação dialética que há entre literatura e
sociedade. Sendo a primeira obra uma Comédia de Costumes e a segunda uma Comédia
Realista, antes, será preciso apresentar as características de cada gênero, a fim de mostrar como
o teatro é uma forma artística capaz de representar os problemas contemporâneos de sua época.
Pretende-se, portanto, compreender melhor os costumes da sociedade brasileira, representados
no teatro, opondo a aparente leveza de Martins Pena ao escravagismo de José de Alencar.
Posteriormente, estabelecer-se-á relações sobre a situação do negro, enquanto escravo, em
ambos autores e como cada um representou esse período histórico de nossa sociedade. A
presente pesquisa se apoia nos estudos de Iná Camargo Costa (1998) e Décio de Almeida Prado
(1974), a fim de elucidar como o comprometimento social do teatro, enquanto manifestação
estética, pode contribuir para a conscientização política de seu público ou reforçar valores
vigentes de uma determinada época.
Palavras-chave: Teatro e Sociedade; Martins Pena; José de Alencar.
Abstract: The present article has an objective of arguing how the black characters figurates on
theatral plays in XIX century. To do that, we’ll use two comedies: Os dous ou o Inglês
Maquinista (1842), by Martins Pena, and O Demônio Familiar (1857), by José de Alencar.
Analyzing both these plays will enable evidence the dialectic relation between society and
literature. Being the first piece a Costume Comedy and the second one a Realist Comedy,
before, we’ll have to present characteristic of each genre, aiming to show how Theater is an
artistic form able to represent contemporary problems of it’s time. Intends, therefore, a better
understanding of the Brazilian society habits, represented by the Theater, opposing the apparent
lightness of Martins Pena to the slavery of José de Alencar. Later, relations about the black
people situation will be established, as slaves, in both authors, and how each one of them
represents that historic period of our society. This research is supported by the studies of Iná
Camargo Costa (1998), and Décio de Almeida Prado (1974), clarifying how the social
commitment of the Theater, as an aesthetic manifestation, can contribute to the politic
awareness of it’s audience or reinforce the values of a certain era.
Key words: Teatro e Sociedade; Martins Pena; José de Alencar.
Introdução
Na primeira metade do século XIX, estreou em solo brasileiro o teatro de Martins Pena.
Segundo Rabetti, estamos falando de um “repertório ‘inaugural’ do teatro cômico brasileiro a
partir do qual uma possível tradição teatral teria lançado suas bases, e com a qual toda a análise
de comicidade posteriormente produzida por dramaturgos brasileiros se vê obrigada a dialogar”
(2007, p. 20). A dramaturgia de Pena cria uma Comédia de Costumes brasileira, a qual “voltou-
se para o cotidiano das nossas classes populares, uma vez que o material disponível (‘grande’
sociedade e seus hábitos culturais) tinha características muito pouco propícias para a
elaboração de dramas” (COSTA, 1998, p. 2). Assim, o autor foge da maneira europeia de se
escrever teatro e arrisca-se no modo brasileiro de fazer sua comédia.
Martins Pena critica os vícios maiores da sociedade brasileira do início do século XIX:
A política do favor como mola social; a corrupção em seus diversos níveis; a precariedade
judicial; o contrabando de escravos; a servidão por dívida. Nesse sentido, observamos que suas
obras se diferenciam bastante do conceito que temos de Romantismo (escola literária em vigor
na época de Pena), ou seja, pintar a cor local e buscar uma identidade nacional a partir de um
ponto de vista idealizado e moral da burguesia. Portanto, uma das obras de nosso estudo diz
respeito a peça “Os Dous ou o Inglês Maquinista (1842)” e nosso recorte se dará na análise das
figurações dos negros e das negras representadas nessa peça, sendo que nossa critica se
realizará, todavia, pelo viés dos patrões e patroas, ou seja, da personagem branca.
A comédia ao decorrer da história da humanidade nos provou que pode servir como
expressão dos costumes e imagens da sociedade. De um lado, temos o conceito de Comédia
Baixa, a comédia de caráter farsesco, de apelo popular na qual se encaixa as obras de Martins
Pena. No entanto, segundo Arêas, esse gênero depende da aceitação do público; por isso, há
comediógrafos que optam por comédias moralizantes devido “às constantes acusações de
imoralidade que vem sofrendo através dos séculos” (2010, p. 18). Assim, a Alta Comédia surge
para se colocar no mesmo patamar e com a mesma dignidade que a tragédia. Vê-se, que a
comédia é tão rica, em conteúdo, forma e gênero, que permite tanto a expressão popular quanto
a das classes “superiores”, podendo ser moralista ou contra a moral vigente. Na França, Molière
se destacou como representante da Alta Comédia. Segundo Magaldi (2004), o autor trocou o
herói pelo homem comum, afinal a sociedade ideal, aquela valorizada pelo trágico do
classicismo francês não fazia referência à sociedade real vivida pelo homem. Molière buscou,
também, comprovar a superioridade da Comédia:
Talvez não se exagerasse considerando a comédia mais difícil que a tragédia.
Porque, afinal, acho bem mais fácil apoiar-se nos grandes sentimentos,
desafiar em versos a Fortuna, acusar o Destino e injuriar os Deuses do que
aprender o ridículo dos homens e tornar divertidos no teatro os defeitos
humanos (MOLIÈRE apud ARÊAS, 1990, p. 58).
Deste modo, o nome do autor francês ganha notória referência e importância no campo
da Comédia Alta. Assim como o mesmo bebeu em fontes como a Comédia Nova Latina e a
Commedia dell’Arte, muitos outros autores se basearam em sua obra. No Brasil, José de
Alencar, autor que também analisaremos, buscará referências nessa Alta Comédia para nos
apresentar o que aqui ficou conhecido como Comédia Realista. Como exemplo, podemos citar
sua obra O Demônio Familiar (1857) (COSTA, 1998), que reforça um discurso a favor dos
valores burgueses. Nosso estudo se atentará a personagem de Pedro, o escravizado da peça.
Assim sendo, realizaremos um estudo que busque ressaltar as diferenças entra as obras
“Os Dous ou o Inglês Maquinista” (1842), de Martins Pena e “O Demônio Familiar” (1857),
de José de Alencar. Sendo a primeira uma Comédia de Costumes, ou seja, gênero não conivente
com os ideais do romantismo, até então, em vigor e a segunda sendo a obra inaugural do gênero
Comédia Realista no Brasil, esta sim conivente com os ideais do Realismo que começará a
aparecer em solo brasileiro.
Teatro e sociedade – romantismo e realismo no brasil do século XIX
Na primeira metade do século XIX, percebemos uma literatura que busca o caminho do
romantismo, então sucesso em países europeus, com tendências e discursos que valorizavam o
nacionalismo. No entanto, em sua sagacidade, Martins Pena, percebeu que o conteúdo em solo
brasileiro era pouco propício para a elaboração de grandes dramas românticos. Afinal, falamos
de um país que não apresentava uma burguesa tão consolidada como Paris, por exemplo.
Segundo Décio de Almeida Prado, em seu trabalho “Os demônios familiares de José de
Alencar”,
Martins Pena, romântico se considerarmos o período em que viveu, não o é
quando escreve suas farsas, em que parodia frequentemente não só os
arroubos passionais, mas os próprios métodos do dramalhão. Alencar deixa-
o de lado, assim como Macedo, por ver neles o exemplo da comédia sem
qualquer preocupação superior, “visando antes ao efeito cômico do que ao
efeito moral”, como era de se esperar numa escola que, tolerando
perfeitamente a comicidade, não lhe atribuía valor humano e literário maior,
a não ser sob a forma do grotesco ou da ironia já vizinha do desespero (1974,
p. 29).
Desse ponto de vista, observamos que Prado está mais afinco com os ideais de Alencar
aos de Pena e nos explica que o primeiro tinha como princípio o efeito moral antes do efeito
cômico. José de Alencar buscava, então, estabelecer as regras da sociedade através de um ideal
burguês. A comédia seria como um pano de fundo que devido ao seu alcance popular seria
ideal para a expansão desse conteúdo. Percebemos assim o descrédito à Martins Pena por parte
do próprio Alencar, a julgar que Pena:
Admirável observador, ele fixou costumes e características que têm
continuado através do tempo, e retratam as instituições nacionais. Retrato
melancólico e primário, sem dúvida, mas exuberante de fidelidade. Em pleno
surto do movimento romântico, idealizador de um nacionalismo róseo,
Martins Pena antecipa, com noção precisa, alguns dos nossos traços
dominantes, ainda que menos abonadores (MAGALDI, 2004, p 42.).
Embora o Romantismo ainda estivesse em vigor, em 1855 o teatro Ginásio Dramático
que havia sido recém-criado começou a colocar em palco brasileiro algumas das peças
francesas da então chamada “escola realista”. Essa nova escola que teve seu apogeu juntamente
com o da burguesia francesa, abordava temas apoiados nos costumes e problemas de tal classe.
Segundo João Roberto Faria, estamos falando do tipo de peça que,
[...] por suas características formais e pelos assuntos que discutia em
cena, podia ter um enorme alcance social, no sentido de educar a
plateia, mostrando-lhe a superioridade dos valores éticos da burguesia,
tais como o trabalho, a honestidade, o casamento, a família [...] (2012,
p. 159).
É nesse campo, então, que se fixará a comédia “O Demônio Familiar”, de José de
Alencar, com a preocupação de apresentar ao público uma visão moral e idealista a partir do
ponto de vista da burguesia.
Da comédia baixa e comédia alta
Pela necessidade de suprimir o conteúdo por se tratar de um recorte específico de um
trabalho que está em processo, não caberá aqui realizar um panorama histórico pela comédia
como gostaríamos. No entanto, vale ressaltar que a comédia está sempre muito próxima a vida
social. Segundo Arêas (1990), sendo a comédia muito próxima da vida cotidiana e por seu
caráter de apelo popular, ela dependia, imprescindivelmente, da aprovação do público. Como
muitas vezes as comédias, classificadas como Comédias Baixas, apresentavam situações
farsescas, utilizando do ridículo da vida para criticar situações e costumes sociais, não agradava
pessoas que estavam acostumadas com a forma do drama, causando estranhamento. Nesse
sentido, temos o expoente do que seria o drama em sua forma risível: a Comédia Alta. Gênero
que trabalha com o jogo de palavras, os chistes e tem por finalidade apresentar valores
burgueses e moralistas, fazendo rir “sem fazer corar”, como entende José de Alencar (apud
COSTA, 1998).
Nesse sentido, de um lado temos Martins Pena que através da obra “Os Dous ou o Inglês
Maquinista” (1842), critica os costumes de uma sociedade escravocrata em chave cômica, no
entanto, não menos engajada por isso: “Na preocupação com a qual escreve sempre ao estímulo
da realidade à volta, Martins Pena, mesmo quando toma um assunto eterno e convencional do
teatro, pinta um retrato de sua época” (MAGALDI, 204, p. 45). Do outro lado, temos “O
Demônio Familiar” (1857), de José de Alencar que ao escrever sobre uma realidade idealizada
está nos ensinando como viver e resolver as situações, afirmando, assim, valores burgueses.
As negras e os negros nas obras teatrais de Martins Pena e José de Alencar. um estudo
das peças Os Dous ou o Inglês Maquinista e o Demônio Familiar
Martins Pena, em sua peça Os Dous ou o Inglês Maquinista (1842), realiza críticas
à corrupção, à classe alta e à escravidão, ainda que o enredo principal não seja a respeito dessas
críticas que o permeiam. Elas aparecem dando subsídios as outras histórias que aparecem em
primeiro plano. Naturalizando, como veremos, a presença de escravos e escravas na sociedade.
Nas palavras de Arêas,
Não é raro Martins Pena ser comparado a Debret na pintura dos
costumes do Brasil, e é bom que nos lembremos que vários membros
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) reagiram mal a
alguns aspectos abordados pelo pintor francês na Viagem pitoresca e
histórica ao Brasil, "pela referência direta à escravidão com cenas, por
exemplo, de castigos a escravos". Acho que aí está o nó da questão. A
aparente despretensão dos trabalhos dos dois artistas, até pelas
dimensões e o meio que escolheram — pequenas aquarelas e
minúsculas comédias ou farsas —, revela um olhar independente sobre
a sociedade brasileira, sem a idealização da elite. Era impossível a
qualquer observador aproximar as cidades de Paris e Rio de Janeiro,
esta com as ruas percorridas por enxames de africanos, com
escarificações no rosto, trabalhando e cantando para ritmar o esforço.
"O escravo estava por toda parte. A primeira coisa que ocorria a alguém
que melhorava de vida, até mesmo a um ex-escravo agora liberto, era
adquirir um escravo (2006, p. 204).
Nesse sentido, nessa obra de Martins Pena os negros e as negras são, o que podemos
chamar de ausentes/presentes, como percebemos logo na primeira cena, quando temos contato
indireto com um negro, que é o vendedor de Manuês e do qual só ouvimos a voz em cena.
Assim, observamos que quando um negro aparece em cena nessa obra, ele está ao fundo ou na
porta, não fala e não executa ações que influenciam diretamente no desenvolvimento da trama,
sendo que suas principais participações cênicas ocorrem para servir a patroa ou o patrão, sendo-
lhe permitido dizer apenas “sim, senhora” ou “sim, senhor”. Ou seja, sempre em segundo plano,
dando subsídios para quem está em primeiro plano. Quando, porventura, há alguma fala um
tanto mais extensa da escravizada ela não aparece fisicamente em cena, como veremos adiante.
Vemos que nessa obra de Martins Pena os negros e as negras estarão sempre em plano
de fundo, jamais como protagonistas de cenas. No entanto, aparecerão muitas vezes, seja para
buscar os vestidos, preparar o chá ou para trazer uma criança em um cesto. Devido a isso, são
extremamente importantes e necessários nessa obra, principalmente, para conhecermos o
caráter das demais personagens e compreendermos a crítica de Pena à sociedade burguesa.
Percebemos desta maneira, que para além das ações e diálogos principais da peça, Pena faz
questão de evidenciar a presença da escravidão em sua obra, enquanto retrato do Brasil de sua
época. Presença esta silenciada pela burguesia, no entanto, constante na manutenção de seu
poder.
Na cena VI, chegam Eufrásia, Cecília, João do Amaral, um menino de dez anos, uma
negra com uma criança no colo e um moleque, como é descrito na rubrica. Em meio a conversas
sociais de assuntos como os vestidos que Eufrásia veio buscar na casa de Clemência, escuta-se
um barulho na cozinha de algum vidro se quebrando. Nesse momento, então, temos o seguinte
diálogo:
CLEMÊNCIA - O que é isso la dentro?
VOZ LÁ DE DENTRO - Não é nada senhora.
CLEMÊNCIA- Nada? O que é que se quebrou lá dentro? Negras!...
VOZ LÁ DE DENTRO - Foi o cachorro.
CLEMÊNCIA - Estas minhas negras!... Com licença. CLEMÊNCIA
SAI
EUFRÁSIA - É tão descuidada esta nossa gente!
JOÃO DO AMARAL - É preciso ter paciência. OUVE-SE DENTRO
BULHA COMO DE BOFETADAS E CHICOTADAS Aquela pagou caro...
EUFRÁSIA - GRITANDO - Comadre, não se aflija.
JOÃO DO AMARAL - Se assim não fizer nada tem.
EUFRÁSIA - Basta, comadre perdoe por esta. CESSAM AS
CHICOTADAS. Êstes nossos escravos fazem-nos criar cabelos brancos.
ENTRA CLEMÊNCIA ARRANJANDO O LENÇO DO PESCOÇO E
MUITO ESFOGUEADA.
[...]
CLEMÊNCIA - Eu não gosto de dar pancadas (PENA, 1842, p. 12).
Nos é exposto então, o caráter de Clemência, mulher da classe média alta que deixa a
visita na sala de estar e sai para “dar uma lição na escrava”. Enquanto Eufrásia diz: "Perdoe
por esta", o que nos faz compreender que não é a primeira vez que Clemência bate em suas
escravas e escravos. E sabemos pela rubrica que não se tratou apenas de alguns “tapinhas” (não
que isto justifique o ato), mas que a escrava levou uma surra, já que “OUVE-SE DENTRO
BULHA COMO DE BOFETADAS E CHICOTADAS”, e Clemência volta à cena, ela está
ESFOGUEADA, cansada e arrumando o lenço (PENA, 1842, p. 12). Assim, nos é evidenciado
quem, realmente, é a Clemência que ainda quando a escrava justifica dizendo que foi um
cachorro quem quebrou o prato, arremata colocando a culpa na escrava, pois esta deixou o
prato à beira da mesa.
Encontramos em Martins Pena ainda, semelhanças de muitas outras comédias,
características, inclusive, de Comédias Altas. Quando Clemência diz que “não gosta de dar
pancadas”, assistimos aqui, por exemplo, ao jogo de palavras, em que a fala desmente a
realidade da cena e da personagem. Como o nome "Clemência" ser contrastante com as atitudes
da mesma, ou mesmo ela dizendo não gostar de dar pancadas, quando sabemos que não é a
primeira vez que isso acontece (COSTA, 1998).
E mais uma vez percebemos que a escrava não apareceu em cena, apenas se escutou
sua voz. Mas, ela é personagem essencial para entendermos e conhecermos quem, de verdade,
é Clemência. Nessa passagem, a partir de nossa leitura, baseada pelo conceito de Comédia de
Costumes que trouxemos, defendemos que não se ri da escrava que apanhou, mas das atitudes
contrastantes de Clemências, rimos então, da patroa, ou, pelo menos, pretendia-se isto a julgar
pelas características de Martins Pena.
Na cena XIII, Negreiro presenteia Clemência com uma meia cara. Nesse momento, ele
traz um escravo para buscar um bebe negro em um cesto. E, quando vão descobrir o rosto do
pequeno bebe, na rubrica diz que a frente do cesto deve ficar livre, pois todos os espectadores
devem ver esse momento. Ou seja, fazem do fato da criança ser negra um espetáculo, como se
fosse algo degradante. Utilizam a criança negra como um objeto, avaliando seus dentes, seu
peso, suas feições em geral. E sabemos também, pelas falas de Negreiro, um comerciante de
escravizados, que este é mais um negro que veio de "contrabando". Inclusive, do navio que
pegaram na barra, citado no início da peça.
A título de curiosidade, Vilma Arêas nos conta que a peça foi ao palco em 1845, sendo
imediatamente censurada pela Câmara dos Deputados, pois “aparece em cena um
contrabandista de africanos trazendo um debaixo de um cesto” (2006, p. 203). Ou seja,
podemos dizer neste caso que o poder não suporta o riso, as autoridades não conseguiram ver
a realidade do contrabando com o desrespeito às leis em evidência, no palco. Um dos motivos
que nos leva a acreditar que as obras do comediógrafo apresentam o intuito de levantar críticas
sociais e não apenas pintar os costumes brasileiros como uma fotografia.
Enquanto Martins Pena, na linguagem da comédia popular, punha no
palco estratos das classes subalternas, inclusive escravos, todos
lançados numa furiosa luta pela sobrevivência - sempre de muito mau
gosto para os corações "bem formados" -, José de Alencar, com os
"progressos da arte moderna", desconsiderava os usos e costumes
"dessa gente" em favor dos problemas (mais "família") da "sociedade
polida" e, ainda por cima, com conhecimento da "fina cortesia de
salão". Em poucas palavras, tratava-se de "selecionar melhor", com um
pouco mais de "bom gosto", fórmulas, temas, assuntos, etc., para dar
ao teatro feito por aqui a mesma "polidez" observada por Alencar, ao
correr da pena, nas atitudes da "gente de bem" nos passeios, festas,
compras, namoros, maneiras de vestir, de falar, etc. (COSTA, 1998, p.
03)
Como perceberemos a seguir na peça “O Demônio Familiar”, de José de Alencar, o
assunto em questão é o casamento, pautado na estrutura patriarcal.
Temos um escravo, de nome Pedro, que atrapalha ingenuamente o casamento de seu
senhor, apenas pela vontade que tem em ser cocheiro e vestir um libré. Não há maldade nas
atitudes de Pedro, no entanto, o demônio que dá origem ao título faz jus ao escravo, que na
visão burguesa da época, entende sua presença no núcleo familiar como destrutiva e
desconstitutiva à família. Desse ponto de vista, Faria (2012) nos diz que a peça é abolicionista,
mas não no âmbito humanitário da luta por igualdade racial, ao contrário, ela nos mostra como
a escravidão é ruim para o patrão e a patroa, para a estrutura familiar.
Para Décio de Almeida Prado, a peça é abolicionista, mas que vê a questão pelo lado
do patrão. Ou seja, a escravidão não é criticada por questões de injustiças sociais ou
humanitárias que tem por objetivo a igualdade social, a escravidão é condenada, em primeiro
lugar, pelo mal que faz ao núcleo familiar burguês. Assim, Pedro, no papel de escravo,
introduziu na casa de Eduardo a mentira, o mexerico, a intriga. Não se limitou a criar intrigas
familiares e inimizades para tentar desfazer os casamentos. José de Alencar, nos apresenta um
jovem escravizado que faz todos esses rebuliços pensando em seu interesse próprio, mesmo
que sútil e ingênuo: se tornar cocheiro e usar um libré.
Enfim, devolver a "chusma" a seu devido lugar - a saber, à platéia, de
onde poderia aprender "boas maneiras" e "delicadezas de sentimentos"
com os exemplares do drama e da comédia dramática que já vinham
anunciados na própria obra de José de Alencar. Esta é uma faceta do
processo ideológico da modernização conservadora em andamento
naqueles tempos, muito bem insinuada por Flávio Aguiar quando
identifica o intuito "moralizador" da dramaturgia alencariana: "Alencar
explica o nascimento da sua veia de dramaturgo em termos moralistas
(...): o estopim foi o fato de ver senhoras rirem diante de uma farsa que,
segundo ele, não primava pela moralidade e pela decência da
linguagem. Daí nasceu-lhe o impulso de fazer rir sem fazer corar; e
deste, nasceu sua primeira peça (...) Em termos de representação,
portanto, estamos diante do mesmo impulso que levara Alencar a
elogiar o Ginásio ao correr da pena: ele preza a circunspecção, a
elegância na representação, tudo longe do vulgar (COSTA, 1998, p.
04).
Nesse sentido, destacamos a última cena, na qual percebemos nas falas de Eduardo,
conceitos liberais no que se refere ao trecho em que se desenvolve sua visão em relação ao
desejo de Pedro enquanto um escravo. Quando Eduardo lhe dá a liberdade para que possa ser
responsável por suas próprias ações, suas desgraças e seus infortúnios, não o faz como presente,
mas como castigo. O que podemos relacionar aos ideários da doutrina defensora da
meritocracia. Percebemos ainda, o caráter conservador das falas de Eduardo em relação à
Pedro, em sua busca por consertar a “moralidade” de sua família. Portanto, temos o retrato do
pensamento burguês da segunda metade do século XIX, que de certa maneira, relaciona uma
postura conservadora no que se refere à moral e aos bons costumes com o liberalismo
econômico do sistema capitalista:
EDUARDO - Por que, minha irmã? Todos devemos perdoarnos
mutuamente; todos somos culpados por havermos acreditado ou
consentido no fato primeiro, que é a causa de tudo isto. O único
inocente é aquele que não tem imputação, e que fez apenas uma
travessura de criança, levado pelo instinto da amizade. Eu o corrijo,
fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém
expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de
minha casa. (A PEDRO) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua
punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente
sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas
ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os
nobres sentimentos que hoje não compreendes. (PEDRO beija-lhe a
mão.) (ALENCAR, 1857, p. 94)
Desse ponto de vista, entendemos que a atitude de Eduardo não foi a de amigo, mas a
de patrão e chefe de família, que precisa cuidar do bem estar de todos e todas da casa sem,
principalmente, destruir o núcleo familiar e desvalidar o sobrenome da família.
As questões que podemos problematizar nessas circunstâncias seriam: O que pode fazer
um negro, recém alforriado, em nossa cultura oitocentista? Em que os homens livres, em geral,
ou eram brancos e senhores de engenho, ou caixeiros. Qual a posição social que sobraria para
um negro – ex escravizado, em uma sociedade que predominava o domínio do homem brancos?
Considerações finais
Procuramos, nesse breve artigo, ressaltar como a comédia é um gênero rico em forma
e em conteúdo, importante ao teatro e a sociedade, esteticamente aberto às discussões dos mais
variados contextos das sociedades nas quais se insere, denunciador das contradições sociais e,
portanto, não inferior há nenhum outro gênero teatral. Seja por sua articulação com o meio
social, seja enquanto gênero literário. Devido a seu grande apelo popular, a comédia esteve
presente em momentos históricos, econômicos e sociais decisivos, sendo ponte reflexiva por
meio do riso.
Como observamos, portanto, a comédia, gênero tão complexo, pode servir para críticas
aos costumes de uma sociedade escravocrata, preconceituosa e corrupta, como também pode
ser utilizada como ensinamento dos valores burgueses e morais. Seu grande apelo popular,
propicia essa vivência.
Por se tratar de um trabalho que está em processo, levantamos mais indagações do que
conclusões. Mesmo tendo observado que, enquanto nas obras de Pena rimos do caráter das
personagens brancas, que só conhecemos devido as figurações dos negros e das negras, na qual
apresentam ações que contradizem com suas palavras. Na obra de Alencar rimos da
ingenuidade do escravizado, ou seja, rimos do próprio negro, individualizado e apresentado
como o problema do núcleo familiar. Não chegamos a definir qual riso seria o mais sensato,
pois em nenhum dos casos a escravidão pode ser justificada!
Referências
ALENCAR, José de. O demônio familiar, 1857.
ARÊAS, Vilma. A Comédia no Romantismo Brasileiro: Martins Pena e Joaquim Manuel de
Macedo. São Paulo: CEBRAP, 2006.
______. Iniciação à Comédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
COSTA, Iná Camargo Costa. A Comédia Desclassificada de Martins Pena, in: Sinta o drama.
Petrópolis: Vozes, 1998.
FARIA, João Roberto (dir.). História do Teatro Brasileiro I – Das origens ao teatro
profissional das primeiras metades do século XX. São Paulo: Perspectiva: edições sescsp, 2012.
MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Global, 2004.
PENA, Martins. Os dous ou o inglês maquinista, 1842.
PRADO, Décio de Almeida. O Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2009.
______. Os Demônios Familiares de José de Alencar. São Paulo: Revista USP. 1974.
RABETTI, Maria de Lourdes (Org.). Teatro e Comicidades 3: facécias, faceirices e
divertimento. Rio de Janeiro: 7letras, 2010.