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OS MERCADOS E FEIRAS LIVRES COMO LUGARES ANTROPOLÓGICOS DE RELAÇÕES SOCIAIS DE TROCAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS NO

VALE DO JEQUITINHONHA: Tecendo alguns horizontes e perspectivas na promoção da diversidade cultural

Carolina Rezende de Souza1

RESUMO

Este artigo, pautado em uma revisão bibliográfica, tem o objetivo de tecer horizontes teóricos e analíticos sobre os mercados e feiras livres, especificamente no Vale do Jequitinhonha, enquanto lugares antropológicos de relações sociais, de trocas materiais e simbólicas entre importantes atores sociais como feirantes e fregueses. Pode-se constatar que os mercados e as feiras livres, em contextos como o Vale do Jequitinhonha, representam lugares de trocas materiais e simbólicas e, neste sentido, desempenham papeis fundamentais na promoção da diversidade cultural no Vale do Jequitinhonha.

Palavras-chave: Mercados; Feiras Livres; Diversidade Cultural

ABSTRACT

This article, based on literature reviews, aims to draw theoretical and analytical horizons on markets and fairs, specifically in the Jequitinhonha Valley, as anthropological sites of social, material and symbolic exchanges between important social actors as merchants and customers. It can be seen that the markets and fairs, in contexts such as the Jequitinhonha Valley, represent places for material and symbolic exchanges, with key roles in promoting cultural diversity in the Jequitinhonha Valley.

Key-words: Markets; Street markets; Cultural diversity

1 Bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação/ Mestrado em Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (FAE/CBH/UEMG); E-mail: [email protected].

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INTRODUÇÃO

A compreensão dos processos socioeconômicos, como reflete Servilha (2008), era essencialmente marcada por visões e pressupostos objetivistas, que buscavam a análise das atitudes e práticas econômicas dos diferentes atores sociais, enquanto determinadas pela chamada racionalidade econômica. Porém, como discorre este mesmo autor, tendo em vista buscas por rupturas e ressignificações em relação ao processo de construção do conhecimento, disciplinas como a Antropologia e a Sociologia passam a debruçar-se sobre os processos econômicos, com o intuito de superação destas análises e, mais do que isto, buscando abordagens que focassem os processos econômicos, tendo em vista a valorização dos arranjos socioculturais que estão vinculados às atividades econômicas, não mais independentes das realidades que cercam os diferentes atores sociais, mas pensando os processos econômicos enquanto inseridos nos contextos históricos e experiências socioculturais mais amplas que devem ser investigados (SERVILHA, 2008).

Neste sentido, a Antropologia Econômica passa a apresentar um grande potencial que deve ser imensamente valorizado na análise dos processos econômicos, para além de pressupostos abstratos, mas inseridos em contextos históricos, políticos e socioculturais (FIRTH, 1974).

Desta forma, estudar e compreender as questões culturais e subjetivas relacionadas aos processos econômicos, a partir deste novo contexto, enfoque e olhar acadêmico engendrados pela Antropologia Econômica, torna-se de extrema importância, no universo acadêmico, sobretudo a partir da investigação das relações sociais de trocas materiais e simbólicas realizadas e tecidas cotidianamente por diferentes atores sociais, tendo em vista uma diversidade de universos empíricos, como os mercados e as feiras livres que, no Vale do Jequitinhonha, representam um papel fundamental na promoção da segurança alimentar, fortalecimento do campesinato, da agricultura familiar, na afirmação de identidades sociais e modos de vida coletivos. Tais reflexões se revelam de extrema importância na medida em que podem oferecer horizontes teóricos e analíticos importantes que devem ser valorizados no que concerne à promoção da diversidade cultural.

Considerando-se todas as questões acima elencadas, este artigo2, pautado em uma revisão bibliográfica, tem o objetivo de tecer horizontes teóricos e perspectivas analíticas acerca de mercados e feiras livres, especificamente no Vale do Jequitinhonha, enquanto lugares antropológicos de relações sociais, de trocas materiais e simbólicas entre importantes atores

2 Este artigo é fruto de reflexões e problematizações viabilizadas no universo da disciplina isolada Troca e reciprocidade, cursada no segundo semestre de 2014, no universo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ministrada pela professora doutora Deborah Lima.

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sociais como feirantes e fregueses e, desta forma, as contribuições de tais reflexões no que concerne à promoção da diversidade cultural. Para tanto, buscou-se a exposição de alguns exemplos etnográficos em articulação com referenciais importantes teóricos da chamada Antropologia Econômica e as possibilidades destas análises teóricas para pensarmos o universo empírico do Vale do Jequitinhonha.

Evidenciou-se, por meio das análises realizadas a partir de pesquisa bibliográfica, que as feiras livres e mercados em universos como o Vale do Jequitinhonha devem ser pensados como lugares antropológicos de trocas materiais e simbólicas que devem ser valorizadas como fundamentais para a consolidação de movimentos que permitam a ampliação da esfera pública de direitos subjetivos, no que diz respeito a diferentes atores sociais como feirantes e fregueses e, que desta forma, acolham e reconheçam a diversidade cultural como possibilidade de efetivação democrática e não como naturalização das desigualdades sociais, através da valorização destes atores sociais, enquanto protagonistas, portadores de saberes, identidades individuais e coletivas.

O PAPEL DAS FEIRAS LIVRES E MERCADOS NO UNIVERSO DO VALE DO JEQUITINHONHA: ALGUMAS BREVES CONSIDERAÇÕES

O papel dos mercados e das feiras livres no universo do Vale do Jequitinhonha deve ser aqui destacado. Ribeiro et al (2003), que analisaram especificamente a Feira Livre de Turmalina, discorrem que as feiras livres no universo do Vale do Jequitinhonha possuem uma grande importância enquanto relevantes e espaços dinâmicos de comercialização, elevação da renda agrícola, promoção do abastecimento das cidades, bem como contextos fundamentais no que concerne à criação de políticas públicas destinadas às famílias que sobrevivem da chamada agricultura familiar.

Silvestre, Ribeiro & Freitas (2011) analisando especificamente a Feira de São Francisco, também localizada no universo do Vale do Jequitinhonha, afirmam que as Feiras Livres desenvolvidas na região revelam-se pontos de convergência de produtos e comercialização da produção local, revelando-se assim circuitos de troca e consumo que promovem a geração de trabalho e renda, segurança alimentar destas famílias ligadas à agricultura familiar, bem como são fundamentais na manutenção de identidades e modos de vida ligados a uma cultura alimentar regional.

Na mesma perspectiva destes autores, mas especificamente analisando a importância do Mercado Municipal de Araçuaí, Servilha (2008) destaca o papel do mesmo enquanto um espaço e um lugar de produção cultural, de sociabilidades, de construção de relações sociais materiais e simbólicas, que revela este universo analisado como um elemento fundamental na

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dinâmica cultural e de construção da identidade coletiva regional.

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AS FEIRAS LIVRES E OS MERCADOS COMO LUGARES ANTROPOLÓGICOS DE TROCAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS NECESSÁRIAS

Servilha & Doula (2009), autores que trabalham com a temática das feiras livres e os mercados municipais, afirmam que buscar a compreensão das relações sociais materiais e simbólicas, presentes em locais como os mercados municipais, traz a necessidade de análise e aprofundamento acerca da subjetividade das relações no/com o lugar. Cabe então, inicialmente, no âmbito deste trabalho, pensarmos os mercados e as feiras livres como importantes lugares antropológicos. Para estes autores, é no lugar “que o ser humano constrói suas relações comunitárias, suas percepções do espaço e suas dinâmicas sociais específicas”. Para Carlos (2007), os lugares exprimem-se pelas relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados e se exprimem nos modos de uso, nas condições mais banais, sentidos, pensados, apropriados e vividos através do corpo, onde se processa a vida.

Nesta mesma perspectiva, para Ludwig (2008) o lugar é dotado de significados para aqueles que o vivenciam, que têm particularidades históricas, por meio das quais se desenvolveu um modo de vida especifico, de acordo com a organização social e cultural, levando-se em consideração sua inserção na sociedade global. Nesta mesma perspectiva, o lugar antropológico para Marc-Augé (2004) define- se como identitário, relacional e histórico. Identitário porque é o lugar de nascimento, as regras de residência, etc. são como uma inscrição no solo que compõe a identidade individual. Referências compartilhadas que designam fronteiras, marcam a relação com seus próximos e com os outros. Por fim, é histórico na medida em que os nativos vivem na história (AUGÉ, 2004).

Desta forma, os mercados e feiras livres, sobretudo no universo do Vale do Jequitinhonha, devem ser pensados como importantes lugares antropológicos onde são realizadas trocas materiais e simbólicas entre diferentes atores sociais como feirantes e fregueses, na medida em que se revelam contextos espaciais carregados de signos, representações e relações sociotemporais, construídas e reconstruídas entre o homem e seu meio (SERVILHA & DOULA, 2009). Enfim, lugares antropológicos de trocas materiais e simbólicas, caracterizados por atos, gestos, performances corporais, movimentos e dizeres, formas de agir e se relacionar – fomentadas por feirantes e fregueses, onde se ergue uma rede de sociabilidades vivenciadas pelos atores sociais no âmbito desses territórios construídos e reconstruídos cotidianamente (VEDANA, 2004).

ANÁLISES E RESULTADOS ALCANÇADOS

Buscou-se, neste momento, analisar alguns exemplos etnográficos de feiras livres e mercados, identificados a partir de revisão bibliográfica realizada, em diálogo com os pressupostos teóricos

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da Antropologia Econômica, que nos permitiram refletir e problematizar sobre as relações de trocas materiais e simbólicas realizadas. Tais reflexões e análises foram capazes de fornecer horizontes teóricos, especificamente no universo do Vale do Jequitinhonha, sobretudo no que concerne à promoção da diversidade cultural neste universo empírco, a partir da constatação dos mercados e feiras livres enquanto lugares antropológicos, marcados por trocas materiais e mercantis, que dizem respeito às relações de venda e compra de mercadorias, a partir do estabelecimento de relações sociais com o dinheiro (moralidades do dinheiro), tendo em vista um elemento importante que deve ser aqui considerado: a circulação da palavra, de trocas simbólicas caracterizadas pela circulação de saberes, por relações com o sagrado, com a religiosidade popular e pela tessitura de relações de parentesco no contexto destas trocas.

As feiras livres e os mercados como lugares antropológicos de trocas materiais e mercantis: Trocas, mercadorias, reciprocidade, relações com o dinheiro e a circulação da palavra

Para Bloch & Parry (1989) em Money and the morality of Exchange, o dinheiro revela-se representado simbolicamente de diferentes modos no universo de diferentes sociedades. Estes autores ressaltam as variações culturais e, neste sentido, a diversidade de formas por meio das quais o dinheiro está simbolizado e que dizem respeito às noções de produção, consumo, circulação e trocas em diferentes contextos socioculturais. Estes autores refletem sobre a necessidade de se colocar entre parênteses esta hostilidade e visão negativa do dinheiro e nos convidam a interrogar os usos sociais do dinheiro a partir de seus componentes morais.

Nesta mesma perspectiva, para Firth (1974) o dinheiro apresenta simbologias que devem ser consideradas e que dizem respeito ao domínio sobre bens e serviços, que só pode operar, efetivamente, quando todos confiarem em sua condição de símbolo válido para o sistema econômico em questão e, enquanto for reconhecido como tal pelos outros, através do exercício da confiança e da reciprocidade. Bill Maurer (2006) em The Antropology of Money analisa os diferentes papéis assumidos pelo dinheiro e seus significados sociais, bem como sua pragmática em diferentes modalidades de intercâmbio e circulação.

Sobre isto Michel de Certeau (et al, 1996, p.52 apud Almeida, 2009) ratifica:

Assim, comprar não é apenas trocar dinheiro por alimentos, mas além disso ser bem servido quando se é bom freguês. O ato da compra vem “aureolado” por uma “motivação” que poder-se-ia dizer, o precede antes de sua efetividade: a fidelidade. Esse algo mais, não é contabilizável na lógica estrita da troca de bens e serviços, é diretamente simbólico: é o efeito de um consenso, de um acordo tácito entre o freguês e o seu comerciante que transparece certamente no nível dos gestos e das palavras, mas que jamais se torna explícito por si mesmo.

Desta forma, podemos considerar que a compra e venda de mercadorias, no universo dos

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mercados e feiras livres, em contextos empíricos como o Vale do Jequitinhonha, envolvem relações sociais com o dinheiro (moralidades, simbolismos e seus significados sociais) que se dão em contextos específicos de relações socioculturais de reciprocidade, confiança, credibilidade e fidelidade, possibilitadas pela circulação da palavra, da troca de palavras no sentido de Bordieu (2008) que criam laços sociais entre feirantes e fregueses. Tais questões são respaldadas pelos exemplos etnográficos a seguir e, inclusive, fornecem-nos horizontes teóricos e analíticos para pensarmos as feiras e mercados realizados no universo do Vale do Jequitinhonha.

Vedana (2004) em sua dissertação de Mestrado, intitulada Fazer a feira: estudo etnográfico das artes de fazer de feirantes e fregueses da feira livre da Epatur no contexto da paisagem urbana de Porto Alegre, defendida no universo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), demonstra como no universo desta feira livre o processo de compra e venda de mercadorias envolve relações sociais com o dinheiro, que dizem respeito a certa moralidade do dinheiro, baseadas em mecanismos de confiança, credibilidade e fidelidade. Para a autora, no universo desta feira, na cidade de Porto Alegre, as relações com o dinheiro envolvidas nas trocas de mercadorias acontecem a partir de jogos verbais e estratégias de performance oral dos feirantes, representadas por piadas, jocosidades e brincadeiras.

A venda e compra de mercadorias e, consequentemente, as relações com o dinheiro, dão-se na possibilidade de negociação entre fregueses e feirantes, caracterizadas por jogos e performances orais que permeiam a negociação das mercadorias (VEDANA, 2004). A autora evidencia uma dimensão simbólica do trato com o dinheiro nas trocas de mercadorias nesta Feira Livre. Para esta autora, a subjetividade e intimidade das relações cotidianas entre freguês e feirante, é que vão definir as relações sociais com o dinheiro por parte de fregueses e feirantes (VEDANA, 2004);

Servillha (2008) em sua dissertação de Mestrado, intitulada “ As relações de trocas materiais e simbólicas no Mercado Municipal de Araçuaí” defendida no universo do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural , da Universidade Federal de Viçosa(UFV), também demonstra como, no universo deste mercado, o processo de compra e venda de mercadorias, envolve relações de troca, evidenciando o uso do dinheiro, onde um vendedor troca sua mercadoria por certa quantidade de dinheiro, que ele denomina Relação de troca-mercadoria dinheiro-fiel. Desta forma, para este autor, as relações sociais estabelecidas com o dinheiro na feira analisada, estão inseridas em contextos socioculturais, que são caracterizados pela criação de laços sociais de fidelidade e confiança entre freguês e feirante como reflete este autor.

Este autor demonstra como, no universo desta feira livre, o processo de compra e venda de mercadorias envolve relações de troca e reciprocidade, permeadas por relações sociais com o dinheiro, que envolvem questões como o crédito. O autor mostra como nas relações de

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trocas de mercadorias, envolvendo dinheiro no Mercado Municipal de Araçuaí, os feirantes utilizam-se das chamadas vendas a prazo, nomeadas por mercadores e feirantes através da chamada caderneta, por meio da qual os fregueses compram mercadorias durante todo o mês, para realizarem o pagamento apenas no dia de recebimento de sua renda mensal, através de dinheiro, aposentadoria ou das contribuições de programas governamentais como Bolsa Família, quando a conta é quitada.

Tal venda a prazo possibilita a manutenção da clientela e o atendimento de um público importante, como os aposentados, nestes contextos rurais. Para este autor, no universo do Mercado Municipal de Araçuaí, é realizada a venda a prazo, caracterizada pela confiança dos mercadores e feirantes na palavra dos fregueses. A garantia da palavra do cliente é fundamental na troca-mercadoria, dinheiro a prazo. Desta forma, nas relações de crédito que permeiam as relações com o dinheiro, neste universo, a confiança é um elemento de grande relevância na coordenação econômica no Mercado de Araçuaí (SERVILHA, 2008).

As feiras livres e os mercados como lugares antropológicos de trocas imateriais e simbólicas

Os mercados e as feiras livres também devem ser qualificados enquanto lugares antropológicos de trocas imateriais e simbólicas, que devem ser consideradas. Neste momento, busco analisar alguns exemplos etnográficos à luz de pressupostos teóricos, que, em consonância com exemplos etnográficos, nos permitam pensar as relações de trocas imateriais e simbólicas nos mercados e feiras livres e fornecer horizontes analíticos e teóricos, para pensarmos o universo empírico do Vale do Jequitinhonha, a partir de alguns eixos principais: a circulação de conhecimentos, que podem envolver as trocas de mercadorias, tendo em vista o uso da palavra, as relações com o sagrado e com a religiosidade popular, bem como as relações de parentesco, que também podem ser evidenciadas nestes universos.

Mercados, feiras livres, trocas, reciprocidade, conhecimentos e circulação da palavra

Para Apaidurai (2008) as mercadorias engendram formas sociais e partilhas de conhecimento que estão relacionadas com componentes técnicos, mitológicos, de ordem cosmológica que são compartilhados nos processos de trocas. No universo dos mercados e das feiras livres, em diferentes universos, evidenciamos a construção e reconstrução cotidiana de conhecimentos no universo de trocas de mercadorias, que envolvem o estabelecimento de mecanismos de reciprocidade entre feirantes e fregueses, a partir de um elemento fundamental: a circulação da palavra na perspectiva de Bordieu (2008), como apontam os exemplos etnográficos a seguir, importantes para pensarmos os mercados e as feiras livres no universo do Vale do Jequitinhonha.

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Vedana (2004), em sua dissertação de Mestrado, demonstra como no universo desta feira livre o processo de compra e venda de mercadorias envolve relações de troca e reciprocidade, permeadas por trocas de conhecimentos entre fregueses e feirantes. Na dissertação, ela denomina artes de fazer de feirantes e fregueses, que dizem respeito aos conhecimentos destes atores sociais, relacionados às trocas de mercadorias, viabilizadas a partir da circulação da palavra.

Os feirantes, para Vedana (2004), possuem diferentes artes de fazer que acionam no universo das trocas de mercadorias com os fregueses e que dizem respeito a conhecimentos e saberes vinculados aos alimentos comercializados, exemplificados pelas artes de dizer e anunciar os alimentos, que dizem respeito às relações sociais entre fregueses e feirantes. Além dos saberes relacionados às estratégias de comercialização, evidenciadas pelas piadas, jocosidades e performances orais, pelos gestos de manipulação do alimento, formas de exposição do alimento nas bancas e até mesmo saberes vinculados aos usos dos corpos como olhar firme na direção dos fregueses.

Já os fregueses, para a autora, também possuem diferentes artes de fazer que são acionadas no universo das trocas de mercadorias com os feirantes e que também dizem respeito a conhecimentos e saberes vinculados à comercialização de alimentos, que ela denomina artes de nutrir, relacionados aos gestos de escolha, manipulação dos alimentos, a partir da percepção tátil, bem como às formas e estratégias de organizar, combinar, misturar, modificar e cozinhar os alimentos.

Mercados, feiras livres, trocas, reciprocidade, relações com o sagrado e religiosidade popular

Marcel Mauss (1974) em o Ensaio sobre a dádiva discorre sobre a obrigação de dar, receber e retribuir, relacionadas com direitos e deveres e que envolvem laços espirituais. Ele reflete sobre a existência de moral dos presentes, que permeia as trocas de prendas entre homens e espíritos, as trocas entre homens e seres sagrados, visando obter a retribuição divina. O autor discorre sobre o ato de praticar a esmola que envolve a relação com os deuses e com o sagrado. Deuses retribuem e recompensam. Ele dá o exemplo dos Haúcas do Sudão: quando o trigo da Guiné está maduro, acontece que se espalham febres e a única maneira de evitar a febre consiste em dar presentes e dar trigos aos pobres.

Godelier (2001) em O Enigma do Dom também reflete sobre as relações de troca de dons entre os homens e seus deuses, a partir de preces, oferendas e sacrifícios. A realização destes sacrifícios cria naqueles que recebem uma obrigação maior de dar de volta, havendo uma comunicação, trocas e alianças com os deuses e com o sagrado (GODELIER, 2001).

As relações sociais de troca de mercadorias no universo dos mercados e feiras livres podem envolver relações de troca e reciprocidade, são marcadas por vínculos com o sagrado na

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perspectiva preconizada por Mauss (1974) e Godelier (2001), como demonstra a dissertação de Mestrado intitulada As relações de trocas materiais e simbólicas no Mercado Municipal de Araçuaí, de Servillha (2008).

Para este autor, no universo do Mercado Municipal de Araçuaí, Vale do Jequitinhonha, ocorrem sobras das mercadorias ao final das feiras. Tais sobras possuem diferentes destinos, como a alimentação das criações dos feirantes e, também, revelam-se “presentes” concedidos pelos mesmos aos mais necessitados. Este ato de presentear com alimentos, por parte dos feirantes aos mais necessitados, e de dar “esmola” está relacionado com relações de trocas e de reciprocidade com o sagrado.

Feiras livres, trocas, reciprocidade, mercadorias e relações de parentesco

Sahlins (1976) considera o parentesco como importante para o entendimento das relações de troca e reciprocidade. As relações de parentesco, para este autor, são relevantes para a realização de trocas e reciprocidade, em especial, para a viabilização de trocas generalizadas. Parentes próximos tendem a compartilhar e entrar em trocas generalizadas como salienta este autor. Lévi-Strauss (1982), neste sentido, também demonstra como processos como alianças matrimoniais e filiações envolvem relações de reciprocidade e trocas. Desta forma, as comunidades de parentesco afetam os modos de trocas e reciprocidade em contextos como os mercados e as feiras livres, como apontam os exemplos etnográficos a seguir.

Conrado & Alencar (2005) em seu artigo “Família de feirante, feirante também é: mães, pais, filhos e netos da Feira da Prainha de Belém do Pará, apresentado no Encontro de História Oral do Nordeste: Memória, patrimônio de identidades, também discute o papel das relações de troca e reciprocidade entre familiares na reprodução da atividade e do trabalho na Feira da Prainha de Belém do Pará. O artigo de Lelis, Pinto, Fiúza & Doula(s/d), intitulado Vínculos de sociabilidade e relações de trocas entre feirantes de Viçosa–MG, que tem como contexto empírico a Feira Livre da cidade de Viçosa-MG, entre os vários aspectos abordados no texto, analisa o papel das trocas e reciprocidade entre familiares, a partir dos valores e obrigações entre seus membros, para a manutenção e continuidade do trabalho na feira livre e para a reprodução das famílias.

Lima (2008), em sua dissertação de Mestrado defendida no universo do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA, Ver-o-Peso, patrimônio e práticas sociais: uma abordagem etnográfica da Feira mais importante de Belém do Pará ressalta que as atividades realizadas no Ver-o- Peso são realizadas por famílias tradicionais, cujas barracas e boxes são passados de geração em geração.

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RELAÇÕES SOCIAIS DE TROCAS MATERIAIS E SIMBÓLICAS NOS MERCADOS E FEIRAS LIVRES NO VALE DO JEQUITINHONHA: ALGUNS HORIZONTES E PERSPECTIVAS NA PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL

Como visto anteriormente, os mercados e as feiras livres no universo do Vale do Jequitinhonha apresentam um papel fundamental na geração de renda, promoção da segurança alimentar, reprodução do campesinato e da agricultura familiar, sociabilidade, identidade cultural, de territorialidades e saberes tradicionais. Neste sentido, é de extrema importância pensar os mercados e feiras livres enquanto lugares antropológicos e espaços públicos, sobretudo no universo do Vale do Jequitinhonha, de construção cultural, de territorialidades e de pertencimentos por diferentes atores sociais como feirantes e fregueses. E mais do que isto, lugares antropológicos de trocas, que devem ser pensados nos seus aspectos materiais e simbólicos, a partir das enormes contribuições da chamada Antropologia Econômica que inaugura novos olhares e horizontes de análises dos processos econômicos, enfocando seus aspectos políticos e socioculturais, que necessitam ser problematizados no universo acadêmico a partir das contribuições das diferentes áreas do conhecimento e da pesquisa.

Os exemplos etnográficos apresentados em diálogo com alguns teóricos da Antropologia Econômica corroboram para pensarmos os mercados e feiras livres como lugares antropológicos de trocas materiais e mercantis que envolvem trocas baseadas em relações sociais com o dinheiro e com o crédito, bem como de relações simbólicas, a partir da circulação de conhecimentos, relações com o sagrado, com a religiosidade popular e de trocas permeadas por relações de parentesco.

Enfim, podemos concluir que os mercados e as feiras livres revelam-se contextos e universos preciosos para a pesquisa acadêmica e investigação antropológica das trocas materiais e simbólicas estabelecidas, a partir das contribuições da Antropologia Econômica, em contextos e universos como o Vale do Jequitinhonha, que devem ser valorizados e, mais do que isto, nos quais se deve estimular a permanência de atividades tão antigas como os mercados e as feiras livres, que ainda resistem e lutam para sobreviverem no contexto da contemporaneidade e que devem ser problematizados, mais do que nunca, em nossas investigações acadêmicas e com horizontes e perspectivas no que concerne à promoção da diversidade cultural.

As reflexões teóricas sobre as feiras livres e mercados enquanto lugares antropológicos de trocas materiais e simbólicas apresentam contribuições que devem ser ressaltadas, no que se refere à promoção da diversidade cultural em universos como o Vale do Jequitinhonha. Assim sendo, espera-se que a valorização das feiras livres e mercados como lugares antropológicos de diferentes atores sociais, como feirantes e fregueses, possa possibilitar a efetivação democrática de direitos e, assim, o reconhecimento das práticas destes sujeitos socioculturais e históricos no universo de nossas investigações e pesquisas acadêmicas.

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