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OS MILITARES DE ESQUERDA COMO MONSTROS POLÍTICOS: A PARTIR DA RESSIGNIFICAÇÃO DA MEMÓRIA DE 35 Resumo A presente escritura tem por objetivo esboçar al- gumas questões, centradas no processo militar de monstrualização da esquerda política a partir da ressignificação da memória de 35. Com efeito, pretende- mos historiar o papel estratégico da banalização dos co- munistas, ou seja, a sua efetiva transformação em monstro político – em suma, a história da sujeição do corpo “anor- mal”, a fim de fomentar a coesão total no interior da caser- na. Palavras-chave: Militares. Esquerda. Memória. Abstract The present writing has the aim to outline some questions, centered in the military monsterization process of the left polictics starting at the re-signification of the 35 memory. As a matter of fact we intend to historize the strategical role of the process of turning common the comunists, that is, their effective transformation into polictic monsters – in short, the history of the acceptance of the “abnormal” body, in order to stimulate the total cohesion in the barracks interior. Keywords: Military. Left. Memory * Ronaldo Queiroz de Morais, Doutorando em História Social (USP) e Professor de História da Faculdade Cenecista de Osório (FACOS-RS) e do Colégio Militar (POA-RS). RONALDO QUEIROZ DE MORAIS * “(...) Creio que a reativação desses temas [monstrualização] e o novo desenho da selvageria bestial estão ligados à reorga- nização do poder político, a suas novas regras de exercício.” Michel Foucault “Representar uma cultura prévia como monstruosa justifica seu deslocamento ou extermínio, fazendo com que o ato de extermínio apareça como heróico”. Jeffrey Jerome Cohen “Criou-se o estereótipo de que contra co- munistas, e no conceito eram abrangidos todos os que defendiam interesses nacio- nais e os princípios democráticos, tudo era válido: tratava-se não de gente, de criatu- ras humanas, mas de animais perigosos, contra os quais todos os processos eram lícitos”. Nelson Werneck Sodré A presente escrita pretende discorrer, ainda que de forma preliminar, sobre a His- tória Política dos Militares do Exército bra- sileiro e sua relação com o pensamento e as práticas políticas de esquerda. Esboçamos a presença de militares de esquerda mais do que uma esquerda militar, pois a insti- tuição militar carrega, em seu processo de modernização, um élan significativamente conservador – ideologicamente mais próxi- mo de Hobbes do que de Marx (Huntin- gton, 1996). Desse modo, é a visão essenci- SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 20, n. 01, jan/jun 2007, 127-139

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OS MILITARES DE ESQUERDA COMO MONSTROS POLÍTICOS: A PARTIR DA RESSIGNIFICAÇÃO DA MEMÓRIA DE 35

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OS MILITARES DE ESQUERDA COMOMONSTROS POLÍTICOS:

A PARTIR DA RESSIGNIFICAÇÃO DA MEMÓRIA DE 35

Resumo

A presente escritura tem por objetivo esboçar al-gumas questões, centradas no processo militar demonstrualização da esquerda política a partir daressignificação da memória de 35. Com efeito, pretende-mos historiar o papel estratégico da banalização dos co-munistas, ou seja, a sua efetiva transformação em monstropolítico – em suma, a história da sujeição do corpo “anor-mal”, a fim de fomentar a coesão total no interior da caser-na.

Palavras-chave: Militares. Esquerda. Memória.

Abstract

The present writing has the aim to outline somequestions, centered in the military monsterization processof the left polictics starting at the re-signification of the35 memory. As a matter of fact we intend to historize thestrategical role of the process of turning common thecomunists, that is, their effective transformation intopolictic monsters – in short, the history of the acceptanceof the “abnormal” body, in order to stimulate the totalcohesion in the barracks interior.

Keywords: Military. Left. Memory

* Ronaldo Queiroz de Morais, Doutorando em História Social(USP) e Professor de História da Faculdade Cenecista de Osório(FACOS-RS) e do Colégio Militar (POA-RS).

RONALDO QUEIROZ DE MORAIS*

“(...) Creio que a reativação desses temas[monstrualização] e o novo desenho daselvageria bestial estão ligados à reorga-nização do poder político, a suas novasregras de exercício.”

Michel Foucault

“Representar uma cultura prévia comomonstruosa justifica seu deslocamento ouextermínio, fazendo com que o ato deextermínio apareça como heróico”.

Jeffrey Jerome Cohen

“Criou-se o estereótipo de que contra co-munistas, e no conceito eram abrangidostodos os que defendiam interesses nacio-nais e os princípios democráticos, tudo eraválido: tratava-se não de gente, de criatu-ras humanas, mas de animais perigosos,contra os quais todos os processos eramlícitos”.

Nelson Werneck Sodré

A presente escrita pretende discorrer,ainda que de forma preliminar, sobre a His-tória Política dos Militares do Exército bra-sileiro e sua relação com o pensamento e aspráticas políticas de esquerda. Esboçamosa presença de militares de esquerda maisdo que uma esquerda militar, pois a insti-tuição militar carrega, em seu processo demodernização, um élan significativamenteconservador – ideologicamente mais próxi-mo de Hobbes do que de Marx (Huntin-gton, 1996). Desse modo, é a visão essenci-

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almente negativa do homem que mobilizaas forças militares. Assim sendo, não foi di-fícil para a chefia militar produzir ilaçõesque, por meio da metáfora monstro, banali-zavam a presença do militar de esquerda nointerior da caserna e a esquerda como umtodo; e são os efeitos estratégicos dessabanalização que pretendemos historiar.

A presença de militares de esquerdano Brasil fica bem nítida com a primeira ten-tativa de Revolução Comunista em 1935 e,fundamentalmente, foi esse evento que ser-viu ao longo da História do medo comunis-ta, como experiência real de luta contra a“exótica” ideologia marxista.

Por certo, o movimento armado queenvolveu, em novembro, as cidades de Na-tal, Recife e Rio de Janeiro foi, peremptori-amente, uma sedição militar – uma repro-dução da cultura revolucionária tenentista,ou seja, a idéia força de que os militares te-riam como função a ação política moderni-zadora – uma vanguarda capaz de transfor-mar o país. O que não era, em absoluto, umaidéia exclusiva dos militares de esquerda.Em outras palavras, a história republicanabrasileira foi marcada, por um bom tempo,pela ideologia da ação político-militar comocondição sine qua non para a efetiva mo-dernização do país – tanto a Direita como aEsquerda esperavam pela solução militar.

O que interessa expor, não é o eventode 35 em si, mas a utilização desse eventocomo matriz ideológica presente nas práti-cas político-militares. No limite, o relevan-te são as relações de poder em contexto deinvenção do Exército como força coercitivanacional e de modernização do Brasil a par-tir dos anos 30. Um dos mais importantespesquisadores sobre o Exército brasileiro –Celso Castro (2002) – já apontou a IntentonaComunista de 35 como um elemento im-portante na invenção do moderno Exércitobrasileiro. Em face disso, partindo desse“evento” importante, pretendemos abordara ressignificação da sublevação comunistacomo estratégia militar ideológica na buscada coesão total no interior da caserna – aproblematização se concentrará na transfor-mação da esquerda em “monstro político”,

tendo como fontes os discursos dos ChefesMilitares1 diante da rememoração do even-to.

O conceito de “monstro político” foirecolhido da obra “Os Anormais” de MichelFoucault (2001). Nesse texto podemos per-ceber as estratégias modernas de sujeiçãopolítica no interior do discurso e das rela-ções de poder, a fim de banalizar o “outro”e transformá-lo em monstro-político. Estra-tégia corrente na luta da burguesia contra opoder do rei, pois de acordo com Foucault(2001): “o primeiro monstro-político foi ocorpo do rei”.

Realmente, quando nos deparamoscom os documentos do Exército referentesaos comunistas e a esquerda em geral per-cebemos que os militares apresentavamaqueles corpos como verdadeiras bestas –seres monstruosos que pretendiam solaparo mundo burguês-cristão. A partir daí come-çamos a impor uma leitura dos monstroscomo categoria político-cultural. Em outrostermos, a monstrualização do “outro” nãose trata apenas de uma pura e simplesbanalização, mas carrega em si uma estraté-gia de exclusão política, justificada amiúdepelo uso da violência – pois contra os mons-tros tudo é possível.

E é a partir dessas questões e da lei-tura da historiografia e dos documentos doExército que pretendemos exercer nossoofício, naquilo que Jacques Le Goff (1996)coloca como tarefa do historiador, o de trans-formar o documento em monumento, ouseja, no documento encontra-se um monu-mento erguido como prática de poder.Destarte, convém ao historiador, da fragili-dade e do silêncio do documento, represen-tar, na forma de texto, o estrondo do monu-mento como real social vivido, para assimpoder compreender a estratégia política desua elaboração e de sua conservaçãoinstitucional.

1 Estas fontes encontram-se no livro “Lembrai-vos de 35!” escritopelo General Ferdinando de Carvalho e publicado pelaBiblioteca do Exército em 1981.

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O militar comunista comomonstro político

Num sentido lato, podemos apresen-tar um recorte teórico interessante. A pro-pósito, Michel Foucault (2001) percebe, emseu trabalho de historiador, que referenteaos séculos nos quais os burgueses assumemposições privilegiadas de poder – Revolu-ções Burguesas – há a transformação, pri-meiramente, do rei em monstro político edepois dos trabalhadores em monstro popu-lar. Não convém discorrer sobre seus exem-plos documentais e argumentos teóricos(que são muitos), mas o que chama a aten-ção é a estratégia política burguesa quemodernamente transforma tudo que amea-ça a ordem estabelecida em “monstro”. Detodos os monstros modernos o “monstropolítico” é o mais perigoso, assim o sobera-no despótico e o povo revoltado são as duasfiguras anormais – monstruosas – o rei por-que está acima das leis e o povo porque viveabaixo delas. Efetivamente, o criminosomonstruoso é aquele que rompe o pactosocial e ameaça a ordem (Foucault, 2001),enfim, aquele que visa quebrar a lei.

Em suma, o primeiro monstro políti-co significativo no Exército foi o monstromilitar de esquerda, aquele que através de“Intentona Comunista de 35”, ou melhor,de um intento louco – um motim militar –ameaçou a ordem na caserna investindo con-tra a hierarquia e a disciplina. Não foi o pri-meiro caso na instituição; no entanto o even-to foi elaborado ideologicamente a fim deproduzir na tropa um sentido monstruoso.Dessa forma, a traição aos irmãos de arma, oataque na escuridão da noite, a perfídia daação foram práticas acentuadas nos discur-sos militares – elementos importantes paraa construção do monstro militar de esquer-da. Naturalmente, a camaradagem éinalienável ao militar, portanto a quebradesse valor representa um ato torpe, infa-me e obsceno, em outras palavras, só ummonstro seria capaz de cometer tal quebra.

Em termos de ação político-adminis-trativa, o Exército só começou a se formarcomo aparato coercitivo nacional a partir dos

anos 30, mais precisamente após 1937, coma política varguista sob o comando dos ge-nerais Góes Monteiro e Dutra (Filho, 2003).É quando, de acordo com Werneck Sodré(1979): “se abre a Fase Nacional, isto é,quando o país começa a se definir em ter-mos de nação e começa a criar as condiçõespara o aparecimento das Forças Armadasinequivocadamente nacionais”. O que pos-sibilitou uma maior centralização político-administrativa nacional, modernizando, as-sim, o país e transformando o Exército numaparato capaz de manter-se como institui-ção que assegurava, com sucesso, o mono-pólio da violência como prerrogativa de usodo Estado nacional – expressão weberianaque traduz a estrutura burocrática moderna.

Por certo, na época do levante arma-do de 35 o Exército ainda não possuía, emtermos ideológicos, disciplina necessáriapara erigir uma “sociedade disciplinar” – oque começa a se esboçar com Vargas no Es-tado Novo. É o que podemos encontrar noprefácio da obra “Lembrai-vos de 35!” es-crito pelo General Campos de Aragão, poisalém dos fatores internacionais e da conjun-tura revolucionária dos anos 20 e início deanos 30 no Brasil, o evento também se deupela: “(...) inexistência, na época, de umainfra-estrutura adequada, voltada para o se-gurança nacional”. Ou seja, a ausência deuma instituição disciplinar efetiva criou ascondições para a sublevação de 35.

Malograda a tentativa revolucionáriados militares de esquerda, duas linhas ide-ológicas conservadoras assumem a hegemo-nia da instituição: a da defesa da profissio-nalização dos militares e a da ação antico-munista autoritária. E são essas matrizes ide-ológicas que irão, ao longo da história daformação do Exército brasileiro, conduzir oprocesso de construção da identidade mili-tar e da própria instituição.

Com efeito, é impossível dividir essasmatrizes em grupos de luta interna por po-sições privilegiadas de poder na caserna, namedida em que no grupo conservador, queera hegemônico, adeptos do queHuntington (1996) define como “realismomilitar”, encontramos militares que defen-

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diam a profissionalização com maior inten-sidade e eram ao mesmo tempo anticomu-nistas; como também encontramos oinverso.

É importante sublinhar que a forma-ção da instituição militar moderna, em con-texto de aburguesamento do social, temcomo resultado a criação de um espaço con-servador por excelência. Logo, os oficiaismilitares tendem a uma melhor identifica-ção com as idéias conservadoras burguesasdo que com o pensamento revolucionáriomarxista. O militar é sempre conservador naestratégia (política) e liberal na tática (téc-nica). Diante disso, projetos políticos gran-diosos e metas políticas carregadas de oti-mismo e exagero são desde logo evitadas,pois são por demais arriscadas para um con-servador, porque não são práticas (Huntin-gton, 1996).

O evento militar de 1935 foi, sem dú-vida, a matriz ideológica do anticomunismobrasileiro; os militares conservadorestransformaram o evento em monumento.Efetivamente, os textos que relembram estemomento histórico não são simples docu-mentos que traduzem a ojeriza militar aoscomunistas, mas representam monumentosde ação político-militar que possibilitaramerigir práticas políticas que sustentaram astransformações no interior da instituição.Esses documentos apresentam-se como es-tratégias de controle político na forma deverdadeiros panótipos modernos que en-quadram a todos, de tal forma que deles nãoescapava ninguém.

Em 1938, o Major Afonso de Carva-lho descreve o comunismo como o inimigoinvisível – é a ubiqüidade do monstro co-munista – ele pode ocupar qualquer espa-ço, na maioria das vezes não se apresentaabertamente. Destarte em seu discurso elediz: “meus camaradas! Longe vai o tempoem que mais simples, muito mais simples,se tornava a missão do soldado. Sabia-se,pelo menos, onde estava o inimigo. Era par-tir para frente e aí esperar que o mais forteimpusesse a sua vontade. (...) Hoje, maisdifícil se tornou a missão do militar. O ini-

migo está em toda a parte (...) 2 ”. E essaubiqüidade é o que vai alimentar o comba-te ao comunismo e, fundamentalmente, cri-ar um mote disciplinar anticomunista nacaserna – conduzindo a modernização mili-tar sob a égide do profissionalismo que,amiúde se confundia com a ojeriza ao mons-tro político comunista, em outras palavras,ser profissional é ser anticomunista.

Tal relação estrategicamente posta fa-cilitou o isolamento dos corpos desviantesno interior da caserna.

De acordo com este major3 , o inimigoe seus asseclas dividem-se em três grandesclasses:

a) os conscientes: são os envenena-dos – vencidos pela ideologia, os que pas-sam a constituir a legião sombria dos volup-tuosos da morte e da destruição;

b) os inconscientes: são os que fa-zem, sem querer, o jogo dos comunistas epor meio do livro, da tribuna, da revista, dojornal e os que na vida cotidiana se solidari-zam com os que fazem ações comunistas;

c) os subconscientes: são os que têm,lá no fundo do coração e do espírito, idéiascomunistas, ainda disfarçadas ou em em-brião. Mas que afloram indiscretamente emseus trabalhos, publicações de leitura e opi-niões.

A estrutura panótica, posta no textoacima, assegura a presença universal do co-munismo no corpo social. O comunista é,efetivamente, o monstro sem Pátria, ele-mento sobre o qual tudo é possível e tudo épermitido. Enfim, independentemente daclasse que ocupam, são todos apresentadoscomo monstros políticos – que temos queevitar e combater. Por essa forma, consoan-te o Major Afonso de Carvalho, independen-temente das classes de consciência comu-nista, todos eles apresentam-se como trai-dores da Pátria, sendo assim nenhum vín-culo com eles é possível – são monstros po-líticos, corpos que devem ser sujeitados – o

2 In: CARVALHO, General Fernando de. Lembrai-vos de 35!Biblioteca do Exército, 1981, pp. 180-183.

3 Idem p.181

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que justifica: “todas as medidas de preven-ção e toda a brutalidade da repressão4 ”.

O perigo da esquerda revolucionáriapassa a ser o principal problema políticonacional. Apresenta-se como uma força sub-reptícia sobre a qual toda a vigilância é ne-cessária, pois subverte a ordem culturalOcidental moderna. Em face disso, pode-mos perceber o espectro do comunismodescrito pelo Ministro da Guerra, GeneralEurico Gaspar Dutra, em 1937, como o mai-or dos perigos que ameaça a nação brasilei-ra e a instituição militar. Dado que o comu-nismo é o monstro político temível por serorganizado e pertinaz, e nefasto por subver-ter toda a estrutura normativa construída emséculos de civilização, assim é: “(...) o maisdigno de repulsa porque atinge os sagradose invulneráveis dogmas da moral em queerigimos nossos santuários domésticos5 ”.

O militar de esquerda era a expressãomaterial comunista, na medida em que osucesso da revolução passava pela subleva-ção na caserna. Logo, a ressignificação doevento de 35 tinha como mote a criação domilitar incompatibilizado com a ideologiamarxista. Tal corpo político se apresentacomo antimilitar, um corpo estranho quedegenera a instituição. Nesse sentido, a vi-gilância é fundamental, pois as táticasexercidas por esses corpos são monstruosas.Assim, novamente, de acordo com o Minis-tro da Guerra:

“(...) É preciso não esquecer. Aqueles queum dia traíram a confiança de seus chefese companheiros, voltarão amanhã a feri-los pelas costas, com maior perfídia e maisrequintada indignidade”. (...) cumpre aoExército não se deixar colher de surpre-sa. É preciso fazer sentir que (...) o comu-nismo, sob qualquer aspecto ou modali-dade, é incompatível com a condição mi-litar, e aquele que a pratica ou dele semostra adepto, oficial ou soldado, enxo-valha a farda que veste, é indigno de os-tentar o uniforme e conduzir as armas quea Nação lhe confiou (...) 6 ”.

Novamente, em 1939 o discurso doGeneral Dutra corrobora o caráter identitárioanticomunista forjado pelos militares con-servadores – caráter esse que conduziu amodernização da instituição. O discursoenfatiza a defesa da Pátria e da família, poiso monstro comunista ameaça a ordem soci-al e a moral cristã da família burguesa. As-sim diz o General: “(...) continuemos vigi-lantes, jamais cometendo o erro de despre-zar a força do inimigo, por mais fraco quepossa parecer, e sempre atento na defesa dopatrimônio moral da família brasileira e daintegridade da Pátria (...) 7 ”. Decisivamen-te, o comunismo é apresentado como umabjeto8 – aquele ser monstruoso que rompeo pacto social burguês e nos devolve ao es-tado de natureza hobbesiano. GóesMonteiro os apresenta como monstros queresgatam atavismos primitivos com coresmodernas. Posto que de acordo com ele:“(...) Esses monstros realizam a sobrevivên-cia de enterrados atavismos, apetrechadosde todas as conquistas do progresso9 ”. Efe-tivamente, esses monstros – abjetos quecorrompem a ordem moderna e inviabilizamo progresso – são os elementos que devemser alijados do interior da caserna e do cor-po social, pois ameaçam impor o caos –destarte, só um estado hobbesiano (forte)moderno poderia se contrapor a esta ameaça.

Em suma, os discursos posteriores a35, independentemente do esmagamentopolítico do comunismo no Estado Novo e,mesmo, durante o Regime Militar, aindareforçavam o perigo e a ubiqüidade da pre-sença comunista. O anticomunismo foi, de-cisivamente, a ideologia disciplinadora da

4 Idem. pp. 1825 Idem pp. 161-162.6 Idem p.164.

7 Idem p.195.8 O abjeto, conceito elaborado por Julia Kristeva, é tudo o que

ameaça a norma e a ordem ideológica moderna, enfim o confortoda sensação de identidade (Silva, p.13). É aquilo que sai docorpo provocando atração e repulsão – no caso específico dainstituição militar, pensamos a caserna como um corpo orgânicoe os militares de esquerda como um abjeto, uma secreçãorejeitada com repulsão, que sai do próprio corpo militar ou dasociedade política. Daí a necessidade de expelir esse abjetocomo corpo físico e como documento. Ou seja, o militarconservador encontra conforto identitário quando se expelicompletamente esse abjeto do corpo.

9 In: CARVALHO, General Fernando de. Lembrai-vos de 35!Biblioteca do Exército, 1981, p 200.

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ordem republicana moderna. E as ForçasArmadas, muito mais de que inventar estaordem refletiam o medo das elites brasilei-ras do “monstro popular” como empecilhoda modernidade capitalista. Em face disso,a ressignificação do evento, marcando ametamorfose do monstro político, traduz arepresentação de 35 como estratégia políti-ca que gera práticas disciplinares que bas-tam por si mesmas. Eis, novamente, as pa-lavras do Ministro da Guerra General EuricoGaspar Dutra:

“Malogrado o primeiro ímpeto, o inimigoda ordem não esmorece, não desanima,não dorme. Apenas muda de tática. Dis-farça-se, finge-se debilitado, escondemelhor as energias que se articulam.Infiltra-se em todas as fileiras, procurainstalar-se ao nosso lado, simula comun-gar em nossos ideais, empenha-se em con-quistar nossa simpatia e nossa confian-ça10 ”.

No limite, o comunismo era o abjetoque desestabilizava a identidade moderna– a ordem burguesa – pois, nega a únicanorma possível. Naturalmente, a utopiamaterialista marxista punha em cheque o“eu” moderno, do “livre mercado” e da “li-vre fé”. É o que encontramos no pronunci-amento do General Salvador César Obino:“sem os freios que só um elevado idealis-mo pode criar e manter, os homens, comoas nações, tendem para a violência sistema-tizada; é o predomínio da lei da selva. Ex-tirpar do homem a força criadora da fé é re-duzi-lo a simples condição de animali-dade11 ”. Tal pronunciamento adquire mai-or compreensibilidade teórica a partir datese de Samuel Huntington (1996), de queas instituições militares são conservadorasem sua essência, o que aproxima os milita-res de Hobbes, da guerra de todos contratodos e da negatividade da natureza huma-na – o homem é o lobo do homem. O comu-nismo nos conduziria à condição de lobos.De fato, o medo moderno do estado de na-

tureza hobbesiano tem o mesmo efeito domedo dos militares conservadores do comu-nismo.

O realismo conservador ea memória de 35

O “realismo conservador” militar con-siste: a) numa visão positivamente pessimis-ta do homem, para o militar a liberdade hu-mana alijada dos meios de coerção estatalnão passa de utopia; b) na segurança militardo Estado, pois é a instituição militar forteque garante o equilíbrio político; c) no pri-mado do Estado-Nação, verdadeira baseidentitária moderna; d) na premência desegurança, na mediada em que para os mili-tares nada é seguro; e) fundamentalmente,na expansão e fortalecimento do aparatocoercitivo (Huntington, 1996).

Esse “realismo conservador” é o queassegura ao corpo militar a hegemonia ne-cessária no combate ao pensamento militardesviante. Logo, é fundamental perceber osdiscursos militares referentes à memória de35 como monumentos ideológicos que cor-roboraram práticas normativas de exclusãode todo corpo militar de esquerda.

Certamente, esse corpo anormal é oabjeto que ameaça a própria harmonia dainstituição. Assim, a fim de que possamosmensurar o valor estratégico desses discur-sos para a formação identitária do militarmoderno temos que compreender essa su-jeição política.

Além disso, a própria dinâmica damodernização capitalista na caserna inten-sifica a formação de uma sociedade disci-plinar; a ordem da guerra moderna faz domilitar, um técnico na administração da vi-olência e um defensor do Estado como fon-te da vida burocrática, o que produz umavisão da política como mecanismo para man-ter, ao invés de transformar a ordem.

Dessa forma, travou-se no interior dacaserna uma guerra, a fim de alijar o abjetomilitar comunista, tendo como corpo políti-co o realismo conservador. Em poucas pala-vras, uma guerra ideológica de coloraçãoquase que religiosa: era a civilização cristã10 Idem pp.221-222.

11 Idem p. 230.

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Ocidental versus o ateísmo da civilizaçãomarxista. Os militares e o país só tinham umasaída, refutar o exotismo ideológico esquer-dista assumindo uma posição integrada aomodelo americano que, em tempos de Guer-ra Fria, se apresentava como o único para-digma possível.

De fato, entre 1945-1964, a tensão nointerior das Forças Armadas, principalmen-te no Exército, transformava a instituiçãonum espaço político que partidarizava oquadro de oficiais e praças, dividindo-os,impossibilitando, dessa forma, qualqueração hegemônica dos militares enquantoinstituição. Destarte, o alijamento dos mili-tares de esquerda para a unidade ideológi-ca se tornou imperativo como estratégia demodernização da instituição – o que dificul-tava qualquer posição mais à esquerda nointerior da caserna e, também, corroboravaa hegemonia do realismo conservador queapartava, muitas vezes brutalmente, os cor-pos “anormais” do interior da caserna. Na-quele contexto era abjeto comunista todocorpo contrário à ideologia dominante.

É importante sublinhar que a casernaé um espaço eminentemente conservador,não por natureza, mas por contingência doaburguesamento do social. Ou seja, o pro-cesso civilizador moderno conduz o aparatomilitar ao “realismo conservador”. Em facedisso, o contexto político-militar do pós-guerra, em tensa Guerra Fria, marca umaacentuada resistência conservadora a qual-quer idéia política que se aproximasse doproletariado. O comunismo era o fantasmaque horrorizava a caserna. A Revolução Co-munista de 1935, assim denominada nosdocumentos oficiais do Exército (Boletimdo Exército) nos anos 50, era a mate-rialização do perigo vermelho. Os comba-tentes que sufocaram a sublevação recebe-ram honras militares e foram promovidos aum posto acima (lei nº 1267 de 09.12.1950 –Governo Dutra).

Nesse sentido, a história da transfor-mação da esquerda em monstro político ca-minha par a par com a modernização da ins-tituição militar, tendo como estratégia ocombate ao inimigo interno. O primeiro

monstro político foi o monstro militar deesquerda e a representação monstruosa da-queles corpos é o que qualificou a ação deguerra no interior dos quartéis. ConsoanteShawn C. Smallman (2004): “no pós-guer-ra, a profissionalização militar foi acompa-nhada pelo uso ampliado da violência.” Detal forma que a estrutura montada para re-pressão aos civis nos governos militares –antes, num ensaio geral – foi utilizada paraeliminar os oficiais e praças dissidentes.Assim, a evolução da profissionalização mi-litar teve como corolário a impossibilidadedo dissenso, o que passou a ser inaceitável.

A vitória da chapa da Cruzada Demo-crática em 1952, nas eleições do Clube Mi-litar, foi um elemento importante da ofen-siva conservadora, proporcionando relaçõesde poder extremamente assimétricas no in-terior da caserna – foi o indicativo de que,consoante Werneck Sodré, a “máquina dedar ordens” estava de posse dos militaresconservadores. Dessa forma, as pressõesexercidas sobre os militares de esquerdaforam intensas. Era muito comum, a visitaamistosa e a tentativa de persuasão tendocomo tática a intervenção nas promoçõesmilitares (Sodré, 1987).

Contudo, o mais grave foram as pri-sões dos militares dissidentes, estes foramconfinados em espaços totalmente insalu-bres – panótipos que representam espaçosmais para a sevicia do corpo do que espaçosde vigilância e de disciplina. Tudo de acor-do com a transformação do militar de esquer-da num “monstro político”; segundoWerneck Sodré (1979): “(...) tratava-se nãode gente, de criaturas humanas, mas de ani-mais perigosos, contra os quais todos os pro-cessos eram lícitos”. Por certo, as condiçõesinsalubres e as sevicias não foram casos ra-ros, amiúde denunciados na época pelos fa-miliares desses militares ao Parlamento e àimprensa (Sodré, 1967).

O depoimento da esposa do majorLeandro José de Figueiredo Junior, apon-tado por Werneck Sodré (1987), nos éesclarecedor:

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“Fui ao regimento e lá constatei que, defato, meu marido se encontrava incomu-nicável e não só isso como em condiçõesindignas e incompatíveis com o oficialato,além de desumanas. Era um quarto tran-cado e cadeado, com as janelas fechadasa prego, onde não entrava ar, a não ser pelabandeira da porta que dá para um corre-dor interno, onde não entrava sol de es-pécie alguma”.

Os demais militares dissidentes, nãosubmetidos às prisões (envolvidos emIPMs), foram jogados em guarnições distan-tes e extremamente vigiados, também,alijados das posições privilegiadas de co-mando e do centro da política nacional(Sodré, 1987).

O memorial dos coronéis, assinado emfevereiro de 1954, por oitenta e dois coro-néis e tenentes coronéis, é um documentocrítico significativo dos militares conserva-dores para com o governo Vargas. Vinha apóso esmagamento da corrente nacionalistamilitar, das prisões, dos processos e dastransferências arbitrárias (Sodré, 1987).Num sentido lato, o memorial se estabele-cia no plano do “realismo conservador” mi-litar, exigindo maior participação orçamen-tária para o Exército, apontando o iminenteperigo político – ameaça interna – para como Estado (Esteves, 1999). Consoante JoãoRoberto Martins Filho (2003), o memorialtinha como tema central “a necessidade dereforçar a coesão militar” diante do iminen-te perigo comunista, como também, refle-tia a posição política dos oficiais superioresde tom conservador.

A preocupação militar para com o pe-rigo vermelho transpõe os muros da caser-na, passa, também, para o espaço econômi-co. O desenvolvimento da economia afasta-nos da Revolução Comunista. O PlanoMarshall era o exemplo contundente, pois,para os militares, malogrou o comunismo naEuropa Ocidental. Diante disso, a econo-mia passava a ser a estratégia de combateao comunismo. É o que fica mais transpa-rente em 1959, com o discurso do GeneralArmando de Noronha, quando ele reafirmaa ojeriza ao abjeto comunista e traz um ele-

mento importante para afastar o perigo ver-melho: o desenvolvimento econômico. Des-sa forma, afirma ele: “O verdadeiro comba-te ao comunismo, (...) deverá ser travado nocampo econômico. (...) Urge opor à ideolo-gia comunista (...) outra ideologia, a do de-senvolvimento econômico, que produz a ri-queza e fará secar o caldo de cultura dessadoutrina exótica e malsã12 .”.

Em 1960, o discurso proferido peloMinistro da Guerra, marca uma nova estra-tégia de elaboração do monstro político deesquerda, não mais o militar traidor, queinveste contra os companheiros de fardapelas costas, na escuridão da noite. Efetiva-mente, não é mais o guerreiro monstruosocomunista, pois a dissuasão atômica impe-de a força das armas, agora é no domíniopsicológico que se volta o monstro comu-nista. Assim diz o Marechal Odylio Denys:“(...) Nos dias atuais, quando 25 anos já nossepararam do sombrio episódio (...) apresen-tam-se eles com outras roupagens e insidio-sas fórmulas, na presunção de empolgar asnovas gerações. As ações preliminares de-senvolvem-se, agora, no domínio psicológi-co, e a conquista da mente humana é a suaprimeira preocupação13 .”.

A memória de 35 foi amiúde ressigni-ficada como estratégia político-militar; osdiscursos dos chefes militares diante dostúmulos dos militares mortos na IntentonaComunista procuravam contextualizar aque-le evento, na luta cotidiana de tom realistae conservador. No ano de 1961 tivemos achamada “Campanha da Legalidade” pelaposse do vice-presidente João Goulart o queresultou numa divisão no Exército; o pro-nunciamento do Ministro da Guerra refor-ça a necessidade de união no combate aoinimigo comum, inimigo esse, responsávelpela desagregação da força. É o que pode-mos perceber a partir das seguintes palavrasdo General João Segadas Vianna: “O inimi-go, que em 1935 ameaçou a Pátria, perma-nece atuante, usando novas técnicas de de-sagregação e se apresentando sob as mais

12 Idem p.345.13 Idem p. 348.

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insidiosas e traiçoeiras facetas. (...) Confioem que o Exército verá unidas suas aspira-ções e abafadas as rivalidades porventuraexistentes, ante uma idéia que é a dos su-premos interesses da Pátria contra o inimi-go comum14 (...).”.

Por essa forma, os anos 60 marcam aredução universal de todo o corpo desvianteà condição de abjeto comunista. A estraté-gia ideológica militar conservadora foi vito-riosa ao transformar em monstro político,primeiramente os militares de esquerda eem seguida a esquerda e qualquer tipo deoposição.

1964 e a transhistoricidade do monstro

O “realismo conservador” militar as-sume posição privilegiada de poder, em ter-mos absolutos, a partir da ação político-mi-litar que depôs o presidente João Goulart(governo que concentrou em si o apoio daesquerda nacional). Os militares conserva-dores conseguiram empolgar o poder comoforça coesa. Em grande medida, pelo medodos monstros políticos de esquerda e pelasações populistas de quebra da hierarquiamilitar – o que, sem dúvida, acelerou o su-cesso de tal coesão. Como resultado, em1964, o pronunciamento militar em memó-ria a 35 foi escrito em texto único pelos Mi-nistros Militares. O texto vincula o contex-to de 64 com o de 35 – o que vai representaruma constante no Regime Militar. Assim,dizem os chefes militares:

“Derrotados pela repulsa nacional às suasidéias, sofreu o seu partido forte declínio.Mudou, então, a tática: infiltração progres-siva em postos-chaves, através de umapaciente doutrinação e da corrupção. Des-ta forma, lograram os vermelhos alcançar,em 1963 e início de 1964, uma situaçãode grande influência, que lhes deu a ilu-são de ter o poder em suas mãos. Foram,entretanto, derrotados pelas forças vivas daPátria. Mas, sua atividade subversiva nãocessou: agora, se reveste da forma de guer-

ra psicológica, que visa a desmoralizar a obrarestauradora de 31 de março (...) 15 ”.

Do texto citado acima temos um ele-mento novo, agora explicitado abertamen-te, a chamada “Guerra Psicológica” – ex-pressão da Guerra Revolucionária – que con-siste na ação direta ou indireta dos comu-nistas a fim de minar a nova ordem político-militar a partir da utilização das tecnologiasmodernas de comunicação e assim deturpara informação e a cultura ocidental cristã.Essa ação sub-reptícia transforma a todos emsuspeitos em potencial – ou seja, todos po-dem ser potencialmente monstros políticos– abjetos comunistas. É o que dava coesãoao corpo militar e sustentava a política devigilância total. Os órgãos de vigilância cria-dos nos primeiros anos do Regime Militarvinham a atender tal objetivo.

Os laços mantidos entre o evento de35 e de 64 se situam como estratégia militarno sentido de formular uma tradição de re-pulsa ao comunismo, ao mesmo tempo emque se justifica a presença do poder políti-co-militar como único poder capaz de refu-tar a ameaça comunista. Desse modo, pode-se dizer que o elemento modernizador doExército foi, em larga medida, bem maisideológico do que material (meios de com-bate), assim, foi com o controle do Estado,que os militares efetivaram a modernizaçãocom a dotação de material bélico e doutri-nação instrumental, mas antes disso o ele-mento centralizador de coesão foi,indubitavelmente, o anticomunismo. Assim,no discurso do Ministro da Guerra podemosperceber a ponte entre os eventos e a ne-cessidade das Forças Armadas para garantiro desenvolvimento e a segurança – obinômio fundamental da nova ordem. Eisas palavras do Ministro general Arthur Cos-ta e Silva em 1965: “(...) não é em vão, po-rém, que o nosso povo confia nas ForçasArmadas. Elas estavam presentes em 1964

14 Idem p.360.

15 Vice-Almirante Ernesto de Melo Baptista, Ministro da Marinha;General Arthur da Costa e Silva, Ministro da Guerra; Major-Brigadeiro Nelson Freire Lavenère-Wanderley, Ministro daAeronáutica: Idem p. 379.

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e em 1935; presentes continuarão elas, sem-pre, na preservação da democracia, da paz eda tranqüilidade de que necessitamos paratrabalhar e progredir16 ”.

Enfim, a transhistoricidade do even-to comunista de 35 é o que garante ideolo-gicamente a coesão total pos-64. Destarte,cabe aos militares garantirem a ordem, com-preendendo os mecanismos de ação comu-nista hodierna. Nesse sentido, o discurso doMinistro da Guerra Marechal Ademar deQueiroz, em 1966, acentua a Guerra Psico-lógica como expressão comunista de luta epontua a vigilância como missão militar afim de sustentar a ordem política. Posto quede acordo com ele: “os comunistas e os ini-migos do país deram início a uma nova mo-dalidade de Guerra Revolucionária, que visaà desmoralização da obra restauradora de 31de Março e a criação de um clima de hostili-dade entre o Governo e a Opinião Pública –é a Guerra Psicológica17 (...).”.

Certamente, o discurso político-mili-tar em termos exclusivamente militares éinerente ao militar. Mas não é tudo. É pre-ciso compreender os efeitos e as práticasdiscursivas naquele contexto. Dessa forma,a contextualização por meio da res-significação da Intentona Comunista de 35proporciona, aos militares no poder, forjar oclima anticomunista que reduzia toda equalquer oposição à ação belicosa de outraordem: Guerra Psicológica. Dessa forma, deacordo com General Lyra Tavares: “é preci-so que não seja novamente a Nação surpre-endida, pois as técnicas do adversário seaperfeiçoaram e ele procura disfarçar, semabandoná-los, nem esmorecê-los, os mes-mos reais e sinistros propósitos a que obe-deceu a insurreição comunista de novem-bro de 193518 .”.

Nos dois anos seguintes – 1966 e 1967– a preocupação com a Guerra Psicológicafoi constante, sendo acentuada a crescentecrítica ao governo militar como tática deguerra subversiva, pois a desmoralização é

uma forma de enfraquecer o adversário, sen-do assim deve-se concentrar a vigilânciaprincipalmente com relação à infiltração nasForças Armadas – ponto sensível para a de-fesa nacional. Consoante o General Orlan-do Geisel foi: “(...) substituída a estratégiada violência pela guerra psicológica, preten-de-se agora tomar o poder sem dar umtiro19 .” É importante lembrar que a ditadu-ra nesse momento não era ainda escancara-da (o AI5 foi em 68), no entanto podemosperceber que o combate aos monstros daGuerra Psicológica impelia à ação político-militar mais repressiva com relação à restri-ção das liberdades – na medida em que todaa crítica é considerada como uma ameaça deguerra.

A partir de 1969 as preocupações coma Guerra Psicológica somam-se às da guer-rilha urbana e rural – é a chamada GuerraRevolucionária em sua totalidade. Diantedisso, os militares no poder têm o fato polí-tico-militar que corrobora e pode intensifi-car a ação anticomunista no país. O Gover-no Médice teve no Ministro do Exército,General Orlando Geisel, a força militar ca-paz de responder às vicissitudes de um con-texto conturbado de resistência política.Assim, completado trinta e cinco anos daIntentona Comunista, em 1970, o Ministroaponta o âmbito universal e a estratégia emtempo de paz da ação comunista, fomentan-do a vigilância total frente à ameaça verme-lha e sublinhando a transhistoricidade doevento; assim, consoante o Ministro: “(...)Tenhamos sempre presente que as ForçasArmadas, como guardiãs da Pátria, foram oalvo por ele escolhido em novembro de 1935e continua sendo a coluna mestra que pro-curará derrubar para destruir o edifício danacionalidade20 .”.

Estrategicamente, a ressignificação daIntentona Comunista de 35 reforçava a co-esão política interna. A coesão se daria coma efetivação do profissionalismo militar – umaparato coercitivo despartidarizado – que semanifesta no enquadramento disciplinar. A

16 Idem p. 394.17 Idem p.399.18 Idem p. 414.

19 Idem p. 417.20 Idem p. 439.

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idéia de um militar profissional e anti-comunista era o objetivo da instituição, pos-ta em simetria. Para isso os investimentosna área militar eram sine qua non a fim deassegurar ao Regime Militar a estabilidadenecessária à ordem política. A ação militarmoderna depende da mobilização ideológi-ca da tropa; assim, de acordo com o pronun-ciamento em 1973 do General OrlandoGeisel é preciso que:

“(...) tenhamos sempre presente que aguerra moderna, com todo o poder das ar-mas, é, sobretudo uma luta de forças mo-rais, em que vencerá aquele que tiver maisfé em seus ideais. (..) Assim, é imperativoexercitar a coesão profissional, pela ins-trução, enquadramento e aperfeiçoamen-to da capacidade de comando em todosos escalões; e manter preparados os qua-dros e a tropa, pelo culto das virtudes mi-litares e do espírito nacional21 .”

Em 1975 o novo Ministro do ExércitoGeneral Sylvio Coelho da Frota aindaenfatizava o discurso da Guerra Psicológi-ca, ou seja, a ofensiva comunista contra amoral e a ordem política, numa ação sub-reptícia no âmago da consciência nacional.Por certo, era o único combate possível namedida em que o monstro armado não ame-açava mais a ruptura da ordem. Por essaforma, os Chefes Militares agora concentra-vam seus esforços na presença do monstropolítico nos meios de comunicação de mas-sa – toda a carga contra o monstro comunis-ta da informação – daí o tratamento dadoaos jornalistas suspeitos de subversão serequivalente ao dispensado aos comunistasarmados. Efetivamente, a metamorfose doabjeto comunista o afasta da violência arma-da militar de 35, das agitações políticas de64 e da guerrilha, para adotar a infiltração –assim, a ubiqüidade comunista é a táticaimportante denunciada pelos chefes mili-tares – de tal forma que não há espaço salvoda pertença subversiva, pois consoante àspalavras do General Sylvio Frota, os comu-nistas:

“(...) buscam infiltrar-se em quase todosos setores da vida pública brasileira paradesmoralizar os postulados cristãos queadotamos e respeitamos, desagregar anossa sociedade pela dissolução de suamoral e de seus costumes, quebrar nossafé religiosa, desacreditar nossas institui-ções e solapar nosso desenvolvimento, noque lhes interessa. (...) Em 1935, atuoupela violência armada, em 1964, alimen-tou agitações e greves, na agonia de umgoverno fraco, finalmente, nos temposatuais, adota a perigosa infiltração, paraintroduzir-se, sutilmente, em todos oscampos das atividades humanas22 .”

Em substantiva tensão político-mili-tar, o Presidente Geisel exonerou, em ou-tubro de 1977, por oposição política a seugoverno, o Ministro do Exército GeneralSylvio Frota, sendo um teste importantepara a confirmação da disciplina militar nacaserna. O conflito político entre o Presiden-te e o Ministro tinha como ponto principala abertura política, o General Sylvio Frotaera peremptoriamente contrário àredemocratização, representava a linha dura,ou seja, militares que, muitas vezes, que-bravam a hierarquia em nome do combateao comunismo, nesse sentido eram maisanticomunistas do que profissionais. A crí-tica ao governo, em termos práticos, se deucom o afastamento do General Ednardo docomando do II Exército (após a morte, sobtortura no DOI-CODI, do operário ManuelFiel Filho) o que, obviamente, desconten-tou a linha dura – liderada pelo GeneralSylvio Frota. A partir desse momento o Mi-nistro do Exército, desrespeitando a hierar-quia, trabalhava para ser candidato à presi-dência – utilizando sua posição privilegiadadentro da instituição. Foi, decisivamente,uma guerra política no interior da caserna;no entanto, Geisel se saiu vitorioso, pois iso-lou militarmente o General Sylvio Frotacom a exoneração, passando a controlar di-retamente os demais chefes militares, imo-bilizando, assim, qualquer resposta da linhadura (Esteves, 1999).

21 Idem p. 467. 22 Idem p.483.

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Contudo, o novo Ministro do Exérci-to, General Bethlem, não demonstra qual-quer ruptura ideológica com o seuantecessor. Em pronunciamento reafirma aposição do General Sylvio Frota quandoqualifica os comunistas de manipuladoresda informação. Segundo ele: o que dizemsão meias verdades, mentiras e calúnias afim de provocarem “a cisão e lançarem adúvida e o desânimo nos corações e nasmentes dos menos avisados23 .”.

O ano de 1979 foi um ano importante,pois marca a intensificação da abertura po-lítica e uma relativização em torno do mons-tro político – agora sua extensão não é maistotalizante; a crítica política com o fim dacensura não é mais confundida com a Guer-ra Psicológica. No entanto, a aceitação des-sa transição foi um bravo teste à hierarquiamilitar, pois o comunismo como fato políti-co-militar havia sido superado pelas repre-sentações do perigo vermelho – em face dis-so, o fantasma comunista ainda era mais realdo que a própria realidade política nacional.De fato, o discurso do Ministro do Exércitodemonstra ainda a preocupação com osmonstros comunistas; esse discurso sublinhauma posição que vai ser uma constante: ade que o monstro comunista é revanchista– aquele que não quer a conciliação –, omonstro político que não sabe conviver comas leis, pois quer subvertê-las, assim: “com-preendam, no entanto, eles e os seus insanossequazes – antes que se sintam tentados auma nova aventura – que aqui encontrarãoo Exército com as mesmas convicções de1935 e 196424 (...)”.

Não obstante a efetiva abertura polí-tica no governo militar do Presidente Ge-neral Figueiredo, as preocupações com re-lação à esquerda ainda persistiam. Contu-do, o processo de monstrualização do outro(comunista) – que poderia se estender àoposição como um todo – foi, paulatinamen-te, perdendo força em virtude do contextopolítico interno e externo de abertura gerale de crítica a qualquer forma de autorita-

rismo. Em face disso, o monstro comunista,principalmente, depois da queda do murode Berlim em 1991, passa a ser uma preo-cupação imaginária dos militares da reser-va. Grosso modo, para os demais militares,a profissionalização e a carreira passam a seros elementos centrais.

Considerações finais

É interessante notar a freqüência daintersecção discursiva entre 35 e 64; a ame-aça comunista foi a força motriz da ação po-lítico-militar, na medida em que o monstrocomunista se desfazia no ar frente às prati-cas sociais modernas – o Exército perdia suaforça política – era o tempo de retirar-se dopoder político; o que aconteceu sem gran-des conflitos graças à efetiva modernizaçãodo militar e sua crescente disciplinarização.

Assim, podemos observar que a ojerizaao comunismo foi proporcional à quebra dahierarquia – de tal forma que os militaresde 64 forjaram um militar mais militarizado,evitando assim a indisciplina política. Emface disso, a caserna, grosso modo, apresen-ta a efetivação da sociedade disciplinar –uma sociedade de corpos dóceis onde a po-lítica partidária não encontra morada.

O anticomunismo é visto como fana-tismo religioso e o exemplo cabal é o esgo-tamento da memória de 35; as comemora-ções referentes ao evento, a partir do gover-no Collor, mostraram-se sem capacidade demobilização, são “verdades” que não como-vem mais.

É importante compreender que osmonstros modernos se apresentam comometáforas de um processo político que tra-duz práticas de controle, sujeição dos cor-pos monstrualizados e até mesmo seu ex-termínio. O que corporifica o momento cul-tural de uma época, de um sentimento deexclusão e de um espaço que se busca puri-ficar (Jeffrey J. Cohen, 2000). Dessa forma,compreendê-los como corpo anormal não étudo; é preciso resgatar a historicidade doprocesso de monstrualização, de banalizaçãomoderna, para enfim mobilizar os documen-tos como monumentos de poder.23 Idem p.508.

24 Idem p. 531

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