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Page 1: Os Meninos Do Brasil - Ira Levin
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Ira Levin

Os meninos do Brasil

Título do original: "The boys from Brazil"

Copyright Ira Levin

Tradução de César Tozzi

CIRCULO DO LIVRO S.A. Caixa postal 7413 São Paulo, Brasil

Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Livraria Francisco Alves Editora S.A.

É proibida a venda a quem não pertença ao Círculo

Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado em oficinas próprias

468 10 9753

Page 3: Os Meninos Do Brasil - Ira Levin

Este livro é uma obra de ficção. Os acontecimentos nele descritos são imaginários, e as personagens — com exceção das pessoas famosas citadas por seus nomes verdadeiros — são também imaginárias e não têm a intenção de representar determinadas pessoas vivas. O autor agradece as informações que lhe foram dadas pelo Dr. Maurice F. Goodbody, Jr., Mr. e Mrs. Halperin, Mr. Anthony Koestler e Mr. Edmund C. Wall.

Page 4: Os Meninos Do Brasil - Ira Levin

Para

Jed Levin Nicholas Levin

Adam Levin

E à memória de Charles Levin

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Um Em setembro de 1947, ao anoitecer, um pequeno avião bimotor, prateado

e preto, aterrissou numa pista auxiliar do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Diminuindo a velocidade, fez uma curva e deslizou em direção a um hangar, onde uma limusine estava à espera. Três homens, um deles de branco, passaram do avião para o carro, que saiu de Congonhas em direção aos arranha-céus brancos do centro de São Paulo. Uns vinte minutos depois, na Avenida Ipiranga, o veículo parava diante do Sakai, restaurante japonês em estilo de templo.

Lado a lado, os três homens penetraram no espaçoso vestíbulo laqueado de vermelho do Sakai. Dois deles, de ternos escuros, eram corpulentos e de aspecto agressivo, um louro e o outro de cabelos pretos. O terceiro homem, empertigado entre eles, mais magro e mais velho, vestia-se de branco, do chapéu aos sapatos, à exceção da gravata amarelo-limão. Balançava na mão enluvada de branco volumosa pasta bege e assobiava uma música, olhando em torno com aparente satisfação.

Uma recepcionista de quimono inclinou-se, sorriu graciosamente e, recebendo o chapéu do homem de branco, fez menção de apanhar sua pasta. Ele esquivou-se, porém, e dirigiu-se a um jovem e esguio japonês que vinha ao seu encontro de smoking e com um sorriso.

— Meu nome é Aspiazu — anunciou em português endurecido por ligeiro sotaque germânico. — Reservei uma sala. — Aparentava sessenta e pouco anos, tinha cabelos grisalhos cortados rentes, olhos castanhos brilhantes e joviais e um bigode grisalho, fino e bem aparado.

— Ah, Sr. Aspiazu! — exclamou o japonês, em sua versão própria do português. — Está tudo pronto para a sua reunião! Quer ter a bondade de me acompanhar por aqui? Somente alguns degraus. Vai ficar feliz, estou certo, quando vir os preparativos.

— Feliz já estou — retorquiu o homem de branco, sorrindo. — É um prazer estar na cidade.

— Mora no interior? O homem de branco, subindo atrás do louro, fez um sinal afirmativo com

a cabeça e suspirou. — Sim — proferiu secamente. — Moro no interior. O homem de cabelos

pretos seguiu atrás dele, e o japonês foi por último. — Primeira porta à direita — exclamou para os da frente. — Querem

fazer a gentileza de tirar os sapatos antes de entrar? O louro abaixou-se a fim de espreitar através de uma abertura octogonal

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na parede, depois firmou a mão no umbral da porta, ergueu o pé para trás e puxou o sapato. O homem de branco espichou um pé calçado de branco no tapete do corredor, e o homem de cabelos pretos agachou-se e desapertou-lhe a fivela dourada lateral. O louro, colocando de lado os sapatos, abriu uma porta intricadamente entalhada e entrou num aposento verde-claro. O japonês desembaraçou-se das sapatilhas com grande destreza, usando os dedos dos pés.

— Nossa melhor sala, Sr. Aspiazu — disse. — Muito agradável. — Certamente, sem dúvida. — O homem de branco premiu os dedos

enluvados de branco de encontro ao umbral, enquanto observava a remoção de seu segundo sapato.

— Nosso jantar imperial está marcado para as sete, com cerveja em vez de saque e conhaque e charutos depois.

O louro foi até a porta. Pequenas cicatrizes cerziam-lhe o rosto; uma de suas orelhas não tinha lóbulo. Acenou afirmativamente com a cabeça e deu um passo para trás. O homem de branco, agora mais baixo sem os saltos avantajados, entrou no recinto. O japonês acompanhou-o.

O cômodo era fresco e de odor adocicado, um plácido retângulo de paredes de seda, envolto no vago verde-claro de suas esteiras de tatami. No centro, espaldares de bambu com almofadas estampadas em bege e branco guarneciam três lados de uma mesa retangular escura e baixa, servida com xícaras e pratos brancos; três lugares com encosto em cada lado da mesa e uma na cabeceira da direita. Um descanso baixo para os pés via-se por baixo da mesa. Na extremidade direita do quarto havia outra mesa baixa e escura junto à parede, com dois lampiões elétricos em cima. A parede oposta era feita de biombos de papel branco emoldurado de preto.

— Espaço bastante para sete — disse o japonês, indicando a mesa central. — E serão servidos pelas nossas melhores garotas. As mais bonitas. — Sorriu, alçando as sobrancelhas.

O homem de branco, apontando os biombos, perguntou: — O que há ali atrás? — Outra sala privada, senhor. — Está ocupada esta noite? — Ainda não foi reservada, mas talvez um grupo a queira. — Reservo-a para mim. — O homem de branco fez um gesto para o

louro abrir os biombos. O japonês olhou para o louro e de novo para o homem de branco. — É uma sala para seis — disse, inseguro. — Talvez para oito. — Certamente. — O homem de branco caminhou até o canto da sala. —

Pagarei mais oito jantares. — Curvou-se a fim de examinar os lampiões sobre a mesa. Sua volumosa pasta bateu contra a calça.

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O louro abria os biombos. O japonês aprestou-se a ajudá-lo, talvez para evitar que os danificasse. O cômodo vizinho revelou-se uma réplica do outro, a não ser pelo painel de iluminação no teto, que era escuro, e pela mesa, que estava posta para seis, dois de cada lado e um em cada cabeceira. O homem de branco voltou-se para olhar. Do outro lado do aposento, o japonês sorriu-lhe, embaraçado.

— Só cobrarei se alguém pedir a sala — declarou. — E, nesse caso, apenas a diferença entre o preço lá de baixo e o que cobramos aqui em cima.

O homem de branco, mostrando-se surpreso, exclamou: — Esplêndido! Obrigado. — Com licença, por favor — disse o homem de cabelos pretos ao

japonês. Mantinha-se dentro dos limites do aposento, o terno escuro amarrotado, o rosto redondo e moreno reluzindo de suor. — Existe algum modo de tapar isto? — Apontava em direção à abertura octogonal na parede. Falava como um brasileiro.

— É para as garotas — assegurou o japonês. — Para verem se estarão à espera do prato seguinte.

— Está bem — disse o homem de branco ao homem de cabelos pretos. — Você fica do lado de fora.

— Julguei que talvez ele pudesse... — tornou o homem de cabelos pretos, e encolheu os ombros como que se desculpando.

— Considero tudo satisfatório — disse o homem de branco ao japonês. — Meus convidados chegarão às oito horas e...

— Virei trazê-los. — Não precisa. Um de meus homens ficará esperando embaixo. E,

depois de comermos, faremos uma conferência aqui. — Poderão ficar até as três, se quiserem. — Não haverá necessidade disso também, espero. Uma hora deverá

bastar. E agora faça-me o favor de trazer um cálice de Dubonnet, tinto, com gelo e casca de limão.

— Sim, senhor. — O japonês inclinou-se. — E seria possível um pouco mais de luz? Pretendo ler enquanto espero. — Infelizmente, senhor, só dispomos desta aí. — Eu me arranjo. Obrigado. — Obrigado, Sr. Aspiazu. — O japonês inclinou-se novamente, curvou-

se um pouco menos diante do louro e quase nada para o homem de cabelos pretos, retirando-se rapidamente da sala.

O homem de cabelos pretos fechou a porta e, frente a ela, levantou os braços para o alto, curvou os dedos e colocou suas pontas no cimo da moldura da porta, como se fosse tocar num teclado. Foi afastando as mãos vagarosamente.

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O homem de branco postou-se de costas para a abertura na parede, enquanto o louro se dirigia para o espaldar na cabeceira da mesa e se agachava ao lado. Apertou as almofadas beges e brancas, retirou-as da armação de bambu e deixou-as de lado. Examinou a armação, virou-a para olhar o fundo e largou-a junto às almofadas. Apalpou a esteira de tatami à volta de toda a extremidade da mesa; com as mãos abertas, inspecionou o capim entrançado, apertando-o suavemente.

Pondo-se de joelhos, enfiou a cabeça loura embaixo da mesa e olhou dentro do descanso para os pés. Curvou-se mais, virou a cabeça e espiou com um dos olhos azuis o reverso da mesa, esquadrinhando-o vagarosamente de um a outro lado.

Afastou-se da mesa, pegou a armação de bambu, recolocou as duas almofadas e dispôs o espaldar em ângulo acessível. Erguendo-se, postou-se, atento, atrás dele.

O homem de branco aproximou-se, desabotoando o casaco. Pôs a pasta no chão, virou-se e se abaixou cuidadosamente, ao encontro dos braços do espaldar. Dobrou as pernas embaixo da mesa, com os pés na direção do descanso.

O louro, curvando-se, empurrou o espaldar, ajustando-o à mesa. — Danke1 — disse o homem de branco. — Bite2 — respondeu o louro, e foi se colocar de costas para a abertura

da parede. 1 "Obrigado." Em alemão no original. (N. do E.) 2 "De nada." Em alemão no original. (N. do E.) O homem de branco retirou uma das luvas, fitando com um ar de

aprovação a mesa à sua frente. O homem de cabelos pretos, braços esguios, caminhou com lentos passos laterais pela passagem entre os dois aposentos, tateando o topo de uma saliente verga preta.

Batidas leves soaram. O louro dirigiu-se à porta e o homem de cabelos pretos voltou-se, baixando os braços. O louro pôs-se à escuta e abriu a porta para uma garçonete de quimono rosado, que entrou de cabeça inclinada, trazendo um tilintante cálice sobre uma bandeja. Seus pés cobertos por meias brancas sussurravam pelo tatami.

— Ah! — exclamou, satisfeito, o homem de branco, dobrando as luvas. Sua expressão entusiástica esmoreceu quando a garçonete, mulher de rosto inexpressivo, agachou-se junto dele e removeu o guardanapo e os pauzinhos do seu prato. — E qual é o seu nome, querida? — perguntou com forçada jovialidade.

— Tsuruko, senhor — A garçonete colocou um descanso de papel sobre a mesa.

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— Tsuruko! — Olhos arregalados e lábios franzidos, o homem olhou para o louro e para o homem de cabelos pretos, como se compartilhasse com eles o assombro causado por notável revelação.

A garçonete, depois de deixar a bebida na mesa, ergueu-se e recuou. — Até que meus convidados cheguem, Tsuruko, não quero ser

perturbado. — Sim, senhor. — Ela voltou-se e, em passos curtos, deixou

apressadamente a sala. O louro fechou a porta e retomou seu lugar diante da abertura da parede.

O homem de cabelos pretos virou-se e ergueu as mãos até o topo da verga. — Tsu-ru-ko — repetiu o homem de branco, aproximando a pasta.

Acrescentou, em alemão: — Se ela é das bonitas, como serão então as que não forem tão bonitas assim?

O louro grunhiu uma risada. O homem de branco acionou com o dedo o fecho da pasta e abriu-a o

suficiente para que não se tornasse a fechar. Enfiou as luvas dobradas num dos cantos e, folheando as bordas dos papéis e envelopes de manilha, retirou do meio deles uma revista fina. Colocou-a na mesa, ao lado do seu prato. Era um exemplar do Lancet, o periódico inglês de medicina. Examinando atentamente a capa, retirou do bolso superior um estojo forrado de pano pintalgado de bolinhas, puído e desbotado, do qual puxou um par de óculos de aros pretos. Abrindo-os, colocou-os, guardou no bolso o estojo e passou a borda dos dedos pelo bigode fino e eriçado. Tinha as mãos pequenas, rosadas, imaculadas, de aspecto jovem. Tirou do casaco uma cigarreira de ouro, na qual estava gravada uma extensa inscrição em letra manuscrita.

O louro permanecia diante da abertura da parede. O homem de cabelos pretos examinava as paredes, o chão, a mesa de serviço e os espaldares. Afastou para o lado um dos lugares do meio da mesa, esticou ali o lenço e, pisando sobre ele, abriu com uma chave de parafusos o painel de iluminação de bordas cromadas.

O homem de branco lia o Lancet, sorvendo vez por outra o seu Dubonnet e fumando um cigarro. Silvava absortamente através de uma fenda nos dentes superiores. Eventualmente parecia surpreso com o que lia. A certa altura, exclamou em inglês:

— Absolutamente errado, senhor! Os convidados chegaram dentro de quatro minutos, o primeiro

entregando à recepcionista o chapéu, mas não a pasta de documentos, três minutos antes das oito, o último um minuto depois das oito. À medida que cada um abria caminho através dos grupos e casais até o japonês de smoking,

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era cortesmente conduzido até o louro no sopé da escada. Trocavam-se palavras e o convidado era encaminhado ao andar de cima, até o homem de cabelos pretos, que apontava a fileira de sapatos junto à porta aberta.

Eram seis homens de negócios bem-vestidos, de cinqüenta e tantos anos, pele clara, nórdicos. De meias, acenavam com polidez uns para os outros e prontamente iam se apresentar em português e espanhol ao homem de branco.

— Ignacio Carreras, doutor. É uma honra conhecê-lo. — Olá! Como vai? Não posso me levantar, estou entalado aqui. Este é

José de Lima, do Rio. Ignacio Carreras, de Buenos Aires. — Doutor? Sou Jorge Ramos. — Meu amigo! Seu irmão era meu braço direito. Desculpe-me estar

sentado, estou entalado aqui. Ignacio Carreras, de Buenos Aires, José de Lima, do Rio. Jorge Ramos, daqui mesmo de São Paulo.

Dois dos convidados eram velhos amigos, felizes de se encontrarem. — Em Santiago! E você, onde tem estado? — No Rio. Um outro apresentou-se com um bater de calcanhares que falhou: — Antônio Paz, de Porto Alegre. Deixaram-se cair nos lados da mesa, com gemidos, gracejando acerca de

sua inabilidade. Instalaram-se com as pastas de documentos bem perto; abriram os guardanapos com sacudidelas, pediram seus drinques a uma garçonete jovem e bonita, graciosamente agachada. A inexpressiva Tsuruko colocou diante de cada conviva um fumegante pano de rosto. O homem de branco e seus convidados esfregaram com agrado as mãos e a boca.

Aparentemente, era como se estivessem retirando da boca, com o pano, o português e o espanhol. O alemão começou a emergir. Trocaram-se nomes em alemão.

— Ah, estou reconhecendo você. Serviu junto a Stangl, não foi? Em Treblinka?

— Você disse "Farnbach"? Minha esposa é uma Farnbach, de Langen, perto de Frankfurt.

Serviram-se drinques e pratinhos de antepastos — camarões miúdos e croquetes de carne. O homem de branco mostrou como se usavam os pauzinhos. Os que já sabiam ensinaram os inexperientes.

— Um garfo, pelo amor de Deus! — Não, não! — O homem de branco ria para a garçonete jovem e

bonita. — Vamos fazê-lo aprender! Ele tem que aprender! O nome dela era Mori. A garota de quimono comum, que levava pratos e

tigelas cobertas para Tsuruko, na mesa de serviço, disse, enrubescendo: — Yoshiko, senhor.

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Todos comiam e bebiam. Falavam do terremoto no Peru e do novo presidente americano, Ford.

Serviam-se tigelas de sopa clara e mais pratos de comida, frita e crua. E também chá.

Os homens conversavam sobre a crise do petróleo e a provável diminuição de simpatia do Ocidente por Israel.

Serviu-se mais comida — espetinhos de carne cozida, porções de lagosta — e cerveja japonesa.

Falaram sobre as mulheres japonesas. Kleist-Carreras, magro, com um olho de vidro que se movia com dificuldade, contou uma história muito engraçada acerca das desventuras de um amigo num bordel de Tóquio.

O japonês de smoking entrou e indagou se tudo corria bem. — Tudo de primeira! — assegurou-lhe o homem de branco. —

Excelente! Os demais concordaram, em português-espanhol-alemão. Serviu-se

melão. E mais chá. Falou-se de pesca e das diferentes maneiras de preparar peixe. O homem de branco pediu Mori em casamento. Ela sorriu e alegou que

tinha marido e dois filhos. Os homens se ergueram, fazendo ranger os espaldares, estiraram os

braços, puseram-se nas pontas dos pés, deram pancadinhas na barriga. Alguns, entre os quais o de branco, saíram para o corredor, em direção ao banheiro dos homens. Os outros falaram sobre o homem de branco, como era simpático, jovial e bem conservado para os seus... sessenta e três anos? Sessenta e quatro?

O primeiro grupo voltou, outro saiu. A mesa preta estava limpa, arrumada com copos de conhaque, cinzeiros

e uma caixa de charutos acondicionados em tubos de vidro. Mori fez a volta, baixando a garrafa, cobrindo de âmbar escuro os fundos dos copos. Tsuruko e Yoshiko cochichavam na mesa de serviço, discordando quanto à melhor maneira de arrumá-la.

— Fora, garotas — ordenou o homem de branco, dirigindo-se ao seu lugar. — Queremos conversar em particular.

Tsuruko foi enxotando Yoshiko à sua frente. De passagem, desculpou-se:

— Depois tiramos a mesa. Mori serviu a última dose de conhaque, deixou a garrafa na cabeceira

vaga da mesa e apressou-se em direção à porta, detendo-se de lado, com a cabeça inclinada, enquanto os demais homens entravam.

O homem de branco arriou-se no seu espaldar. Farn-bach-Paz auxiliou-o a acomodar-se.

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O homem de cabelos pretos olhou lá da porta, contou os circunstantes e fechou-a.

Os homens sentaram-se nos seus lugares, solenemente desta vez, sem brincadeiras. A caixa de charutos circulou.

A abertura da parede foi encoberta do outro lado pelo pano escuro de um terno.

O homem de branco tirou um cigarro da sua cigarreira dourada, fechou-a, olhou-a e ofereceu-a a Farnbach à sua direita, que meneou a cabeça raspada a navalha. Verificando, porém, que era convidado a ler e não a fumar, segurou a cigarreira, focalizando a visão. Seus olhos azuis arregalaram-se, identificando.

— Ah! — Enquanto lia, os grossos lábios franzidos sugaram o ar. Sorrindo alvoroçado para o homem de branco, exclamou: — Maravilhoso! Melhor ainda que uma medalha! Permite-me? — e acenou com a cigarreira em direção a Kleist, ao seu lado.

O homem de branco fez um aceno afirmativo de cabeça, sorrindo, as faces rosadas, e virou-se a fim de encostar o cigarro à chama de um isqueiro à sua esquerda. Semicerrando os olhos ante a fumaça, puxou mais para perto a pasta ao lado e escancarou-a novamente.

— Maravilhoso! — exclamou Kleist. — Olhe, Schwimmer. O homem de branco localizou e retirou da pasta um maço de papéis.

Colocou-os à sua frente, depois de afastar o conhaque. Pousou o cigarro num cinzeiro branco. Observando o belo e bem-conservado Schwimmer passar a cigarreira para o outro lado da mesa, em direção a Mundt, ele tirou um estojo do bolso de cima e dali os óculos. Sorriu ante os sorrisos de admiração de Schwimmer e Kleist, embolsou o estojo, abriu numa sacudidela os óculos e escorregou-os sobre as orelhas, ajustando-os. Um assobio da parte de Mundt, prolongado e baixo. O homem de branco pegou o cigarro, puxou uma baforada satisfeita e largou-o de novo no cinzeiro. Endireitou os papéis à sua frente e examinou o de cima, pegando o conhaque.

— Hummmm! — veio de Traunsteiner. O homem de branco sorveu o conhaque, folheou o final do maço de

papéis. A cigarreira voltou para ele, vinda de Hessen, de cabelos prateados,

olhos azuis brilhando no rosto ossudo. — Que maravilha possuir algo assim! — Sim — assentiu o homem de branco, com outro aceno afirmativo. —

Tenho imenso orgulho dela. — Pousou a cigarreira ao lado dos papéis. — Quem não teria? — indagou Farnbach. O homem de branco afastou o copo de conhaque e disse: — Vamos ao nosso assunto agora, rapazes. — Inclinando a tosada

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cabeça grisalha, baixou os óculos sobre o nariz e fitou os homens por cima deles. Eles o encaravam atentos, charutos em riste. O silêncio invadiu o aposento, quebrado apenas pelo gemido baixo do ar-condicionado.

— Vocês sabem o que têm a fazer — disse o homem de branco —, e não ignoram que se trata de árduo trabalho. Vou fornecer os detalhes agora. — Curvou a cabeça para a frente, baixando o olhar através dos óculos. — Noventa e quatro homens têm de morrer, em determinadas datas ou perto delas, dentro dos próximos dois anos e meio — anunciou, lendo. — Dezesseis estão na Alemanha Ocidental, catorze na Suécia, treze na Inglaterra, doze nos Estados Unidos, dez na Noruega, nove na Áustria, oito na Holanda, e mais dois grupos de seis na Dinamarca e no Canadá. Total, noventa e quatro. O primeiro deverá morrer por volta de 16 de outubro, o último, por volta de 23 de abril de 1977.

Recostou-se, fitando novamente os homens. — Por que estes homens precisam morrer? E por que em datas especiais

ou perto delas? — Meneou a cabeça. — Agora não, mais tarde poderão ser informados. Mas isto posso lhes dizer agora: suas mortes constituem o passo final de uma operação à qual eu e os líderes da Organização dedicamos muitos anos, um esforço imenso e uma grande parte das finanças da Organização. É a mais importante operação jamais empreendida pela Organização, e "importante" é uma palavra demasiado fraca para qualificá-la. A esperança e o destino da raça ariana estão em jogo. Não há exagero aqui, meus amigos. É a verdade literal: o destino da gente ariana — seu predomínio sobre os eslavos e semitas, negros e amarelos — será cumprido se a operação tiver êxito, e não será cumprido se a operação falhar. Portanto, "importante" não é uma palavra suficientemente forte, não é verdade? "Sagrada", talvez? Sim, esta cai melhor. É uma operação sagrada esta em que tomam parte.

Pegou o cigarro, bateu a cinza e levou cuidadosamente aos lábios a ponta restante.

Os homens entreolharam-se silenciosamente, pasmos. Lembraram-se de tirar baforadas dos charutos, sorver os conhaques. Voltaram o olhar para o homem de branco. Ele esmagou o cigarro no cinzeiro e fitou-os.

— Vocês sairão do Brasil com novas identidades — declarou, tocando na pasta ao lado. — Está tudo aqui. Negócio tranqüilo, nada de falsificações. E disporão de abundantes fundos para os próximos dois anos e meio. Em diamantes — ele sorriu — que, receio, terão de fazer passar pela alfândega de maneira bem incômoda.

Os homens sorriram, encolhendo os ombros. — Cada um será responsável pelos homens em um ou dois países. Terão

de treze a dezoito missões cada um; entretanto, alguns deles já terão morrido

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de causas naturais. Eles têm sessenta e cinco anos. Não muitos terão morrido, porém, já que tinham excelente saúde por volta dos cinqüenta e dois anos, sem sinais de doença.

— Todos têm sessenta e cinco? — indagou Hessen, mostrando-se intrigado.

— Quase todos — respondeu o homem de branco. — Isto é, quando suas datas chegarem. Uns poucos terão um ano ou dois a mais ou a menos. — Pôs de lado o papel no qual lera os países e as cifras e apanhou as outras nove ou dez folhas. — Os endereços — informou aos homens — são os de 1961 e 62, mas vocês não deverão ter muito trabalho para localizá-los agora. A maioria provavelmente ainda estará onde estava. São homens de família, estáveis. Funcionários públicos, na maior parte — fiscais de impostos, diretores de escolas, e assim por diante. Homens de pouca autoridade.

— Também têm isso em comum? — indagou Schwimmer. O homem de branco acenou afirmativamente. — Um grupo extraordinariamente homogêneo — observou Hessen. —

São membros de outra organização, contrária à nossa? — Nem sequer se conhecem entre si. Nem tampouco a nós — disse o

homem de branco. — Pelo menos, espero que não. — Devem estar aposentados agora, não é? — indagou Kleist. — Já que

têm sessenta e cinco? — Seu olho de vidro olhava para outro ponto. — Sim, a maioria estará provavelmente aposentada — assentiu o homem

de branco. — Mas, se mudaram de residência, podem ficar certos de que tiveram o cuidado de deixar os novos endereços. Schwimmer, você pega a Inglaterra. Treze, o menor número. — Entregou uma folha datilografada a Kleist, para que passasse a Schwimmer. — Nenhum desabono às suas habilidades — e sorriu para Schwimmer. — Pelo contrário, trata-se de um reconhecimento delas. Sei que você é capaz de se transformar num inglês do qual a própria rainha não suspeitaria.

— Você de fato sabe lisonjear, meu velho. — Schwimmer arrastou o seu inglês oxfordiano, acariciando o bigode ruivo, enquanto olhava a folha. — A verdade é que a velhota não é tão inteligente assim, você sabe.

O homem de branco sorriu. — Este talento pode muito bem revelar-se útil — disse ele —, embora

sua nova identidade, como a de todos os outros, seja a de um filho da Alemanha. Serão caixeiros viajantes, rapazes. Talvez entre uma missão e outra tenham tempo de descobrir algumas filhas de fazendeiros. — Passou o olhar para a folha seguinte. — Farnbach, você viajará pela Suécia. — Entregou a folha para a direita. — Com catorze fregueses para as suas finas mercadorias importadas.

Pegando a folha, Farnbach inclinou-se para a frente, com a testa franzida

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até o início da careca. — Todos eles funcionários públicos idosos — ponderou. — Matando-os,

daremos cumprimento ao destino da raça ariana? O homem de branco fitou-o por um momento. — Isto foi uma pergunta ou uma afirmativa, Farnbach? — indagou. —

Pareceu-me uma pergunta ambígua, e se for assim considero-me surpreso. Porque você, e todos os demais, foram escolhidos para esta operação com fundamento em sua incontestável obediência, como também em suas outras características e talentos.

Farnbach recostou-se, os lábios grossos apertados, as narinas frementes, o rosto ruborizado.

O homem de branco olhou para as próximas folhas grampeadas. — Não, Farnbach, estou certo de que era uma afirmativa — asseverou

—, e neste caso preciso corrigi-la ligeiramente: matando-os, você preparará o caminho para o cumprimento do destino, etc. Ele virá. Não em abril de 1977, quando o nonagésimo quarto homem morrer, mas no devido tempo. Apenas, tratem de obedecer às ordens. Traunsteiner, você tem a Noruega e a Dinamarca. — Ele passou as folhas. — Dez numa, seis na outra.

Traunsteiner pegou as folhas, o quadrado rosto avermelhado expressando feroz determinação: Obediência Incontestável.

— A Holanda e a parte alta da Alemanha — disse o homem de branco — são para o Sargento Kleist. Dezesseis novamente, oito e oito.

— Obrigado, Herr Doktor. — Oito na baixa Alemanha e nove na Áustria perfazem dezesseis para o

Sargento Mundt. Mundt, rosto redondo, cabeça tosada, de monóculo, sorria, esperando as

folhas lhe serem passadas. — Enquanto estiver na Áustria — declarou — vou aproveitar para cuidar

de Yakov Liebermann. — Traunsteiner, passando-lhe as folhas, sorriu, mostrando os dentes com obturações em ouro.

— Yakov Liebermann — tornou o homem de branco — já recebeu os devidos cuidados por parte do tempo, má saúde e falência do banco onde guardava seu dinheiro de judeu. Vive à caça de contratos para conferências, e não de nós. Esqueça-se dele.

— Evidentemente — assegurou Mundt. — Eu estava apenas brincando. — E eu não estou. Para a polícia e para a imprensa, ele não passa de

velha praga enfadonha, com um arquivo cheio de fantasmas. Matá-lo significa transformá-lo em herói desprezado, com inimigos vivos ainda por capturar.

— Nunca ouvi falar do maldito judeu. — Quisera poder dizer o mesmo. Os homens riram.

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O homem de branco entregou seu último par de folhas a Hessen. — E para você, dezoito — disse ele, sorrindo. — Doze nos Estados

Unidos e seis no Canadá. Espero que faça jus ao seu irmão. — Farei — retorquiu Hessen, erguendo a cabeça prateada, uma

expressão de orgulho nas feições marcadas. — Verá que sim. O homem de branco olhou os circunstantes. — Eu lhes disse — declarou — que os homens deverão ser mortos na

data, ou nas proximidades dela, fornecida juntamente com o nome de cada um. "Na" evidentemente é melhor do que "nas proximidades", mas apenas microscopicamente. Uma semana a mais ou a menos não fará grande diferença, e mesmo um mês será aceitável, se tiverem razões para julgar que a missão se tornará menos perigosa. Quanto aos métodos: quaisquer que escolherem, contanto que variados e que afastem sempre a idéia de premeditação. As autoridades de nenhum dos países deverão suspeitar que uma operação está em andamento. Não será difícil para vocês. Tenham em mente que se trata de homens com sessenta e cinco anos de idade: sua vista está falhando, têm reflexos lentos, força diminuída. É provável que dirijam mal, atravessem as ruas descuidadamente, sofram quedas, sejam esfaqueados e roubados por assaltantes. Existem dúzias de maneiras mediante as quais tais homens poderão ser mortos sem atrair demasiada atenção. — Ele sorriu. — Confio em que as descubram.

— Poderemos contratar alguém para se encarregar de uma missão ou para servir de auxílio? Se esta for a melhor maneira de executá-la? — indagou Kleist.

O homem de branco espalmou as mãos em atônita surpresa. — Vocês são homens sensatos, de bom discernimento — recordou a Kleist. — Por isso os escolhemos. Se acharem que a

missão deva ser executada de certo modo, assim deverão agir. Desde que os homens morram na época certa e as autoridades não suspeitem de uma operação, vocês terão completa liberdade de ação. — Ergueu um dedo. — Não, completa, não, desculpem. Há uma condição, e bastante importante: não queremos que as famílias dos homens sejam envolvidas, quer como vítimas, em qualquer espécie de acidente, ou, no caso, digamos, de jovens esposas que se mostrem acessíveis a propostas românticas, como cúmplices. Repito: as famílias não deverão ser envolvidas de maneira alguma. Somente estranhos poderão servir de cúmplices.

— Para que necessitaríamos de cúmplices? — perguntou Traunsteiner. — Nunca se sabe o que se terá pela frente — respondeu Kleist. — Viajei por toda a Áustria — asseverou Mundt, olhando uma das

folhas —, e há lugares aqui de que nunca ouvi falar. — É — resmungou Farnbach, olhando sua única folha.

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— Conheço a Suécia, mas certamente nunca ouvi falar de nenhuma "Rasbo".

— É uma cidadezinha a uns quinze quilômetros a nordeste de Uppsala — informou o homem de branco. — Trata-se de Bertil Hedin, não? Ele é agente do correio de lá.

Farnbach fitou-o, as sobrancelhas soerguidas. O homem de branco sustentou-lhe o olhar e sorriu pacientemente. — Matar o agente de correio Hedin — asseverou — é por todos os

modos importante — corrija-se, sagrado —, conforme declarei. Vamos lá, Farnbach, seja o excelente soldado que sempre foi.

Farnbach encolheu os ombros e voltou os olhos para a sua folha. — Você... é quem manda — disse ele. — Exatamente — assentiu o homem de branco, ainda sorridente ao se

voltar para a sua pasta. Hessen, olhando as suas folhas, observou: — Aqui está uma boa: "Kankakee". — Nas imediações de Chicago — informou o homem de branco,

apanhando entre as mãos abertas um monte de envelopes de papel manilha. Derramou-os sobre a mesa, meia dúzia de grandes envelopes abarrotados cada um com um nome escrito num canto: "Cabral", "Carreras", "de Lima". Um copo de conhaque foi derrubado na precipitação com que os envelopes deslizaram.

— Desculpem — disse o homem de branco, recostando-se. Com um gesto, ordenou que os envelopes fossem distribuídos e retirou os óculos. — Não abram aqui — determinou, apertando o nariz e esfregando-o. — Eu mesmo verifiquei tudo esta manhã. Passaportes alemães, com carimbos de entrada brasileiros e os vistos em ordem, licenças de trabalho, de motorista, cartões de visita e documentos, está tudo aí. Quando voltarem para seus quartos treinem suas novas assinaturas e assinem tudo o que for preciso. Suas passagens aéreas estão aí também, e algum dinheiro dos países a que se destinam, no valor de uns poucos milhares de cruzeiros.

— E os diamantes? — indagou Kleist, segurando com as duas mãos o envelope escrito "Carreras".

— Estão num cofre da sede. — O homem de branco guardou os óculos no estojo estampado de bolinhas. — Apanhem-nos quando estiverem a caminho do aeroporto — partirão amanhã — e entreguem a Ostreicher seus atuais passaportes e documentos pessoais, para que fiquem guardados até a volta.

— Logo agora que já me habituara ao "Gómez" — lamentou-se Mundt, mostrando os dentes num sorriso. Os outros riram.

— Quanto estamos recebendo? — perguntou Schwimmer, passando o

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fecho ecler na pasta. — Em diamantes, quero dizer. — Cerca de quarenta quilates cada um. — Ui! — antecipou Farnbach. — Não, os tubos são muito pequenos. Apenas cerca de uma dúzia de

pedras de três quilates. Vale cada uma uns setenta mil cruzeiros pelo mercado atual, e mais no futuro, com a inflação. Portanto, terão o equivalente a pelo menos novecentos mil cruzeiros para os dois anos e meio. Viverão com muito conforto, digno de vendedores das grandes firmas alemãs, e disporão de dinheiro mais do que suficiente para todo o equipamento de que necessitarem. A propósito, tratem de não levar arma alguma no avião. Estão revistando todo mundo presentemente. Deixem todas as que tiverem com Ostreicher. Não terão dificuldades em vender os diamantes. Na verdade, talvez precisem é afastar os compradores. Tudo entendido?

— E o controle? — indagou Hessen, pondo ao seu lado a pasta. — Não falei nisso? Primeiro dia de cada mês, por telefone, para a filial

brasileira da sua companhia — a sede, é claro. Da maneira mais natural possível. Especialmente você, Hessen. Tenho certeza de que nove entre dez telefones dos Estados Unidos são censurados.

— Não falo norueguês desde a guerra — declarou Traunsteiner. — Estude. — O homem de branco sorriu. — Alguma coisa mais? Não?

Bem, então tomemos mais um pouco de conhaque, que pensarei num brinde apropriado para o bota-fora. — Pegou a cigarreira, abriu-a e retirou um cigarro. Fechou-a, contemplou-a e, aproximando a manga branca do lado inscrito, deu-lhe enérgico polimento.

Tsuruko inclinou-se e agradeceu ao senhor. Enfiando as notas dobradas

na cintura do quimono, passou de mansinho por ele, rapidamente, em direção à mesa de serviço, onde Yoshiko juntava as tigelinhas de restos ressequidos.

— Ele me deu vinte e cinco! — cochichou Yoshiko em japonês. — Quanto você ganhou?

— Não sei — sussurrou Tsuruko, agachando-se, ajustando a tampa apenas encostada de uma terrina de arroz embaixo da mesa. — Não olhei ainda. — Puxou com as duas mãos a larga e achatada terrina laqueada de vermelho.

— Cinqüenta, aposto! — Tomara que sim. Levantando-se, Tsuruko passou apressada, com a terrina, pelo senhor e

um de seus convidados que brincava com Mori, e saiu para o corredor.

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Ziguezagueou por entre os outros convidados — que se ajudavam com calçadeiras, curvados, agachados — e abriu com o ombro uma porta de vaivém.

Desceu com a terrina um estreito lance de escadas iluminado por lâmpadas nuas dependuradas de fios e entrou por um corredor igualmente estreito, com paredes revestidas de madeira.

O corredor dava para uma cozinha fumegante e ruidosa, onde antiquados ventiladores de teto giravam vagarosamente suas pás por sobre o alarido das garçonetes, cozinheiros e ajudantes. No seu quimono rosado, Tsuruko carregou a larga terrina vermelha por entre eles, passando por um ajudante que picava verduras, e um outro que ergueu o olhar para ela, enquanto puxava uma bandeja de pratos de uma gotejante máquina de lavar louça embutida.

Colocou a terrina sobre a mesa, onde estavam empilhadas caixas de cogumelos, e, virando-se, tirou de uma cesta de lona para guarnição de mesa um guardanapo usado, que sacudiu e esticou sobre a superfície metálica. Retirou a tampa da terrina e colocou-a de lado. Dentro da terrina vermelha havia um gravador preto cromado, um Panasonic, com indicações em inglês nos controles, as engrenagens do cassete girando suavemente no visor do aparelho. Tsuruko hesitou, a mão sobre os botões, franziu a testa, indecisa, e retirou o gravador da terrina, colocando-o sobre o guardanapo e amarrando as pontas dor cima.

Segurando o gravador embrulhado junto ao peito, dirigiu-se a uma porta envidraçada e agarrou a maçaneta. Um homem sentado nas proximidades, costurando um avental, ergueu o olhar.

— São restos — disse ela, exibindo o volume envolto no guardanapo. — Uma velha vem apanhar.

O homem pousou nela os olhos cansados de seu murcho rosto amarelo e baixou-os para as mãos que cosiam.

Ela abriu a porta e saiu para uma pequena área. Um gato pulou de umas latas de lixo e disparou em direção ao fim de uma passagem, onde se divisavam as luzes da rua e as de néon.

Tsuruko fechou a porta atrás de si e inclinou-se para a escuridão. — Ei, está aí, Sr. Hunter? — chamou baixinho em português. Um vulto surgiu rapidamente de um lado da passagem, um homem alto e

magro, com uma bolsa a tiracolo. — Você fazer o serviço? — Sim — disse ela, desembrulhando o gravador. — Ainda está girando.

Não achei o botão de desligar. — Bom, bom, não ter importância. — Ele era moço. A luz da porta

bateu sobre "seu rosto de belas feições e cabelos castanhos crespos. — Onde

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você instalar isto? — indagou. — Numa terrina de arroz embaixo da mesa de serviço. — Entregou-lhe o

gravador. — Com a tampa encostada para eles não verem. Ele inclinou o gravador em direção à porta; e apertou um dos botões e

depois outro. Um agudo chilrear ressoou. Tsuruko, observando, afastou-se a fim de lhe dar mais luz.

— Perto de onde eles sentar? — perguntou ele. Falava mal o português. — Como daqui até ali. — E mostrou com um gesto a distância até a lata

de lixo mais próxima. — Bom, bom. — O rapaz apertou um botão, acabando com o chilrear, e

premiu outro: a voz do homem de branco falou em alemão, distante, circundada de um eco.

— Ótimo! — exclamou o rapaz, e parou a voz com outro botão. Apontou para o gravador. — Quando começar a gravar?

— Depois que eles acabaram de comer, logo antes de nos mandarem sair. Falaram durante quase uma hora.

— Eles ir embora? — Estavam saindo quando desci. — Bom, bom. — O rapaz deu um puxão no fecho ecler da sua bolsa azul

e branca de uma linha aérea. Usava blusão e calças de zuarte azul. Aparentava ter uns vinte e três anos, e ser norte-americano. — Você ser grande ajuda minha — disse a Tsuruko, enfiando o gravador na bolsa.

— Minha revista estar muito feliz quando eu levar para casa uma história sobre o Sr. Aspiazu. Ele ser o mais famoso fazedor de cinema. — Levando a mão à cintura, retirou uma carteira, abrindo-a em direção à luz.

Tsuruko observava, segurando o guardanapo embolado. — Uma revista norte-americana? — perguntou. — Sim — respondeu o rapaz, contando as notas. — Movie Story. Revista

muito importante de cinema. — Sorriu alegremente para Tsuruko e entregou-lhe o dinheiro. — Cento e cinqüenta cruzeiros. Muito obrigado. Você ser grande ajuda minha.

— Obrigada. — Ela olhou as notas e sorriu-lhe com uma inclinação rápida de cabeça.

— O seu restaurante ter cheiro bom — disse ele, embolsando a carteira. — Ficar com muita fome enquanto esperar.

— Gostaria que lhe arranjasse alguma coisa? — Ela enfiou as notas no quimono. — Eu poderia...

— Não, não. — Ele tocou-lhe a mão. — Eu comer no meu hotel. Obrigado. Muito obrigado. — Deu um aperto na mão dela, voltou-se e afastou-se em largas passadas pela passagem.

— Sempre às ordens, Sr. Hunter! — gritou ela. Ficou olhando por um

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momento, depois virou-se, abriu a porta e entrou. Tiveram uma rodada de drinques de cortesia no bar, a isso persuadidos

menos pela instância do japonês de smoking — que se apresentou como sendo Hiroo Kuwayama, um dos três donos do Sakai — do que pela presença ali da novidade de um jogo de pingue-pongue eletrônico, que se revelou tão atraente que foi pedida e consumida outra rodada, e ainda proposta outra, que afinal não foi pedida.

Por volta das onze e meia, dirigiram-se em massa à recepção, a fim de apanharem os chapéus. A garota de quimono, entregando a Hessen o seu, sorriu e disse:

— Um amigo seu veio à sua procura, mas não quis subir sem ter sido convidado.

Hessen olhou-a por um momento. — Ah, sim — fez ele. Ela fez um aceno afirmativo de cabeça. — Um rapaz. Norte-americano, acho. — Ah — tornou Hessen. — Claro. Sim. Sei quem é. Veio me procurar,

segundo diz. — Sim, senhor. Quando o senhor subia as escadas. — Perguntou aonde eu ia, claro. Ela fez um aceno afirmativo de cabeça. — E lhe disse? — Que era uma reunião particular. Ele julgou saber quem a estava

oferecendo, mas enganou-se. Eu lhe disse que era o Sr. Aspiazu. Ele também o conhece.

— Sim, sei — disse Hessen. — Somos todos bons amigos. Ele devia ter subido.

— Disse que provavelmente se tratava de encontro de negócios e que não queria perturbar. Além do mais, não estava vestido direito. — Desceu as mãos ao longo do corpo, com ar de pena. — Estava de blue jeans. — Roçou os dedos finos no pescoço. — E sem gravata.

— Ah — fez Hessen. — Bem, de qualquer maneira, foi uma pena ele não ter subido, quando mais não fosse para dizer "olá". Foi embora logo?

Ela fez um aceno afirmativo. — Está bem. — Hessen sorriu e deu-lhe um cruzeiro. Foi falar com o

homem de branco. Os outros, segurando os chapéus e as pastas, aglomeraram-se em volta.

O louro e o homem de cabelos pretos dirigiram-se rapidamente às entalhadas portas de entrada. Traunsteiner entrou apressado no bar e voltou

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um momento depois acompanhado de Hiroo Kuwayama. O homem de branco pousou a mão enluvada de branco no ombro negro

de Kuwayama e falou-lhe com ar grave. Kuwayama ouviu, respirou fundo, mordeu o lábio, meneou a cabeça. Respondeu com gestos tranqüilizadores e dirigiu-se às pressas aos fundos do restaurante.

Com um gesto brusco, o homem de branco afastou os outros homens. Foi para o outro lado do saguão e pousou o chapéu e a pasta, menos volumosa agora, sobre uma mesa preta com abajur. Permaneceu olhando para os fundos do restaurante, franzindo a testa e esfregando as mãos enluvadas. Baixou os olhos para elas e desceu-as junto ao corpo.

Vieram dos fundos do restaurante Tsuruko e Mori, de slacks e blusas coloridas, e Yoshiko, ainda de quimono. Kuwayama empurrou-as à frente. Pareciam confusas e preocupadas. Os fregueses lançaram-lhes olhares.

O homem de branco curvou a boca num sorriso amistoso. Kuwayama entregou as três mulheres ao homem de branco, inclinou-se e

colocou-se de lado, assistindo de braços cruzados. O homem de branco sorriu, meneou tristemente a cabeça, correu a mão

enluvada pelos tosados cabelos grisalhos. — Meninas — anunciou —, uma coisa realmente ruim aconteceu. Ruim

para mim, quero dizer, não para vocês. Boa para vocês. Vou explicar. — Respirou fundo. — Sou fabricante de maquinaria agrícola — disse ele —, um dos maiores da América do Sul. Os homens que estão comigo esta noite — apontou por cima do ombro — são meus vendedores. Reunimo-nos aqui a fim de que eu pudesse lhes falar a respeito de umas novas máquinas que estamos pondo em produção, dar-lhes todos os detalhes e características, vocês sabem. Tudo ultra-secreto. Agora descobri que um espião de uma empresa norte-americana rival soube de nossa reunião logo antes de ela começar, e, conhecendo a maneira como essa gente age, estou propenso a apostar que ele se dirigiu à cozinha, pegou uma de vocês, ou mesmo todas vocês, e pediu-lhes que escutassem nossa conversa de algum... esconderijo secreto, ou, talvez, tirassem fotografias.

— Levantou o dedo. — Olhem — explicou —, alguns de meus vendedores trabalharam anteriormente para essa empresa rival, e eles não sabem — os da empresa não sabem — quem trabalha comigo atualmente. Portanto nossas fotografias lhes seriam igualmente úteis. — Inclinou a cabeça, com um sorriso pesaroso. — É uma atividade muito competitiva

— observou. — A lei do cão. Tsuruko, Mori e Yoshiko, com um olhar inexpressivo, meneavam de

leve as cabeças. Kuwayama, que se pusera de lado, por trás do homem de branco,

proferiu severamente:

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— Se alguma de vocês fez o que o senhor... — Deixe comigo! — O homem de branco lançou a mão aberta para trás,

mas sem se voltar. — Por favor. — Baixou a mão, sorriu, deu meio passo à frente. — Este homem — prosseguiu, com bom humor —, um jovem norte-americano, lhes teria oferecido dinheiro, claro, e lhes teria contado algum tipo de história, referente a uma brincadeira ou coisa parecida, uma travessurazinha inofensiva que fazia conosco. Agora, posso entender inteiramente como garotas, que não são, estou certo, lá muito bem pagas... — vocês não são, não é mesmo? Acaso meu amigo aqui as estará pagando muito bem? — Seus olhos castanhos cintilaram à espera de uma resposta.

Dando risadinhas, Yoshiko meneou com veemência a cabeça. O homem de branco riu também e estendeu a mão em direção ao seu

ombro, recolhendo-a, porém, antes de tocá-la. — Bem que eu achei! — exclamou. — É o que eu achava! Quer dizer,

eu tinha certeza que não! — Sorriu para Mori e Tsuruko. Elas sorriram-lhe de volta, hesitantes. — Ora, posso entender muito bem — continuou, novamente sério — que garotas na situação de vocês, trabalhadoras, com responsabilidade de família — você com seus dois filhos, Mori —, posso entender muito bem que concordariam com uma oferta dessas. Na verdade, não posso é entender como não haveriam de concordar com ela. Seriam imbecis se não o fizessem! Uma brincadeirazinha inofensiva, alguns cruzeiros extras. As coisas andam caras hoje em dia, eu sei. Por isso dei-lhes boas gorjetas lá em cima. Portanto, se a oferta foi feita, e foi aceita, acreditem-me, garotas: não há raiva de minha parte, nem ressentimento. Somente compreensão e a necessidade de saber.

— Senhor — protestou Mori —, dou-lhe minha palavra, ninguém me ofereceu coisa alguma ou me pediu para fazer qualquer coisa.

— Ninguém — reiterou Tsuruko, meneando a cabeça. E Yoshiko, meneando a sua, confirmou:

— Sinceramente, senhor. — Como prova de minha compreensão — tornou o homem de branco,

abrindo o casaco e procurando dentro dele — vou dar-lhes o dobro do que ele lhes ofereceu, ou seja, duas vezes o que ele gastou. — Retirou uma grossa carteira de crocodilo, abriu-a de chofre e mostrou a margem interna de dois maços de notas. — Foi isto que quis dizer antes — disse — quanto a ser uma coisa ruim para mim, mas boa para vocês. — Olhou de uma mulher para outra. — O dobro do que ele lhes deu — insistiu. — Para vocês, e a mesma quantia para o senhor... — virou para trás a cabeça, em direção a Kuwayama, que logo declinou o seu nome. — Para que ele também não fique zangado com vocês. Hein, garotas? Por favor! — O homem de branco mostrou o seu dinheiro a Yoshiko. — Anos foram gastos nisto, nestas novas

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máquinas — disse-lhe. — Milhões de cruzeiros! — Mostrou o dinheiro a Mori. — Se eu soubesse quanto o meu rival sabe, então poderia tomar medidas a fim de me proteger. — Mostrou o dinheiro a Tsuruko. — Posso acelerar a produção, ou talvez encontrar este rapaz e... fazê-lo passar para o meu lado, dar dinheiro para ele, com também para vocês e o senhor...

— Kuwayama. Vamos, garotas, não tenham medo. Digam ao Sr. Aspiazu. Não ficarei zangado com vocês.

— Estão vendo? — instou o homem de branco. — Somente o bem pode vir. Para todos!

— Nada há para contar — insistiu Mori, e Yoshiko, olhando para a carteira aberta, com seus maços de notas, insistiu tristemente:

— Nada. Sinceramente. — Ergueu o olhar. — Eu contaria com satisfação, senhor. Mas realmente não há nada.

Tsuruko olhava para a carteira. O homem de branco observava-a. Ela ergueu os olhos para ele e, hesitante, embaraçada, fez um aceno

afirmativo com a cabeça. Ele soltou a respiração, fitando-a atentamente. — Foi justamente como disse — reconheceu ela. — Estava na cozinha,

na hora em que nos preparávamos para servi-los, e aí um dos rapazes veio me dizer que um homem lá fora queria falar com alguém que tivesse sido destacado para servi-lo. Era muito importante. Por isso saí, e ali estava ele, o norte-americano. Deu-me duzentos cruzeiros, cinqüenta antes e cento e cinqüenta depois. Disse que era repórter de uma revista, e que o senhor fazia filmes e nunca dava entrevistas.

O homem de branco, olhando-a, ordenou: — Prossiga. — Disse que seria uma boa reportagem se descobrisse que filmes o

senhor estava planejando. Falei-lhe que o senhor ia conversar com os seus convidados depois — conforme nos disse o Sr. Kuwayama — e ele...

— Pediu-lhe que se escondesse e escutasse. — Não, senhor, ele me deu um gravador, eu o trouxe e devolvi-o quando

acabaram de conversar. — Um... gravador? — Ele me ensinou a fazê-lo funcionar. Dois botões de uma vez. — E

com os dois indicadores ela apertou o ar à sua frente. O homem de branco fechou os olhos e permaneceu imóvel, a não ser por

um leve balanço de um lado para o outro. Abriu os olhos e olhou Tsuruko, sorrindo fracamente.

— Um gravador esteve ligado durante nossa conferência? — indagou. — Sim, senhor — respondeu ela. — Dentro de uma terrina de arroz,

embaixo da mesa de serviço. Deu muito certo. O homem experimentou antes

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de me pagar, e ficou muito satisfeito. O homem de branco aspirou ar pela boca, passou a língua pelo lábio

superior, deixou sair o ar, fechou a boca e engoliu. Levou a mão enluvada de branco à testa e limpou-a vagarosamente.

— Duzentos cruzeiros ao todo — confirmou Tsuruko. O homem de branco fitou-a, aproximou-se mais e respirou fundo. Seu

sorriso caiu sobre Tsuruko, meia cabeça mais baixa que ele. — Minha cara — falou suavemente —, quero que me conte tudo o que

puder sobre o homem. Era jovem, de que idade? Que aspecto tinha? Desconcertada com sua proximidade, Tsuruko disse: — Tinha vinte e dois ou vinte e três, acho. Não pude vê-lo claramente.

Era muito alto. Bonito, gentil. Tinha cabelos castanhos crespos. — Está bem — disse o homem de branco —, esta é uma boa descrição.

Estava de blue jeans... — Sim. E com um blusão igual, sabe, curtinho e azul. E tinha uma bolsa

de alça de uma companhia aérea. — Fez um gesto por cima do ombro. — Era onde guardava o gravador.

— Muito bom. Você é muito observadora, Tsuruko. De que companhia aérea?

Ela pareceu mortificada. — Não reparei. Era azul e branca. — Uma bolsa azul e branca de uma companhia aérea. Bastante bom. E o

que mais? Ela franziu a testa, meneou a cabeça e lembrou-se, feliz: — O nome dele é Hunter, senhor! — Hunter? — Sim, senhor! Hunter. Ele disse bem claramente. O homem de branco

sorriu ironicamente. — Estou bem certo de que o fez. Prossiga. Que mais? — Falava mal o português. Disse que eu fui "grande ajuda" dele e

cometeu todo tipo de erro. E tinha pronúncia errada. — Então ele não se demorou muito aqui, não foi? Está sendo uma

"grande ajuda" para mim, Tsuruko. Continue. Ela franziu a testa e encolheu debilmente os ombros. — É só isto, senhor. — Por favor, procure lembrar-se de alguma coisa mais, Tsuruko —

insistiu. — Você não faz idéia de como isso é importante. Ela mordeu um dos nós do punho fechado e, olhando-o, meneou a

cabeça. — Ele não lhe disse como entrar em contato com ele, no caso de eu

convocar outra reunião?

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— Não, senhor! Não! Nada disso. Eu haveria de lhe dizer. — Continue pensando. Seu rosto aflito de repente se iluminou. — Ele está num hotel. Isto ajuda? Os olhos castanhos fitaram-na interrogativamente. — Ele disse que ia comer no seu hotel. Perguntei-lhe se queria alguma

comida — ele tinha ficado com fome esperando — e foi isto o que respondeu, que ia comer no seu hotel.

O homem de branco olhou para Tsuruko e disse: — Está vendo? Havia alguma coisa a mais. — Deu um passo para trás e,

baixando o olhar, abriu a carteira. Retirou quatrocentos cruzeiros e entregou-os a ela.

— Obrigado, senhor! Kuwayama aproximou-se, sorridente. O homem de branco deu-lhe quatro notas, e uma de igual valor para

Mori e Yoshiko. Guardando a carteira no casaco, sorriu para Tsuruko e repreendeu-a:

— Você é uma boa garota, mas no futuro deve pensar mais nos interesses de seus fregueses.

— É o que farei, senhor! Prometo! E a Kuwayama, aconselhou: — Não seja muito duro com ela. — Oh, não, agora não! — Kuwayama arreganhou os dentes num sorriso,

retirando a mão do bolso. O homem de branco pegou o chapéu e a pasta de cima da mesa do abajur

e, sorrindo para as mulheres e para Kuwayama, inclinados numa mesura, voltou-se e dirigiu-se aos homens que estavam à espera, observando-o.

Seu sorriso morreu, seus olhos estreitaram-se. Ao chegar junto aos homens, sussurrou em alemão:

— Puta amarela, chupadora e fodida, gostaria de cortar-lhe as tetas! Contou-lhes acerca do gravador. — Examinamos a rua e todos os carros — disse o louro. — Não há sinal

de nenhum norte-americano jovem de blue jeans. — Vamos achá-lo — assegurou o homem de branco. ,— Ele trabalha

sozinho. Os grupos ainda ativos são todos de homens do Rio e de Buenos Aires. Além do mais é um amador, não apenas pela idade — vinte e dois ou vinte e três —, mas também por dar o nome de "Hunter", que é "caçador" em inglês. Ninguém com experiência se preocuparia com tais brincadeiras. E deve ser imbecil, do contrário não teria deixado aquela puta saber que está num hotel.

— A menos — ponderou Schwimmer — que de fato não esteja. — Neste caso, é esperto — retorquiu o homem de branco —, e amanhã

de manhã eu me enforcarei. Vamos descobrir. Hessen, nosso paulista, que se

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deixou seguir por um "caçador" amador, irá agora penitenciar-se, fornecendo a cada um de vocês o nome de um hotel. — Olhou para Hessen, que levantou os olhos, deixando de examinar o chapéu. — Um hotel de categoria suficiente para servir comida tarde da noite — orientou-o o homem de branco —, mas não tanto a ponto de desencorajar o uso de blue jeans. Ponha-se no lugar dele: você é um rapaz dos Estados Unidos que veio a São Paulo atrás de Horst Hessen ou talvez mesmo Mengele. Em que hotel se hospedaria? Você tem dinheiro suficiente para oferecer subornos excessivos a garçonetes — não creio que a puta tenha mentido quanto à quantia —, mas é romântico. Quer se sentir um novo Yakov Liebermann, não um turista tranqüilo. Cinco hotéis, por favor, Hessen, por ordem de probabilidade.

Olhou para os outros. — Quando Hessen disser os nomes dos hotéis — disse ele —, cada um

de vocês apanhará uma caixa de fósforos daquele recipiente ali e repetirá o nome para um motorista de táxi. Quando chegarem ao hotel, procurarão saber se eles têm lá um jovem norte-americano alto, de cabelos castanhos crespos, que voltou há pouco de blusão e calças blue jeans, e com uma bolsa azul e branca de uma companhia aérea a tiracolo. Telefonarão, então, para o número que está na caixa de fósforos. Estarei aqui. Se a resposta for "sim", eu, Rudi e Tin-Tin logo estaremos lá. Se a resposta for "não", Hessen dará o nome de outro hotel. Tudo claro? Bom. Dentro de meia hora haveremos de pegá-lo, e ele nem terá tido tempo de acabar de ouvir a maldita fita. Então, Hessen?

Hessen disse a Mundt: — O Nacional. Mundt repetiu: — O Nacional. E foi apanhar uma caixa de fósforos. Hessen disse a Schwimmer: — O Del Rey. E a Traunsteiner: — O Marabá. A Farnbach: — O Comodoro. A Kleist: — O Savoy. Ele ouviu durante cerca de cinco minutos, depois parou, voltou atrás e

começou de novo, a partir de quando tinham acabado de admirar qualquer coisa que estavam admirando, e "Aspiazu" disse "Lasst uns jetzt Geschäft reden, meine Jungens", e entraram mesmo no assunto. Assunto! Santo Deus!

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Ouviu a coisa inteira desta vez, exclamando: "Santo Deus!", e: "Deus todo-poderoso!", e vez por outra: "Que filho da puta!" Depois de um ruído e de um longo silêncio, que deveria corresponder à garçonete trazendo para baixo a terrina, parou, voltou uma parte e tornou a passar alguns pedaços e trechos, só para se certificar de que estavam ali, e ele não estava delirando por fome ou qualquer outra coisa.

Em seguida, andou o quanto lhe permitia o espaço do aposento, balançando a cabeça e cocando a nuca, tentando imaginar que diabo fazer naquele lodaçal, onde sabe-se-lá-quem-não-é-um-deles-ou-pelo-menos-não-estará-por-eles-sen-do-pago.

Havia somente uma coisa a fazer, decidiu finalmente. E quanto mais cedo melhor, não importava a diferença de horas. Levou o gravador para a mesinha-de-cabeceira e colocou-o junto ao telefone. Retirou sua carteira e sentou-se na cama. Encontrou o cartão com o nome e o número escritos, enfiou-o por baixo do aparelho e pegou o fone, embolsando a carteira. Pediu ligação internacional.

— O senhor será chamado quando eu completar a ligação. — A voz dela era agradável e sensual.

— Ficarei ao telefone — disse ele, a fim de que ela não se aproveitasse para ir sambar em algum lugar. — Depressa, por favor.

— Vai demorar cinco ou dez minutos, senhor. Ouviu-a dar o número a uma telefonista internacional

e ensaiou de cabeça o que iria dizer. Supondo, evidentemente, que Liebermann estivesse lá e não fora, fazendo alguma conferência ou seguindo uma pista. Esteja em casa, por favor, Mr. Liebermann!

Soou leve batida na porta. — Já era tempo — disse ele em inglês e, segurando o fone, levantou-se,

estirou-se, mal conseguindo dar à maçaneta o giro que abria. A porta se abriu de encontro à sua mão, e o garçom de bigode caído entrou com um prato coberto com um guardanapo e uma garrafa de Brahma, mas sem copo sobre a bandeja.

— Desculpe a demora — explicou ele. — Às onze todos eles saem. Tive de preparar eu mesmo.

— Está bem — retorquiu em português. — Pôr a bandeja na cama, por favor.

— Esqueci o copo. — Está bem. Não precisar de copo. A nota e o lápis, por favor. Assinou a nota de encontro à parede, firmando-a ali com a mão que

segurava o fone. Acrescentou uma gorjeta além da taxa de serviço. O garçom saiu sem agradecer e arrotou ao fechar a porta. Jamais deveria ter saído do Del Rey.

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Sentou-se de volta na cama, o fone sibilando cavamente no ouvido. Virou-se para endireitar a bandeja, e olhou com desconfiança o guardanapo amarelo com "Miramar" gravado em grandes letras pretas, um seguro contra ladrões, num canto. Levantou-o, e, o que quer que fosse, retirou num puxão: o sanduíche era grosso e bonito, tudo frango, sem alface ou qualquer outra merda. Perdoando o garçom, agarrou metade dele, curvou a cabeça ao seu encontro e deu uma grande e deliciosa mordida até o meio. Deus, como tinha fome!

— Ich möochte Wien¹ — pedia uma telefonista. — Wien! 1 "Eu queria falar com Viena." Em alemão no original. (N. do E.) Pensou na fita e no que ia dizer para Yakov Liebermann, e pareceu ter a

boca cheia de papelão. Mastigou, mastigou e de alguma forma conseguiu engolir. Pousou o sanduíche e apanhou a cerveja. Era uma cerveja realmente esplêndida e no entanto lhe caiu mal.

— Aguarde mais um pouquinho — disse a telefonista agradável e sensual.

— Assim espero. Obrigado. — Sua ligação está pronta, senhor. A campainha tocou. Tomou outro gole, pousou a garrafa, enxugou a mão no joelho do blue

jeans, chegou-se mais para o telefone. O outro telefone tocou, tocou e aí atenderam.

— Ja?² — ressoou, tão perto como se fosse na esquina. — Mr. Liebermann? — Ja. Wer'st da?³ 2 "Sim?" Em alemão no original. (N. do E.) 3 "Sim. Quem é?" Em alemão no original. (N. do E.) — Aqui é Barry Koehler. Lembra-se, Mr. Liebermann? Procurei-o no

início de agosto, querendo trabalhar para o senhor. Barry Koehler, de Evanston, Illinois.

Silêncio. — Mr. Liebermann? — Barry Koehler, não sei que horas serão em Illinoise, mas em Viena

está tão escuro que não posso enxergar o relógio. — Não estou em Illinois, e sim em São Paulo, Brasil. — Isto não torna as coisas mais claras em Viena. — Desculpe, Mr. Liebermann, mas tenho um bom motivo para telefonar.

Espere até saber. — Não me diga, já adivinhei: avistou Martin Bormann. Numa estação

rodoviária.

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— Não, Bormann, não. Mengele. E não o vi. Tenho é uma fita dele falando. Num restaurante.

Silêncio. — Dr. Mengele! — lembrou ele. — O homem que dirigia Auschwitz! O

Anjo da Morte! — Obrigado. Pensei que se referisse a um outro Mengele. O Anjo da

Vida. — Desculpe — tornou Barry. — O senhor estava tão... — Enxotei-o até a selva. Conheço Josef Mengele. — É que o senhor estava tão calado, tive de dizer alguma coisa. Ele

deixou a selva, Mr. Liebermann. Estava num restaurante japonês esta noite. Ele não usa o nome de Aspiazu?

— Ele usa muitos nomes: Gregory, Fischer, Breitenbach, Rindon... — E Aspiazu, não? Pausa. — Ja. Mas acho que talvez seja usado também por pessoas que se

chamam assim. — É ele — insistiu Barry. — Tinha a metade das ss lá. E vai enviá-la

para matar noventa e quatro homens. Hessen estava lá, e mais Kleist, Traunsteiner, Mundt.

— Ouça, não tenho certeza de estar acordado. Você está? Sabe do que está falando?

— Sim! Vou ligar a fita! Está aqui do lado! — Espere um minuto. Comece pelo princípio. — Está bem. — Pegou a garrafa e bebeu um pouco mais de cerveja. Que

ele agora ouvisse um pouco de silêncio, para variar. — Barry? Aah! — Estou aqui. Estava só bebendo um pouco de cerveja. — Ah. — Um gole apenas, Mr. Liebermann. Estou morrendo de sede. Não

jantei ainda e estou tão cheio desta fita que não consigo comer. Tenho aqui uma beleza de sanduíche de frango e nem sequer posso engoli-lo.

— O que está fazendo em São Paulo? — O senhor não quis me aceitar, por isso resolvi vir aqui por minha

conta. Minha motivação é maior do que o senhor pensa. — É questão das minhas finanças, e não de sua motivação. — Eu disse que trabalharia de graça. Quem está me pagando agora?

Olhe, deixemos isto de lado. Vim aqui, farejei por aí, e finalmente verifiquei que a melhor coisa a fazer seria ficar rondando a fábrica da Volkswagen, onde Stangl trabalhou. Foi o que fiz. Aí, uns dois dias atrás, localizei Horst Hessen. Pelo menos julguei tê-lo feito, não tinha certeza. O cabelo dele está meio prateado agora, e deve ter feito alguma cirurgia plástica. Mas, de

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qualquer forma, julguei que era ele e comecei a segui-lo. Ele foi para casa cedo hoje — mora na casinha mais bonita que o senhor possa imaginar, com uma esposa de endoidar a gente e duas filhas —, e às sete e meia saiu de novo, tomando um ônibus para o centro. Segui-o até o tal restaurante japonês e aí ele foi para o andar de cima, a uma reunião particular. Havia um nazista de guarda na escada, e a reunião era convocada pelo "Sr. Aspiazu". Dos Aspiazu de Auschwitz.

Silêncio. — Prossiga. — Então dei uma volta e abordei uma das garçonetes. Duzentos

cruzeiros mais tarde, ela me forneceu uma fita inteira de "Mengele despachando seus soldados". Mengele está claro que nem cristal. Os soldados variam de "razoavelmente claro" a "ininteligível". Mr. Liebermann, eles vão partir, amanhã, para a Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, Escandinávia, o mundo todo! É uma operação da Kameradenwerk, pomposa, maluca, estou arrependido de me ter metido nisso, ela deverá...

— Barry. —...dar cumprimento ao destino da raça ariana, por Deus do céu! — Barry! — O que ê? — Acalme-se. — Eu estou calmo. Não, não estou. Está bem. Agora estou calmo.

Realmente. Vou voltar a fita e ligá-la para o senhor. Apertarei o botão. Ouviu?

— Quem vai partir, Barry? Quantos? — Seis. Hessen, Traunsteiner, Kleist, Mundt, e dois outros, deixe ver,

Schwimmer e Farnbach. Ouviu falar deles? — Schwimmer, Farnbach e Mundt, não. — De Mundt? Não ouviu falar de Mundt? Ele está no seu livro, Mr.

Liebermann! Foi lá que eu vim a saber dele. — Um Mundt, no meu livro? Não. — Sim! No capítulo sobre Treblinka. Tenho na minha mala. Quer que

lhe dê o número da página? — Nunca ouvi falar de Mundt, Barry. Trata-se de um engano da sua

parte. — Oh, Cristo. Está bem, esqueça. De qualquer forma, são seis deles, e

vão estar em campo durante dois anos e meio, e dispõem de certas datas em que deverão matar determinados homens, e aí é que vem a parte maluca. Está preparado, Mr. Liebermann? Esses homens que eles vão matar são noventa e quatro, e são todos funcionários públicos de sessenta e cinco anos. Sentiu a barra?

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Silêncio. — Barra? O outro suspirou. — É uma expressão. — Barry, deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Esta fita é em alemão, hein?

Você... — Entendo-a perfeitamente! Não spreche muito bem, mas compreendo

perfeitamente. Minha avó não fala outra língua e meus pais utilizaram-na para segredinhos. Não adiantava nem quando eu era criança.

— A Kameradenwerk e Josef Mengele estão enviando homens... — Para matar funcionários públicos de sessenta e cinco anos. Alguns

deles têm sessenta e quatro e sessenta e seis. A fita já está virada, e vou ligá-la, e depois o senhor vai me dizer para quem devo levá-la, alguém de alta categoria e de confiança. O senhor telefonará para ele, e lhe dirá que irei procurá-lo, para que ele me receba, e depressa. Eles têm de ser detidos antes de partirem. A primeira morte está marcada para 16 de outubro. Agora espere, tenho de encontrar o lugar certo. Antes tem muita história de sentar e ficar admirando não sei que troço.

— Barry, é ridículo. Seu gravador não deve estar muito bom. Ou então... eles não são os homens que você está pensando.

Houve uma tripla batida na porta. — Vão embora! — berrou ele, cobrindo o fone. E lembrando-se do

português: — Eu falar no interurbano! — São outras pessoas — veio a voz pelo fone. — Estão fazendo uma

brincadeira com você. — Mr. Liebermann, quer ouvir a fita? Batidas mais fortes, sem parar. — Merda. Espere aí. — Pondo o fone sobre a cama, levantou-se, dirigiu-

se para a porta barulhenta, segurou a maçaneta. — O que é? Ouviu-se uma voz de homem, num português vertiginoso. — Devagar! Devagar! — Senhor, há uma senhora japonesa aqui, à procura de alguém que se

parece com o senhor. Diz que precisa avisá-lo sobre uma coisa que um homem está...

Ele girou a maçaneta e da porta explodiu um sombrio touro humano. Foi agarrado, virado, a boca apertada, o braço torcido para trás, a ponto de quebrar. O nazista da escada vibrou uma estocada com uma faca de quinze centímetros de cintilante agudez. Sua cabeça foi puxada para trás, o teto deslizou, pintado de filigranas de um marrom esmaecido. O braço doeu, e mais o estômago, lá dentro.

O homem de branco entrou no quarto, de chapéu e pasta. Fechou a porta e, detendo-se diante dela, assistiu ao louro furar e furar o jovem americano.

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Cravar, torcer, puxar. Cravar, torcer, puxar. Por baixo da mão, agora, a faca raiada de vermelho por entre as costelas cobertas pela camisa justa.

O louro, ofegante, parou de furar, e o homem de cabelos pretos arriou mansamente o rapaz de olhar surpreso até o chão, depositando-o ali, metade sobre o tapete cinzento, metade sobre a madeira envernizada. O louro manteve a mão na faca, sobre o rapaz, e pediu ao homem de cabelos pretos:

— Uma toalha. O homem de branco olhou em direção à cama, aproximou-se dela e

pousou a pasta no chão. — Barry? — chamou o fone sobre a cama. O homem de branco olhou o gravador na mesinha-de-cabeceira.

Comprimiu o último botão com a ponta branca do dedo. A tampa levantou, a fita saltou. O homem de branco pegou-a, olhou-a, e fê-la escorregar no bolso do casaco. Vislumbrou o cartão enfiado sob o telefone, tirou-o, e avistou o fone sobre a cama.

— Barry! — Vinha dali. — Responda! O homem de branco estendeu vagarosamente a mão e apanhou o fone.

Ergueu-o, levou-o ao ouvido. Escutou, com os olhos castanhos estreitados, as narinas raiadas de veias palpitando. Os lábios abriram-se para o bocal, permaneceram abertos. E se fecharam, cerrando-se firmemente, o bigode eriçando-se.

Pôs o fone no gancho, esgueirou os dedos, fitou o telefone. Voltando-se, disse:

— Quase falei com ele. Não me faltou vontade. O louro, a faca avermelhando a toalha, olhou-o, curioso. O homem de

branco confessou: — Odiando um ao outro tanto tempo. Ele estava aqui, na minha mão.

Falar finalmente com ele! — Voltou-se de novo para o fone, meneou a cabeça, pesaroso. Suavemente, sibilou: — Liebermann, canalha judeu. Seu ajudante morreu. Quanto ele lhe terá revelado? Não faz diferença. Ninguém aqui lhe dará ouvidos, pelo menos sem provas. E a prova está no meu bolso. Os homens voarão amanhã. O Quarto Reich está a caminho. Adeus, Liebermann. Encontro-o à porta da câmara de gás. — Meneou a cabeça, sorrindo, e voltou-se, pondo o cartão no bolso. — Afinal de contas, seria uma tolice — disse ele. — Eu poderia estar gravando outra fita.

O homem de cabelos pretos, junto ao armário embutido, apontou a mala lá dentro e perguntou em português:

— Arrumo as coisas dele, doutor? — Rudi o fará. Desça onde está Traunsteiner. Encontre uma porta nos

fundos que você possa abrir e onde possa encostar o carro. Depois, um de vocês sobe para nos ajudar a descer. E não lhe diga que o rapaz estava ao

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telefone. Diga que estava ouvindo a fita. O homem de cabelos pretos assentiu e saiu. O louro disse em alemão: — Eles não serão apanhados? Os homens, quero dizer. — O serviço tem que ser feito — disse o homem de branco, retirando o

seu estojo de óculos. — Tanto quanto possível, a qualquer preço. Com sorte, hão de cumpri-lo todo. Alguém dará ouvidos a Liebermann? Ele próprio não acreditou. Você ouviu como o rapaz argumentava com ele. Deus nos ajudará. Um número suficiente dos noventa e quatro há de morrer.

Pôs os óculos e, tirando uma caixa de fósforos do bolso, virou-se para o telefone. Ergueu o fone e leu um número para a telefonista.

— Olá, minha amiga — disse animadamente —, Sr. Hessen, por favor. — Desviou o olhar, cobrindo o bocal. — Esvazie os bolsos dele, Rudi. E tem uns tênis ali debaixo da escrivaninha. Hessen? É o Df. Mengele. Está tudo ótimo, não há com que se preocupar. Exatamente o amador que eu esperava. Acho que nem entendia alemão. Mande os rapazes para casa, para treinarem as assinaturas. Apenas uma emoção para completar a noite. Não, pelo menos até 1977, receio. Volto para o vilarejo, logo que arrumarmos tudo. Portanto, vá com Deus, Horst. E transmita-o aos outros por mim: "Vão com Deus". — Desligou e disse: — Heil Hitler.

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Dois O Burggarten, com o lago e o monumento a Mozart, seus gramados,

alamedas e o eqüestre Imperador Franz, fica suficientemente perto dos escritórios de Viena da Reuters, a agência internacional de notícias, para que os correspondentes e as secretárias tragam seus lanches para ali, nos meses mais amenos do ano. Segunda-feira, 14 de outubro, fazia um dia frio e encoberto; mesmo assim, quatro funcionários da Reuters vieram ao jardim. Acomodaram-se num banco, desembrulharam sanduíches e deitaram vinho branco em copos de papel.

Um dos quatro, o que servira o vinho, era Sydney Beynon, correspondente veterano da Reuters em Viena. Um egresso de Liverpool de quarenta e quatro anos, com duas ex-esposas vienenses, Beynon se parecia muito com um abdicante Rei Eduardo de óculos de aro de chifre. Ao descansar a garrafa no banco ao seu lado e sorver apreciativamente do copo, avistou, com um repentino sobressalto de culpa, Yakov Liebermann vindo tropegamente em sua direção, de chapéu marrom e um impermeável preto aberto.

Durante toda a semana anterior, Beynon recebera várias vezes recados de Liebermann pedindo-lhe que lhe telefonasse. Ainda não o fizera, embora fosse geralmente um escrupuloso retribuidor de telefonemas. Defrontando-se agora com sua involuntária esquivança, sentiu-se duplamente culpado: primeiro, porque Liebermann, nos seus anos de apogeu, na época das capturas de Eichmann e Stangl, constituíra a fonte de algumas de suas melhores e mais recompensadoras matérias, e depois porque o caçador de nazistas fazia sempre todos se sentirem culpados. Alguém dissera dele (teria sido Stevie Dickens?): "Leva preso às abas do casaco todo o maldito cenário dos campos de concentração. E legiões de judeus gemem em suas sepulturas cada vez que Liebermann entra no aposento". Era triste mas verdadeiro. E talvez Liebermann tivesse consciência disso, pois sempre se apresentava, como naquele instante diante de Beynon, um passo atrás da distância social comum, com um ligeiro ar de desculpas. Ou melhor, pensou Beynon, como um urso deferente, com alguma coisa de contagioso.

— Olá, Sydney — disse Liebermann, o urso, tocando a aba do chapéu. — Por favor, não se levante.

A culpa de Beynon era mais incômoda do que todo aquele sanduíche sobre o seu colo, por isso ainda assim fez um esforço, soerguendo-se.

— Olá, Yakov! Prazer em vê-lo. — Estendeu a mão e Liebermann, inclinando-se, alcançou-a e envolveu-a, sem apertá-la, no calor de sua mão

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maior. — Desculpe ainda não lhe ter telefonado — disse Beynon. — Fiquei indo e vindo de Linz durante toda a semana passada. — Voltou a sentar-se e esboçou as apresentações com a mão que segurava o copo:

— Freya Neustadt, Paul Higbee, Dermot Brody, este é Yakov Liebermann.

— Puxa! — Freya limpou a mão ossuda na saia e estendeu-a, sorrindo animadamente. — Como vai? Que grande prazer. — Ela parecia culpada.

Vendo Liebermann acenando e apertando as mãos em fila, Beynon ficou consternado ao perceber o quanto ele envelhecera e minguara desde seu último encontro, dois anos antes. Ainda tinha o mesmo porte, mas não era mais tão imponente, nem trazia mais implícito o vigor de um urso. Os ombros largos pareciam arriados sob o escasso peso do impermeável, e o rosto outrora enérgico estava enrugado e pardacento, os olhos abatidos sob pálpebras caídas. O nariz pelo menos não mudara — aquele gancho semítico proeminente —, mas o bigode tinha traços grisalhos e precisava ser aparado. O pobre homem perdera a mulher, um rim ou coisa parecida, e os fundos do seu Centro de Informação de Crimes de Guerra. As perdas estavam todas estampadas em sua aparência — o velho chapéu amarrotado e com marcas de uso, o laço escurecido da gravata — e Beynon, lendo aquele registro, verificou por que, no seu íntimo, bloqueara o telefonema de resposta. Sua culpa avolumou-se, mas ele reprimiu-a, dizendo a si mesmo que esquivar-se aos derrotados era um instinto natural e saudável, mesmo — ou talvez especialmente — àqueles que antes foram vencedores. Contudo, havia a disposição de ser amável, é claro.

— Sente-se, Yakov — convidou calorosamente, fazendo um gesto para a extremidade do banco ao seu lado, e puxando mais para perto a garrafa de vinho.

— Não quero perturbar o seu lanche — retorquiu Liebermann, no seu inglês de forte sotaque. — Não poderíamos conversar mais tarde?

— Sente-se — insistiu Beynon. — Já aturo bastante estes camaradas lá no escritório. — Pôs-se de costas para Freya e empurrou-a um bocadinho. Ela cedeu alguns centímetros e virou para o outro lado. Beynon abriu o espaço para a ponta do banco e, sorrindo para Liebermann, indicou-o com um gesto.

Liebermann sentou-se e suspirou. Segurando os joelhos com as mãos volumosas, espiou por entre eles com uma careta, gingando os pés.

— Sapatos novos — lamentou-se. — Estão me matando. — Afora isso, como vai você? — indagou Beynon. — E como está sua

filha? — Estou bem. Ela está ótima. Tem três filhos agora, duas meninas e um

menino.

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— Oh, que bom. — Beynon tocou no gargalo da garrafa. — Lamento não termos outro copo.

— Não, não. De qualquer modo, não posso. Nada de álcool. — Soube que esteve no hospital... — Entrei, saí, entrei, saí. — Liebermann encolheu os ombros e pousou

seus fatigados olhos castanhos em Beynon. — Recebi uma chamada telefônica muito maluca — disse. — Algumas semanas atrás. No meio da noite. Um rapaz dos Estados

Unidos, de Illinois, me telefonou de São Paulo. Com uma fita de Mengele. Você sabe quem é Mengele, não?

— Um de seus nazistas procurados, não é? — Um de todos — corrigiu Liebermann —, não apenas meu. O governo

alemão ainda oferece sessenta mil marcos por ele. Era o médico principal de Auschwitz. Chamavam-no "O Anjo da Morte". Dois títulos, de doutor em medicina e em filosofia, e realizou milhares de experiências com crianças, gêmeos, tentando fabricar bons arianos, mudar olhos castanhos para azuis, mediante produtos químicos, através do gene. Um homem com dois títulos! Matou milhares de gêmeos de toda a Europa, judeus e não-judeus. Está tudo no meu livro. — Beynon pegou metade do seu sanduíche de salada e ovo e mordeu-o com decisão.

— Ele foi para a Alemanha depois da guerra — prosseguiu Liebermann. — Tem família rica lá, em Günzburg, maquinaria agrícola. Mas seu nome começou a aparecer nos julgamentos, a ODESSA expulsou-o e ele foi parar na América do Sul. Nós o descobrimos e o perseguimos de cidade em cidade: Buenos Aires, Bariloche, Assunção. Desde 59 vive na selva, num vilarejo à margem de um rio, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Tem um exército de guarda-costas e cidadania paraguaia, portanto não pode ser extraditado. Mas, de qualquer forma, tem de se precaver, pois grupos de jovens judeus locais ainda tentam pegá-lo. Alguns são encontrados boiando rio abaixo, no Paraná, com os pescoços cortados.

Liebermann calou-se. Freya bateu no braço de Beynon e pediu vinho. Ele passou-lhe a garrafa.

— O rapaz, então, consegue uma fita — tornou Liebermann, olhando em frente, as mãos sobre os joelhos. — Mengele num restaurante enviando antigos homens das SS para a Alemanha, Inglaterra, Escandinávia e Estados Unidos. Para matar uma quantidade de homens de sessenta e cinco anos. — Virou-se, sorrindo, para Beynon. — Que loucura, hein? E é uma operação muito importante. A Kameradenwerk está envolvida também, não apenas Mengele. A Organização dos Camaradas, que os mantém seguros e com empregos. Sentiu a barra, como se diz agora? Beynon fitou-o, pestanejando, e sorriu.

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— Não, acho que não. E você ouviu mesmo a tal fita? Liebermann meneou a cabeça.

— Não. Justamente quando ele se preparava para tocá-la para mim, houve uma batida na porta, na porta dele, e ele foi atender. Ouvi colisões e baques, e pouco depois o telefone foi desligado.

— Sincronização perfeita — observou Beynon. — Cheira mais a mistificação, não acha? Quem é ele?

Liebermann encolheu os ombros. — É um rapaz que me ouviu falar há dois anos, na sua universidade,

Princeton. Procurou-me em agosto, e disse que queria trabalhar para mim. Mas eu preciso de novos colaboradores? Estou usando apenas alguns dos antigos. Você sabe, presumo, que todo o meu dinheiro, todo o dinheiro do Centro, estava no Allgemeine Wirtschaftsbank.

Beynon fez um aceno afirmativo. — O Centro fica agora no meu apartamento: os arquivos todos, algumas

mesas, eu e minha cama. O teto no andar de baixo está rachando. O senhorio me processa. Os únicos novos colaboradores de que necessito são os angariadores de fundos, o que não constitui o campo de interesse do rapaz. Por isso, ele foi para São Paulo, por conta própria.

— Não seria precisamente a pessoa em quem eu depositaria muita fé. — Exatamente o que pensei enquanto ele falava comigo. E ele mesmo

ainda não conseguiu coligir todos os seus fatos. Um dos homens das SS chama-se Mundt, diz ele. Ouviu falar desse Mundt através do meu livro. Ora, no meu livro sei que não existe Mundt algum. Nunca ouvi falar de um Mundt. Portanto, isto não contribui para aumentar minha confiança. Mas ainda assim... após as colisões e baques, enquanto o chamava de volta ao telefone, houve um determinado som, não muito alto, mas bastante claro. Só podia significar uma coisa e nada mais: o som de uma fita ejaculada de um gravador.

— Ejetada — corrigiu Beynon. — Não é ejaculada? Expulsa? — É ejetada. Ejaculada é outra coisa. — Ah! — assentiu Liebermann. — Obrigado. Ejetada de um gravador. E

mais um pormenor: houve silêncio então, por muito tempo, e fiquei também calado, aliando as colisões e baques ao som da fita. Mas durante aquele longo silêncio — lançou um olhar de augúrio sobre Beynon — o ódio veio pelo telefone, Sydney. — Fez um aceno afirmativo. — Ódio como jamais senti antes, nem mesmo quando Stangl me olhou no tribunal. Chegou-me tão claro como a voz do rapaz, talvez devido ao que ele revelou. Tive absoluta certeza de que o ódio provinha de Mengele. E quando o fone foi desligado, tive absoluta certeza de que Mengele é que havia desligado. — Desviou os

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olhos e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, uma das mãos segurando o punho da outra.

Beynon fitou-o, incrédulo, apesar de emocionado. — O que fez? — indagou. Liebermann sentou-se empertigado, esfregou as mãos, olhou para

Beynon e encolheu os ombros. — O que poderia eu fazer em Viena às quatro da manhã? Anotei o que o

rapaz me contara, tudo o que podia me lembrar, li-o, e disse a mim mesmo que ele estava maluco e eu também. Só que... quem teria ejetado a fita e desligado o telefone? Talvez não tenha sido Mengele, mas foi alguém. Mais tarde, quando amanheceu, telefonei para Martin McCarthy, da embaixada dos Estados Unidos em Brasília. Ele telefonou para a polícia de São Paulo, e lá eles ligaram para a companhia telefônica e descobriram de onde viera a chamada. De um hotel. Um rapaz desaparecera dali durante a noite. Telefonei para Pacher aqui e perguntei-lhe se poderia alertar as autoridades brasileiras sobre os homens das SS. O rapaz havia dito que eles estavam de partida naquele dia. Pacher não chegou propriamente a rir de mim, ruas recusou-se a fazê-lo, a menos que lhe apresentasse alguma coisa de concreto. Um rapaz que desaparece de um quarto de hotel sem pagar a conta não é algo concreto. E tampouco eu estar dizendo que os homens das ss estavam de partida, porque foi o que o rapaz me revelou. Tentei falar com o promotor alemão encarregado do caso Mengele, mas ele não estava. Se ainda fosse Fritz Bauer, estaria em casa para mim; o novo, não. — Encolheu novamente os ombros, esfregou o lóbulo da orelha. — Portanto, os homens deixaram o Brasil, se o rapaz estiver certo, e ele ainda não foi encontrado. O pai dele está lá, pressionando a polícia, um homem de posses, segundo me constou. Mas tem um filho morto.

Beynon proferiu em tom de desculpa: — Você não acha que é muito difícil para mim apurar uma história em

Viena sobre... — Não, não, não — interrompeu Liebermann, pousando suavemente a

mão sobre o joelho de Beynon. — Não lhe peço que apure uma história. O que quero pedir é outra coisa, Sydney. Estou certo de que é possível e espero que não dê muito trabalho. O rapaz disse que a primeira morte aconteceria depois de amanhã, 16 de outubro. Mas não disse onde. Será que você obteria da sua agência principal de Londres recortes ou relatos de suas outras agências? A respeito de homens de sessenta e quatro a sessenta e seis anos de idade, assassinados ou mortos em acidentes? Qualquer coisa, exceto mortes naturais, a partir de quarta-feira. Somente homens com sessenta e quatro a sessenta e seis anos.

Beynon franziu a testa, empurrou os óculos e no olhar expressou suas

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dúvidas a Liebermann. — Não foi mistificação, Sydney. Ele não era um rapaz que fizesse isso.

Está desaparecido há três semanas, e escrevia para casa regularmente, telefonava até mesmo quando mudava de hotel.

— Admitamos que provavelmente esteja morto — disse Beynon. — Mas não teria sido morto simplesmente por se intrometer onde não era chamado, mais um outro rapaz atrás de Mengele? Ou então não teria sido roubado e morto por um assaltante comum? Sua morte de modo algum prova que... um plano nazista está sendo posto em prática no sentido de matar homens de certa idade.

— Ele tinha isso na fita. Por que haveria de me mentir? — Talvez não o tenha feito. A fita talvez tenha sido uma mistificação

forjada para ele. Ou talvez a estivesse interpretando erradamente. Liebermann respirou, expeliu o ar e fez um aceno afirmativo. — Eu sei — assentiu. — Isso é possível. Foi o que pensei a princípio. E

ainda penso às vezes. Mas alguém precisa investigar um pouco, e, se eu não o fizer, quem o fará? Se ele estava errado, estava errado. Perdi tempo e importunei Sydney Beynon por nada. Mas se ele estava certo, então estamos diante de coisa muito grande, e Mengele deve ter motivos para realizá-la. Preciso encontrar alguma coisa de concreto, de modo que os promotores estejam em casa para conseguir detê-la antes que se complete. Vou lhe dizer uma coisa, Sydney. Sabe o que é?

— Sim? — Existe um Mundt no meu livro. — Assentiu gravemente. —

Exatamente onde ele disse que havia, numa lista de guardas de Treblinka que cometiam atrocidades. Hauptscharführer Alfried Mundt. Eu me esquecera dele. Quem pode se lembrar de todos? Sua ficha é muito pequena: uma mulher de Riga viu-o partir o pescoço de uma garota de catorze anos e um homem da Flórida que foi castrado por ele ainda está disposto a depor se eu apanhá-lo. Alfried Mundt. Portanto, se o rapaz acertou uma vez, talvez tenha acertado duas. Pode então arranjar os recortes, por favor? Ficaria agradecido.

Beynon respirou fundo, e consentiu. — Verei o que posso fazer. — Aconchegou mais o copo e apanhou no

interior do casaco o caderno de notas e a caneta. — Que países você disse? — Bem, o rapaz falou na Alemanha, Inglaterra, Escandinávia —

Noruega, Suécia, Dinamarca — e Estados Unidos. Mas, da maneira como falou, parece que havia outros lugares que não estava citando. Por isso você deve se informar também na França e na Holanda.

Beynon lançou rápido olhar a Liebermann e anotou em taquigrafia. — Obrigado, Sydney — disse Liebermann. — Estou muito grato.

Qualquer coisa que eu descubra, você será o primeiro a saber. Não apenas

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disto, mas de tudo. — Tem idéia de quantos homens de sessenta e poucos anos morrem

diariamente? — indagou Beynon. — Por assassinato? Ou em acidentes que poderiam ser assassinatos? —

Liebermann meneou a cabeça. — Não, não são muitos. Espero que não. E alguns eu conseguirei eliminar pelas profissões.

— Como assim? Liebermann passou a mão no bigode e segurou o queixo, o dedo

atravessado sobre os lábios. Um momento depois, baixou a mão e encolheu os ombros.

— Não é nada — respondeu. — São mais outros detalhes que o rapaz deu. Escute — apontou para o caderno de notas de Beynon —, não esqueça de pôr aí "entre sessenta e quatro e sessenta e seis".

— Eu pus — retorquiu Beynon, olhando-o. — Que outros detalhes? — Nada de importante. — Liebermann enfiou a mão no casaco. —

Voarei para Hamburgo às quatro e meia — anunciou. — Farei conferências na Alemanha até 3 de novembro. — Retirou uma carteira marrom, grossa e usada. — Portanto, tudo o que conseguir, remeta por favor para meu apartamento, a fim de que eu me informe quando regressar. — Entregou um cartão a Beynon.

— E se eu descobrir o que se afigura uma matança nazista? — Quem sabe? — Liebermann recolocou a carteira no casaco. — Dou

apenas um passo de cada vez. — Sorriu para Beynon. — Especialmente nesses sapatos. — Apoiou as mãos nas coxas e levantou-se, olhando em volta e abanando a cabeça com ar de desaprovação. — Hum. Dia feio. — Voltou-se, numa censura a todos eles.

— Por que comem ao ar livre num dia assim? — Formamos o Clube Mozart das Segundas-Feiras — retorquiu Beynon,

sorrindo e virando o polegar em direção ao monumento. Liebermann estendeu a mão. Beynon apertou-a. Sorriu para os demais e

disse: — Minhas desculpas por afastar dos senhores esse homem encantador. — Ele está à sua disposição — respondeu Dermot Brody. — Obrigado, Sydney — disse Liebermann a Beynon. — Sabia que poderia confiar em você. Ah, escute. — Curvou-se e falou

mais baixo, segurando a mão de Beynon. — Peça-os de quarta-feira em diante. Continuamente, quero dizer. Pois, se o rapaz revelou que iam partir seis, a troco de que Mengele haveria de enviá-los de uma vez, se alguns ficariam sem nada fazer por muito tempo? Portanto, deverá haver mais dois assassinatos não muito depois do primeiro

— isto, se estiverem trabalhando em equipes de dois — ou cinco mais,

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que Deus não permita, se trabalharem isolados. E também se, é claro, o rapaz estiver certo. Fará isto?

Beynon assentiu. — Quantos assassinatos deverá haver ao todo? — perguntou. Liebermann fitou-o. — Muitos. — Largou a mão de Beynon, aprumou-se e se despediu dos

outros com acenos de cabeça. Enfiando as mãos nos bolsos do casaco, voltou-se e partiu apressado em direção ao alvoroço do tráfego da Ringstrasse.

Os quatro no banco observaram-no afastar-se. — Oh, Deus — proferiu Beynon, e Freya Neustadt meneou tristemente a

cabeça. Dermot Brody inclinou-se para a frente e indagou: — Como é que foi aquele último pedaço, Syd? — Se eu podia pedir-lhes que continuassem enviando recortes. —

Beynon guardou o caderno de notas e a caneta dentro do casaco. — Haverá três ou seis assassinatos, não apenas um. E mais outros ainda.

Paul Higbee retirou o cachimbo da boca e observou: — O engraçado é que ele pode estar absolutamente certo. — Ora, deixe disso — retrucou Freya. — Nazistas odiando-o pelo

telefone? Beynon pegou o copo e agarrou a metade de um sanduíche. — Os dois últimos anos foram terrivelmente duros para ele — disse. — Que idade ele tem? — indagou Freya, mordaz. — Não sei bem — respondeu Beynon. — Ah, sim, percebo. Por volta de

sessenta e cinco, me parece. — Está vendo? — tornou Freya a Paul. — Então os nazistas estão

matando homens de sessenta e cinco anos. Trata-se de uma fantasia paranóica minuciosamente delineada. Daqui a um mês estará dizendo que estão no seu encalço.

Inclinando-se de novo para a frente, Dermot Brody perguntou a Beynon: — Vai mesmo arranjar os recortes? — Claro que não — asseverou Freya, e voltou-se para Beynon. — Não

vai, não é mesmo? Beynon sorveu o vinho, segurando o sanduíche. — Bem, eu disse que ia tentar — declarou. — Se não o fizer, quando ele

voltar não me largará. Além do mais, Londres pensará que estou trabalhando em alguma coisa. — Sorriu para Freya. — Nunca faz mal causar boa impressão.

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Ao contrário da maioria dos homens da sua idade, Emil Döring, de sessenta e cinco anos de idade, outrora segundo-assistente administrativo do diretor da Comissão de Transportes Públicos de Essen, não se deixara transformar num escravo dos hábitos. Atualmente aposentado e morando em Gladbeck, uma vila ao norte da cidade, empenhava-se em variar a rotina diária. Não tinha hora certa para ir comprar os jornais da manhã, não visitava a irmã em Oberhausen em tardes determinadas, e não passava as noites — para não falar de quando decidia ficar em casa no último minuto — em nenhum bar favorito das vizinhanças. Ao contrário, eram três os seus bares favoritos, e só escolhia um na hora de sair do apartamento. Às vezes estava de volta dentro de uma hora ou duas, outras vezes só depois da meia-noite.

A vida inteira Döring estivera de sobreaviso quanto a inimigos à sua espreita, e protegia-se não apenas andando armado, como também tornando seus movimentos os mais imprevisíveis possíveis. Primeiro, foram os irmãos maiores de colegas pequenos que o haviam acusado injustamente de os ter maltratado. Depois, seus colegas soldados, todos uns obtusos, começaram a se mostrar ressentidos com a sua habilidade em granjear a simpatia dos oficiais e obter missões fáceis e seguras. Posteriormente, surgiram rivais na Comissão de Transportes, alguns capazes de dar lições de perfídia a Maquiavel. Que histórias não tinha Döring para contar da Comissão de Transportes!

E agora, nos que deveriam ser seus anos propícios, quando julgara poder finalmente baixar a guarda e afrouxar, deixando a velha Mauser na gaveta da mesinha-de-cabeceira i— agora mais do que nunca reconhecia-se em real perigo de ataque.

Sua segunda esposa, Klara — que era, conforme nunca se cansava de lhe lembrar através de maneiras sutis, vinte e três anos mais moça —, alimentava, disso tinha certeza, um caso com o antigo professor de clarinete do seu filho, um desprezível sujeito abicharado de nome Wilhelm Springer, mais novo, ainda por cima, do que ela — trinta e oito anos! — e pelo menos metade judeu. Döring não tinha quaisquer dúvidas de que Klara e o seu judeu bicha, Springer, ficariam felizes em afastá-lo do caminho, pois não apenas ela ficaria viúva, como também viúva rica. Ele dispunha de mais de trezentos mil marcos (de cuja existência ela sabia, e mais quinhentos mil dos quais ninguém sabia, enterrados em dois cofres de aço no quintal da sua irmã). O dinheiro é que impedia Klara de se divorciar. Estava à espera, e sempre fora assim desde o dia em que se casaram, aquela puta.

Pois bem, ela que continuasse esperando. Ele gozava de ótima saúde e estava pronto para enfrentar uma dúzia de Springers que saltassem de becos escuros. Freqüentava o ginásio duas vezes por semana — não em tardes certas —, e, com sessenta e cinco ou não, era ainda danado de bom em luta

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livre, embora já não o fosse tanto naquela de outro tipo, a de homem com mulher. Era ainda danado de bom e sua Mauser ainda danada de boa, gostava de dizer a si mesmo, sorrindo ao acariciar a volumosa saliência dura através do casaco, junto ao sovaco.

Contara isso também a Reichmeider, o vendedor do equipamento cirúrgico que encontrara no Bar Lorelei, na noite passada. Que sujeito simpático o Reichmeider! Mostrara-se realmente interessado nas histórias de Döring da Comissão de Tranportes — quase caíra da sua banqueta rindo das conseqüências do negócio de apropriação de 58. Conversar com ele fora a princípio um pouco embaraçoso, devido à maneira extravagante como movia um olho — era obviamente artificial —, mas Döring logo se acostumou e falou-lhe não apenas sobre o negócio da apropriação como também sobre a investigação governamental de 64 e o escândalo de Zellermann. Depois atingiram plano mais pessoal — cinco ou seis cervejas já tinham descido pelas comportas, nessa altura — e Döring abriu-se acerca de Klara e Springer. Foi quando dera as pancadinhas na Mauser e revelara o que havia entre os dois. Reichmeider não conseguia acreditar que ele tivesse mesmo sessenta e cinco anos.

— Juraria que não tinha mais de cinqüenta e sete, no máximo! — insistira.

Que bom sujeito! Pena que ficasse ali apenas por uns dias. Sorte, no entanto, que permanecesse em Gladbeck, em vez de Essen propriamente dita.

Tinha sido para encontrar Reichmeider de novo, e falar-lhe sobre a ascensão e queda de Oskar Sabe-Tudo Vowinckel, que Döring voltara ao Bar Lorelei aquela noite. Mas as nove horas já haviam transcorrido há muito tempo e nem sinal de Reichmeider, apesar de haverem combinado o encontro na noite anterior. Havia um bando ruidoso de rapazes e moças bonitas, uma delas com a metade dos seios de fora, e somente alguns velhos fregueses — Fürst, Apfel, sei-lá-quem —, nenhum deles bom ouvinte. Parecia mais uma sexta ou um sábado do que uma quarta. Um jogo de futebol flutuava de cá para lá na televisão. Döring observou-o, bebeu vagarosamente e olhou pelo espelho os esplêndidos peitos jovens. Vez por outra inclinava-se para trás na banqueta e tentava pegar um vislumbre dos recém-chegados pela porta, esperando ainda que Reichmeider fizesse a prometida aparição.

E ele o fez, mas da maneira mais estranha e repentina, uma mão agarrando o ombro de Döring, numa premência de cochichos e olhar torto:

— Döring, venha aqui fora depressa! Preciso lhe dizer uma coisa! — E saiu.

Confuso e intrigado, Döring chamou com um sinal a atenção de Franz,

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jogou uma nota de dez sobre o balcão e abriu caminho até a saída. Reichmeider acenou com decisão, afastando-se Kirchengasse abaixo. Um lenço envolvia-lhe a mão esquerda, como se estivesse machucada. As pernas e os ombros do seu terno cinzento, de aparência cara, tinham manchas de poeira de cal.

Apressando-se em sua direção, Döring perguntou: — O que há? Que aconteceu com você? — É a você que as coisas podem acontecer, não a mim! — exclamou

Reichmeider alvoroçadamente. — Andei aos tropeços por aquele edifício que estão demolindo, lá embaixo na rua do próximo quarteirão. Escute, como é o nome dele, daquele sujeito de quem você me falou, o que anda metido com sua mulher?

— Springer — disse Döring, profundamente intrigado, mas contagiando-se com o alvoroço de Reichmeider. — Wilhelm Springer!

— Sabia que era isto! — exclamou Reichmeider. — Sabia que não estava enganado! Que sorte por acaso eu ter... Escute, vou explicar tudo. Vinha por esta rua aqui, para o bar, quando tive de dar uma mijada, não havia jeito de prender. Chegando junto ao prédio, esse que estão demolindo, entrei no beco ao lado. Mas havia muita luz ali, por isso procurei uma entrada pelas portas que existem no local e enfiei-me de mansinho. Fiz o que tinha de fazer e, justamente quando me preparava para sair, dois homens chegaram e pararam bem no lugar onde eu entrara. Um chamou o outro de Springer — lentamente, acenou com a cabeça, enquanto Döring respirava fundo — e este então disse para o primeiro coisas assim: "Ele está no Lorelei nesse instante, o velho maldito", e: "Vamos espremer as tripas daquele corno manso". Eu sabia que Springer era o nome que você tinha falado! Este é mesmo o seu caminho de casa, não?

Döring, de olhos fechados, respirou fortemente e engoliu parte da sua fúria.

— Às vezes — murmurou, abrindo os olhos — tomo caminhos diferentes.

— Pois bem, esta noite eles estão esperando você naquele trajeto. Encontram-se lá, à espreita, com uns paus, bonés sobre os olhos, golas viradas para cima, exatamente como você disse ontem à noite, Springer prestes a saltar de um beco. Percorri o prédio e descobri uma saída do lado de cá.

Döring respirou fundo outra vez e bateu a mão no ombro poeirento de Reichmeider, agradecido.

— Obrigado — disse. — Obrigado. Sorridente, Reichmeider prosseguiu: — Tenho certeza de que você poderá dar conta dos dois com uma das

mãos amarrada nas costas. O outro sujeito é um magricela insignificante,

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porém o mais sensato, é claro, seria simplesmente voltar para casa por outro trajeto. Posso acompanhá-lo, se quiser. A menos que prefira se livrar desse Springer de uma vez por todas.

Döring encarou-o, interrogativo. — É uma oportunidade de ouro, realmente — salientou Reichmeider —,

e de qualquer modo ele há de atacá-lo uma outra noite, se não aproveitar esta. É muito simples: você vai até lá, eles investem — baixou o olhar para o casaco de Döring e sorriu de olho enviesado — e aí você dá cabo deles. Estarei alguns passos atrás, para servir-lhe de testemunha, e na improvável eventualidade de eles lhe darem trabalho — inclinou-se mais para perto e, abrindo a lapela, mostrou uma coronha de arma surgindo do coldre — cuidarei deles e você será minha testemunha. De uma maneira ou de outra, ficará livre dele, e o máximo que lhe poderá acontecer será levar uma ou duas pauladas.

Döring encarou Reichmeider. Levou a mão ao casaco, apertou a dura saliência lá dentro.

— Deus meu! — exclamou, assombrado. — E pensar que vou mesmo usar esta coisa!

Reichmeider desenrolou o lenço da mão e soprou um arranhão sangrento no dorso.

— Isto dará à sua esposa alguma coisa em que pensar —observou. — Deus do céu! — exultou Döring. — Nem tinha pensado nisso! Ela vai

desmaiar aos meus pés! "Escute, Klara, lembra-se de Wilhelm Springer, o professor de clarinete de Erich? Atacou-me na rua esta noite — não faço idéia por quê — e matei-o." — Agarrou as bochechas, radiante, e assobiou. — Meu Deus, isto há de matá-la também!

— Venha, vamos fazê-lo! — instou Reichmeider. — Antes que eles percam a coragem e fujam!

Apressaram-se pelo escuro declive da Kirchengasse. Faróis em subida varriam-nos de luzes e passavam, velozes.

— Quem disse que não há justiça, hein? — "Corno manso"? Ah, seu bichinha de merda, hei de acertá-lo bem no

coração! Atravessaram a Lindenstrasse deserta. Agora andavam devagar e em

silêncio, rentes às portas fechadas das lojas. E chegaram junto aos quatro andares do arcabouço de pedra de um edifício, o topo semidemolido recortando-se numa silhueta de encontro ao céu enluarado, percorrido à frente e aos lados por passagens de tábuas e portas pintadas. Reichmeider puxou Döring para a escuridão da passagem lateral.

— Fique aqui — sussurrou. — Vou me certificar se não pegaram mais outros dez como reforço.

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— É, acho bom. — Döring sacou da arma. — Agora sei o caminho e tenho uma lanterninha de bolso. Não me

demoro. Fique aqui mesmo. — Não deixe que eles o vejam! Já se afastando, Reichmeider cochichou: — Não se preocupe. À obscura luz oscilante, surgiu a passagem, de teto de pranchas e murada

de portas. O vulto alto e magro de Reichmeider entrou por ela, contornando a parede interna, e desapareceu, deixando a escuridão atrás de si.

Ligeiro e agitado — e com vontade de mijar — Döring segurava a Mauser maravilhosamente pesada, há tantos anos carregada e agora prestes a ser usada. Levou-a até junto da entrada da passagem e examinou-a à luz fraca da Lindenstrasse. Acariciou-lhe o cano liso e destravou-a. Ei-la pronta para atirar.

Voltou a recostar-se na parede, onde Reichmeider o deixara. Que amigo! Que homem de fato! Amanhã à noite iria convidá-lo para jantar no Kaiserhof. E dar-lhe de presente alguma coisa de ouro. Abotoaduras, talvez.

Sentindo volumosa a arma em sua mão, quedou-se na passagem, tornando-se agora cada vez mais visível. Imaginou-se despejando sua carga mortífera sobre Wilhelm Springer.

E depois — resolvida a questão com a polícia — voltando para casa e contando a Klara. Morra, sua puta.

Haveria até reportagens nos jornais! "Administrador da Comissão de Tranportes aposentado mata assaltantes." Um retrato dele também. E as entrevistas na televisão?

Precisava mesmo mijar. Era a cerveja. Empurrou de novo a trava e devolveu a arma ao coldre. Virando-se para a parede, abriu o fecho ecler da braguilha e, de pernas bem abertas, deixou sair. Que alívio!

— Você está aí, Döring? — Baixinho, veio de cima a voz de Reichmeider.

— Sim! — respondeu erguendo o olhar para as pranchas. — O que está fazendo aí em cima?

— É que fica mais fácil andar por aqui. Embaixo, há porcarias de toda espécie. Dentro de um minuto estarei com você. Fique aí. A luz acabou e não vou conseguir encontrá-lo se você se mexer.

— Chegou a avistá-los? Não veio resposta. Continuou mijando, olhando por uma fresta entre as

portas desbotadas. Será que Reichmeider conseguiria descer direito sem luz? E teria avistado Springer e o outro, ou ainda estaria a caminho? Depressa, Reichmeider!

Ressoou um tamborilar acima. Ergueu novamente o olhar. Era cascalho

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ou qualquer outra coisa caindo sobre as tábuas. Saltaram sobre ele, com um trovão atrás. Atônito, dolorido, morreu rapidamente.

Quando falara pela última vez em Heidelberg — fora em 1970 — o

auditório tinha sido uma magnífica catedral antiga de carvalho enegrecido, abarrotada além da sua capacidade de mil lugares. Desta vez era uma nova concha acústica cor de areia, para quinhentas pessoas, muito moderna e bem planejada, com as duas últimas fileiras vazias. A voz corria muito mais fácil, é claro, era como falar numa espaçosa sala de estar de alguma residência. Um verdadeiro contato cara a cara com todos aqueles jovens inteligentes. Mas ainda assim...

Bem, a coisa ia muito bem, como em todas as noites até então. As platéias alemãs, as jovens, eram sempre as melhores. Verdadeiramente interessadas, atentas, preocupadas com o passado. Levavam-no a dar o melhor de si, por estar, mais uma vez, diante de uma sensibilidade autêntica, ao passo que as platéias americanas e inglesas, menos envolvidas, permitiam-lhe cair em mecânica elocução de trechos decorados. Falar em alemão também fazia diferença, é claro

— a liberdade de usar naturalmente as palavras ao invés de enfrentar os "was" e "were" (e mais "ejacular" e "ejetar"; está me arranjando mesmo os recortes, Sydney?).

Voltou a concentrar-se no que dizia. — No princípio eu queria apenas vingança — dirigiu-se a uma garota

que assistia, atenta, na segunda fila. — Vingança pela morte de meus pais e minhas irmãs, vingança pelos anos que passei nos campos de concentração — dirigiu-se às filas mais distantes —, vingança por todas as mortes, pelos anos que todos passaram. Por que teria eu sido poupado, senão para exigir vingança? — Fez uma pausa.

— Viena certamente não precisava de outro compositor. — Sobreveio a ondinha costumeira de riso aliviado. Sorriu em acompanhamento, e escolheu um rapaz de cabelos castanhos na extrema direita (levava um pouco o jeito de Barry Koehler). — O problema com relação à vingança — dirigiu-se a ele, procurando não pensar em Barry — é que, primeiro, não se consegue obtê-la, verdadeiramente — desviou o olhar do rapaz com o jeito de Barry, abrangendo a platéia toda —, e, segundo, ainda que o conseguíssemos, adiantaria alguma coisa? — Meneou a cabeça. — Não. Por isso desejo agora alguma coisa melhor que vingança, quase tão difícil de alcançar. — Voltou-se para a garota da segunda fila. — Desejo a recordação. — E abrangendo a todos: — Recordação. É difícil de conseguir porque a vida continua. Todos os anos temos novos horrores; um Vietnam, atividades terroristas no Oriente

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Médio e na Irlanda, assassinatos — (noventa e quatro homens de sessenta e cinco anos?) — e a cada ano — prosseguiu — o horror dos horrores, o Holocausto, torna-se mais distante, um pouco menos horrível. Mas os filósofos nos preveniram: se esquecermos o passado, estaremos condenados a repeti-lo. E por isso é que é importante capturar um Eichmann e um Mengele, a fim de que eles possam... — Ouviu o que dissera e perturbou-se. — Um Stangl, quero dizer — atrapalhou-se. — Desculpem-me, acabo de ser traído por um velho sonho.

Riram um pouco, mas não adiantou, rompera-se a estrutura; tentou recompô-la.

— E por isso é que é importante capturar um Eichmann e um Stangl — continuou. — A fim de que sejam submetidos a julgamento — não necessariamente para serem condenados, não, mas a fim de que sejam ouvidas testemunhas que façam lembrar ao mundo, e especialmente a vocês, ainda não nascidos quando essas coisas aconteceram, que homens em nada diferentes por fora de vocês e de mim são capazes de cometer, em determinadas circunstâncias, as mais bárbaras e desumanas atrocidades. A fim de que você — apontou — e você — e você — e você — providenciem para que tais circunstâncias jamais tenham possibilidades de ressurgir.

O fim. Inclinou a cabeça. O aplauso veio em dilúvio sobre ele. Recuou um passo da tribuna e, apoiado em uma das mãos, agradeceu. Esperou, respirando forte, em seguida se adiantou, agarrou a tribuna de novo com as duas mãos e enfrentou o aplauso, que esmoreceu até o quase silêncio.

— Obrigado — proferiu. — Se tiverem perguntas a fazer agora, vou me esforçar ao máximo para respondê-las. — Olhou em todas as direções, escolheu e apontou.

Traunsteiner, inclinando-se sobre o volante agarrado com firmeza, disparou seu carro a toda velocidade em direção a um homem de cabelos grisalhos que caminhava, de costas para ele, pelo ressalto da estrada. Agigantando-se sob o explosivo fulgor dos faróis, o homem voltou-se, ergueu uma revista dobrada até acima dos olhos, deu um passo para trás. O pára-choque do carro atirou-o para cima e para longe. Reprimindo um sorriso, Traunsteiner guinou o carro em cheio para cima da calçada, quase de encontro a um aviso de cruzamento em letras brancas num fundo azul. Freando uma e outra vez, girou o carro, guinchando, para uma estrada mais larga, com um marco assinalando "Esbjerg — 14 km".

— Principalmente através de contribuições — anunciou Liebermann — de judeus e outras pessoas interessadas de todo o mundo. E também mediante o que recebo escrevendo e fazendo conferências como esta. — Apontou para uma mão na fila do fundo. Uma moça levantou-se, rosada e rechonchuda. Começou a formular o que ele viu que ia ser a pergunta sobre

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Frieda Maloney. — Reconheço — disse a moça — que seja importante submeter a

julgamento as pessoas-chave, as que ocuparam posições elevadas. Mas não estará o senhor ainda motivado pela vingança num caso como o de Frieda Maloney, guarda comum que veio arrastada para cá, após ser cidadã americana durante tantos anos? O que ela fez durante a guerra não terá sido compensado pelo que fez a partir de então? Ela foi uma cidadã muito útil lá. Ensinando, etc.

A moça sentou-se. Ele acenou com a cabeça e permaneceu silencioso por um momento,

alisando o bigode, meditativo, como se nunca lhe tivessem feito aquela pergunta antes. Em seguida, disse:

— Depreendo de sua pergunta que uma mulher professora de jardim de infância que descobria lares para crianças desvalidas, boa dona-de-casa, bondosa para cães vira-latas, possa igualmente ter sido — a mesmíssima mulher — guarda "comum" de campo de concentração, culpada, talvez — seu julgamento, quando finalmente acontecer, nos dirá —, de homicídio em massa. Perguntou-lhe agora: você estaria a par dessa possibilidade, de certo modo surpreendente, se Frieda Altschul Maloney não fosse encontrada e extraditada? Creio que não, e não julgo que isso constitua uma possibilidade sem importância, que possa prescindir do seu conhecimento. Nem do conhecimento do seu governo.

Olhou em torno, para as mãos levantadas, inclusive a do rapaz com o jeito de Barry. Desviou o olhar dele (agora não, Barry, estou ocupado) e apontou para um rapaz louro, de aspecto sagaz, bem no centro. ("Há noventa e quatro deles", insistia a voz de Barry no telefone, "e são todos funcionários públicos de sessenta e cinco anos. Sentiu a barra?")

Uma nova pergunta lhe era dirigida. — Mas Frieda Maloney nem sequer foi indiciada — estava dizendo o

rapaz louro. — Estará o nosso governo realmente tão interessado em perseguir criminosos nazistas? Estará qualquer governo do mundo, mesmo o de Israel? Não se terá verificado um declínio de interesse, e não será essa uma das razões por que o senhor não conseguiu reabrir o seu Centro de Informações?

Quem lhe mandou escolher os de aspecto sagaz? — Primeiro que tudo — informou ele —, o Centro encontra-se

temporariamente instalado em dependências menores, mas ainda está aberto. Há gente trabalhando, cartas chegam, consultas saem. Como disse antes, somos financiados por pessoas isoladas, de modo algum dependentes de qualquer governo. Em segundo lugar, embora verdadeiro que os promotores alemães e austríacos não sejam mais tão... receptivos quanto outrora, e Israel

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tenha outros problemas mais prementes, a causa da justiça ainda não foi abandonada. Sei de fonte limpa que Frieda Maloney será indiciada em janeiro ou fevereiro, e levada a julgamento logo depois. As testemunhas foram encontradas, tarefa difícil e demorada, da qual o Centro participou.

Olhou novamente as mãos levantadas, jovens rostos inteligentes — e de repente teve a noção exata do que tinha diante dos olhos. Uma mina de ouro, por Deus! Bem na frente dele!

Ali, naquela luminosa concha acústica, achavam-se quase quinhentos dos mais inteligentes jovens da Alemanha, a nata de sua geração, e ele tentava resolver a coisa sozinho, um velho tolo, de cérebro cansado. Bom Deus!

Consultá-los? Loucura! Certamente apontara para alguém, a pergunta sobre o neonazismo fora

formulada. — Dois fatores são necessários para o ressurgimento do nazismo —

enumerou rapidamente: — um agravamento das condições sociais até se aproximarem das existentes nos primeiros anos 30, e o aparecimento de um líder semelhante a Hitler. Se esses dois fatores viessem a surgir, os grupos neonazistas do mundo inteiro se tornariam evidentemente um foco de perigo, mas, no momento, não, não me sinto especialmente alarmado. — Mãos se levantaram subitamente, mas ele ergueu a sua, detendo-as. — Um minuto apenas, por favor — solicitou. — Gostaria de interromper as perguntas por um instante e formular uma, ao invés de responder.

As mãos caíram. Os jovens rostos inteligentes olharam-no, na expectativa.

Loucura! Mas como não tentar utilizar um poderio mental desses? Agarrou com as duas mãos a tribuna, respirou, refletiu. — Quero — dirigiu-se àquela concha repleta de tão magníficas pérolas

— pedir emprestados seus cérebros para resolver um problema. Um problema hipotético que um jovem amigo me propôs. Estou muito ansioso para resolvê-lo, tanto assim que me sinto disposto a trapacear um pouco e pedir auxílio. — Risadinhas. — E quem melhor me poderia ajudar senão os estudantes desta grande universidade e os seus amigos?

Tirou as mãos da tribuna e aprumou-se, olhando-os despreocupadamente — um homem propondo um problema hipotético e não um problema real.

— Já lhes falei acerca da Organização dos Camaradas, da América do Sul — disse ele —, e acerca do Dr. Mengele. Eis o problema apresentado pelo meu amigo. A Organização e o Dr. Mengele decidiram matar grande número de homens em diversos países da Europa e da América do Norte. Noventa e quatro homens, para ser exato, e todos de sessenta e cinco anos e funcionários públicos. Os assassinatos deverão ocorrer num período de dois

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anos e meio, e existe uma motivação política, uma motivação nazista. Qual é? Poderão encontrar uma resposta para mim? Quem são esses homens? Por que suas mortes são desejáveis para a Organização dos Camaradas e para o Dr. Mengele?

O auditório de jovens ficou perplexo. Um zumbido de cochichos cresceu no meio deles. Uma tosse irrompeu, ecoada por outra.

Assomou à tribuna, despreocupadamente. — Não estou brincando com vocês — declarou. — Este problema me foi

proposto. Como um exercício de lógica. Podem me ajudar? Inclinaram-se uns para os outros, e o zumbido de cochichos intensificou-

se, transformou-se em zumbido de idéias aventadas. — Noventa e quatro homens — proferiu ele vagarosamente, à guisa de

orientação. — De sessenta e cinco anos. Funcionários públicos. De vários países. Dentro de dois anos e meio.

Uma mão levantou-se, e mais outra. Esperançoso, escolheu a primeira — algumas fileiras atrás do meio, um

pouco à esquerda. — Sim? Um rapaz de suéter azul ergueu-se. — Os homens detêm posições de responsabilidade — disse, com uma

voz inesperadamente aguda. — Suas mortes acarretarão direta ou indiretamente o deterioramento das condições sociais a que o senhor acabou de se referir, criando clima mais favorável a um ressurgimento do nazismo.

Ele meneou a cabeça. — Não, creio que não. Seria possível o prosseguimento de assassinatos,

durante meses, de homens altamente colocados, para não falar em dois anos e meio, sem atrair atenção e provocar investigações? Não, os homens têm de pertencer ao segundo escalão de funcionários. E, aos sessenta e cinco anos, é mais do que provável, de qualquer modo, que estejam se aposentando; portanto, removê-los de seus cargos não seria absolutamente o objetivo de tais assassinatos.

— Por que matá-los, afinal de contas? — exclamou uma voz, vinda dos fundos, à direita. — Não tardarão a morrer naturalmente!

Ele concordou com um aceno. — Está certo. Não tardarão a morrer naturalmente. Portanto, por que

matá-los, afinal de contas? É isso que estou lhes perguntando. Apontou a segunda mão que se levantara, no fundo, ao centro. Outras

mãos estavam agora erguidas. Um rapaz alto levantou-se, dizendo: — São simpatizantes nazistas sem famílias, que deixaram todas as suas

economias para grupos nazistas. Trata-se de assassinato por dinheiro. Talvez necessitem de fundos agora, e não daqui a cinco ou dez anos.

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— Isso é possível — acedeu —, embora pareça improvável. Como já disse, a Organização dos Camaradas dispõe de enorme fortuna trazida clandestinamente da Europa antes do fim da guerra. — Puxou a caneta do bolso de cima e fez sair sua ponta com um estalido. — Ainda assim, é uma possibilidade. — Virou uma de suas fichas de notas sobre a tribuna, e no verso escreveu: "Dinheiro?" Ergueu a caneta e apontou para a direita.

Uma moça de óculos e compridos cabelos castanhos levantou-se. — Parece-me muito mais provável — disse ela — que os homens sejam

antinazistas do que pró-nazistas, e obviamente existe algum tipo de ligação entre eles. Poderiam ser membros de algum grupo internacional judaico que de algum modo ameace a Organização dos Camaradas?

— Acho que eu teria conhecimento deste grupo — asseverou ele —, e jamais ouvi falar de grupo algum, de qualquer espécie, cujos membros tenham todos sessenta e cinco anos.

A moça permaneceu de pé. — Talvez o fato de eles terem sessenta e cinco anos não seja o

importante — contrapôs. — A... ligação poderia ter sido estabelecida quando eram mais jovens, quando todos tinham... trinta ou vinte anos. Talvez estivessem envolvidos em determinada ação militar, durante a guerra, e matá-los seria ato de vingança.

— Alguns são alemães — disse ele —, outros ingleses, americanos. Também há suecos, que eram neutros. Mas...

— Uma patrulha das Nações Unidas! — exclamou alguém. — Seriam demasiado idosos — respondeu ele, e olhou novamente para a

moça de cabelos compridos, que se havia sentado. — Mas é um ponto crítico — ponderou — o fato de sessenta e cinco anos poder não ser a idade importante; é claro que durante toda a vida eles tiveram as mesmas idades, portanto isso dá margem a outras possibilidades. Obrigado.

Escreveu: "Ligação numa idade anterior?", e aí alguém exclamou: — São naturais desses países ou apenas vivem lá? Ele ergueu os olhos. — Outro ponto bom — disse. — Não sei. Talvez originalmente fossem

da mesma nacionalidade. — "Onde nasceram?", escreveu. — Isto está bom, continuem assim! — Apontou.

Um rapaz sentado de pernas cruzadas na primeira fila aventou: — São pessoas que ajudam o senhor, importantes colaboradores seus. — Está me lisonjeando. Não sou tão importante assim, como também

não disponho de noventa e quatro colaboradores. De qualquer idade. — Apontou outro lugar.

O rapaz com o jeito de Barry disse: — Quando começa o período de dois anos e meio, senhor? — Começou há dois dias.

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— Então termina na primavera de 1977. Há algum acontecimento político importante marcado para ocorrer então? Talvez os assassinatos sejam anunciados como demonstração de força, ou aviso.

— Mas por que especialmente tais homens? Contudo, temos outro ponto interessante. Alguém sabe de um acontecimento importante, político ou não, marcado para a primavera de 1977? — Olhou em torno.

Silêncio, menear de cabeças. — Minha formatura! — gritou alguém. Risadas e aplausos. "Primavera de 77?", escreveu ele e, sorrindo, apontou. O rapaz de suéter

azul novamente, com a sua voz aguda, falou: — Os homens não estão altamente colocados, mas sim seus filhos, que

têm seus quarenta e tantos anos. E os homens serão mortos a fim de que seus filhos tenham de abandonar trabalhos importantes para assistir ao enterro.

Zombarias, vaias e assobios de menosprezo. — Um tanto forçado — declarou ele —, mas mesmo assim contém o

germe de alguma coisa em que pensar. Serão os homens aparentados com gente importante, ou estarão a eles associados de alguma forma? — Escreveu: "Parentes? Amigos?", e apontou.

O louro de aspecto sagaz levantou-se. Sorrindo, indagou: — Herr Liebermann, será que este problema é mesmo hipotético? Jamais apontar de novo para este rapaz. O silêncio expandiu-se pelo

auditório. — Claro que é — respondeu. — Então deve pedir mais informações ao seu amigo — retrucou o rapaz de aspecto sagaz. — Nem mesmo os maiores

cérebros de Heidelberg poderão resolver este problema, se não lhes derem, ao menos, algum fato pertinente acerca dos noventa e quatro homens. Com as informações de que dispomos presentemente, só nos resta especular às cegas.

— Tem razão — disse ele —, são necessárias mais informações. Mas a especulação ajuda, sugere possibilidades.

— Olhou em torno. — Alguém tem mais especulações? Uma mão levantou-se ao fundo, à esquerda. Ele apontou para ela. Um homem idoso ergueu-se, de cabelos brancos e de aspecto frágil —

membro da faculdade ou o avô de alguém. Apoiando-se no espaldar do assento à sua frente, proferiu em voz firme e sobranceira: — Nenhuma das sugestões feitas até agora assinalou a presença do Dr. Mengele no problema. Por que haveria ele de surgir se os assassinatos são apenas de ordem política, do tipo comum, que a Organização dos Camaradas poderia planejar sem a sua presença? Ele surgirá, é claro, devido à sua formação de médico, e portanto sugiro uma perspectiva médica para os assassinatos. Eles poderiam,

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por exemplo, constituir a experiência dissimulada de novas maneiras de matar, e nesse caso os homens teriam sido escolhidos precisamente porque são velhos, sem importância, não constituindo ameaça para o nazismo. Um programa de experiências explicaria igualmente o extenso período de tempo. Na primavera de 1977 os verdadeiros assassinatos começariam. — E ele sentou-se.

Liebermann ficou olhando para ele por um momento e, a seguir, disse: — Obrigado, senhor. — E dirigiu-se ao auditório inteiro: — Espero que

para sorte dos senhores este cavalheiro seja um de seus professores. — E é — asseguraram-lhe várias vozes contundentemente, e o nome de

Geirasch foi repetido. "POR QUE M.???", escreveu e ergueu de novo os olhos na direção do

homem. — Não creio que um programa de experiências se limitaria a

funcionários públicos — disse ele —, ou seria cumprido nesta parte do mundo, ao invés de na América do Sul, mas o senhor certamente está certo quanto a haver uma razão específica para a presença do Dr. Mengele. Poderá alguém lembrar-se de alguma? — Olhou em torno.

Os jovens permaneceram calados. — Uma perspectiva médica para os noventa e quatro assassinatos? —

Olhou a moça de cabelos compridos. Ela meneou a cabeça. O rapaz com o jeito de Barry balançou a sua, e também o rapaz de suéter

azul. Ele hesitou — e olhou o rapaz louro de aspecto sagaz, que lhe sorriu e

também sacudiu a cabeça. Olhou para a ficha sobre a tribuna: "Dinheiro? Ligação numa idade anterior? Onde nasceram? Primavera de 77? Parentes? Amigos? POR QUEM.???" Olhou a platéia. — Obrigado — disse. — Vocês não resolveram o problema, mas me

deram sugestões que talvez me levem à solução, por isso têm a minha gratidão. Voltaremos agora às suas perguntas.

Mãos levantaram-se. Ele apontou. Uma moça junto do rapaz com o jeito de Barry levantou-se e indagou:

— Herr Liebermann, qual a sua opinião sobre Moshe Gorin e os

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Defensores Judaicos? — Nunca estive com o Rabino Gorin, por isso não tenho opinião pessoal

a seu respeito — respondeu automaticamente. — Quanto aos Jovens Defensores Judaicos, se estiverem defendendo, ótimo. Mas se, conforme tem constado às vezes, estiverem atacando, então não será tão bom. Camisas pardas nunca dão certo, não importa quem as vista.

E Horst Hessen, com os seus cabelos prateados, suando ao sol brilhante, levou os grandes binóculos aos olhos azuis e observou um homem de peito nu, de chapéu de sol branco, dirigindo um cortador de grama a motor, vagarosamente, sobre a relva de um verde brilhante. Num mastro estava hasteada uma bandeira americana. A casa atrás era uma caixa de sequóia e vidro, bem-arrumada e de um andar só. Um tiro, e uma nuvem escura, onde dançava o alaranjado, substituiu o homem e o cortador de grama; um som surdo de explosão veio bruscamente de longe.

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Três Mengele mudara o retrato do Führer e todas as fotografias menores e

recordações dele para a parede oeste, por cima do sofá — o que significou mudar seus diplomas, comendas e fotografias de família para quaisquer espaços que pôde encontrar, entre as duas janelas externas da parte sul e em volta da janela de observação do laboratório e da porta na parede leste. Providenciara então que a parede norte, toda limpa, recebesse uma moldura de madeira de sete centímetros de largura, à altura da metade, acima da qual fora tirado o papel de parede cinzento-claro. Duas mãos de tinta branca tinham sido passadas, a primeira fosca e a segunda semilustrosa. A moldura fora pintada de cinzento-claro. Quando toda a tinta secou inteiramente, ele mandou vir de avião, do Rio, um pintor de cartazes.

O pintor de cartazes fazia linhas finas magnificamente retas e bonitas letras, mas nos seus primeiros traços leves, a lápis, revelou inclinação para copiar errado, e/ou colocar fora do lugar sinais de pronúncia, além de obedecer à sua maneira brasileira de soletrar. Durante quatro dias, pois, Mengele sentara-se à sua escrivaninha, observando, ensinado, advertindo. Aos poucos, foi tendo aversão ao pintor de cartazes, e por volta do segundo dia aceitava de bom grado a idéia de que o beócio ia ser atirado do avião.

Quando o serviço terminou, e a mesa comprida, com as suas estantes de jornais arrumadas, foi posta no lugar junto à parede, Mengele pôde recostar-se na sua cadeira de aço e couro e contemplar o quadro que imaginara. Os noventa e quatro nomes, cada um com o seu país, data e quadradinho ao lado, como para as eleições, foram dispostos em três colunas, a do meio necessariamente contendo um nome a mais que as duas de fora (uma pequena contrariedade, mas o que poderia ser feito a esta altura?). Ali estavam todos eles, de "1, Döring — Deutschland — 16/10/74 " a "94. Ahearn — Kanada — 23/4/77 "— Como ansiava por preencher cada um desses quadradinhos! Ele próprio faria isso, claro, com tinta vermelha ou preta, ainda não decidira qual. Talvez tentasse desenhar cruzes, e, se as primeiras não saíssem uniformes, aí então trataria de cobrir os quadradinhos.

Girou na cadeira e sorriu para o Führer. "Não se importa de ser afastado para o lado por causa disto, não é mesmo, meu Führer? Claro que não. Como poderia?"

Por ora, infelizmente, nada restava senão esperar até 1.° de novembro, quando os chamados chegariam à sede.

Estivera trabalhando no laboratório, tentando, sem muito entusiasmo, transplantar cromossomos em núcleos de células de rãs.

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Certo dia, voara até Assunção. Visitou seu barbeiro e uma prostituta, comprou um relógio digital, comeu um bom bife no La Calandria, com Franz Schiff.

E agora, finalmente, chegara o dia — bonito, de uma luminosidade tão ofuscante que tivera de cerrar as cortinas do escritório. O rádio estava ligado, sintonizado para a freqüência da sede, com os fones de prontidão ao lado de um bloco de memorando e uma caneta. Num canto do tampo de vidro da escrivaninha estava estendida uma toalha de linho branco. Sobre ela, em ordem cirúrgica, uma latinha fechada de esmalte vermelho, uma chave de parafuso, um pincel novo e fino de cerdas curtas, uma placa de Petri descoberta e uma lata de terebintina com tampa de atarraxar. A extremidade esquerda da mesa comprida fora afastada da parede. Uma escadinha fora colocada diante da primeira coluna de nomes e países.

Resolveu então tentar as cruzes. Pouco antes do meio-dia, quando começava a perder a paciência, o

zumbido de um avião chegou com crescente intensidade através das cortinas. Era o zumbido do avião da sede, o que significava notícias muito boas ou muito más. Saiu apressado do escritório, passou pelo vestíbulo e chegou à varanda, onde algumas crianças, filhas dos empregados, estavam sentadas, partindo uma espécie de bolo achatado. Passou por cima delas, deu a volta pelo lado da casa, em direção aos fundos, e desceu uns degraus. O avião acabava de baixar por trás da.copa das árvores. Protegendo os olhos com as mãos, precipitou-se pelo quintal — um empregado que descansava na enxada começou a manejá-la — e passou pela casa dos empregados, pelos barracões e pelo galpão do gerador. Correndo com passos curtos, entrou pela trilha verdejante aberta por entre a densa folhagem da mata. Ouviu o avião aterrissar. Passou para uma marcha rápida, enfiou a fralda de trás da camisa para dentro das calças, tirou o lenço e limpou a testa e o rosto. Por que o avião e não o rádio? Alguma coisa tinha dado errado; tinha certeza. Liebermann? Será que aquele lixo conseguira de algum modo pôr fim a tudo? Em caso afirmativo, ele próprio iria pessoalmente a Viena descobri-lo e dar cabo dele. O que mais lhe restaria para fazer da vida?

Atingiu a beira da faixa de pouso gramada a tempo de ver o bimotor vermelho e branco rolando vagarosamente para perto do seu — menor, prateado e preto. Dois guardas estavam ali com o piloto, que lhe acenou. Inclinou a cabeça em saudação. Outro guarda estava do outro lado da pista, junto à cerca gradeada, enfiando alguma coisa através dela, tentando atrair um animal. Era contra o regulamento, mas não o repreendeu. Observou a porta do avião vermelho e branco, agora parado, as hélices morrendo. Rezou baixinho.

A porta foi aberta e um dos guardas apressou-se a ajudar um homem

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alto, de terno azul-claro, a descer os degraus. Coronel Seibert! Tinham de ser más notícias. Adiantou-se vagarosamente. O coronel avistou-o, acenou — aparentemente alegre — e veio em sua

direção. Trazia uma sacola vermelha. Mengele andou mais depressa. — Notícias? — exclamou. O coronel acenou afirmativamente, sorrindo. — Sim, boas notícias! Graças a Deus! Acelerou ainda mais o passo. — Estava preocupado. Apertaram-se as mãos. O coronel, com o seu belo e enérgico rosto

nórdico, sorriu e disse: — Todos os "vendedores" deram notícias. Os "fregueses" de outubro

foram visitados. Quatro nas datas marcadas, dois um dia antes, e um dia depois.

Mengele apertou o peito e respirou. — Graças a Deus! Estava preocupado com a chegada do avião. — Senti vontade de dar um vôo — retorquiu o coronel. — O dia está tão

bonito! Caminharam juntos em direção à trilha. Todos os sete? — Todos os sete. Sem obstáculo algum. — O coronel estendeu a sacola.

— Isto é para você. Um misterioso fardo da parte de Ostreicher. — Ah — fez Mengele, apanhando-o. — Obrigado. Não é mistério

algum. Pedi-lhe que me arranjasse um pouco de seda. Uma de minhas empregadas vai me fazer camisas. Você fica para o almoço?

— Não posso — respondeu o coronel. — Tenho um ensaio para o casamento da minha neta às três horas. Sabia que ela vai se casar com o neto de Ernst Robbling? Amanhã. Mas aceito um café e conversaremos um pouco.

— Espere até ver meu quadro. — Quadro? — Você vai ver. O coronel viu e ficou encantado. — Lindo! Uma verdadeira obra de arte! Não foi você quem fez, pois

não? Pousando a sacola junto à escrivaninha, Mengele respondeu

alegremente: — Céus, não, pois se nem estou certo de saber desenhar direito as

cruzes! Mandei vir um homem de avião do Rio. O coronel voltou-se e fitou-o, surpreso e interrogativo. — Não se preocupe — tornou Mengele, erguendo tranqüilizadoramente

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a mão —, ele teve um acidente na volta. — Grave, espero — aventou o coronel. — Muito. Trouxeram café. O coronel examinou algumas fotografias do Führer e

em seguida sentaram-se no sofá e bebericaram em pequenas xícaras douradas e brancas de fumegante negror.

— Todos eles instalaram-se em apartamentos — informou o coronel —, exceto Hessen, que comprou um reboque de acampar. Disse-lhe para dar notícias uma vez por semana, logo que surgisse alguma coisa. Ele utilizará o reboque somente até a chegada do mau tempo.

— Preciso das datas em que os homens foram mortos — disse Mengele. — Para os meus registros.

— Certamente. — O coronel pousou a xícara e o pires sobre a mesa de café. — Tenho tudo batido a máquina. — Enfiou a mão dentro do casaco.

Mengele pousou a xícara e o pires e pegou a folha dobrada de papel fino que o coronel lhe entregou. Abriu-a, afastou-a de si, apertando os olhos para as letras datilografadas. Sorrindo, meneou a cabeça.

— Quatro dentre sete nas datas marcadas! — maravilhou-se. — Não é sensacional?

— Eles são bons — disse o coronel. — Schwimmer e Mundt já têm os seus próximos preparados. Farnbach precisou de algumas explicações. Ele é um tanto perguntador.

— Eu sei — retorquiu Mengele. — Deu-me trabalho quando lhes transmiti as instruções.

— Não creio que vá dar mais — tornou o coronel. — Passei-lhe uma boa espinafração.

— Fez bem. — Com um agradável barulhinho cre-pitando, Mengele dobrou de novo o papel e o deixou no canto da mesa de café, arrumando-o cuidadosamente na quina. Olhou para o quadro e imaginou as sete cruzes vermelhas que ia pintar quando o coronel se retirasse. Ergueu a xícara, na esperança de ver seguido seu exemplo.

— O Coronel Rudel telefonou-me ontem pela manhã — disse o coronel. — Está na Costa Brava. — Ah, sim? — Mengele verificou de imediato que o prazer de voar não

fora a única razão para a vinda do coronel. Qual seria? — Como está passando ele? — indagou, e sorveu seu café.

— Esplendidamente — respondeu o coronel. — Mas um pouco preocupado. Recebeu uma carta de Günter Wenzler, avisando-o de que Yakov Liebermann talvez esteja na pista de uma de nossas operações. Liebermann falou em Heidelberg há duas semanas. Fez à platéia uma "pergunta hipotética" bastante inusitada. Um amigo de Wenzler, cuja filha

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estava lá, disse-lhe que convinha relatar o fato, por via das dúvidas. — O que Liebermann perguntou exatamente? O coronel olhou para Mengele por um momento, e disse: — Por que nós — você e nós — haveríamos de querer matar noventa e

quatro funcionários públicos de sessenta e cinco anos. Uma "pergunta hipotética".

Mengele encolheu os ombros. — Então é óbvio que ele não está a par — concluiu. — Tenho certeza de que ninguém deu a resposta certa. — Rudel também tem certeza — asseverou o coronel —, mas gostaria de

saber como Liebermann surgiu com a pergunta certa. Você não parece muito surpreendido.

Mengele sorveu seu café e falou despreocupadamente. — O americano não estava ouvindo a fita quando o encontramos. Falava

com Liebermann. — Pousou a xícara e sorriu para o coronel. — Estou certo de que você apurou isso na companhia telefônica ontem à tarde.

O coronel suspirou e inclinou-se na direção de Mengele. — Por que não nos disse? — Para ser franco — confessou Mengele —, temi que vocês adiassem a

operação, no caso de Liebermann estar investigando. — Tem razão, é exatamente o que haveríamos de querer — assentiu o

coronel. — Três ou quatro meses... seria assim tão terrível? — Poderia modificar completamente os resultados. Acredite-me,

coronel. Pergunte a qualquer psicólogo. — Então deixaríamos de lado esses homens e cuidaríamos dos outros! — Fazendo cair em vinte por cento o resultado? Há dezoito homens nos

primeiros quatro meses. — E não acha que reduziu mais o resultado dessa maneira? — insistiu o

coronel. — Liebermann estará falando apenas a estudantes? Os homens, nossos homens, poderiam ser presos amanhã! E o resultado reduzido em noventa e cinco por cento!

— Coronel, por favor — apaziguou Mengele. — Supondo, é claro, que haja um resultado. Até agora temos apenas sua

palavra quanto a isso, você sabe! Mengele, sentado em silêncio, respirou profundamente. O coronel

ergueu sua xícara, olhou-a fixamente, e pousou-a de novo. Mengele suspirou. — Haverá exatamente o resultado que prometi — assegurou. —

Coronel, pare e pense um momento. Liebermann se preocuparia em fazer perguntas a estudantes se alguém mais o estivesse ouvindo? Os homens partiram, não? Cumprindo suas missões? Claro que Liebermann falou com

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outros — talvez com todos os promotores e policiais da Europa! Mas evidentemente não lhe deram atenção. O que mais poderiam fazer? — um velho nazífobo como ele procurando-os com uma história que há de parecer louca, uma vez que ele não pode fornecer o motivo que a justifique. Foi com isso que contei quando tomei minha decisão.

— Não cabia a você tomar essa decisão — retrucou o coronel. — Você submeteu seis de nossos homens a muito mais perigo do que constou de nosso pacto.

— E assim fazendo ficou preservado seu enorme investimento, para não falar no destino da raça. — Mengele levantou-se e foi até a escrivaninha, tirando um cigarro de uma salva de bronze cheia deles. — Seja como for, são águas passadas — disse.

O coronel sorveu o café, olhando para as costas de Mengele. Baixou a xícara, anunciando:

— Rudel queria que eu mandasse chamar os homens hoje. Mengele voltou-se, tirou o cigarro aceso dos lábios. — Não acredito nisso — proferiu. O coronel acenou com a cabeça. — Ele leva suas responsabilidades de oficial muito a sério. — Ele tem responsabilidades é como ariano! — Certo, mas ele nunca esteve tão seguro quanto nós de que o projeto

daria resultado. Você sabe disso, Josef. Bom Deus, quanto tempo para que o convencêssemos!

Mengele permaneceu calado; hostil, em expectativa. — Disse-lhe praticamente o que você acaba de me dizer — falou o

coronel. — Se os homens deram notícias e tudo corre bem, sem que Liebermann tenha podido interferir, então por que não deixá-los em ação? Ele acabou concordando. Mas Liebermann será vigiado de agora em diante — Mundt encarregou-se disso — e, se houver qualquer sinal de que esteja interferindo, então terá de ser tomada uma decisão: matá-lo, o que só poderia complicar ainda mais as coisas, ou então trazer os homens de volta.

— Faça isso e irá tudo por água abaixo — asseverou Mengele. — Tudo o que consegui. Todo o dinheiro que você gastou em pessoal, equipamento e distribuição de tarefas. Como ele sequer ousaria pensar nisso? Eu enviaria seis outros homens se os atuais fossem apanhados. E mais seis. E mais seis!

— Concordo, Josef, concordo — acalmou o coronel. — E gostaria muito que você tivesse voz ativa na decisão, se ela viesse mesmo a ser tomada. Voz forte. Mas se Rudel souber que você deixou os homens partirem sabendo que Liebermann estava avisado... ele há de cortá-lo por completo da operação. Você nem receberá os relatórios mensais. Por isso, prefiro não lhe contar. Mas, antes, tenho de obter de você a garantia de que não... tomará mais decisões sozinho.

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— Acerca de quê? Não há mais decisões a tomar, a não ser manter os homens em operação.

O coronel sorriu. — Não duvido que você fosse capaz de pular sozinho num avião e sair

atrás de Liebermann. Mengele tirou uma baforada do cigarro. — Não seja ridículo — disse. — Sabe que eu não ousaria ir à Europa. —

Voltou-se para a escrivaninha e bateu a cinza numa bandeja. — Posso ter sua palavra — indagou o coronel — de que não fará coisa

alguma capaz de afetar a operação, sem consultar a Organização? — É claro que pode — disse Mengele. — Absoluta. — Então direi a Rudel que é um mistério Liebermann saber das coisas. Mengele meneou, incrédulo, a cabeça. — Não posso crer — asseverou — que esse velho idiota — refiro-me a

Rudel, não a Liebermann — seja capaz de malbaratar tanto dinheiro, juntamente com o destino ariano, só por amor à segurança de seis homens comuns.

— O dinheiro era apenas uma fração do que dispomos — declarou o coronel. — Exageramos sua importância a fim de que você mantivesse a noção dos gastos. Quanto ao destino ariano... bem, como eu já disse, ele nunca acreditou de fato que o projeto funcionasse. Acho que para ele cheira um pouco a magia ou feitiçaria. Ele está longe de ser um homem com mentalidade científica.

— Você seria louco se lhe confiasse a última decisão. — Atravessaremos a ponte quando a atingirmos — disse o coronel. —

Se a atingirmos. Esperemos que Liebermann pare de falar, mesmo a estudantes, e você desenhe noventa e quatro cruzes nesse belo quadro. — Levantou-se. — Acompanhe-me ao avião. — Esticou à frente uma rígida perna de robô e deu uma passada pesada, cantarolando: — "Lá vem a noiva" — uma passada! — "Toda de branco" — outra passada! — Que amolação! Prefiro casamentos simples, e você? Mas experimente dizer isso a uma mulher.

Mengele levou-o até o avião, acenou quando este decolou e voltou para casa. Seu almoço estava à espera na sala de jantar, por isso comeu-o, depois lavou as mãos na pia do laboratório e foi para o escritório. Deu uma boa sacudidela na lata de esmalte e utilizou a chave de parafuso para abrir-lhe a tampa. Pôs os óculos e, segurando a lata de vermelho-vivo e o novo pincel fino, subiu a escadinha.

Molhou as cerdas, raspou-as de encontro à borda da lata, tomou uma respiração reanimadora e levou o pincel de ponta vermelha até o quadradinho depois de "Döring — Deutschland — 16/10/74".

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A cruz saiu bastante boa: vermelha, reluzente sobre o branco, de bordas retas e vistosa.

Retocou-a um pouco e pintou uma cruz igual no quadradinho de "Horve — Dänemark — 18/10/74". E no de "Guthrie — V. St. A. — 19/10/74".

Desceu da escadinha, recuou e estudou através dos óculos as três cruzes. Sim, elas serviriam. Subiu novamente na escadinha e pintou cruzes nos quadradinhos de

"Runsten — Schweden — 22/10/74"', "Rausenberger — Deutschland — 22/10/74"', "Lyman — England — 24/10/74", e "Oste — Holland — 27/10/74".

Desceu e deu outra olhada. Muito bem. Sete cruzes vermelhas. Mas praticamente nenhum prazer. Maldito Rudel! Maldito Seibert!

Maldito Liebermann! Malditos todos! Pandemônio foi o que ele encontrou na volta. Glanzer, o senhorio, que

teria dado um magnífico anti-semita não fosse o fato de ser judeu, berrava acusações a uma Ester pequenina e trêmula, enquanto Max e uma moça aparvalhada, que Liebermann nunca vira antes, empurravam a escrivaninha de Lili para o canto junto à porta do quarto. Um pinga-pinga e chape-chape muito musicais provinham das panelas e tigelas dispostas por toda a parte, apanhando as gotas de água que caíam das escuras manchas de umidade espalhadas pelo teto. Uma louça quebrou na cozinha — Oh, droga! — (era Lili que estava lá), e o telefone tocou.

— Ah-ah! — exclamou Glanzer, voltando-se e apontando. — Aí vem a grande figura mundial que não se importa com a propriedade do homem comum. Não arrie essa mala que o chão não agüenta!

— Bem-vindo ao lar — proferiu Max, puxando por uma das extremidades da escrivaninha.

Liebermann pousou a mala e a pasta. Por se tratar de uma manhã de domingo, esperava encontrar o apartamento sossegado e vazio.

— Que aconteceu? — Que aconteceu? — Glanzer avançou em direção a ele, espremendo-se

por entre dois rebordos de escrivaninhas, o rosto bulboso em brasa. — Eu lhe digo o que aconteceu! Tivemos uma inundação no andar de cima, eis aí! Você põe peso demais no assoalho, força os canos! Por isso eles arrebentam! Acha que podem agüentar toda essa carga que você tem aqui?

— Ah, os canos de cima arrebentam e eu levo a culpa? — Tudo tem ligação! — berrou Glanzer. — O excesso de peso se

propaga! A casa inteira vai desabar por causa do excesso de peso que você

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tem aqui! — Yakov? — Ester estendeu o fone, tapando com a mão o bocal. — Um

homem chamado Von Palmen, de Mannheim. Telefonou na semana passada. — Uma mecha de cabelos grisalhos sobrava por baixo da sua peruca ruiva.

— Pegue o número que eu telefono para ele. — Acabo de quebrar a tigela cor-de-rosa — disse Lili, melancolicamente

parada à porta da cozinha. — A favorita de Hannah. — Fora! — berrou Glanzer, mais alto do que Liebermann, e espalhando

mau hálito. — Todas essas escrivaninhas saem! Isto aqui é um apartamento domiciliar, não um prédio comercial! E também os fichários, fora!

— Fora você! — berrou Liebermann na mesma altura, a melhor maneira de lidar com Glanzer, segundo descobrira.

— Vá consertar seu encanamento podre! Este é o meu mobiliário, escrivaninhas e fichários! Será que o contrato menciona apenas mesas e cadeiras?

— Você verá no tribunal o que diz o contrato! — Você é que verá o que vai pagar por esse prejuízo com a água! Saia!

— Liebermann apontou o dedo para a porta. Glanzer pestanejou várias vezes. Olhou para o chão ao seu lado, como se

ouvisse alguma coisa, olhou para Liebermann, preocupado, acenou afirmativamente. — Não tenha dúvida de que vou sair — murmurou. — Antes do desastre.

— Levou seu corpanzil na ponta dos pés em direção à porta aberta. — Para mim, minha vida é mais preciosa que minha propriedade. — Saiu na ponta dos pés e fechou cautelosamente a porta.

Liebermann bateu com os pés no chão e exclamou: — Estou batendo com os pés no chão, Glanzer! — Despenque por ele! — veio de longe. — Yakov, não faça isso — disse Max, tocando no braço de Liebermann.

— Corremos esse risco. Liebermann voltou-se. Olhou em volta, para cima, e deixou escapar um

pesaroso "Ai, ai, ai", mordendo o lábio inferior. Ester, esticando-se para limpar a parte de cima de um fichário, revelou: — Aparamos a água logo cedo, não é tão ruim assim. Graças a Deus usei

o forno de manhã. Fiz um bolo de nozes. Quando vi o que estava acontecendo, chamei Max e Lili. É somente aqui e na cozinha, os outros cômodos não foram atingidos.

Max apresentou a moça acanhada, que tinha belos olhos pardos. Era a sobrinha Alix, dele e de Lili, de Brighton, Inglaterra, que passava as férias com eles. Liebermann apertou-lhe a mão, agradeceu a ajuda, tirou o paletó e juntou-se ao trabalho.

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Enxugaram escrivaninhas e outras peças do mobiliário, substituíram panelas e tigelas cheias por vazias, passaram vassouras enroladas em toalhas nos lugares úmidos do teto.

Depois, sentados nas escrivaninhas e na parte disponível do sofá, tomaram café com bolo. As goteiras tinham decrescido até uma meia dúzia de pingos lentos. Liebermann falou um pouco sobre a viagem, os velhos amigos que visitara, as mudanças que notara. Alix, num alemão vacilante, respondeu a perguntas de Ester sobre seu trabalho como desenhista têxtil.

— Um bocado de contribuições, Yakov — anunciou Max, acenando solenemente a cabeça grisalha.

— Sempre depois dos dias santos — atalhou Lili. — Porém, mais neste ano do que no último, querida — asseverou Max, e

para Liebermann: — As pessoas já conhecem o banco. Liebermann concordou com a cabeça e olhou para Ester. — Veio alguma coisa para mim da Reuters? Relatórios? Recortes? — Veio um envelope da Reuters, grande — disse Ester. — Mas nele está

escrito: "Pessoal". — Relatórios? — indagou Max. — Falei com Sydney Beynon antes de partir. Sobre a história daquele

rapaz, Koehler. Não havia nada sobre ele, havia? Eles sacudiram a cabeça. Ester, levantando-se com a xícara e o pires sobre o prato, observou: — Não pode ser verdade, é loucura demais. — Foi para a escrivaninha

de Max. Lili levantou-se, recolhendo seus pratos, mas Ester ordenou: — Deixe tudo que eu limpo. Vá mostrar a cidade a Alix.

Liebermann agradeceu a Max, Lili e Alix, enquanto estes punham os casacos. Beijou Lili, apertou as mãos de Alix e desejou-lhe felizes férias, bateu nas costas de Max. Fechando a porta depois que eles saíram, apanhou a mala e levou-a para o quarto de dormir.

Foi ao banheiro, tomou suas pílulas das doze horas, pendurou o outro terno no armário, trocou o paletó pelo suéter e os sapatos por chinelos. De óculos na mão, voltou para a sala de estar, apanhou a pasta e passou, rodeando e espremendo-se por entre as escrivaninhas, em direção às portas envidraçadas, para a sala de jantar.

— Vou ficar por aí de olho nas goteiras — disse Ester, da porta da cozinha. — Quer que ligue para aquele homem de Mannheim?

— Mais tarde — respondeu Liebermann, e foi para a sala de jantar, seu escritório no momento.

A escrivaninha estava coberta de revistas e pilhas de cartas abertas. Pousou a pasta, acendeu a lâmpada, pôs os óculos e retirou uma pilha de cartas de cima de vários envelopes grandes. Encontrou o envelope cinzento

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da Reuters, endereçado a mão, recheado. Tantos assim? Sentando-se, afastou tudo da sua frente, empurrou montes de

correspondência para os lados e para os fundos da escrivaninha. O retrato de Hannah tombou, revistas desabaram barulhentamente no chão.

Desamarrou o barbante em torno do envelope e rasgou a fita adesiva da aba. Virando o envelope em cima do mata-borrão verde, sacudiu, puxando para fora, um montão de recortes de jornais e pedaços arrancados de teletipos. Vinte, trinta, talvez mais, alguns deles fotocópias, a maioria retalhos de jornal cortados rapidamente a tesoura. "Mann getötet in Autounfall." "Padre morto por assaltantes." "Eldsvåda dödar man, 64." Etiquetas azuis e amarelas, com datas e nomes dos jornais, estavam coladas a alguns recortes. Uns bons quarenta tópicos ao todo.

Olhou dentro do envelope e encontrou mais dois pequenos recortes e uma folha de papel em branco que fora enrolada em torno do maço.

"Mantenha-me informado", vinha escrito em caligrafia nítida, no seu centro. "S. B." Datado de 30 de outubro.

Pôs de lado aquilo, juntamente com o envelope, e, espalhando os recortes e os pedaços dos teletipos com as duas mãos, ele os expôs a uma maior visibilidade, uma verdadeira colcha de retalhos de francês, alemão, inglês, sueco, holandês e idiomas indecifráveis, a não ser por uma palavra ou outra. "Död" era certamente "tot" e "morto".

— Ester! — chamou. — Sim? — Os dicionários para traduzir sueco, holandês, dinamarquês e

norueguês. — Pegou um recorte em alemão: uma explosão numa fábrica de produtos químicos em Solingen matara um vigia noturno, August Mohr, de sessenta e cinco anos. Não. Pôs de lado.

Apanhou-o de volta. Não poderia um funcionário público, de baixo escalão, ter um outro emprego à noite? Pouco provável para alguém de sessenta e cinco anos, mas possível. A explosão ocorrera à uma da manhã, no dia anterior ao da reportagem, portanto em 20 de outubro.

A luz de cima acendeu-se, e Ester, atravessando o aposento, disse: — Devem estar aqui. — Dirigiu-se à mesa de jantar encostada à parede e

leu os lados das caixas de papelão que se encontravam sobre ela. — Não temos o dinamarquês — observou. — Max utiliza o norueguês.

Liebermann tirou um bloco da gaveta. — Acho melhor você me dar o francês também. — Primeiro me deixe encontrar. Estendeu a mão para a caneta, espetada por entre a correspondência.

Examinando de novo os recortes, escreveu no grande bloco amarelo, depois de esfregar a ponta da caneta a fim de fazê-la funcionar: "20; Mohr, August;

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Solingen", e pôs um ponto de interrogação em seguida. — Dicionários — anunciou Ester, e abriu as abas de uma das caixas. —

Norueguês, sueco, francês? — E holandês, por favor. — Empurrou o recorte para a esquerda, onde

iam ficar os possíveis. Procurou o que viera em inglês, sobre o padre, encontrou-o, passou os olhos e, com uma exclamação de pesar, empurrou-o para a direita.

Ester entrou, carregando, vacilante, quatro grossos volumes encadernados em azul. Empurrou a correspondência, para abrir lugar do lado da escrivaninha.

— Antes estavam todos organizados — lamentou-se, arriando-os sobre a mesa.

— Vou reorganizá-los. Obrigado. Ela empurrou o cabelo para dentro da peruca. — Devia ter pedido a Max para ficar, se pretendia traduzir. — Não pensei nisso. — Devo tentar encontrá-lo? Ele meneou a cabeça, pegando outro recorte em inglês: "Briga termina

em facada mortal". Ester, olhando aflita os recortes espalhados, indagou: — Tantos homens assassinados? — Nem tanto — disse ele, empurrando o recorte para a direita. —

Alguns são acidentes. — Como vai saber quais os que os nazistas mataram? — Não sei — tornou ele. — Terei de examinar. — Pegou um recorte em

alemão. — Examinar? — Para ver se consigo encontrar um motivo. Olhou-o, de testa franzida. — Tudo porque um rapaz telefona e depois some? — Passe bem, Ester querida. Ela afastou-se da escrivaninha. — No seu lugar, estaria escrevendo artigos para fazer algum dinheiro. — Escreva que eu os assinarei. — Quer comer alguma coisa? Ele meneou a cabeça. Alguns tópicos noticiavam as mesmas mortes dos outros, alguns dos

mortos achavam-se fora da faixa de idade. Havia muitos comerciantes, fazendeiros, operários industriais aposentados, vagabundos. Muitos foram mortos por vizinhos, parentes, bandos de jovens desordeiros. Esquadrinhou os dicionários bilíngües com a sua lente de aumento. Um "makelaar in onroerende goederen" era um corretor de imóveis, um "tulltjänsteman" era um funcionário da alfândega. Puxou os impossíveis para a direita, os possíveis para a esquerda. A maioria das palavras dos recortes em

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dinamarquês encontravam-se no dicionário norueguês—alemão. No final da tarde, juntou o último recorte aos impossíveis. Havia onze possíveis. Arrancou a lista deles do bloco e começou uma nova lista, anotando-os

precisamente de acordo com as datas das mortes. Três haviam morrido em 16 de outubro: Chambon, Hilaire, em Bordéus;

Döring, Emil, em Gladbeck, uma cidade na região de Essen; e Persson, Lars, em Fagersta, Suécia.

O telefone tocou. Ele deixou Ester atender. Dois no dia 18: Guthrie, Malcolm, em Tucson... — Yakov? É Mannheim de novo. Pegou o fone. — É Liebermann quem fala. — Alô, Herr Liebermann — disse uma voz masculina. — Como foi de

viagem? Descobriu o motivo dos noventa e quatro assassinatos? Quedou-se, imóvel, de olhos na caneta em sua mão. Já ouvira aquela voz

antes, mas não conseguia localizá-la. — Quem é, por favor? — indagou. — Meu nome é Klaus von Palmen. Ouvi o senhor falar em Heidelberg.

Talvez se lembre de mim. Perguntei-lhe se o problema era realmente hipotético.

Claro. O rapaz louro de aspecto sagaz. — Sim, lembro-me de você. — Alguma de suas platéias terá se saído melhor que a nossa? — Não voltei a formular a pergunta. — E não era hipotética, não é verdade? Teve vontade de dizer que era e desligar, mas um impulso mais forte

apossou-se dele: poder falar abertamente com alguém disposto a acreditar, ainda que fosse aquele jovem alemão contestador.

— Não sei — admitiu. — A pessoa que me falou a respeito... desapareceu. Talvez estivesse certa, talvez errada.

— Foi o que suspeitei. Interessaria ao senhor saber que em Pforzheim, a 24 de outubro, um homem caiu de uma ponte e afogou-se? Tinha sessenta e cinco anos e acabara de se aposentar do serviço postal.

— Era Müller, Adolf — disse Liebermann, olhando na lista dos possíveis. — Já sei deste e de cerca de mais dez outros: em Solingen, Gladbeck, Birmingham, Tucson, Bordéus, Fagersta...

— Ah! Liebermann sorriu, de olhos na caneta, e confessou: — Tenho uma fonte de informações na Reuters. — Isso é muito bom! E terá tomado medidas no sentido de descobrir se

será estatisticamente normal que onze funcionários públicos, de sessenta e

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cinco anos, tenham tido morte violenta dentro de — qual é mesmo? — um período de três semanas?

— Houve outros — tornou Liebermann — que foram mortos por parentes. E ainda outros, estou certo, que a Reuters deixou escapar. E dentre todos, creio que apenas seis no máximo poderão ser... aqueles que temo. Seis acima do normal comprovarão alguma coisa? E, além do mais, quem organiza as estatísticas? Mortes violentas em dois continentes, por idade e ocupação. Deus, talvez, haveria de saber o que é "estatisticamente normal". Ou uma dúzia de companhias de seguros reunidas. Não perderia tempo escrevendo para elas.

— Falou com as autoridades? — Foi você, não, quem assinalou que elas não estão tão interessadas na

caça aos nazistas hoje em dia? Falei, mas não deram ouvidos. Pode-se, na verdade, culpá-las quando tudo o que pude adiantar foi: "Talvez alguns homens sejam mortos, e não sei por quê"?

— Então precisamos descobrir por que, e a maneira de fazê-lo será examinando alguns desses casos. Teremos de investigar as circunstâncias das mortes, e, mais importante ainda, os caracteres dos homens e seus antecedentes.

— Obrigado — disse Liebermann. — Planejei tudo isso por mim mesmo, quando eu ainda era "eu" e não "nós".

— Pforzheim fica a menos de uma hora daqui de automóvel, Herr Liebermann. E sou um estudante de direito, o terceiro colocado em minha classe, suficientemente apto para fazer observações e formular perguntas pertinentes.

— Estou a par das tais perguntas pertinentes, mas na verdade você nada tem a ver com isso, meu jovem.

— Ah, é? E por quê? Terá o senhor de algum modo adquirido direitos exclusivos de se opor ao nazismo? Em meu país?

— Herr von Palmen. — O senhor apresentou o problema em público; devia, então, ter nos

informado que ele era de sua exclusiva propriedade. — Ouça-me. — Liebermann meneou a cabeça: que alemão! — Herr von

Palmen, a pessoa que apresentou o problema a mim era um rapaz como você. Mais amável e respeitador, mas em outros pontos não tão diferente. E quase com toda a certeza ele foi assassinado. Eis por que não lhe diz respeito, por se tratar de assunto para profissionais e não para amadores. E também porque você seria capaz de complicar tanto as coisas que quando eu chegasse a Pforzheim a missão se teria tornado ainda mais difícil.

— Eu não vou complicar as coisas e tentarei evitar ser assassinado. Quer que lhe telefone e diga o que for descobrindo, ou guardarei as informações

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para mim mesmo? Liebermann teve um olhar feroz, tentando encontrar uma maneira de

detê-lo, mas estava claro que não havia. — Pelo menos você sabe que informações procurar? — indagou. — Claro que sim. Para quem Müller deixou o seu dinheiro, quais os seus

parentes, quais eram suas atividades políticas e militares... — Onde nasceu... — Eu sei. Todos os pontos sugeridos aquela noite. — E se ele poderia ter tido qualquer contato com Mengele, fosse durante

a guerra ou imediatamente depois. Onde serviu? Teria alguma vez estado em Günzburg?

— Günzburg? — Onde Mengele morava. E procure não agir como um promotor. É

mais fácil apanhar moscas com mel do que com vinagre. — Posso ser encantador quando me apraz, Herr Liebermann. — Estou ansioso por uma demonstração. Dê-me seu endereço, por favor.

Vou enviar-lhe retratos de três dos homens que se supõe estejam cometendo os assassinatos. São fotografias antigas, de trinta anos atrás, e pelo menos um dos homens fez cirurgia plástica, mas poderão ser úteis, caso alguém aviste estranhos nas proximidades. Vou enviar-lhe também uma carta declarando que trabalha para mim. Ou prefere enviar uma para mim, declarando que estou trabalhando para você?

— Herr Liebermann, tenho a maior admiração e respeito pelo senhor. Acredite-me, estou verdadeiramente orgulhoso de poder lhe ser útil de alguma forma.

— Está bem, está bem. — Não foi encantador? Está vendo? Liebermann tomou o endereço de Palmen e o número do telefone, deu-

lhe mais algumas indicações e desligou. Um "nós". Mas talvez o rapaz aprovasse, não havia dúvida de que era

bastante inteligente. Acabou de fazer a segunda lista, examinou-a por alguns minutos, em

seguida abriu a última gaveta da escrivaninha, à esquerda, e retirou a pasta de fotografias que obtivera dos arquivos. Pegou uma de cada, de Hessen, Kleist e Traunsteiner — rapazes em uniformes das ss, sorridentes ou carrancudos, em instantâneos ampliados, de granulação grosseira. Quase imprestáveis, mas era o melhor que havia.

— Ester! — chamou, pondo-os sobre a escrivaninha. Hessen sorria para ele, de cabelos escuros e ar de lobo, abraçado aos pais radiantes. Liebermann virou de costas a fotografia e por baixo do histórico mimeografado colado no verso escreveu: "Cabelos prateados atualmente. Fez operação plástica".

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— Ester? Apanhou as fotografias, levantou-se da cadeira e dirigiu-se à porta. Ester dormia sentada à sua escrivaninha, a cabeça sobre os braços

dobrados. Uma panela de água jazia junto ao seu cotovelo. Chegou-se na ponta dos pés, deixou as fotografias no canto da

escrivaninha, e passou na ponta dos pés pela sala de estar, entrando no quarto de dormir.

— Então aonde é que vai? — perguntou Ester. Surpreso por ela haver acordado e perguntar, respondeu

de onde estava: — Ao banheiro. — Pergunto aonde é que vai. Investigar. — Ah! — fez ele. — A um lugar perto de Essen e Gladbeck. E a

Solingen. Está de acordo? Farnbach parou do lado de fora do hotel. Admirando o luminoso

crepúsculo azul-violeta, que o recepcionista lhe assegurara que ia permanecer assim durante horas, enfiou as luvas, levantou a gola de peles e agasalhou-se melhor com o seu gorro, ajustando-o sobre as orelhas e a nuca. Storlien não era tão frio quanto temera, mas o suficiente. Graças a Deus, aquela era a sua missão mais setentrional de todas. O Brasil fizera dele uma orquídea.

— Senhor? — bateram-lhe no ombro. Voltou-se e um homem de chapéu preto, mais alto que ele, mostrou um

cartão de identidade na palma da mão. — Detetive-Inspetor Lofquist. Pode me conceder uma palavra, por

favor? Farnbach pegou o cartão, no seu envoltório de plástico e couro. Fingiu

ter maior dificuldade de lê-lo ao crepúsculo do que de fato acontecia, de modo a proporcionar-se pelo menos aquele momento para pensar. Devolveu o cartão ao Detetive-Inspetor Lars Lennart Lofquist e, antepondo um sorriso amável (assim esperava) ao susto e confusão que iam dentro dele, respondeu:

— Sim, claro, inspetor. Estou aqui apenas desde o meio-dia. Estou certo de ainda não ter infringido lei alguma.

Sorridente também, Lofquist retorquiu: — Estou certo de que não. — Guardou o cartão dentro do casaco de

couro preto. — Podemos caminhar enquanto falamos, se prefere. — Ótimo — assentiu Farnbach. — Vou dar uma espiada na cachoeira.

Parece que é tudo o que temos a fazer por aqui.

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— Sim, nesta época do ano. — Começaram a atravessar o pátio calçado de pedras, à frente do hotel. — As coisas ficam mais animadas em junho e julho — assegurou Lofquist. — Temos então o sol a noite inteira e bom número de turistas. No fim de agosto, no entanto, até o centro da cidade fica deserto depois das sete ou oito, e aqui então é praticamente um cemitério. O senhor é alemão, não?

— Sim — assentiu Farnbach. — Meu nome é Busch. Wilhelm Busch. Sou vendedor. Há alguma coisa de errado, inspetor?

— Não, nada. — Passaram por um portão com um arco por cima. — Fique descansado — tornou Löfquist. — Isto nada tem de oficial.

Viraram para a direita e caminharam lado a lado ao longo do rebaixo da estrada de cascalho. Farnbach sorriu, observando:

— Mesmo um inocente se sente culpado quando um detetive-inspetor bate em seu ombro.

— Creio que sim — acedeu Löfquist. — Desculpe-me se o fiz preocupar-se. Não, é que simplesmente gosto de manter certa vigilância sobre os estrangeiros. Alemães especialmente. É tão... instrutivo conversar com eles! O que o senhor vende, Herr Busch?

— Equipamentos de mineração. — Ah! — Sou o representante sueco de Orenstein e Koppel, de Lübeck. — Não creio ter ouvido falar deles. — São bastante importantes no ramo — asseverou Farnbach. — Estou

com eles há catorze anos. — Olhou para o detetive caminhando à sua esquerda. O nariz arrebitado e o queixo pontudo do homem fizeram-no lembrar-se de um capitão sob cujas ordens servira nas ss, o qual costumava iniciar os interrogatórios exatamente com aquela conciliatória besteira de "fique descansado, isto nada tem de oficial". E depois vinham as acusações, as exigências, as torturas.

— O senhor é de lá? — indagou Löfquist. — De Lübeck? — Não, sou natural de Dortmund, e atualmente moro em Reinfeld, que

fica perto de Lübeck. Isto é, quando não estou na Suécia. Tenho um apartamento em Estocolmo. — O que este filho da puta sabe, perguntava a si mesmo Farnbach, e como, em nome dos céus, veio a descobrir? Será que a operação inteira fracassara? Estariam Hessen, Kleist e os outros enfrentando a mesma situação agora, ou apenas ele não fora bem sucedido?

— Vire aqui — aconselhou Löfquist, apontando em direção a uma trilha para dentro da floresta, à direita. — Conduz a um melhor ponto de observação.

Penetraram pelo caminho estreito e seguiram montanha acima, através de sua obscuridade quase noturna. Farnbach desabotoou a parte superior do

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casaco, preocupado em ter a arma pronta para sacar, se o pior viesse a acontecer.

— Passei algum tempo na Alemanha — disse Löfquist. — A propósito, embarquei em Lübeck, certa ocasião.

Ele passara a falar alemão, e por sinal esplêndido. Farnbach, embaraçado, pensou que talvez não houvesse mesmo nada com que se preocupar; era possível, afinal de contas, que Lennart Löfquist quisesse apenas uma oportunidade para usar o seu alemão. Seria esperar demais.

— Seu alemão é muito bom — observou, também em alemão. — Por isso é que gosta de falar conosco, para ter uma oportunidade de usá-lo?

— Não falo com todos os alemães — retorquiu Löfquist, a voz carregada de riso reprimido. — Somente com antigos cabos que engordaram e usam o nome de "Busch", ao invés de "Farnstein"!

Farnbach parou e encarou-o. Sorrindo, Löfquist tirou o chapéu. Levantou a cabeça e se colocou mais

sob a luz. E rindo agora, virou-se para Farnbach e estendeu um dedo à guisa de bigode.

Farnbach estava assombrado. — Oh, meu Deus! — arquejou. — Pensei no senhor um segundo atrás!

Creio que eu... Meu Deus! Capitão Hartung! Os dois apertaram-se as mãos entusiasticamente, e o capitão, rindo,

abraçou Farnbach e bateu-lhe nas costas. Em seguida enterrou o chapéu na cabeça, agarrou os ombros de Farnbach com as duas mãos e arreganhou os dentes num sorriso.

— Que alegria ver de novo um rosto amigo! — exclamou. — Sou capaz até de chorar, com os diabos!

— Mas... como pode ser isso? — indagou Farnbach, agora inteiramente confuso. — Estou... estarrecido!

O capitão riu. — Você pode ser Busch — disse. — Por que não posso ser Löfquist?

Deus meu, peguei sotaque! Escute-me só, agora não passo de um sueco fodido!

— E é mesmo detetive? — Sou mesmo. — Céus, chegou a me assustar de fato, senhor. O capitão inclinou a cabeça, pesaroso, batendo no ombro de Farnbach. — É, ainda tememos que o machado possa cair sobre nós, hein,

Farnstein? Mesmo depois de todos esses anos. Por isso é que fico de olho nos estrangeiros. De vez em quando ainda sonho que sou arrastado a julgamento!

— Não posso acreditar que seja o senhor! — tornou Farnbach, ainda não

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refeito. — Acho que nunca tive surpresa igual! Continuavam percorrendo o caminho. — Nunca esqueço um rosto, nunca esqueço um nome. — O capitão

pousou o braço nos ombros de Farnbach. — Avistei-o parado junto ao seu carro, no posto de gasolina de Krondikesvägen. "Aquele ali de casaco elegante é o Cabo Farnstein", pensei. "Aposto cem coroas."

— É "Farnbach", senhor, e não "stein". — Ah, sim? Bem, "stein" é bastante perto, não, depois de trinta anos?

Com todos os homens que comandei? Está claro que tinha de estar absolutamente certo antes de lhe dirigir a palavra. Foi sua voz que me deu confiança. Ela não mudou nada. E deixe de lado o "senhor", viu? Embora reconheça que é agradável ouvi-lo de novo.

— Por que cargas d'água veio parar aqui? — indagou Farnbach. — E ainda por cima como detetive!

— É uma história em nada extraordinária — disse o capitão, tirando o braço do ombro de Farnbach. — Tinha uma irmã casada com um sueco, numa fazenda de Skåne. Após ser capturado, fugi de um campo de internamento, embarquei num navio — de Lübeck a Trelleborg, a travessia a que me referi — e fui me esconder com eles. Ele não gostou muito da coisa. Lars Löfquist. Um bom filho da puta. Maltratava a pobre Eri, uma coisa horrível. Após um ano e tanto, eu e ele tivemos uma grande briga e matei-o acidentalmente. Pois bem, tratei de enterrá-lo bem fundo e tomei o seu lugar! Éramos fisicamente do mesmo tipo, portanto seus documentos me serviram, e quanto a Eri, ficou satisfeita em ver-se livre dele. Quando aparecia alguém que o conhecera, eu punha atadura no rosto e ela explicava-lhe que uma lâmpada explodira e eu não podia falar muito. Passando uns dois meses, vendemos a fazenda e viemos para o norte. Primeiro para Sundsvall, onde trabalhamos numa fábrica de conservas, o que foi terrível. E três anos depois, aqui para Storlien, onde havia lugares na polícia e empregos para Eri nas lojas. E eis tudo. Gostei do trabalho na polícia. Que melhor maneira de se saber se procuravam por mim? Esse rugido que está ouvindo é a cachoeira. Fica logo depois da curva. E agora quanto a você, Farnstein? Farnbach! Como se transformou em Herr Busch, o próspero vendedor? Este casaco deve ter custado mais do que ganho num ano inteiro!

— Não sou "Herr Busch" — retrucou Farnbach asperamente. — Sou o "Sr. Paz", de Porto Alegre, Brasil. Busch é postiço. Estou aqui a serviço da Organização dos Camaradas, por sinal um serviço danado de maluco.

Agora foi a vez de o capitão parar e arregalar os olhos, atônito. — Quer dizer então... que é verdade? A Organização existe? Não é só...

história de jornais? — É verdade, sim — assegurou Farnbach. — Eles me ajudaram a

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estabelecer-me lá, arranjaram-me um bom emprego... — E estão aqui agora? Na Suécia? — Eu estou aqui agora. Eles ainda estão lá, trabalhando com o Dr.

Mengele para "cumprir o destino ariano". Pelo menos é o que me dizem. — Mas... isso é maravilhoso, Farnstein! Meu Deus, é a notícia mais

emocionante que eu... Não acabamos! Não seremos derrotados! O que está acontecendo? Pode me dizer? Seria uma violação de ordens dizer a um oficial das ss?

— Fodam-se as ordens, estou farto delas — retorquiu Farnbach. Fitou um momento o surpreso capitão, em seguida anunciou: — Estou aqui em Storlien para matar um professor. Um velho que não é nosso inimigo e que de forma alguma pode influir no rumo da história. Mas matá-lo, e a uma série de outros, constitui uma "operação sagrada" que de algum modo nos há de levar de volta ao poder. É o que diz o Dr. Mengele. — Voltou-se e afastou-se pelo caminho acima.

Confuso, o capitão observou-o ir-se, em seguida precipitou-se, furioso, atrás dele.

— Com os diabos, qual é a idéia? — inquiriu. — Se não pode me dizer, fale! Não me dê... Era tudo conversa? Brincadeira idiota que está fazendo comigo, Farnbach!

Farnbach, respirando forte pelas narinas, atingiu um pequeno balcão de rocha saliente e, agarrando a sua grade de ferro com as duas mãos, contemplou, rancoroso, um largo lençol de água reluzente que se despejava torrencialmente à sua esquerda. Acompanhou com os olhos a descida do cintilante lençol de água, até a sua ruidosa bacia de espuma, e cuspiu nela.

O capitão fê-lo voltar-se com um puxão. — Foi uma brincadeira idiota esta — berrou, alto e sonoro, contra o

trovejar da cachoeira. — Cheguei a acreditar em você! — Não foi brincadeira — tornou Farnbach. — É verdade, cada palavra!

Matei um homem em Göteborg duas semanas atrás — um professor também, Anders Runstein. Ouviu falar nele alguma vez? Nem eu. Nem ninguém. Um zero completo, aposentado, de sessenta e cinco anos. E colecionador de garrafas de cerveja, imagine! Gabou-se comigo das suas oitocentas e trinta garrafas de cerveja! Eu... dei-lhe um tiro na cabeça e esvaziei-lhe a carteira.

— Göteborg — proferiu o capitão. — Sim, lembro-me da notícia! Farnbach virou-se para a grade, segurou-a e fitou o paredão de rocha do

outro lado do trovejante abismo sombrio. — E sábado vou matar outro — anunciou. — Não faz sentido! É

loucura! Como seria possível... resultar em alguma coisa? — Existe data certa?

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— Tudo é extremamente preciso. O capitão colocou-se ao lado de Farnbach. — E as suas ordens lhe foram transmitidas por um oficial graduado? — Por Mengele, com aprovação da Organização. O Coronel Seibert

apertou nossas mãos na manhã em que partimos do Brasil. — Não foi só você? — Há outros homens em outros países. Agarrando o braço de Farnbach,

o capitão exclamou, indignado: — Então não me deixe ouvi-lo de novo dizer: "Fodam-se as ordens!"

Você é um cabo, a quem foi conferido um dever, e se os seus superiores decidiram não lhe revelar o motivo é porque têm razões para isso também. Deus do céu, você um homem das ss, proceda como um deles. "Minha honra é a lealdade." Estas palavras deviam estar gravadas na sua alma!

Voltando-se e encarando o capitão, Farnbach proferiu: — A guerra acabou, senhor. — Não! — gritou o capitão. — Não se a Organização estiver viva e

operando. Pensa que o seu coronel não sabe o que está fazendo? Meu Deus, homem, se existir uma possibilidade em cem de o Reich ser restaurado, como deixaria você de fazer tudo a seu alcance para colaborar neste sentido? Pense nisso, Farnbach! O Reich restaurado! Poderíamos voltar à pátria de novo! Como heróis! Para uma Alemanha de ordem e disciplina no meio deste indisciplinado mundo fodido!

— Mas como pode a matança de homens inofensivos... — Quem é esse professor? Aposto como não é tão inofensivo quanto

você pensa! Quem é ele? Lundberg? Olafsson? Quem? — Lundberg. O capitão calou-se por um momento. — Bem, admito que parece inofensivo, mas como saberemos o que está

realmente maquinando, hein? E como saberemos o que o seu coronel sabe? E o doutor! Vamos, homem, aprume a espinha e cumpra o seu dever! "Uma ordem é uma ordem."

— Ainda que não faça sentido? O capitão fechou os olhos, respirou fundo. Abriu os olhos, olhou

ferozmente para Farnbach. — Sim — assentiu. — Mesmo quando não faz sentido. Faz sentido para

os seus superiores, do contrário não lhe teria sido dada. Meu Deus, há esperança ainda, Farnbach. Será que resultará em nada, devido à sua fraqueza?

Franzindo a testa, contrafeito, pôs-se ao lado do capitão. Este voltou-se, a fim de encará-lo.

— Você não terá a mínima dificuldade — disse. — Vou mostrar-lhe

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Lundberg. Posso até contar-lhe seus hábitos. Meu filho foi aluno dele durante dois anos. Conheço-o bem.

Farnbach ajustou o gorro. Sorriu ironicamente e perguntou: — Os Löfquist... têm um filho? — Sim, por que não? — O capitão fitou-o, enrubescendo em seguida. —

Ah — proferiu, e acrescentou friamente: — Minha irmã morreu em 57. Depois, eu casei. Você tem uma mente imunda.

— Perdoe-me — disse Farnbach. — Desculpe. O capitão enfiou as mãos nos bolsos.

— Bem! — exclamou, ainda ruborizado. — Espero ter conseguido incutir-lhe nova vitalidade.

Farnbach assentiu. — A restauração do Reich. Só nisso é que tenho de pensar. — E os seus oficiais e colegas soldados — tornou o capitão. — Eles

dependem de você para cumprir sua missão. Não vai deixá-los desmembrados, hein? Vou ajudá-lo com Lundberg. Estou de serviço no sábado, mas trocarei com um dos homens. Não há problema.

Farnbach meneou a cabeça. — Não será Lundberg — proferiu. Investiu, as mãos enluvadas empurrando o peito de couro negro. O capitão, um olho arregalado debaixo do chapéu, caiu para trás, por

cima da grade, soltou as mãos do casaco e agitou braçadas no ar. Girando de cabeça para baixo, despencou em direção à bacia de espuma.

Farnbach debruçou-se sobre a grade e olhou, pesaroso, para baixo. — E não terá que ser no sábado — murmurou. Descendo do avião, da linha Frankfurt—Essen, no Aeroporto de Essen-

Mülheim, Liebermann verificou com surpresa que se sentia muito bem. Não diria esplendidamente, mas sem nada de péssimo, pois péssimo foi como se sentira das duas outras vezes em que pisara o Ruhr. Dali é que viera tudo: as armas, os tanques, os aviões, os submarinos. Aquele lugar fora o arsenal de Hitler, e o seu manto de névoa parecera a Liebermann (em 59 e de novo em 66) um sinal, não de indústria de tempo de paz, mas de culpabilidade de guerra. Uma mortalha a impedir o sol, mais se diria estendida lá de cima do que erguida de baixo. Mergulhando nela, sentira-se deprimido e desalentado, perseguido pelo passado. Péssimo.

Preparara-se para a mesma reação desta vez, mas não, sentia-se muito bem. A neblina era apenas neblina, em nada diferente da de Manchester ou Pittsburgh, e nada havia que o estivesse perseguindo. Ao contrário, era ele — num táxi Mercedes novo, serenamente veloz — quem estava

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perseguindo. E já era tempo. Quase dois meses atrás, ouvira de São Paulo a extravagante história de Barry Koehler, e sentira o ódio por Mengele acometê-lo. E agora, finalmente, estava agindo, dirigindo-se a Gladbeck, a fim de fazer perguntas a respeito de Emil Döring, de sessenta e cinco anos, "até pouco tempo atrás pertencente ao quadro de pessoal da Comissão de Transportes Públicos de Essen". Teria sido assassinado? Estaria ligado de alguma forma a homens em outros países? Haveria uma razão para que Mengele e a Organização dos Camaradas quisessem matá-lo? Se realmente noventa e quatro homens deviam morrer, havia uma possibilidade em três de Döring ter sido o primeiro. Hoje à noite poderia saber.

Mas... e se a Reuters deixasse escapar alguns dos possíveis de 16 de outubro? A possibilidade poderia realmente ser uma em quatro ou cinco. Ou seis. Ou dez. "Não pense nisso. Continue se sentindo bem."

— Ele entrou numa passagem para se aliviar — explicou o Inspetor-Chefe Haas, no seu sotaque gutural do norte da Alemanha. — Azar o dele. O lugar errado na hora errada. — Era um homem de aspecto severo, de quase cinqüenta anos, rosto corado e picado de bexigas, os olhos azuis próximos; o cabelo louro quase acabara de todo. Suas roupas eram elegantes, sua mesa arrumada, seu gabinete limpo. Suas maneiras para com Liebermann foram corteses. — Foi toda uma parte da parede do terceiro andar que desabou sobre ele. O mestre-de-obra disse que alguém deve tê-la abalado com uma alavanca, mas é claro que ele haveria de dizer isso, não? nada se pôde provar, pois a primeira coisa que fizemos, naturalmente, após retirar Döring dos escombros, foi usar alavancas nós mesmos, a fim de derrubar tudo o que ainda ameaçasse ruir. Pareceu-nos um acidente verdadeiro. E assim era, conforme declarado. Os seguradores dos demolidores já fizeram um acordo com a viúva. Se houvesse suspeita de assassinato, pode ficar certo de que não teriam tido tanta pressa.

— Mas ainda assim — disse Liebermann — poderia ter sido assassinato. — Depende de que tipo quer dizer — retorquiu Haas. — Alguns

vagabundos ou desordeiros poderiam estar zanzando pelo edifício, sim. Vêem então um homem entrar numa das passagens e resolvem ter alguma mórbida distração. Sinto, isso é concebível. Um pouco. Mas um assassinato com um motivo mais normal, dirigido especialmente contra Herr Döring? Não, isso não é concebível. Como poderia alguém que o estivesse seguindo ter chegado ao terceiro andar e soltado com uma alavanca toda uma parte da parede no curto tempo em que ele se encontrava na passagem? Ele estava no ato de urinar quando morreu, e tomara duas cervejas, e não duzentas. — Haas sorriu.

— O trabalho de soltar a parede pode ter sido feito com antecedência — aventou Liebermann. — Um homem na expectativa, pronto a dar o empurrão

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final, e outro, junto a Döring, de algum modo o persuade a... ir para o lugar certo.

— Como? "Por que não pára e dá uma mijada, meu amigo? Bem ali, naquele X que alguém pintou?" E ele saiu do bar sozinho. Não, Herr Liebermann — falou Haas com determinação —, já vi casos semelhantes; pode estar certo de que foi acidente. Assassinos não chegam a tais extremos. Escolhem as maneiras simples: atiram, apunhalam, golpeiam. O senhor sabe.

— A menos que tenham muitos assassinatos a cometer, e queiram que todos... sejam diferentes... — murmurou Liebermann, pensativo.

Haas encarou-o com os olhos apertados. — Muitos assassinatos? — indagou. — O que o senhor quis dizer há pouco com "já vi casos semelhantes"?

— redargüiu Liebermann. — A irmã de Döring esteve aqui no dia seguinte, berrando para que eu

prendesse Frau Döring e um homem chamado Springer. É alguém... que lhe interessa? Wilhelm Springer?

— Talvez — disse Liebermann. — Quem é ele? — É músico. Amante de Frau Döring, segundo a irmã. Ela era muito

mais jovem do que Döring. Bonita, também. — Que idade tem Springer? — Trinta e oito, trinta e nove. Na noite do acidente, substituía alguém na

orquestra da ópera de Essen. Creio que isso o elimina, não acha? — Pode me dizer alguma coisa sobre Döring? — indagou Liebermann.

— Quais eram seus amigos? A que organizações pertencia? Haas meneou a cabeça. — Disponho apenas das informações básicas. — Virou um papel na

pasta aberta à sua frente. — Vi-o algumas vezes, mas não cheguei a conhecê-lo. Mudaram-se para cá somente há um ano. Aqui temos: sessenta e cinco anos, um metro e setenta, oitenta e seis quilos... — Olhou para Liebermann. — Ah, uma coisa que talvez lhe interesse: ele tinha uma arma.

— Ah, sim? Haas sorriu. — Uma peça de museu, uma Mauser obsoleta. Não havia sido disparada,

limpa ou lubrificada, Deus sabe há quantos anos. — Estava carregada? — Sim, mas provavelmente aquilo ia explodir na mão dele se tentasse

dispará-la. — Poderia me dar o endereço e o número do telefone de Frau Döring?

— solicitou Liebermann. — E os de sua irmã? E o endereço do bar? Com isso irei embora. — Chegou-se mais para a frente no assento e desceu a mão para pegar a pasta.

Haas escreveu num bloco de memorando, copiando de um formulário

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datilografado na pasta. — Posso perguntar — indagou — como o senhor chegou a se interessar

por isso? Döring não era um "criminoso de guerra", era? Liebermann olhou para Haas, que escrevia atarefada-mente, e disse: — Não, ao que sei ele não era criminoso de guerra. Pode ter tido contato

com algum. Estou investigando um boato. Provavelmente dará em nada. Ao homem do Bar Lorelei ele declarou: — Estou investigando a pedido de um amigo dele, em cuja opinião o

desabamento não foi acidental. Os olhos do homem do bar arregalaram-se. — Não me diga! O senhor insinua que alguém, de propósito...? Oh! meu

Deus! — Era um homem baixo, calvo, com um bigode de pontas enceradas. Um escudo amarelo com uma cara risonha sorria em sua lapela vermelha. Não perguntou o nome de Liebermann, nem este o forneceu.

— Era freguês habitual? O homem do bar franziu a testa e acariciou o bigode. — Humm, assim, assim. Não de todas as noites, mas de uma vez ou duas

por semana. Às vezes vinha à tarde. — Constou-me que naquela noite ele saiu sozinho. — É verdade. — Mas estava com alguém antes de sair? — Estava sozinho, aí mesmo onde o senhor está agora. Talvez no

assento do lado. E saiu apressado. — Ah, sim? — Tinha troco a receber, deu oito marcos e meio para uma conta de um e

meio, mas não esperou por ele. Dava boas gorjetas, mas não tanto assim. Pensei devolver-lhe na próxima vez em que viesse.

— Disse-lhe alguma coisa enquanto bebia? O homem do bar sacudiu a cabeça.

— Não era uma noite em que eu pudesse parar para conversar. Deram um baile na escola comercial — apontou por cima do ombro de Liebermann — e ficamos repletos, das oito horas em diante.

— Ele estava esperando alguém — informou um homem na extremidade do bar, um velho de cara redonda, de chapéu-coco e um sobretudo surrado abotoado até em cima. — Não tirava os olhos da porta, à espera da entrada de alguém.

— Conhecia Herr Döring? — indagou Liebermann. — Muito bem — respondeu o velho. — Fui ao enterro. Foi tão pouca

gente! Fiquei surpreso. — Voltou-se para o homem do bar. — Sabe quem deixou de ir? Ochsenwalder. Fiquei espantado. Que compromisso teria assim tão importante? — Segurou a caneca com as duas mãos e bebeu.

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— Com licença — disse o homem do bar a Liebermann, e dirigiu-se à outra extremidade do salão, onde alguns homens se sentaram.

Liebermann levantou-se e, levando o seu suco de tomate e a pasta, foi sentar-se junto do velho, no canto do bar mais próximo de onde estava.

— Geralmente ele se sentava conosco — tornou o velho, limpando a boca com o dorso da mão —, mas aquela noite estava sozinho, ali no meio, de olho na porta. Esperando alguém, olhando as horas. Apfel disse que talvez fosse o vendedor da noite anterior. Como falava, esse Döring. Para ser franco, não lamentávamos quando não estava por perto. Mas podia pelo menos ter vindo dar um alô, não é verdade? Agora, não me entenda mal: gostávamos dele, e não apenas porque às vezes pagava a despesa. Mas é que repetia sempre as mesmas histórias. Eram boas histórias, mas quantas vezes se agüenta ouvir? Sempre as mesmas histórias, sobre como havia sido mais esperto que as outras pessoas.

— E estava contando-as para um vendedor na noite anterior? — indagou Liebermann.

O velho assentiu. — De material de medicina. Primeiro, conversou com todos nós,

perguntando a respeito da cidade; depois juntou-se a Döring. Döring falando e ele rindo. Na primeira vez que a gente ouvia, as histórias eram boas.

— Isso mesmo, eu tinha esquecido — disse o homem do bar, que havia retornado. — Döring esteve aqui na noite anterior ao acidente. Não era habitual nele, duas noites em seguida.

— Sabe a idade da mulher dele? — indagou o velho. — Pensei que era uma filha, mas era a mulher, a viúva. Liebermann perguntou ao homem do bar: — Lembra-se do vendedor com quem ele conversava? — Não sabia que era vendedor — disse o homem do bar —, mas me

lembro. Tinha um olho de vidro e um jeito de estalar os dedos que me irritou muito; era como se eu já devesse estar lá há dez minutos.

— Que idade ele tinha? O homem do bar acariciou o bigode e aguçou uma de suas pontas. — Uns cinqüenta anos, diria. Talvez cinqüenta e cinco. — Olhou para o

velho. — Não acha? — Por aí — confirmou o velho. Abrindo a pasta no colo, Liebermann informou: — Tenho alguns retratos. Foram tirados há muito tempo, mas será que

poderiam dar uma olhada neles e dizer se algum dos homens aí poderia ser o vendedor?

— Com prazer — disse o homem do bar, aproximando-se. O velho mudou de lugar.

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Retirando as fotos, Liebermann perguntou ao velho: — Ele deu o nome? — Creio que não. Se deu, não me lembro. Mas sou bom fisionomista. Liebermann pôs de lado o suco de tomate e, girando as fotos, colocou-as

no balcão, separando as três. Aproximou-as do velho e do homem do bar. Eles se debruçaram sobre as fotos brilhantes, o velho levando a mão ao

chapéu-coco. — Ponham mais trinta anos — explicou-lhes Liebermann, observando.

— Trinta e cinco. Eles ergueram a cabeça, fitando-o cautelosamente, ressentidos. O velho

virou-se. — Não sei — retrucou. — E pegou a sua caneca. O homem do bar, olhando para Liebermann, ponderou: — O senhor não pode nos mostrar retratos de... soldados jovens e esperar

que reconheçamos um homem de cinqüenta e cinco anos que vimos um mês atrás.

— Três semanas atrás — emendou Liebermann. — Mesmo assim. O velho bebeu. — Esses homens são criminosos — disse-lhes Liebermann. — São

procurados pelo seu governo. — Nosso governo — tornou o velho, descansando a caneca sobre a sua

marca úmida. — Não o seu. — Isso é verdade — assentiu Liebermann. — Sou austríaco. O homem do bar afastou-se. O velho de cara redonda observou-o ir-se. Liebermann, abrindo as mãos sobre as fotos, inclinou-se, reiterando: — Esse vendedor talvez tenha assassinado o seu amigo Döring. O velho fitou a caneca, de lábios franzidos. Girou para o seu lado a asa

da caneca. Liebermann fitou-o com pesar e, juntando as fotos, guardou-as na pasta.

Fechou-a, passou-lhe as presilhas e levantou-se. O homem do bar, voltando, disse: — Dois marcos. Liebermann pôs uma nota de cinco marcos sobre o bar, e pediu: — Umas moedas para o telefone, por favor. Dirigiu-se à cabine e discou

o número de Frau Döring. A linha estava ocupada. Tentou a irmã de Döring, em Oberhausen. Ninguém atendeu. Permaneceu dentro da cabine, com a pasta entre os pés, puxando a orelha

e pensando no que dizer a Frau Döring. Ela poderia muito bem mostrar-se hostil para com Yakov Liebermann, caçador de nazistas. E, mesmo que não o fosse, após ouvir as acusações da cunhada, provavelmente não haveria de

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querer discutir Döring e a sua morte com qualquer estranho. Mas o que poderia dizer-lhe, a não ser a verdade? De que outra forma conseguir um encontro com ela? Ocorreu-lhe que Klaus von Palmen, em Pforzheim, talvez estivesse obtendo melhores resultados. Era só o que lhe faltava, ser vencido por Von Palmen.

Tentou Frau Döring outra vez, valendo-se dos números claramente traçados pela caneta do Inspetor-Chefe Haas. O telefone do outro lado da linha tocou.

— Sim? — Era uma mulher, voz apressada, irritada. — É Frau Klara Döring? — Sim, quem fala? — Meu nome é Yakov Liebermann. De Viena. Silêncio. — Yakov Liebermann? O homem que... descobre os nazistas? —

surpresa e intrigada, porém não hostil. — Que os procura — corrigiu Liebermann — e só às vezes descobre.

Estou aqui em Gladbeck, Frau Döring, e lhe pediria a bondade de me conceder um pouco de seu tempo, cerca de meia hora. Gostaria de conversar com a senhora a respeito de seu finado marido. Acredito que talvez ele estivesse envolvido — de forma inteiramente inocente, e sem saber — nos assuntos de certas pessoas nas quais estou interessado. Posso ir falar com a senhora? Quando lhe for conveniente?

Um clarinete esganiçou-se a distância. Mozart? — Emil estava envolvido... ? — Talvez. Sem o saber. Estou nas proximidades da sua residência. Posso

ir até aí? Ou preferiria sair e encontrar-me em algum lugar? — Não. Não posso encontrá-lo. — Frau Döring, por favor, é muito importante. — É de todo impossível. Agora não. É o pior dia possível. — Amanhã, então? Vim a Gladbeck com o único propósito de falar com

a senhora. — O clarinete parou, em seguida esganiçou-se novamente, repetindo sua última frase, definitivamente Mozart. Tocada pelo amante Springer? E por isso haveria de ser um mau dia para encontrá-lo? — Frau Döring?

— Está bem. Trabalho até as três. O senhor pode vir amanhã às quatro. — É Frankenstrasse, 12? — Sim. Apartamento 33. — Obrigado. Às quatro, amanhã. Obrigado, Frau Döring. Deixou a cabine e perguntou ao homem do bar como chegar ao prédio

onde Döring morrera. — Não existe mais. — Qual era o caminho, então?

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O homem do bar, curvado, lavando copos, apontou um dedo gotejando: — Fica para lá. Liebermann desceu uma rua estreita e atravessou uma outra mais larga e

movimentada. Gladbeck, ou pelo menos aquele seu trecho, era urbana, nublada, sem encantos. A poluição em nada ajudava.

Quedou-se contemplando um terreno repleto de entulho, flanqueado pelas paredes de alvenaria de velhos edifícios. Três crianças empilhavam pedras quebradas, construindo uma barricada quadrangular. Uma delas trazia mochila.

Continuou a andar. A próxima transversal era a Frankenstrasse. Seguiu até o número 12, um prédio de apartamentos amarelo-claro, riscado de fuligem, convencionalmente moderno, de frente para um gramado estreito e bem-tratado. Do seu telhado elevava-se um dedo de fumaça negra, unindo-se à mortalha da poluição.

Observou uma mulher empurrar com dificuldade um carro de bebê, passando pela porta de entrada envidraçada, e foi em direção ao seu hotel, o Schultenhof.

No seu quarto alemão, severo e limpo, tentou novamente ligar para a irmã de Döring.

— Deus o abençoe, quem quer que o senhor seja! — saudou-o uma voz de mulher. — Chegamos neste segundo! O senhor é a primeira pessoa que nos telefona! Ótimo. Podia imaginar.

— Frau Toppat está aí? — Qual! Não, infelizmente ela foi embora. Está na Califórnia, ou a

caminho. Compramos sua casa anteontem. É para Frau Toppat! Ela foi viver com a filha. Quer o endereço? Tenho-o aqui, em algum canto.

— Não, obrigado — disse Liebermann. — Não se incomode. — Tudo é nosso agora: os móveis, os peixes dourados; temos até uma

horta. Conhece a casa? — Não. — É horrível, mas perfeita para nós. Bem, o "Deus o abençoe" ainda está

valendo. Não quer mesmo o endereço dela? Posso encontrá-lo. — Não. Obrigado. Boa sorte. — Já a temos, mas ainda assim obrigado, nunca é demais. Ele desligou, suspirou e abanou a cabeça. — Também acho, senhora. Após lavar-se e tomar suas pílulas vespertinas, sentou-se à escrivaninha

demasiado pequena, abriu a pasta e retirou o rascunho de um artigo que estava escrevendo sobre a extradição de Frieda Maloney.

A porta abriu-se até esticar a corrente curta, e um menino espiou para fora, afastando da testa os cabelos pretos. Tinha uns treze anos, era macilento e narigudo.

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Liebermann, imaginando se não teria errado o número, indagou: — É este o apartamento de Frau Döring? — O senhor é Herr Liebermann? — Sim. A porta fechou-se em parte, houve um raspar de metal. O menino era um

neto, supôs Liebermann, ou talvez — já que Frau Döring era muito mais moça do que Döring

— um filho. Ou talvez ainda um vizinho, apenas, convidado para que ela não ficasse sozinha com um visitante.

Fosse quem fosse, o menino abriu toda a porta e Liebermann penetrou numa alcova de paredes de espelho, onde se movimentaram duas ou três réplicas dele próprio entrando, assombrosamente mal-ajambrado ("Corte esse cabelo!", exclamava Hannah. "Apare o bigode! Ande aprumado!"), e vários meninos de camisas brancas e calças escuras fechando as portas e enganchando trincos de correntes. Aprumando-se, voltou-se para o menino verdadeiro.

— Frau Döring está? — Ela está ao telefone. — O menino estendeu a mão para o chapéu de

Liebermann. Entregando-o, Liebermann sorriu e perguntou: — Você é o neto dela? — Sou filho. — O tom do menino fora de puro desdém pela pergunta.

Abriu um armário de porta de espelho. Liebermann arriou a pasta e tirou o sobretudo, contemplando a sala de

estar toda de tom alaranjado, metal aromado e vidro, tudo combinando, como numa loja, frio.

Deu o sobretudo ao menino, sorrindo, e este ajustou suas mangas num cabide, parecendo entediado e submisso. Chegava à altura do peito de Liebermann. Alguns casacões estavam pendurados no armário, um deles de pele de leopardo. Um pássaro, um corvo empalhado ou coisa parecida, espiava por detrás de chapéus e caixas sobre a prateleira.

— É um pássaro aquilo ali? — indagou Liebermann. — Sim — respondeu o menino. — Era do meu pai. — Fechou a porta, olhando Liebermann com seus olhos azul-celestes. Liebermann apanhou a pasta. — O senhor mata os nazistas quando os apanha? — perguntou o menino. — Não — respondeu Liebermann. — Por que não? — É contra a lei. Além do mais, é melhor levá-los a julgamento. Dessa

forma, mais pessoas ficam sabendo a respeito deles. — Sabendo o quê? — O menino parecia cético.

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— Quem eles eram, o que fizeram. O menino voltou-se em direção à sala de estar. Uma mulher ali se achava, pequena e loura, de saia e jaqueta pretas e

suéter bege de gola alta. Uma bonita mulher, com os seus quarenta e poucos anos. Ela empinou a cabeça e sorriu, as mãos nervosamente cruzadas à sua frente.

— Frau Döring? — Liebermann andou em sua direção. Ela estendeu-lhe a pequena mão e ele apertou-a, sentindo-a fria. — Obrigado por ter-me recebido — disse. Sua tez era lisa por obra de cosméticos, com algumas rugas finas junto aos olhos azul-esverdeados. Exalava um perfume agradável.

— Por favor — indagou, embaraçada —, posso pedir-lhe alguma prova de identidade?

— Certamente — assentiu Liebermann. — É prudente de sua parte pedi-la. — Passou a pasta para a outra mão e procurou no bolso de dentro do casaco.

— Não duvido... que seja quem diz que é — tornou Frau Döring. — É que eu...

— As iniciais estão no chapéu dele — disse o menino, atrás de Liebermann. — Y. S. L.

Liebermann sorriu para Frau Döring, entregando-lhe o passaporte. — Seu filho é um detetive — asseverou, e voltando-se para o menino: —

Muito bem, nem sequer notei que me observava. O menino, afastando uma mecha de cabelos pretos, sorriu complacente. Frau Döring devolveu o passaporte. — E, ele é esperto — acedeu, sorrindo para o menino. — Apenas um

pouquinho preguiçoso. Agora mesmo, por exemplo, devia estar praticando. — Não posso atender à porta e estar no meu quarto ao mesmo tempo —

resmungou o menino, atravessando altivamente a sala de estar. Frau Döring alisou-lhe os cabelos rebeldes, quando ele passou. — Eu sei, querido, estava apenas brincando. O menino entrou, empertigado, por um corredor. Frau Döring sorriu

alegremente para Liebermann, esfregando as mãos, como que para aquecê-las.

— Venha sentar-se, Herr Liebermann — convidou, e recuou em direção à extremidade do aposento onde havia janelas. Uma porta bateu.

— Gostaria de tomar café? — Não, obrigado — respondeu Liebermann. — Acabo de tomar uma

xícara de chá no outro lado da rua. — No Bittner? É onde trabalho. Sou recepcionista lá, das oito às três. — É bom e cômodo para a senhora.

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— Sim, e já estou em casa quando Erich chega. Comecei segunda-feira e até agora está perfeito. Estou adorando!

Liebermann sentou-se num sofá duro, e Frau Döring numa cadeira ao lado. Ereta, as mãos cruzadas sobre a saia preta, a cabeça inclinada, atenta.

— Primeiro que tudo — disse Liebermann —, gostaria de expressar-lhe minhas condolências. As coisas devem estar bastante difíceis para a senhora no momento.

Olhos pousados nas mãos cruzadas, Frau Döring disse: — Obrigada. — Um clarinete disparou escala acima e abaixo,

preparando-se para tocar. Liebermann olhou em direção ao corredor, de onde emanavam as notas melodiosas, e de volta para Frau Döring. — Ele é muito bom — observou ela.

— Eu sei — assentiu ele. — Ouvi-o ontem, pelo telefone. Pensei que fosse um adulto. É seu único filho?

— Sim — respondeu ela, e orgulhosa acrescentou: — Pretende fazer carreira na música.

— Espero que o pai o tenha deixado bem provido. — Liebermann sorriu. — Deixou? — indagou. — Seu marido deixou o dinheiro para Erich e a senhora?

Surpresa, Frau Döring acenou afirmativamente. — E para uma irmã dele. Um terço para cada. A parte de Erich está sob

custódia. Por que pergunta isso? — Estou procurando — anunciou Liebermann — um motivo pelo qual

os nazistas da América do Sul pudessem ter querido matá-lo. — Matar Emil? Ele assentiu, observando Frau Döring. — E os outros também. Ela franziu a testa. — Que outros? — O grupo a que ele pertencia. Em diversos países. O franzido de sua

testa tornou-se mais intrigado. — Emil não pertencia a grupo algum. Aonde pretende chegar? Quer

insinuar que ele era comunista? Impossível estar mais enganado, Herr Liebermann.

— Ele não recebeu correspondência ou chamados telefônicos de fora da Alemanha?

— Nunca. Não aqui, pelo menos. Pergunte no seu escritório, talvez eles saibam de algum grupo. Eu com certeza não sei.

— Indaguei esta manhã. Eles tampouco sabem. — Certa vez — disse Frau Döring —, três ou quatro anos atrás, talvez

até mesmo mais, a irmã telefonou-lhe da América, onde estava de visita. É o único telefonema internacional de que me lembro. Ah, e outra vez, há mais

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tempo ainda, o irmão de sua primeira mulher telefonou de algum lugar da Itália, tentando convencê-lo a investir em... não me lembro, era alguma coisa que tinha que ver com prata. Ou platina.

— E ele aceitou? — Não. Era muito cuidadoso com o seu dinheiro. O clarinete chegou aos ouvidos de Liebermann, elaborando o Mozart do

dia anterior. O minueto do Quinteto para clarinete, muito bem tocado. Lembrou-se de si mesmo na idade do garoto, passando de duas a três horas por dia em cima do velho Pleyel. Sua mãe, que repousasse em paz, também dissera: "Ele pensa em fazer carreira na música", com aquele mesmo orgulho. Quem haveria de imaginar o que ia acontecer? E quando tocara piano pela última vez?

— Não compreendo — disse Frau Döring. — Emil não foi assassinado. — Pode ter sido — asseverou Liebermann. — Um vendedor fez amizade

com ele na noite anterior. Podem ter combinado um encontro naquele prédio, caso o vendedor não aparecesse no bar às dez horas. Dessa forma, ele teria chegado lá na hora certa.

Frau Döring meneou a cabeça. — Ele não teria marcado encontro com ninguém num edifício como

aquele — retorquiu. — Nem com alguém que conhecesse bem. Suspeitava demais das pessoas. E por que motivo os nazistas estariam interessados nele?

— Por que andava armado aquela noite? — Sempre andava. — Sempre? — Sempre, desde que o conheci. Mostrou a pistola no primeiro encontro

que tivemos. Pode imaginar alguém portando arma num encontro com a namorada? E ainda por cima mostrando-a? E o pior é que aquilo me impressionou! — Balançou a cabeça, suspirosa e admirada.

— De quem ele tinha medo? — De todos. Gente do escritório, gente que simplesmente olhava para

ele... — Frau Döring inclinou-se para a frente, confidencialmente. — Ele era um pouquinho... bem, não direi maluco, mas não chegava a ser de todo normal. Certa vez tentei convencê-lo a consultar alguém, o senhor sabe, um médico. Houve um programa de televisão a respeito de pessoas como ele, gente que se julgava... alvo de alguma conspiração, e quando acabou, fiz a minha sugestão da maneira mais cautelosa... Pois bem! Eu é quem estava conspirando, imagine! Para que fosse declarado maluco! Quase me matou foi a mim, naquela noite! — Recostou-se, respirando fundo, abalada. E franziu a testa para Liebermann, perscrutadora. — O que fez ele? Escreveu ao senhor, dizendo que os nazistas o perseguiam?

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— Não, não. — Então, o que o leva a pensar que o perseguissem? — Um boato que escutei. — Era falso. Creia-me, os nazistas haveriam de gostar de Emil. Era anti-

semita, anticatólico, antiliberdade, antitudo-e-antitodos, exceto ele próprio, Emil Döring.

— Era nazista? — Talvez tenha sido. Ele dizia que não, mas só o conheci em 1952, por

isso não posso jurar. Provavelmente não era. Jamais aderiu a coisa alguma, podendo evitar.

— O que fez na guerra? — Esteve no Exército, foi cabo, acho. Gabava-se dos postos fáceis que

conseguia arrumar. O principal foi num depósito de suprimentos ou coisa parecida. Um lugar seguro.

— Nunca esteve em combate? — Era "sabido demais" para isso. Os "trouxas" é que iam. — Onde nasceu? — Em Laupendahl, do outro lado de Essen. — E viveu na região toda a sua vida? — Sim. — Esteve alguma vez em Günzburg, ao que saiba? — Onde? — Günzburg. Perto de Ulm. — Nunca o ouvi mencionar isso. — E o nome Mengele? Ouviu-o alguma vez referir-se a ele? Ela fitou-o, sobrancelhas alçadas, e meneou a cabeça. — Apenas algumas perguntas mais. A senhora está sendo muito gentil.

Receio estar metido numa caçada inútil. — Estou certa de que está — disse ela, e sorriu. — Tinha algum parente importante? No governo, digamos? Ela pensou por um momento. — Não. — Amizade com alguém importante? Ela encolheu os ombros. — Alguns funcionários de Essen, se esta é a sua idéia de importância.

Apertou a mão de Krupp certa vez. Foi o seu grande momento. — Quanto tempo esteve casada com ele? — Vinte e dois anos. Desde 4 de agosto de 1952. — E em todos esses anos, nunca viu ou ouviu alguma coisa a respeito de

um grupo internacional a que ele pertencesse, de homens da sua idade e do mesmo cargo?

Meneando a cabeça, ela respondeu:

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— Nunca, nenhuma palavra. — Nenhuma atividade antinazista de qualquer tipo? — Nenhuma. Era mais pró-nazista do que anti. Votou nos nacional-

democratas, mas nunca realmente aderiu. Não era de aderir. Liebermann recostou-se no sofá duro e esfregou a nuca. — Quer que lhe diga quem na verdade o matou? — perguntou Frau

Döring. Ele fitou-a. Ela inclinou-se para diante e respondeu: — Deus. A fim de libertar uma moça boba do interior, após vinte e dois

anos de infelicidade. E dar um pai a Erich, que o ajude e ame, em vez de xingá-lo — isso mesmo, chamava-o de "efeminado" e "imbecil" — por querer ser músico e não um funcionário público garantido e gordo. Será que os nazistas atendem a orações, Herr Liebermann? — Meneou a cabeça. — Não, isso cabe a Deus, e agradeço-Lhe todas as noites, desde que Ele empurrou aquela parede em cima de Emil. Podia tê-lo feito antes, mas de qualquer forma Lhe agradeço. "Antes tarde do que nunca." — Recostou-se, cruzando as pernas — bonitas pernas —, e sorriu radiante. — Então! Ele não toca maravilhosamente? Guarde este nome: Erich Döring. Algum dia há de vê-lo nos cartazes dos salões de concerto!

Quando Liebermann deixou o número 12 da Frankenstrasse, a noite começava a cair. Carros e bondes enchiam a rua, transeuntes apressados apinhavam a calçada. Caminhou vagarosamente no meio deles, carregando a pasta.

Döring fora um joão-ninguém: vaidoso, conivente, importante para ninguém, a não ser ele próprio. Nenhuma razão concebível para que viesse a ser alvo de conspiradores nazistas do outro lado do mundo — nem mesmo em suas fantasias de perseguição. O vendedor do bar? Apenas um vendedor solitário. A saída apressada na noite do acidente? Havia uma dúzia de razões para um homem sair apressado de um bar.

Isto significava que a vítima de 16 de outubro deveria ter sido Chambon, na França, ou Persson, na Suécia.

Ou alguém mais, que a Reuters deixara escapar. Ou, muito possivelmente, ninguém. Ei, Barry, Barry! Por que tinha de me telefonar! Andou um pouco mais depressa, ao longo do lado sul da apinhada

Frankenstrasse. No lado norte, Mundt apressou também o passo, de charuto apagado na

boca, jornal dobrado embaixo do braço.

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Embora a noite estivesse seca e clara, a recepção era ruim, e tudo o que Mengele ouviu foi:

— Liebermann foi craque-craque-guincho onde Döring, o nosso primeiro homem, morava. Liebetcraque-craque a respeito dele, e mostrou fotografias de soldados a craque-craque GUINCHO-craque Solingen, fazendo a mesma coisa com relação a um craque-craque que morreu numa explosão algumas semanas atrás. Câmbio.

Engolindo o azedume que lhe fervia na garganta, Mengele apertou o botão do microfone e falou:

— Quer repetir, por favor, coronel? Não ouvi tudo. Câmbio. Finalmente conseguiu. — Não vou dizer que não estou preocupado — disse, enxugando a testa

com o lenço —, mas se ele foi investigar junto a alguém com quem nada temos que ver, então evidentemente ainda está no escuro. Câmbio.

— Craque apartamento de Döring, e não estava escuro lá. Eram quatro da tarde, e demorou-se lá por quase uma hora. Câmbio.

— Oh, Deus — murmurou Mengele, e apertou o botão. — Então seria melhor cuidar dele imediatamente, por medida de segurança. Concorda, não? Câmbio.

— Estamos craque a possibilidade, com muito cuidado. Comunicar-lhe-ei assim que houver decisão. Tenho algumas noticiazinhas boas também. Mundt craque-craquegundo freguês, na data exata. O tal de Hessen. E Farnbach telefonou, não com perguntas, graças a Deus, apenas com algumas informações surcraque-guincho; parece que o seu segundo freguês foi um antigo comandante seu, um capitão que arranjou uma identidade sueca depois da guerra. Virada engraçada, não? Farnbach não estava certo se o conhecíamos ou não. Câmbio.

— Não deixou que isso o detivesse, hein? Câmbio. — Ah, não, ele craque-craque dias antes da data. Portanto, pode pôr

mais três cruzes no seu quadro. Câmbio. — Considero urgente cuidarmos imediatamente de Liebermann — disse

Mengele. — E se ele não se limitar a esse homem de Solingen? Se Mundt trabalhar direito, estou certo de que não haverá problema, pelo menos não mais do que já temos. Câmbio.

— Enquanto estiver na Alemanha, discordo. Eles irão craque-guincho-craque o país para mostrar que estão sendo conscienciosos. Serão forçados a isso. Câmbio.

— Então, logo que ele saia da Alemanha. Câmbio. — Levaremos sem dúvida suas opiniões em consideração, Josef. Sem

você, nada. Sabemos como craque-craque-guincho-craque terminar agora. Câmbio e desligo.

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Mengele olhou para o microfone e pousou-o. Retirou os fones de ouvido, largou-os e desligou o rádio.

Saiu do escritório para o banheiro, vomitou seu jantar meio digerido, lavou-se e gargarejou com um dentifrício líquido.

Em seguida, saiu para a varanda, sorriu dizendo: "Desculpem", e sentou-se para jogar bridge com o General Farina, Franz e Margot Schiff.

Quando eles se retiraram, pegou uma lanterna e desceu em direção ao rio, a fim de refletir. Disse algumas palavras ao homem de serviço, seguiu no sentido rio abaixo, indo sentar-se ao lado de um tambor de óleo enferrujado — ao diabo com as suas calças —, e acendeu um cigarro. Imaginou Yakov Liebermann indo às casas dos homens. Seibert e o resto das altas patentes da Organização defrontando uma necessidade e chamando-a possibilidade; e a sua dedicação de décadas aos mais nobres ideais — a busca do conhecimento e a ascensão do melhor da raça humana — que poderia ser roubada de sua fruição definitiva por aquele judeu abelhudo e aquele punhado de esquivos arianos. Que eram piores do que o judeu, pois Liebermann, para sermos justos, estava cumprindo com o seu dever, de acordo com as suas luzes, enquanto eles estavam traindo as suas. Ou pensando em traí-las.

Jogou o seu segundo cigarro no cintilante negror do rio, e, com um "Permaneça vigilante" ao guarda, regressou em direção a casa.

Seguindo um impulso, dobrou para um lado e abriu caminho por entre a trilha invadida de vegetação até a "fábrica", a vereda por onde haviam descido ele e os outros — o jovem Reiter, Von Sweringen, Tina Zygorny, todos agora mortos, infelizmente —, tão alegres naquelas manhãs distantes. Curvando-se sobre a lanterna exploradora, afastou os galhos de folhas largas, tropeçou nas raízes salientes.

E ali estava o longo prédio baixo, mordiscado pelas árvores. A pintura descascara-se das paredes de sua estrutura, todas as janelas estavam quebradas (os filhos dos empregados, malditos sejam), e toda uma parte do telhado ondulado desabara ou fora retirada da extremidade do dormitório.

A porta da frente escancarava-se, dependurada pela dobradiça inferior. Tina Zygorny soltara a sua risada masculina, Von Sweringen trovejara:

— Vamos, acorde! Já teve seu sono de beleza! Silêncio apenas. Insetos zuniam, trinavam. Lançando a luz à sua frente, Mengele subiu o degrau e passou pela porta.

Cinco anos pelo menos, desde que pisara pela última vez... Formosa Bavária. O cartaz aderia à parede, poeirento e enrugado: céu,

montanha, primeiro plano florido. Sorriu para ele, e moveu o raio de luz. Descobriu ranhuras na madeira das paredes, de onde prateleiras e

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armários haviam sido arrancados. Tubos de encanamento eretos, em posição de sentido. A parede com as manchas marrons onde Reiter queimara, começando o desenho de uma suástica com o seu microscópio. Podia ter incendiado a casa inteira, o idiota.

Caminhou cuidadosamente por entre vidro partido. Uma casca de melão podre, formigas banqueteando-se.

Contemplou os aposentos vazios, e recordou a vida e a atividade, o equipamento reluzente, o lamento do esteriliza-dor, o tilintar das pipetas. Há mais de dez anos.

Tudo fora retirado, posto no ferro-velho ou talvez doado a alguma clínica não sabia onde, para que, caso os bandos de judeus chegassem — e eles estavam ativos naquele tempo, o Comando Isaac e outros —, não tivessem pistas, nem suspeitas.

Percorreu o corredor central. Criados nativos falavam suavemente em dialetos primitivos, tentando se fazer entender.

Chegou ao dormitório, de cheiro fresco e arejado, graças ao teto aberto. As esteiras de palha ainda estavam ali, espalhadas em desordem.

Tirem bom proveito de algumas dúzias de esteiras de capim, seus jovens judeus.

Andou por entre elas, recordando, sorrindo. Alguma coisa de encontro à parede lançava cintilações brancas. Aproximou-se, baixou o olhar sobre aquilo que o facho da lanterna revelava. Apanhou-o, soprou, examinou na mão. Eram presas de animais, em círculo, um bracelete feminino. Talismã de boa sorte? O poder dos animais transferido para o braço da portadora?

Estranho que as crianças não o houvessem encontrado. Não havia dúvida de que haviam brincado ali, rolado naquelas esteiras, desarrumando-as.

Sim, era sinal de boa sorte aquele bracelete continuar ali todos aqueles anos, a fim de que pudesse encontrá-lo nessa noite de temor e incerteza, de possível traição. Enfiou por ele os dedos, deslizou-o mão abaixo, puxando-o com o cabo da lanterna de mão. O círculo de presas escorregou, retido pela pulseira de ouro do relógio. Sacudiu o pulso, as presas dançaram.

Lançou um olhar pelo dormitório, através do telhado destruído, até o cimo das árvores e as estrelas que surgiam e desapareciam por entre elas. E — talvez sim, talvez não — até o seu Führer, a vigiá-lo.

"Não hei de decepcioná-lo", prometeu. Olhou em torno — para aquele lugar onde tanto, gloriosamente tanto, já

fora realizado — e, de olhar fixo, acentuou em voz alta: — Não hei.

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Quatro — Eliminamos apenas quatro dos onze — disse Klaus von Palmen,

cortando a grossa lingüiça diante de si. — Não acha cedo demais para falar em parar?

— Quem está falando em parar? — Liebermann empurrou com a faca o purê de batatas de encontro à parte traseira do garfo. — Eu só disse que não iria a Fagersta. Não disse que não iria a outros lugares, como também não disse que não pediria a alguém para ir a Fagersta, alguém que não precise de intérprete. — Enfiou na boca a garfada de lingüiça e purê de batatas.

Estavam no Cinco Continentes, o restaurante do Aeroporto de Frankfurt. Era uma noite de sábado, 19 de novembro. Liebermann providenciara uma escala de duas horas na sua volta a Viena, e Klaus viera de Mannheim para encontrá-lo. O restaurante era caro — Liebermann reconhecia a legitimidade da censura de invisíveis contribuintes —, mas na verdade o rapaz merecia uma boa refeição. Não apenas investigara aquele homem de Pforzheim, cujo salto, e não queda de uma ponte, fora testemunhado por cinco pessoas, como também, depois que Liebermann lhe falara de Gladbeck na noite de quinta-feira, viajara para Freiburg, enquanto Liebermann se dirigia a Solingen. E, além do mais, seu ar de sagacidade — as miúdas feições contraídas e os olhos brilhantes — parecia de perto um misto de perspicácia e desnutrição. Esses garotos comiam o suficiente? Portanto, Cinco Continentes. Não poderiam conversar direito numa lanchonete, poderiam?

August Mohr, o vigia noturno da fábrica de produtos químicos de Solingen, era mesmo, conforme julgara Liebermann, funcionário público durante o dia, e à noite empregado do setor de vigilância do hospital onde morrera. Contudo, as autoridades do corpo de bombeiros haviam investigado exaustivamente a explosão que o matara, ligando-a a uma série de acidentes que, estavam certos, não poderiam ter sido preparados. E o próprio Mohr parecia uma vítima tão improvável de conspiração nazista quanto Emil Döring. Semi-analfabeto e pobre, viúvo há seis anos, morava com a mãe inválida em dois quartos de uma estalagem miserável. A maior parte de sua vida, inclusive os anos de guerra, trabalhara numa fábrica de aço de Solingen. Correspondência ou chamadas telefônicas de fora do país? A estalajadeira rira.

— Nem sequer de dentro do país, senhor. Klaus, em Freiburg, julgara a princípio encontrar alguma coisa. O

homem de lá, um empregado do Departamento de Águas chamado Josef Rausenberger, fora esfaqueado e roubado nas proximidades de sua casa, e

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uma vizinha vira alguém vigiando a casa na noite anterior. — Um homem de olho de vidro? — Ela não podia ter notado, estava muito longe. Um homem corpulento,

num carro pequeno, fumando, foi o que ela contou à polícia. Não pôde dizer sequer a marca do carro. Havia um homem de olho de vidro em Solingen?

— Em Gladbeck. Prossiga. Porém, Rausenberger não pertencera a organizações internacionais.

Perdera as duas pernas abaixo dos joelhos, num acidente de trem, quando garoto. Em conseqüência, não prestara serviço militar, e tampouco pusera os pés — artificiais, quer dizer — fora da Alemanha. ("Por favor", repreendera Liebermann.) Destacava-se como trabalhador eficiente e assíduo, um marido e pai dedicado. Deixara suas economias para a viúva. Desaprovava os nazistas e votara contra eles, nada mais. Nascido em Schwenningen. Nunca em Günzburg. Um parente ilustre: um primo, o redator-chefe do Berliner Morgenpost.

Döring, Müller, Mohr, Rausenberger, nenhum deles, nem por qualquer esforço de imaginação, uma vítima nazista. Quatro entre onze.

— Conheço um homem em Estocolmo — declarou Liebermann. — Um gravador, natural de Varsóvia. Muito inteligente. Irá com prazer a Fagersta. O homem de lá, Persson, e o de Bordéus são os principais a serem investigados. Dezesseis de outubro foi a única data mencionada por Barry. Se nenhum desses dois for alguém que os nazistas pudessem e de fato pretendessem matar, então Barry estava enganado.

— A menos que o senhor não tivesse notícias do homem certo. Ou que ele morresse no dia errado.

— A menos — tornou Liebermann, cortando a lingüiça. — Tudo é "a menos", "se", "talvez". Como eu gostaria que ele não me tivesse telefonado.

— O que disse ele exatamente? Como é que foi tudo? Liebermann narrou a história. O garçom retirou os pratos e recebeu os pedidos de sobremesa. Quando se afastou, Klaus perguntou:

— Já pensou que o seu nome pode estar na lista? Ainda que não tenha sido Mengele a reconhecê-lo por telepatia — o que não acredito um só momento, Herr Liebermann, e muito me admira que o senhor acredite —, algum nazista desligou o fone e há de ter se encarregado de descobrir com quem Barry falava. A telefonista do hotel deve saber.

Liebermann sorriu. — Tenho apenas sessenta e dois e não sou funcionário público. — Não brinque com isso. Se enviaram assassinos, por que não lhes

dariam mais um encargo? Com a máxima prioridade? — Nesse caso, o fato de eu ainda estar vivo indica que eles não foram

enviados.

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— Talvez Mengele e a Organização dos Camaradas decidissem esperar um pouco, porque você sabia. Ou talvez desistissem da coisa.

— Está vendo só o que dizia acerca dos "se" e dos "talvez"? — Não se apercebeu de que talvez esteja em perigo? O garçom

depositou um bolo de cerejas diante de Klaus e uma torta linzer para Liebermann. Serviu o café de Klaus e o chá de Liebermann. Quando ele se retirou, Liebermann, abrindo um envelopinho de açúcar, disse:

— Corro perigo há muito tempo, Klaus. Parei de pensar nisso, do contrário teria de fechar o Centro e dar outro rumo à minha vida. Você tem razão: "se" existirem assassinos, provavelmente estarei na lista. Por isso, investigar é o que ainda me resta fazer. Irei a Bordéus e pedirei a Piwowar, meu amigo de Estocolmo, para ir a Fagersta. Se os homens que ali morreram não tiveram ligações com nazistas, examinarei outros casos, só para ter certeza.

— Eu poderia ir a Fagersta — aventou Klaus, mexendo o café. — Falo um pouco de sueco.

— Mas para você eu teria de comprar passagem, certo? Enquanto para Piwowar, não. Infelizmente isso faz diferença. Além do mais, você não deve perder aulas assim sem mais nem menos.

— Posso perder aulas durante um mês e ainda assim me formar com distinção.

— Céus, que cabeça. Fale-me a seu respeito. Como se tornou tão brilhante?

— Poderia lhe dizer uma coisa a meu respeito que haveria de surpreendê-lo, Herr Liebermann.

Liebermann ouviu, com ar sério e compreensivo. Os pais de Klaus eram antigos nazistas. Sua mãe fora íntima de Himmler, seu pai, coronel da Luftwaffe.

Quase todos os jovens alemães que ofereciam ajuda a Liebermann eram filhos de antigos nazistas. Eis uma das poucas coisas que o levavam a sentir que Deus existia e estava agindo, ainda que lentamente.

— Somos terríveis. — Não, não somos, somos sensacionais. Devíamos até ser filmados. — Sabe o que quero dizer. Olhe só para nós: um, dois, e já na cama.

Aposto dois tostões como esqueceu meu nome. — Meg, de Margaret. — Nome completo. — Reynolds. Dois tostões, por favor, enfermeira Reynolds. — Está muito escuro para achar minha bolsa. Não prefere isto? — Humm, sim, claro que sim. Humm, é delicioso. — "Ruborizando-se, acanhada, ela perguntou: 'Não será só esta noite,

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certo, meu senhor?'" — É nisso que você está pensando? — Não, estou pensando no preço do picles. Claro que é nisso que estou

pensando! Este não é o meu modus vi-vendi habitual, você bem sabe. — Essa não. Modus vivendi! — Eis uma resposta direta. — Não pretendi ser evasivo, Meg. Receio que talvez seja apenas esta

noite, mas não porque eu assim queira. Não tenho alternativa na questão. Fui enviado aqui para... resolver uns negócios com alguém, e ei-lo aí estirado no seu maldito hospital, na tenda de oxigênio, sem receber visitantes, exceto os mais chegados da família.

— Harrington? — Esse mesmo. Quando me apresentar e disser que não pude chegar a

ele, provavelmente me mandarão de volta para Londres. Nosso pessoal anda muito escasso ultimamente.

— Voltará quando ele se restabelecer? — Não é provável. Nessa altura, estarei em outro caso, um outro

assumirá. Isso na suposição de que ele se restabeleça mesmo. É duvidoso, ao que me consta.

— Sim, ele tem sessenta e seis anos, você sabe, e foi um ataque bastante feio. Entretanto, sua constituição é forte. Corre em torno do gramado todas as manhãs, às oito em ponto; a gente pode acertar o relógio por ele. Dizem que ajuda o coração, mas eu diria que prejudica, numa idade dessas.

— É uma pena eu não falar com ele. Se falasse, poderia ficar pelo menos uns quinze dias. Acha que poderíamos nos encontrar no Natal? É quando encerraremos os trabalhos. Pode arranjar folga?

— Talvez consiga... — Que beleza! Arranjaria? Tenho um apartamento em Kensington, com

uma cama um bocadinho mais macia que esta. — Alan, em que negócio você está metido? — Eu já lhe disse. — Isso não parece coisa de venda. Vendedores não têm casos tão

complicados. Aliás, nunca vi você com uma pasta, se bem que não tenha muito tempo para pensar no assunto. Vendendo o quê, hein? Você não é realmente um vendedor, é?

— Você é muito viva, hein, Meg? Pode guardar um segredo? — Claro que sim. — De verdade? — Sim. Pode confiar em mim, Alan. — Bem... eu trabalho para o Imposto de Renda. Tivemos uma denúncia

de que Harrington nos teria caloteado em cerca de trinta mil libras durante os

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últimos dez ou doze anos. — Não acredito! Ele é juiz! — Acontece com mais freqüência do que você pensa. — Deus do céu, ele é a própria estátua da Virtude Cívica! — Talvez. Fui enviado para investigar. Sabe, era para eu instalar um

microfone escondido na casa dele, e controlá-lo de meu quarto, para ver o que podia descobrir.

— É assim que vocês operam? — É o método padrão em casos como este. Tenho a autorização na

minha pasta. O quarto de hospital dele seria ainda melhor que a sua casa. No hospital o sujeito fica um tanto nervoso, diz à mulher onde a bolada está escondida, cochicha uma palavra ou duas com o advogado... Mas não consigo entrar para instalar o maldito troço. Poderia exibir a autorização para o seu diretor, mas o mais provável é que seja amigo de Harrington. Deixa escapar uma palavra e tudo vai por água abaixo.

— Seu patife! Seu velho patife sem-vergonha! — Meg! O que... — Pensa que não sei qual é o seu jogo? Quer que eu instale o troço para

você. Foi por isso que "aconteceu" nos encontrarmos tão acidentalmente. Você me enrolou com essa sua história de... Oh, Cristo, eu devia ter sabido o que você pretendia. O Bonitão embeiçado por uma velha vaca gorda como eu.

— Meg! Não fale assim, amor! — Tire suas mãos de mim. E não me chame "amor", agradeço. Oh,

Cristo, que burra que eu sou! — Meg querida, por favor, deite-se e... — Largue-me! Ainda bem que ele tirou alguma coisa de vocês. Vocês,

seus malandros, vivem nos arrancando o que podem. Ah! Que piada! Não devo me esquecer de rir.

— Meg! Sim, tem razão, é verdade. Eu estava esperando que você me desse uma mão, e por isso é que nos conhecemos. Mas não é por isso que estamos aqui em cima agora. Pensa que sou tão fiel à maldita Renda, a ponto de ir para a cama com quem não simpatizasse, só para apanhar um vigaristazinho desgraçado como Harrington? E continuar mandando brasa durante uma quinzena ou mais? Ele nada significa comparado com a maioria dos que investigamos. Falei a verdade em cada palavra que disse, Meg, quanto a preferir mulheres corpulentas, maduras, e querer que você fique comigo no Natal.

— Não acredito numa maldita palavra do que você está dizendo! — Oh, Meg, eu seria capaz... de arrancar minha língua! Você é a melhor

coisa que me aconteceu em quinze anos, e agora estraguei tudo com a minha

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estupidez. Quer tornar a se deitar, amor? Não vou mais falar em Harrington. Não deixaria que você me ajudasse agora, ainda que me implorasse.

— Desse susto você não morre, não se preocupe. — Deite-se direitinho, amor... assim... e deixe-me abraçá-la, beijar esses

grandes... Hummm! Ah, Meg, você é mesmo divina! Hummm! — Patife... — Sabe o que vou fazer? Telefono amanhã e digo ao meu chefe que

Harrington está sendo remendado e que dentro de um dia ou dois consigo instalar o troço. Talvez possa remanchar com ele até quinta ou sexta, antes que me chamem de volta. Hummm! Sou maluco por enfermeiras, sabia disso? Mamãe era, e também Mary, minha esposa. Hummm!

— Ah... — Talvez você não goste de mim, mas seus biquinhos gostam. — Falou sério mesmo quanto ao Natal, seu patife? — Juro que sim, amor, e em qualquer outra ocasião que arranjarmos.

Talvez você possa até se mudar para Londres. Nunca pensou nisso? Sempre há lugares para enfermeiras, não? Com Mary foi assim.

— Oh, não poderia. Não é só pegar as coisas e mudar. Alan? Poderia mesmo... ficar quinze dias?

— Poderei arranjar mais do que isso, se instalar o troço. Terei de esperar que ele saia da tenda e fique conversando com as pessoas... Mas não vou deixar que você faça isso, Meg. Falo sério.

— Eu já sei... — Não. Não quero correr o risco de estragar nossas relações. — Que besteira. Eu já sei que você é um patife, portanto, que diferença

faz? Quero ajudar o governo, não você. — Bem... acho que não devo atrapalhar o cumprimento da minha tarefa. — Sabia que você ia concordar. O que devo fazer? Não sei mexer em

fios. — Não precisa. Você simplesmente leva um pacote para o quarto dele.

Do tamanho de uma caixa de bombons. É de fato uma caixa de bombons, toda bonita, de papel florido. Basta desembrulhá-la, pô-la junto da cama dele — numa prateleira, mesinha-de-cabeceira, ou coisa parecida, quanto mais perto da cabeça melhor — e depois abri-la.

— Só isso? Abri-la? — Funciona automaticamente. — Pensei que essas coisas fossem pequeninas. — As de telefone. Não desse tipo. — Não vai fazer faísca, vai? Por causa do oxigênio, sabe? — Oh, não, de modo algum. É apenas um microfone e um transmissor,

sob uma camada de bombons. Não deverá abrir a caixa até colocá-la no

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lugar certo. Não convém sacudir de um lado para o outro quando estiver transmitindo.

— Está pronto? Posso instalar amanhã. Hoje, melhor dizendo. — Boa menina. — Gozado, o velho Harrington a sonegar impostos! Vai ser uma

sensação se ele for acusado! — Você não deve dizer uma palavra disso a ninguém, até reunirmos

provas. — Ah, não, jamais. Sei como é. Devemos fingir que ele é inocente.

Emocionante! Sabe o que vou fazer depois de abrir a caixa, Alan? — Não faço idéia. — Vou cochichar uma coisa dentro dela, uma coisa que eu gostaria que

você me fizesse amanhã à noite. Em troca da minha ajuda. Você vai poder ouvir, não?

— Assim que você abrir. Estarei ouvindo de respiração suspensa. O que é que você tem em mente, sua Meg travessa? Oh, sim, ohh, que gostoso, amor.

Liebermann foi a Bordéus e Orléans, e seu amigo Gabriel Piwowar a

Fagersta e Göteborg. Nenhum dos quatro funcionários públicos de sessenta e cinco anos que haviam morrido naquelas cidades parecia vítima mais provável dos nazistas do que os quatro já investigados.

Chegara outra remessa de recortes, vinte e seis desta vez, seis deles possíveis. Havia agora dezessete, dos quais oito — inclusive os três de 16 de outubro — eliminados. Liebermann tinha certeza de que Barry se enganara, mas, lembrando-se da gravidade da situação se, resolveu investigar mais cinco, os mais fáceis. Dois da Dinamarca ele confiou a um de seus colaboradores de lá, um cobrador de contas chamado Goldschmidt, e um de Trittau, perto de Hamburgo, a Klaus. Dois da Inglaterra ele próprio investigou, juntando trabalho e prazer — uma visita à sua filha Dena e à família dela, em Reading.

Os cinco assemelharam-se aos outros oito. Diferentes, mas parecidos. Klaus informou que a viúva Schreiber gostaria de ter com ele mais do que uma boa conversa.

Chegaram mais alguns recortes, com um bilhete de Beynon: "Receio não poder mais justificar isto em Londres. Obteve algum resultado?"

Liebermann telefonou-lhe. Ele não estava. Mas respondeu à chamada uma hora depois.

— Não, Sydney — disse Liebermann —, foi apenas uma tentativa frustrada. Investiguei treze, dentre dezessete possíveis. Nenhum era homem

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que os nazistas pudessem querer matar. Mas foi bom ter investigado. Só lamento ter lhe dado tanto trabalho.

— Não foi nada. O rapaz ainda não apareceu? — Não. Recebi uma carta do pai dele. Esteve no Brasil duas vezes, e

duas em Washington. Não pretende desistir. — É pena. Avise-me se ele descobrir alguma coisa. — Está bem. E mais uma vez obrigado, Sydney. Nenhum dos

derradeiros recortes mostrou-se possível. O que não fez muita diferença. Liebermann voltou sua atenção para uma

campanha de escrita de cartas cujo objetivo era conseguir que o governo da Alemanha Ocidental renovasse esforços para extraditar Walter Rauff, responsável pela morte em câmaras de gás de noventa e sete mil mulheres e crianças, e que vivia na ocasião (e ainda vive) sob o seu próprio nome, em Punta Arenas, Chile.

Em janeiro de 1975, Liebermann foi aos Estados Unidos para o que seria uma temporada de dois meses de conferências, num circuito em direção contrária à marcha dos ponteiros de um relógio, a partir da metade leste do país, começando e terminando na cidade de Nova York. Sua agência de conferências contratara mais de setenta compromissos, alguns em academias e universidades e a maioria em templos e em almoços promovidos por grupos judaicos. Antes de partir para a temporada, foi levado a um programa de televisão na Filadélfia (juntamente com um especialista em alimentação sadia, um ator e uma mulher que escrevera uma novela erótica: publicidade preciosa e difícil de arranjar, garantiu-lhe Mr. Goldwasser, da agência).

Na noite de quinta-feira, 14 de janeiro, Liebermann falou na Congregação Knesses Israel, em Pittsfield, Massachusetts. Uma mulher, que trouxera uma brochura de seu livro para ele autografar, disse, enquanto ele o autografava, ser de Lenox, e não de Pittsfield.

— Lenox? Fica perto daqui? — Onze quilômetros — respondeu ela, sorrindo. — E eu viria mesmo se

ficasse a cem. Ele sorriu, agradecendo. Dezesseis de novembro: Curry, Jack; Lenox, Massachusetts. Não

trouxera a lista, mas já estava em sua cabeça. Naquela noite, no quarto de hóspedes da presidente da congregação,

permaneceu acordado, ouvindo os flocos de neve batendo nas vidraças. Curry. Alguma coisa a ver com impostos, avaliador ou auditor. Morto em acidente de caça, de um tiro extraviado. Proposital?

Investigara. Treze em dezessete. Inclusive os três de 16 de outubro. Onze quilômetros apenas? A viagem de ônibus até Worcester não levaria mais de duas horas, e só precisaria chegar à hora do jantar. Mesmo depois, em caso

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de necessidade... Cedo, na manhã seguinte, tomou emprestado o carro da sua hospedeira,

um Oldsmobile grande, e rumou para Lenox. Doze centímetros de neve haviam caído e mais estava a caminho, mas as estradas tinham uma camada fina. Tratores empurravam a neve para os lados, outras máquinas lançavam-na a distância, em arcos impetuosos. Incrível, na sua terra tudo estaria parado.

Em Lenox descobriu que ninguém confessara ter atirado em Jack Curry. E, extra-oficialmente, o chefe de polícia DeGregorio não estava certo de que fora um acidente. Um tiro suspeitosamente perfeito, através do boné de caça vermelho, bem na nuca. Parecia antes boa pontaria do que má sorte. Mas Curry já estava morto há cinco ou seis horas quando encontrado, e pelo menos uma dúzia de pessoas haviam transitado pelo local. Portanto, o que a polícia poderia ter encontrado? Nem ao menos o cartucho aparecera. Investigaram, em vão, se alguém tinha alguma divergência com Curry. Ele fora um avaliador imparcial e eqüitativo, um cidadão respeitado e estimado. Pertencera a algum grupo ou organização internacional? Ao Rotary. Afora isso, Liebermann teria de perguntar a Mrs. Curry. Mas DeGregorio não achava que ela quisesse falar muito. Ouvira dizer que ainda estava bastante abatida.

Manhã avançada, Liebermann estava sentado numa pequena cozinha suja, tomando chá de uma caneca lascada e todo constrangido porque Mrs. Curry parecia prestes a chorar. Como a viúva de Emil Döring, tinha quarenta e poucos anos, mas esta era a única semelhança: Mrs. Curry era magra e feia; tinha cabelos castanhos cortados à moda de rapaz, ombros aduncos e seios rasos, dentro de um vestido desbotado, estampado de flores. E era lamurienta.

— Ninguém ia querer matá-lo — insistia, esfregando os olhos encharcados com as pontas dos dedos avermelhadas e de unhas rachadas. — Ele era... o melhor homem sobre a face da terra. Forte, bom, paciente e generoso. Era uma... rocha, e agora... Oh, Deus!... estou... — E começou a chorar. Pegando um guardanapo de papel amarrotado, apertou-o de encontro aos olhos lacrimosos, descansou a testa na mão, o cotovelo pontudo sobre a mesa, soluçando agitadamente.

Liebermann pousou o chá e inclinou-se para a frente, desanimado. Ela se desculpava por entre as lágrimas. — Está bem — disse ele —, está bem. — Grande coisa. Onze

quilômetros através da neve, para fazer uma mulher chorar. Treze em dezessete não eram suficientes?

Recostou-se, suspirando, e esperou. Desalentado, olhou à volta da pequena cozinha manchada de amarelo, com os seus pratos sujos, a geladeira

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velha e embalagens de papelão com garrafas vazias junto à porta dos fundos. Caçada Inútil número 14. Uma planta dentro de um copo vermelho no parapeito da janela, atrás da pia, e uma lata de sapólio. Um desenho de avião, um 747, grudado na porta de um armário. Muito bom, visto de onde ele estava. Sobre a mesa da cozinha, uma caixa de flocos de milho.

— Desculpe — choramingou ela, limpando o nariz com o guardanapo. Seus olhos castanhos molhados fitaram Liebermann.

— Farei apenas algumas perguntas, Mrs. Curry. Ele pertencia a um grupo internacional ou organização de homens da sua idade?

Ela meneou a cabeça, baixando o guardanapo. — A grupos americanos — respondeu. — A Legião, Amvets, Rotary...

não, este é internacional. O Rotary Club. É o único. — Era veterano da Segunda Guerra Mundial? Ela acenou afirmativamente. — Da Força Aérea. Ganhou a CMA, a Cruz de Mérito Aeronáutico. — Na Europa? — No Extremo Oriente. — Esta pergunta agora é pessoal, mas espero que não se importe. Ele

deixou dinheiro para a senhora? Ela assentiu cautelosamente. — Não deixou muito... — Onde nasceu? — Em Berea, Ohio. — Ela olhou para além dele, e com um sorriso

penoso perguntou: — O que você está fazendo fora da cama? Ele voltou-se. O jovem Döring estava parado à porta. Emil, não, Erich

Döring, magro e narigudo, cabelo revolto, de pijama listrado azul e branco, descalço. Cocava o peito, olhando com curiosidade para Liebermann.

Este ergueu-se, surpreso. — Guten Morgen — proferiu, e constatou, enquanto o menino acenava,

entrando no aposento, que Emil Döring e Jack Curry se conheciam. Tinha de ser assim, senão como se explicaria a presença do menino ali? Com emoção crescente, virou-se para Mrs. Curry e perguntou: — O que faz este menino aqui?

— Está gripado — explicou ela. — E, de qualquer modo, não há aula por causa da neve. Este é Jack júnior. Não, não chegue perto, querido. Este é Mr. Liebermann, de Viena, na Europa. É um homem famoso. Ah, onde estão seus chinelos, Jack? O que você quer?

— Um copo de suco de grapefruit — disse o menino. Num inglês perfeito. Com um sotaque igual ao de Kennedy.

Mrs. Curry levantou-se. — Francamente! — exclamou — será que só vai usá-los quando não

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couberem mais no seu pé? E ainda por cima resfriado! — Dirigiu-se à geladeira.

O menino olhou para Liebermann com os olhos azul-celestes de Erich Döring.

— Por que o senhor é famoso? — indagou. — Ele anda atrás de nazistas. Esteve no programa de Mike Douglas, na

semana passada. — Es ist doch ganz phantastisch!¹ — exclamou Liebermann. — Sabe

que você tem um gêmeo? Um menino exatamente igual, que mora na Alemanha, numa cidade chamada Gladbeck.

1 "Isto é uma coisa absolutamente fantástica!" Em alemão no original. (N. do E.) — Exatamente como eu? — redargüiu o menino, incrédulo. — Exatamente! Nunca vi antes tamanha... semelhança. Somente irmãos

gêmeos poderiam ser assim tão parecidos! — Jack, volte agora para a cama — ordenou Mrs. Curry, parada junto à

geladeira, com uma embalagem de papelão de suco de frutas na mão. — Eu levo para você — disse sorrindo.

— Um minuto só — insistiu o menino. — Já! — exclamou ela severamente. — Vai ficar pior, em vez de

melhorar, andando por aí desse jeito, sem roupão nem chinelos. Vá. — Voltou a sorrir. — Despeça-se e vá.

— Ai, meu Deus do céu! — exclamou o menino. — Até logo! — E saiu, emproado, do aposento.

— Olhe esses modos! — Mrs. Curry olhou-o, irritada, e em seguida para Liebermann, e, dirigindo-se a um armário, escancarou-lhe a porta. — Gostaria que ele pagasse as contas do médico — resmungou. — Aí então pensaria duas vezes. — Retirou um copo.

— É espantoso! — tornou Liebermann. — Cheguei a pensar que era o menino da Alemanha que viera visitá-la! Até a voz é a mesma, a expressão dos olhos, o andar...

— Todos têm um sósia — retorquiu Mrs. Curry, despejando um cauteloso jorro de refresco de grapefruit no copo verde. — A minha é de Ohio, uma garota que meu marido conheceu antes de mim. — Pousou a embalagem de papelão e voltou-se, com o copo cheio na mão. — Bem — disse, sorrindo —, não quero parecer grosseira, mas, como pode perceber, há um bocado de coisas por aqui que eu preciso arrumar. E ainda por cima tendo Jack preso em casa. Tenho certeza de que ninguém matou meu marido de propósito. Foi um acidente. Ele não tinha um só inimigo no mundo.

Liebermann, os olhos pestanejando, acenou com a cabeça e apanhou o sobretudo no encosto da cadeira.

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Espantosa aquela semelhança. Como dois grãos de ervilha. E mais espantoso ainda quando, além da semelhança de seus rostos

macilentos e atitudes céticas, existe a de pais de sessenta e cinco anos e funcionários públicos, vítimas de morte violenta, com um mês de intervalo. E ainda a das idades de suas mães, quarenta e um ou quarenta e dois. Como admitir tanta semelhança?

O volante tendeu para a direita. Corrigiu-o, espiando através das sacudidelas rápidas do limpador de pára-brisas. Era preciso concentrar-se na direção...

Não podia ser apenas coincidência, era demais. Mas o que mais poderia ser? Seria possível que Mrs. Curry, de Lenox (que elogiava a generosidade do finado marido), e Frau Döring, de Gladbeck (nenhum modelo de fidelidade, ao que parecia), tivessem tido casos com o mesmo homem macilento e narigudo, nove meses antes de seus filhos nascerem? Mesmo nessa eventualidade improvável (um piloto da Lufthansa viajando entre Essen e Boston!), os meninos não seriam gêmeos. E isso é o que eles eram, absolutamente idênticos.

Gêmeos... O principal interesse de Mengele. O objeto das suas experiências de

Auschwitz. Então? O velho professor de Heidelberg dissera: "Nenhuma das sugestões feitas

até agora identificou a presença do Dr. Mengele no problema". Sim, mas os meninos não eram gêmeos, apenas pareciam. Continuou lutando com aquilo no ônibus para Worcester. Tinha de ser coincidência. Todo mundo tinha um sósia, conforme Mrs.

Curry dissera tão tranqüilamente. E, embora ele duvidasse da veracidade da afirmativa, tinha de reconhecer que vira uma quantidade de gente parecida em sua vida: um Bormann, dois Eichmanns, meia dúzia de outros. (Mas gente parecida, não igual, e por que despejara ela com tanto cuidado o grapefruit? Estaria então muito preocupada, receosa de que um tremor de mão pudesse traí-la? E depois, aquilo de mandá-lo embora com pressa, repentinamente atarefada. Deus do céu, estariam as esposas envolvidas? Mas como? Por quê?)

A neve cessara, o sol brilhava. Massachusetts passou num relance, colinas e casas de um branco deslumbrante.

A obsessão de Mengele por gêmeos. Todos os relatos daquele rebotalho subumano faziam referência àquilo: as autópsias em gêmeos trucidados para descobrir as razões genéticas de suas ligeiras diferenças, as tentativas de

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realizar mudanças em gêmeos vivos... Agora escute, Liebermann, você está ultrapassando um bocadinho os

limites. Mais de dois meses atrás, você viu Erich Döring. Durante menos de cinco minutos. E então, agora, vendo um menino do mesmo tipo — com uma forte semelhança, concedamos —, você mistura coisas na cabeça, emparelha, e pronto: gêmeos idênticos, e Mengele em Auschwitz. Só porque dois homens, entre dezessete, tinham filhos parecidos. O que há nisso de assombroso?

Mas, e se fossem mais do que dois? E se fossem três? Está vendo? Está ultrapassando os limites. Por que não pensar então em

quádruplos, já que começou? A viúva de Trittau dera bola para Klaus e oferecera-lhe alguma coisa

mais. Com sessenta e tantos anos? Talvez. Mais provável que fosse mais jovem. Quarenta e um? Quarenta e dois?

Em Worcester, pediu à sua hospedeira, uma tal de Mrs. Labowitz, para dar um telefonema internacional.

— Eu lhe pagarei, claro. — Mr. Liebermann, por favor! O senhor é um hóspede em nossa casa: o

telefone é seu! Não discutiu. O local era praticamente uma mansão. Eram cinco e quinze. Onze e quinze na Europa. A telefonista informou que o número de Klaus não respondia.

Liebermann pediu-lhe que tentasse outra vez dentro de meia hora, e desligou. Pensou um momento e chamou-a novamente. Virando as páginas do seu caderno de endereços, deu-lhe o número de Gabriel Piwowar, em Estocolmo, e de Abe Goldschmidt, em Odense.

Foi chamado ao telefone justamente quando se sentava para jantar com quatro Labowitz e cinco convidados. Desculpou-se e foi atender na biblioteca.

Goldschmidt. Falaram em alemão. — De que se trata? Mais homens para eu investigar? — Não, são os mesmos dois. Eles tinham filhos com cerca de treze anos

de idade? — O de Bramminge tinha. Horve. Okking, de Copenhague, tinha duas

filhas de trinta e tantos anos. — Que idade tem a viúva de Horve? — É jovem. Fiquei surpreso. Deixe-me ver. Pouco mais jovem que

Natalie. Quarenta e dois, digamos. — Viu o menino? — Ele estava na escola. Devia ter falado com ele? — Não, só queria saber que aparência tinha.

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— Era um garoto magricela. Ela guardava a fotografia dele em cima do piano, tocando violino. Falei alguma coisa, e ela disse que era antiga, de quando ele tinha nove anos. Agora tem quase catorze.

— De cabelos escuros, olhos azuis, narigudo? — Como posso lembrar? Cabelos escuros, sim. Os olhos, não poderia

saber, a foto não era colorida. Um menino, magricela, tocando violino, de cabelos escuros. Pensei que você estivesse satisfeito.

— Eu também pensei. Obrigado, Abe. Até a vista. Desligou. O telefone tocou na sua mão.

Era Piwowar. Falaram em ídiche. — Os dois homens que você investigou tinham filhos com cerca de

catorze anos? — Anders Runsten tinha. Persson, não. — Você o viu? — O filho de Runsten? Ele fez o meu retrato enquanto eu esperava pela

mãe. Brinquei com ele, dizendo que ia levá-lo para a minha loja. — Que aparência tem? — Pálido, magro, cabelos escuros, narigudo. — Olhos azuis? — Azul-claros. — E que idade tinha a mãe, quarenta e poucos? — Eu lhe disse? — Não. — Então, como você sabe? — Não posso falar agora. Há pessoas me esperando. Até a vista, Gabriel.

Passe bem. O telefone tocou de novo. A telefonista informou que o número de Klaus

ainda não respondia. Liebermann disse-lhe que faria outra chamada mais tarde.

Dirigiu-se à sala de jantar, sentindo-se tonto e vazio, como se as partes vivas do seu organismo estivessem em outro lugar (em Auschwitz?) e somente suas roupas, pele e cabelo ali em Worcester, jantando com aquela gente tão despreocupada.

Perguntou e respondeu às questões habituais, contou as histórias habituais. Comeu o suficiente para não desgostar Dolly Labowitz.

Foram para o templo em dois carros. Ele proferiu a conferência, respondeu às perguntas, assinou os livros.

Quando regressaram à casa, fez a chamada para Klaus. — São cinco da manhã lá — lembrou-lhe a telefonista. — Eu sei — respondeu. Klaus atendeu, sonolento e confuso.

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— O quê? Sim? Boa noite! Onde você está? — Em Massachusetts, na América. Que idade tinha a viúva de Trittau? — O quê? — Que idade tinha a viúva de Trittau? Frau Schreiber. — Deus meu! Não sei, era difícil dizer, ela tinha um bocado de

maquilagem. Muito mais moça que ele, entretanto. Trinta e muitos ou quarenta e poucos.

— Com um filho de cerca de catorze? — Por volta dessa idade. Pouco amistoso para comigo, mas não se pode

culpá-lo. Ela mandou-o para a casa da irmã, a fim de que pudéssemos "conversar em particular".

— Descreva-o. Houve uma pausa. — Magro, na altura do meu queixo, olhos azuis, cabelos castanho-

escuros, narigudo. Pálido. O que está acontecendo? Liebermann passou os dedos pelos botões quadrados do telefone.

Redondos ficariam melhor, pensou. Quadrados, não fazia sentido. — Herr Liebermann? — Não é uma caçada inútil — disse ele. — Encontrei a ligação. — Deus do céu! Qual é? Ele inspirou profundamente e depois soltou a respiração. — Eles têm o mesmo filho. — O mesmo o quê? — Filho! O mesmo filho! Exatamente o mesmo menino! Eu o vi aqui e

em Gladbeck, você o viu aí. E ele está em Göteborg, Suécia, e em Bramminge, Dinamarca. Exatamente o mesmo menino! Toca um instrumento musical, ou então desenha. E a mãe tem sempre quarenta e um, quarenta e dois. Cinco mães diferentes, cinco filhos diferentes; mas o filho é o mesmo, em diferentes lugares.

— Não... compreendo. — Nem eu! A ligação deveria nos fornecer o motivo, não é? Em vez

disso, a coisa está mais maluca do que quando começamos! Cinco meninos exatamente iguais!

— Herr Liebermann... acho que talvez sejam seis. Frau Rausenberger, de Freiburg, tem quarenta e um ou dois. E um filho jovem. Não o vi, nem perguntei sua idade — não pensei que tivesse importância —, mas ela disse que talvez ele fosse para Heidelberg também. Não para estudar direito, mas para seguir a carreira de escritor.

— Seis — repetiu Liebermann. O silêncio prolongou-se entre eles. Mais ainda.

— Noventa e quatro? — Seis já é impossível — tornou Liebermann. — Por que não, então?

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Mas, ainda que fosse possível, e não o é, por que haviam de estar matando os pais? Chego quase a pensar que vou dormir esta noite e acordar em Viena na noite em que tudo isso começou. Sabe qual era o interesse principal de Mengele em Auschwitz? Gêmeos. Ele matou milhares deles, "para estudos", a fim de aprender como gerar arianos perfeitos. Quer me fazer um favor?

— Claro! — Vá a Freiburg novamente, e dê uma olhada no garoto. Veja se não é

igualzinho ao de Trittau. Depois me diga se estou maluco ou não. — Irei hoje. Onde poderei encontrá-lo? — Eu telefonarei para você. Boa noite, Klaus. — Bom dia. Mas uma boa noite para você. Liebermann pousou o fone. — Mr. Liebermann? — Dolly Labowitz sorria-lhe da porta. — Gostaria

de assistir ao noticiário conosco? E comer uma sobremesinha? Um doce ou uma fruta?

Os seios de Hannah haviam secado, Dena estava chorando, por isso era

natural que Hannah se preocupasse. Muito compreensível. Mas haveria algum motivo para mudar o nome de Dena? Hannah insistia nisso.

— Não discuta comigo — dizia ela. — De agora em diante, vamos chamá-la Frieda. É o nome perfeito para um bebê, depois disso terei leite de novo.

— Não faz sentido, Hannah — tornou ele, paciente, andando com dificuldade ao seu lado, através da neve. — Uma coisa nada tem a ver com a outra.

— O nome dela será Frieda — anunciou Hannah. — Vamos mudá-lo legalmente.

A neve abriu-se numa garganta profunda, adiante, e ela deslizou para dentro, Dena em prantos nos seus braços. Oh, Deus! Ele olhou a neve, agora compacta, e achou-se deitado de barriga para cima na escuridão, numa cama, num quarto. Worcester. Labowitz. Seis meninos. Dena crescida, Hannah morta.

Que sonho. De onde tirara aquilo? Frieda ainda por cima! E Hannah e Dena deslizando para dentro daquele abismo...

Permaneceu imóvel por um minuto, desfazendo com o bater das pálpebras a terrível visão, e em seguida levantou-se; uma luz clara recortava-se por baixo das persianas móveis da janela. Foi ao banheiro.

Não acordara uma vez sequer durante a noite, realmente dormira bem. Exceto quanto ao sonho.

Voltou ao quarto de dormir, chegou o relógio para junto de uma das janelas, apertando os olhos. Vinte para as sete.

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Voltou à cama tépida, aconchegou as cobertas e quedou-se refletindo, com um novo vigor.

Seis meninos idênticos — não, seis meninos muito parecidos, talvez idênticos — viviam em seis lugares diferentes, com seis mães diferentes, todas da mesma idade, e seis pais vítimas de morte violenta, todos da mesma idade, com ocupações semelhantes. Não era impossível, era real, um fato. Portanto, precisava ser encarado, esclarecido, compreendido.

Imóvel e tranqüilo, deixou a mente flutuar livre. Meninos. Mães. Os seios de Hannah. Leite.

O nome ideal para um bebê... Santo Deus, claro. Tinha de ser. Deixou que tudo se reunisse... Pelo menos, uma parte. Estava explicado o suco de grapefruit, e a maneira como a mulher o

havia despedido. A maneira como despedira o menino também. Pensara rápido, fingindo que os seus pés descalços e a falta do roupão constituíssem motivos de preocupação.

Permaneceu ali, na esperança de que o resto viesse. A parte principal, a de Mengele. Mas não.

Bem, um passo de cada vez... Levantou-se, tomou um banho de chuveiro, barbeou-se, aparou o bigode,

penteou os cabelos, tomou suas pílulas, escovou os dentes, colocou sua ponte. Vestiu-se e arrumou a mala.

Às sete e vinte, dirigiu-se à cozinha. A empregada Francês estava lá, e Bert Labowitz, em mangas de camisa, comia e lia. Após os cumprimentos matinais, sentou-se diante de Labowitz e propôs:

— Tenho de ir a Boston mais cedo do que pensava. Posso ir com você? — Certamente — respondeu Labowitz. — Sairei às cinco para as oito. — Perfeito. Preciso dar um telefonema para Lenox. — Aposto como alguém o avisou a respeito de Dolly, da maneira como

ela dirige. — Não, é que surgiu um dado novo. — Gostará mais da viagem vindo comigo. Às quinze para as oito, na biblioteca, ele telefonou para Mrs. Curry. — Alô? — Bom dia, é Yakov Liebermann de novo. Espero não tê-la acordado. Pausa.

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— Eu já tinha levantado. — Como está seu filho esta manhã? — Não sei, ainda está dormindo. — Isso é bom. É a melhor coisa, bastante sono. Ele não sabe que é

adotado, sabe? Por isso é que ficou nervosa quando eu lhe disse que ele tinha um gêmeo.

Silêncio. — Não fique nervosa, Mrs. Curry. Não vou dizer a ele. Se quiser manter

segredo, não direi uma palavra. Diga-me só uma coisa, por favor. É muito importante. Conseguiu-o através de uma mulher chamada Frieda Maloney?

Silêncio. — Conseguiu, ja? — Não! Espere um minuto. — O ruído do fone sendo arriado, passos se

afastando. Silêncio. Passos voltando. Suavemente: — Alô? — Sim? — Nós o conseguimos através de uma agência. Em Nova York. Foi uma

adoção perfeitamente legal. — Por intermédio da Agência Rush-Gaddis? — Sim. — Ela trabalhou lá de 1960 a 1963. Frieda Maloney. — Jamais ouvi este nome antes! Por que se intromete desta maneira?

Que diferença faz se ele tiver mesmo um gêmeo? — Não tenho certeza. — Então, não me importune de novo! E não se aproxime de Jack! —

Estalido do fone. Silêncio. Bert Labowitz levou-o ao Aeroporto Logan e ele pegou o vôo das nove,

da ponte aérea para Nova York. Às dez e quarenta, estava no gabinete da assistente do diretor-executivo

da Agência de Adoção Rush-Gaddis, Mrs. Teague, uma mulher de cabelos grisalhos, magra e bonita.

— Nenhuma — disse-lhe ela. — Nenhuma? — Nenhuma. Ela não selecionava casos. Carecia de habilitações para

isso. Era uma arquivista. Evidentemente, seu advogado, quando ela lutava contra a extradição, tentou criar-lhe aspecto mais favorável, por isso insinuou que ela desempenhava um papel mais importante aqui do que na realidade. Mas ela era simplesmente arquivista. Cientificamos os advogados do governo — naturalmente, estávamos bastante ansiosos para colocar nossas ligações com ela em sua verdadeira perspectiva — e o nosso chefe de pessoal foi convocado como testemunha. Entretanto, ela jamais foi chamada. Pensamos em divulgar posteriormente alguma forma de declaração ou

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informe, mas acabamos decidindo que, naquela altura, o melhor era simplesmente deixar o assunto morrer.

— Então ela não procurava lares para os bebês. — Liebermann puxou o lóbulo de sua orelha.

— Nenhum — respondeu Mrs. Teague. Sorriu para ele. — E o senhor está calçando o sapato no pé errado: trata-se de uma questão de encontrar bebês para os lares. A procura excede de muito a oferta. Especialmente a partir da modificação das leis sobre o aborto. Só conseguimos atender uma pequena fração das pessoas que a nós recorrem.

— E naquela época também? De 1960 a 1963? — Então e sempre, mas atualmente estamos na pior fase. — Muitos pedidos? — Mais de trinta mil no ano passado. De todas as partes do país. Do

continente, para ser mais exata. — Permita-me indagar-lhe o seguinte — aventou Liebermann. — Um

casal vem procurá-la, ou lhe escreve, nesse período de 1961-62. Gente boa, em boa situação. Ele é funcionário público, emprego seguro. Ela — agora deixe-me pensar um segundo — ela... tem cerca de vinte e oito ou vinte e nove anos, e ele cinqüenta e dois. Que possibilidades teriam de arranjar um bebê com a senhora?

— Nenhuma — respondeu Mrs. Teague. — Não aceitamos pedidos quando o marido tem essa idade. Quarenta e cinco é o nosso limite, e só chegamos a tanto quando existem fatores especiais. Aceitamos geralmente casais com trinta e poucos — com idade bastante para serem estáveis no casamento e suficientemente jovens para assegurar à criança uma assistência contínua dos pais. Ou uma promessa disso, diria eu.

— Então, onde um casal como eu descrevi conseguiria um bebê? — Não por intermédio da Rush-Gaddis. Algumas outras agências são

mais complacentes. E está claro que exista o mercado negro. O advogado ou médico poderá saber de uma adolescente grávida que não deseje abortar. Ou que possa ser paga para não fazer isso.

— Mas caso tenham recorrido à senhora, a senhora os recusou. — Sim. Nunca aceitamos alguém com mais de quarenta e cinco anos.

Existem milhares de casais mais convenientes, rezando, na expectativa. — E os pedidos recusados — aventurou Liebermann — talvez fossem arquivados por Frieda Maloney, não? — Por ela ou algum outro de nossos empregados — esclareceu Mrs.

Teague. — Guardamos todos os pedidos e a correspondência durante três anos. Cinco, naquela época, mas atualmente dispomos de pouco espaço.

— Obrigado. — Liebermann levantou-se com a pasta. — A senhora me auxiliou bastante. Agradeço-lhe muito.

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Numa pequena cabine telefônica em frente ao Museu Guggenheim, com a pasta e a mala ao seu lado, na calçada, ele telefonou para Mr. Goldwasser, da agência de conferências.

— Tenho péssimas notícias. Preciso ir à Alemanha. — Ah, meu Deus. Quando? — Agora. — Não pode! Falará esta noite na Universidade de Boston! Onde é que

você está? — Em Nova York. Esta noite estarei num avião. — Você não pode! Aceitou o contrato! Eles venderam os ingressos! E

amanhã... — Eu sei, eu sei! Julga que me agrada cancelar desse jeito? Julga que

não sei que é uma dor de cabeça para o senhor e para eles, e que poderia até mesmo processar-me? Trata-se...

— Ninguém está falando em... — Trata-se de questão de vida ou morte, Mr. Goldwasser. Vida ou

morte. Talvez até mais. — Que chateação! Quando volta? — Não sei. Talvez tenha de permanecer na Alemanha por algum tempo.

E depois, ir para outro lugar. — Quer dizer que está cancelando todo o resto da temporada? — Acredite-me, se não tivesse que... — Isso só me aconteceu uma vez em dezoito anos, e então se tratava de

um cantor, e não de uma pessoa responsável como você. Escute, Yakov, admiro-o e quero muito bem a você. Estou falando não apenas como seu representante, mas como ser humano, um outro judeu. Peço-lhe que pense com muito cuidado: se cancelar toda uma temporada dessa maneira, de um momento para o outro, como poderemos continuar a representá-lo? Ninguém vai querer ser seu empresário. Nenhum grupo irá contratá-lo. Estará acabado como conferencista nos Estados Unidos da América. Imploro-lhe: reflita, por favor.

— Já refleti enquanto o senhor falava — respondeu ele. — Tenho de ir. Antes não tivesse!

Tomou um táxi para o Aeroporto Kennedy e trocou a sua passagem de volta para Viena por uma para Düsseldorf, via Frankfurt: no primeiro vôo disponível, com partida marcada para as seis horas.

Comprou um exemplar do livro de Farago sobre Bormann e passou a tarde junto a uma janela, lendo.

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Cinco Uma denúncia acusando Frieda Altschul Maloney e mais oito pessoas de

assassinato em massa no campo de concentração de Ravensbrück era esperada a qualquer momento. Por isso, quando, na sexta-feira, 17 de janeiro, Yakov Liebermann se apresentou nos escritórios dos advogados de Frau Maloney, Zweibel & Fassler, de Düsseldorf, não recebeu acolhimento cálido, nem sequer à temperatura ambiente. Mas Joachim Fassler era suficientemente advogado para perceber que Liebermann não viera ali para vangloriar-se ou matar o tempo. Devia querer alguma coisa, e portanto alguma coisa iria oferecer, dando margem a que se pedisse algo em troca. Por isso, após ligar o seu gravador, Fassler recebeu Liebermann no escritório.

Tinha razão. O judeu queria ter um encontro com Frieda e interrogá-la acerca de certos assuntos de algum modo relacionados com as suas atividades de tempo de guerra e sem conexão com o seu próximo julgamento. Eram assuntos americanos, envolvendo o período de 1960 a 1963. Que assuntos americanos? Adoções que ela ou alguém mais selecionara, na base de informações obtidas dos arquivos da Agência Rush-Gaddis.

— Nada sei de tais adoções — declarou Fassler. — Frau Maloney sabe — retorquiu Liebermann. Se ela o recebesse e respondesse de maneira completa e sincera às suas

perguntas, ele revelaria a Fassler alguma coisa acerca dos depoimentos que iam ser prestados contra ela, através das testemunhas que localizara.

— Quais? — Não os seus nomes, apenas parte de seu depoimento. — Vamos, Herr Liebermann, sabe muito bem que não estou disposto a

comprar nabos em sacos. — O preço é bastante barato, não? Uma hora e pouco do tempo dela?

Não deve ter muito o que fazer, sentada numa cela. — Ela pode não querer falar sobre essas supostas adoções. — Por que não perguntar a ela? Existem três testemunhas cujo

depoimento eu conheço. O senhor poderá ouvi-las simplesmente no tribunal, ou então ter uma pré-estréia amanhã.

— A verdade é que não estou tão interessado assim. — Neste caso, acho que não vamos chegar a um acordo. Levou quatro dias para que tudo ficasse combinado. Frau Maloney

conversaria meia hora com Liebermann a respeito dos assuntos que

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interessassem a ele, contanto que: a) Fassler estivesse presente; b) não houvesse mais ninguém presente; c) nada fosse escrito; e d) Liebermann permitisse a Fassler revistá-lo, imediatamente antes do encontro, para ver se tinha um gravador. Em troca, Liebermann diria a Fassler tudo o que soubesse do provável depoimento das três testemunhas, dando a idade, sexo, ocupação e atuais condições físicas e mentais de cada uma, principalmente em relação a cicatrizes, deformidades ou invalidez resultantes de experiências em Ravensbrück. O depoimento e a descrição de uma testemunha seriam fornecidos antes do encontro. Os das outras duas, após o mesmo. Acordo de ambas as partes.

Na manhã de quarta-feira, dia 22, Liebermann e Fassler, no carro-esporte cinza-metálico deste último, dirigiram-se à prisão federal de Düsseldorf, onde Frieda Maloney estivera confinada desde a sua extradição dos Estados Unidos em 1973. Fassler, homem corpulento e bem-vestido, com os seus cinqüenta e poucos anos, estava tão corado quanto de costume, mas, ao se identificarem e serem admitidos, ainda não havia recobrado a arrogante segurança costumeira. Liebermann tratara com ele do depoimento da testemunha mais prejudicial, em primeiro lugar, na esperança de que o temor de que o pior estivesse para vir o tornasse, e através dele Frieda Maloney, ansioso de que o encontro não deixasse de ser satisfatório.

Um guarda levou-os de elevador e conduziu-os ao longo de um corredor atapetado, onde alguns guardas e inspetoras encontravam-se sentados em bancos, entre portas de nogueira marcadas com letras cromadas. O guarda abriu uma porta marcada com um G e introduziu Fassler e Liebermann numa sala quadrada, de paredes bege, com uma mesa de entrevistas redonda e várias cadeiras. Duas janelas, com cortinas de rede, forneciam luz em paredes adjacentes, uma delas com grades e a outra não, o que pareceu esquisito a Liebermann.

O guarda acendeu uma luz geral, fazendo pouca diferença no aposento já claro. Retirou-se, fechando a porta.

Eles colocaram seus chapéus e pastas em escaninhos, tiraram os sobretudos e os penduraram nos cabides. Liebermann ficou de braços estirados e Fassler revistou-o, com empenho e decisão. Apalpou os bolsos do seu sobretudo pendurado e pediu-lhe que abrisse a pasta. Liebermann suspirou, mas desafivelou-a e abriu-a. Exibiu documentos, o livro de Farago, fechou-a e voltou a passar-lhe a fivela.

Esclareceu suas dúvidas com relação às janelas — a que não tinha grades dava para um pátio de muros altos lá embaixo, a gradeada tinha um telhado escuro bem próximo — e em seguida sentou-se à mesa, de costas voltadas para a janela sem grades. Imediatamente, porém, levantou-se, para não ficar embaraçado quando Frieda Maloney entrasse.

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Fassler abriu um pouco a janela gradeada e pôs-se a olhar por ela, afastando a cortina bege de rede.

Liebermann cruzou os braços, de olhos postos numa garrafa e copos envoltos em papel sobre a mesa, numa bandeja.

Ele dera informações sobre a ficha e paradeiro de Frieda Altschul às autoridades alemãs e americanas, em 1967. A ficha fizera parte do arquivo do Centro, e fora extraída de conversações e correspondência com dúzias de sobreviventes de Ravensbrück (entre eles as três futuras testemunhas). O paradeiro lhe fora fornecido por mais duas outras sobreviventes, irmãs, que haviam localizado sua antiga guarda num hipódromo de Nova York, tendo-a seguido até sua residência. Ele próprio nunca se encontrara com a mulher. Não lhe agradava a perspectiva de sentar-se à mesma mesa com ela. Independentemente de tudo o mais, sua irmã do meio, Ida, morrera em Ravensbrück, sendo muito possível que Frieda Altschul Maloney tivesse colaborado na sua morte.

Tirou Ida da mente. Retirar tudo do pensamento, exceto a Agência Rush-Gaddis e os seis meninos ou mais que pareciam idênticos. Uma antiga arquivista da Rush-Gaddis vem aí, disse consigo. Vamos sentar em torno desta mesa e conversar um pouco, talvez eu descubra que diabo está acontecendo.

Fassler voltou-se da janela, arregaçou o punho, franziu o olhar para o relógio.

A porta abriu-se e Frieda Maloney entrou, de uniforme azul-claro, mãos nos bolsos. Uma inspetora sorriu por cima de seu ombro e disse:

— Bom dia, Herr Fassler. — Bom dia — respondeu Fassler, adiantando-se. — Como vai? — Bem, obrigada — tornou a inspetora. Sorriu para Liebermann e

terminou fechando a porta atrás de si. Fassler tomou Frieda Maloney pelos ombros, beijou-lhe o rosto e levou-a

a um canto, falando baixinho. Ela desaparecera atrás de sua corpulência. Liebermann limpou a garganta e sentou-se, chegando a cadeira para mais

perto da mesa. Acabara de ver o que já conhecia de fotografias: uma mulher de meia-

idade e aparência comum. Mais para pequena, cabelos grisalhos levantados dos lados e ondulados em cima. Pele de aspecto doentio, de um branco pardacento, queixo largo, boca desanimada. Olhar fatigado, porém resoluto. No uniforme da prisão, Frieda Maloney poderia passar por uma camareira ou garçonete sobrecarregada de trabalho. Algum dia, pensou, gostaria de encontrar um monstro que parecesse um monstro.

Agarrou a grossa borda de madeira da mesa e tentou ouvir o que Fassler estava dizendo.

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Eles dirigiram-se à mesa. Olhou para Frieda Maloney, e ela — enquanto Fassler puxava a cadeira

em frente — fitou-o, olhos azuis perscrutadores, boca de lábios finos caídos. Cumprimentou com a cabeça, sentando-se.

Ele devolveu o cumprimento. Ela esboçou um sorriso de agradecimento a Fassler e, com os cotovelos

sobre os braços da cadeira, tamborilou com os dedos na beirada da mesa, primeiro os de uma mão, depois os da outra, bastante depressa. Em seguida, parou e descansou-os ali, contemplando-os.

Liebermann olhou também para eles. — São exatamente, agora — Fassler, sentado à direita de Liebermann,

consultou o relógio em seu pulso erguido —, vinte e cinco para as doze. — Olhou para Liebermann.

Liebermann olhou para Frieda Maloney. Ela olhou para ele. Suas sobrancelhas soergueram-se. Ele verificou que não conseguia falar. Nenhum alento sobrava nele — só

pensamentos em torno de Ida. Seu coração batia forte. Frieda Maloney mordeu o lábio inferior, olhou para Fassler, de novo

para Liebermann. — Não me oponho a falar acerca da questão dos bebês — disse. — Fiz

muita gente feliz. É coisa que em nada me envergonha. — Tinha um suave acento do sul da Alemanha. Mais agradável de ouvir do que o de Fassler, áspero, de Düsseldorf. — E quanto à Organização dos Camaradas — acrescentou, com desdém —, não são mais meus camaradas. Se o fossem, eu não estaria aqui, não é verdade? Estaria na Amérrica to Sul — seus olhos dilataram-se — lefanto a poa fita... — Ergueu a mão acima da cabeça e estalou os dedos, gingando o torso, num arremedo do ritmo latino.

— Acho que seria melhor — Fassler dirigiu-se a ela — que você contasse a ele tudo que contou para mim. — Voltou-se para Liebermann. — E aí então o senhor poderia fazer as perguntas que quisesse. Conforme o tempo permita. Concordam?

O alento voltou. — Sim — assentiu Liebermann. — Contanto que haja tempo suficiente

para as perguntas. — Você não vai contar de fato os minutos, vai? — indagou Frieda

Maloney a Fassler. — Certamente que vou — retorquiu ele. — Acordo é acordo. — E para

Liebermann: — Haverá tempo suficiente, não se preocupe. — Olhou para Frieda Maloney e acenou com a cabeça.

Ela cruzou as mãos sobre a mesa, olhando para Liebermann. — Um homem da Organização entrou em contato comigo — declarou

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ela. — Em 1960, na primavera. Um tio meu da Argentina falara-lhes a meu respeito. Ele já morreu. Queriam que eu me empregasse numa agência de adoção. Alois — isto é, o homem — tinha uma lista de três ou quatro delas. Qualquer uma poderia servir, contanto que fosse um serviço através do qual eu pudesse consultar os arquivos. "Alois" foi o único nome que ele me deu, sem sobrenome. Mais de setenta, de cabeça branca. O tipo do antigo soldado, de postura muito empertigada. — Seus olhos interrogaram Liebermann.

Ele permaneceu impassível, e ela recostou-se na cadeira, examinando as unhas.

— Fui a todos os lugares — continuou. — Não havia vagas. Após o verão, porém, Rush-Gaddis chamou-me e me contratou. Como arquivista. — Ela sorriu, divertida. — Meu marido pensou que eu estava maluca, aceitando emprego em Manhattan. Trabalhava então num ginásio, a apenas onze quarteirões de casa. Disse-lhe que na Rush-Gaddis me haviam prometido que dentro de um ano mais ou menos eu estaria...

— Apenas o essencial, está bem? — atalhou Fassler. Frieda Maloney franziu a testa, assentiu com a cabeça.

— Muito bem, então. Rush-Gaddis. — Olhou para Liebermann. — O que fiz lá consistia em percorrer a correspondência e os arquivos, à procura de pedidos em que o marido houvesse nascido entre 1908 e 1912 e a esposa entre 1931 e 1935. O marido tinha de ter emprego no serviço público, e os dois deveriam ser cristãos, brancos e de origem nórdica. Foi o que Alois me disse. Sempre que achava um, e isso ocorria apenas uma ou duas vezes por mês, copiava-o na máquina juntamente com toda a correspondência trocada entre o casal e a Rush-Gaddis. Preparava duas cópias, uma para Alois e outra para mim. A dele, enviava para a caixa postal que me indicara.

— Onde? — indagou Liebermann. — Ali mesmo, em Manhattan. Na Estação Planetarium, no West Side.

Continuei fazendo isso — procurar o tipo certo de pedidos e expedi-los — durante todo o tempo que estive lá. Depois de um ano, mais ou menos, ficou ainda mais difícil, pois já vasculhara os arquivos nessa altura e só tinha os novos pedidos para consultar. O dado referente ao serviço público se modificara, então: bastava que o emprego fosse semelhante ao serviço público. O homem deveria pertencer a uma grande organização e exercer alguma autoridade. Um avaliador de companhia de seguros, por exemplo. Então, tive de recorrer aos arquivos novamente. Ao todo, devo ter expedido quarenta ou quarenta e cinco.propostas durante os três anos. Cópias de propostas.

Ela inclinou-se para diante e pegou um dos copos envoltos em papel da bandeja, girando-o nas mãos.

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— Entre... vejamos, o Natal de 1960 e o fim do verão de 1963, quando terminei e saí, era assim que acontecia: Alois ou um outro homem, Willi, telefonava para mim. Geralmente Willi. Dizia: "Veja se... 'os Smith', da Califórnia, querem um para março. Ou qualquer outro mês, geralmente dois meses depois. Consulte 'os Brown', de Nova Jersey, também". Às vezes me dava três nomes. — Olhou para Liebermann, explicando: — Gente cujos pedidos eu expedira anteriormente, H Ele assentiu.

— Pois bem. Aí, eu telefonava para os Smith e os Brown. — Ela retirou o papel que envolvia o topo do copo. — Eu lhes dizia que um antigo vizinho deles me informara que estavam querendo um bebê. Estariam ainda interessados? Quase sempre estavam. — Olhou desafiadoramente para Liebermann. — Não apenas interessados. Rejubilantes. As mulheres especialmente. — Segurou o copo na mão, retirando-o pouco a pouco do invólucro. — Eu lhes dizia que poderia arranjar um, uma criança branca, de boa saúde, com algumas semanas de nascida, em março ou quando fosse. Com documentos de adoção do Estado de Nova York. Mas primeiro tinham de me enviar o mais cedo possível relatórios médicos completos — dava-lhes o número da caixa postal de Alois — e também teriam de prometer jamais dizer à criança que fora adotada. A mãe fazia questão disso, dizia eu. E evidentemente teriam de pagar-me alguma coisa quando viessem apanhar o bebê, se o conseguissem. Mil, geralmente, às vezes mais, se pudessem. Isso eu podia verificar através da proposta. O bastante para que parecesse um ajuste comum de mercado negro.

Amassou o invólucro de papel e colocou-o na bandeja, tirando a rolha da garrafa.

— Algumas semanas depois eu recebia novo telefonema. "Smith não serve. Brown poderá recebê-lo a 15 de março." Ou talvez... — Ela inclinou a garrafa sobre o copo; inclinou mais; nada saiu. — Típico — resmungou, virando de cabeça para baixo a garrafa preta. — Típico da maneira como este maldito lugar é dirigido! Os copos são envoltos em papel, mas não há água na droga da garrafa! Deus do céu! — Depositou a garrafa com violência sobre a bandeja, fazendo com que os copos pulassem.

Fassler levantou-se. — Vou providenciar — disse, apanhando a garrafa. — Prossiga. —

Dirigiu-se à porta. Frieda Maloney voltou-se para Liebermann: — Podia lhe contar umas coisas acerca da enorme incompetência que

existe aqui... Céus! Pois bem. Sim, aí ele me dizia quem receberia o bebê e quando. Ou talvez os dois casais servissem, e então ele me diria para telefonar para o segundo e dizer-lhes que era tarde demais, mas que eu sabia de uma outra moça que esperava para junho. — Rolou o copo entre as

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palmas da mão, de lábios franzidos. — Na noite em que o bebê era entregue — prosseguiu — tudo era

preparado de antemão com muito cuidado. Tanto por mim como por Alois ou Willi, tanto por mim como pelo casal. Eu estaria num aposento do Motel Howard Johnson, no Aeroporto Kennedy — antigo Idlewild —, usando o nome de Elizabeth Gregory. O bebê chegava às minhas mãos por intermédio de um jovem casal ou de uma mulher sozinha, às vezes uma aeromoça. Alguns deles trouxeram mais de um — em ocasiões diferentes, quero dizer —, mas geralmente em cada ocasião vinha uma pessoa diferente. Traziam os papéis também. Exatamente como se fossem verdadeiros, com os nomes do casal preenchidos. Uma hora ou duas depois, o casal aparecia e apanhava o bebê. Ficavam radiantes. Cheios de gratidão para comigo. — Olhou para Liebermann. — Boas pessoas, que dariam bons pais. Pagavam-me e prometiam — eu os fazia jurar sobre a Bíblia ali mesmo — jamais dizer à criança que era adotada. Eram sempre meninos. Umas graças. Eles os apanhavam e iam * embora.

— Sabia de onde eles vinham? — indagou Liebermann. — Originalmente, quero dizer? — Os meninos? Do Brasil. — Frieda Maloney desviou o olhar. — As

pessoas que os traziam eram brasileiras — acrescentou, estendendo a mão —, e as aeromoças, da Varig, uma linha aérea brasileira. — Recebeu a garrafa de Fassler, chegou-a ao copo, despejou a água. Fassler deu a volta à mesa e sentou-se.

— Do Brasil... — disse Liebermann. Frieda Maloney bebeu, pousando a garrafa na bandeja. Bebeu, arriou o

copo, passou a língua nos lábios. — Quase sempre tudo transcorria com a precisão de um cronômetro. —

Certa vez o casal não apareceu. Telefonei e me disseram que haviam mudado de idéia. Aí então levei o bebê para minha casa e providenciei a vinda do casal seguinte. Documentos novos outra vez. Disse a meu marido que houvera uma confusão na Rush-Gaddis e que ninguém tinha lugar para a criança. Ele não sabia nada de nada. Até hoje não sabe. E eis tudo. Ao todo, deve ter havido cerca de vinte bebês. Alguns, próximos uns dos outros, no começo; depois disso, um a cada dois ou três meses. — Ergueu o copo e tomou um gole.

— Doze minutos — anunciou Fassler, olhando o relógio. Sorriu para Liebermann. — Está vendo? Ainda tem dezessete minutos.

Liebermann olhou para Frieda Maloney. — Que aparência tinham os bebês? — perguntou-lhe. — Eram lindos — respondeu ela. — Olhos azuis, cabelos escuros. —

Eram todos parecidos, mais parecidos do que de costume. Do tipo europeu,

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não brasileiro: pele clara e olhos azuis. — Disseram-lhe que eles eram do Brasil ou deduziu isso apenas de... — Nada me disseram sobre eles. Apenas a noite e a hora em que seriam

trazidos para o motel. — De quem seriam os bebês, segundo acha? — A opinião dela — atalhou Fassler — certamente não tem a menor

importância. Frieda Maloney teve um gesto dissuasivo. — Que diferença faz? — redargüiu, e dirigiu-se a Liebermann: —

Imaginei que fossem filhos de alemães da América do Sul. Filhos ilegítimos, talvez de moças alemãs e rapazes sul-americanos. Quanto ao motivo por que a Organização os estaria passando para a América do Norte, e escolhendo as famílias tão cuidadosamente, disso eu não fazia a mínima idéia.

— Não perguntou? — Bem... no princípio, quando Alois me falou do tipo de propostas a que

devia dar preferência, perguntei-lhe para que tudo aquilo. Ele ordenou-me que não fizesse perguntas, apenas fizesse o que me mandavam. Pela pátria.

— E estou certo de que você sabia — lembrou-lhe Fassler — que, se não colaborasse, ele poderia expô-la ao tipo de vexame que acabou ocorrendo anos depois.

— Sim, claro — retorquiu Frieda Maloney. — Eu sabia disso. Naturalmente.

Liebermann aventurou: — Os vinte casais a quem entregou os bebês... — Cerca de vinte — retificou Frieda Maloney. — Talvez um pouco

menos. — Eram todos americanos? — Está querendo dizer... dos Estados Unidos? Não, alguns eram

canadenses. Cinco ou seis. Os demais, dos Estados Unidos. — Nenhum europeu? — Não. Liebermann permaneceu calado, esfregando o lóbulo da orelha. Fassler olhou para o relógio. — Lembra-se dos nomes deles? — indagou Liebermann. Frieda Maloney sorriu. — Foi há treze, catorze anos. Lembro-me de um, Wheelock, porque eles

me deram um cachorro e telefonei-lhes algumas vezes, pedindo conselhos. Eram criadores de Dobermanns. Os Henry Wheelock, de New Providence, Pensilvânia. Falei que estávamos pensando em arranjar um, por isso trouxeram Sally, então com apenas dez semanas, quando vieram buscar o bebê. Um cão lindo. Ainda a temos. Meu marido ainda a tem.

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— Guthrie? — indagou Liebermann. Frieda Maloney fitou-o e acenou com a cabeça. — Sim — assentiu. — O primeiro foi Guthrie, isso mesmo. — De Tucson. — Não. De Ohio. Não, Iowa. Sim, Ames, de Iowa. — Eles mudaram-se para Tucson — asseverou Liebermann. — Ele

morreu num acidente em outubro último. — Ah, sim? — Quem veio em seguida, depois dos Guthrie? Frieda Maloney meneou

a cabeça. — Nessa altura houve vários, com intervalo de apenas duas semanas. — Curry? Ela olhou para Liebermann. — Sim — confirmou. — De Massachusetts. Mas não logo depois dos

Guthrie. Espere um minuto agora. Os Guthrie foram no fim de fevereiro, em seguida veio outro casal, de um lugar do sul... Macon, acho, e depois os Curry. Em seguida os Wheelock.

— Duas semanas depois dos Curry? — Não, dois ou três meses. Após os três primeiros, começaram a se

distanciar. — Você morreria se eu tomasse nota disso? — indagou Liebermann a

Fassler. — Não vai prejudicá-la; isso aconteceu na América, há tanto tempo. Fassler carregou o sobrolho e suspirou. — Está bem — assentiu. — Por que é tão importante? — indagou Frieda Maloney. Liebermann retirou a caneta e encontrou um pedaço de papel no bolso. — Como se escreve "Wheelock"? — perguntou. Ela soletrou para ele. — New Providence, Pensilvânia? — Sim. — Procure lembrar-se: exatamente quanto tempo depois dos Curry eles

apanharam o seu bebê? — Não me lembro exatamente. Dois ou três meses. Não havia um

esquema regular. — Mais perto de dois ou de três meses? — Ela não se lembra — atalhou Fassler. — Está bem — acedeu Liebermann. — Quem veio depois dos

Wheelock? Frieda Maloney suspirou. — Não me lembro quem veio e quando. Foram vinte, num espaço de

dois anos e meio. Houve um Truman, que não era parente de Truman, o presidente. Acho que foi um dos casais canadenses. E houve um... "Corwin"

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ou "Corbin", qualquer coisa parecida. Corbett. Ela lembrou-se de mais três nomes e de seis cidades. Liebermann

anotou-os. — Tempo — anunciou Fassler. — Quer ter a gentileza de me esperar lá

fora? Liebermann pôs de lado a caneta e o papel. Olhou para Frieda Maloney e

acenou com a cabeça. Ela respondeu ao cumprimento. Ele levantou-se e dirigiu-se ao cabide. Pôs o sobretudo no braço e tirou o

chapéu e a pasta do escaninho. Caminhou para a porta, parou, ficou imóvel e voltou-se.

— Gostaria de fazer mais uma pergunta. Eles o fitaram. Fassler acenou afirmativamente. Liebermann olhou

Frieda Maloney e indagou: — Quando é o aniversário do seu cachorro? Ela olhou-o, atônita. — Sabe? — insistiu ele. — Sim — respondeu ela —, 26 de abril. — Obrigado — tornou ele, e para Fassler: — Por favor, não demore

muito, quero acabar logo com isso. Voltou-se, abriu a porta e saiu para o corredor. Sentou-se no banco, fazendo alguns cálculos com auxílio da caneta e de

um calendário de bolso. A inspetora, sentada ao lado do seu casaco dobrado, indagou:

— Acha que vai conseguir libertá-la? — Não sou advogado. Fassler, enfiando o seu carro por entre o tráfego engarrafado, declarou: — Estou completamente aturdido. Quer me dizer, por favor, o que fazia

a Organização nesse negócio dos bebês? — Desculpe — retorquiu Liebermann —, mas isso não faz parte do

nosso acordo. Como se ele soubesse. Voltou a Viena. Onde, em face de um mandado judicial, as escrivaninhas

e arquivos estavam sendo transferidos para um local encontrado por Max, dois quartos pequenos num prédio em ruínas do 15.° Distrito. Portanto, ele tinha de se mudar imediatamente — Lili já estava procurando — para um apartamento menor e mais barato (adeus, Glanzer, seu patife). E onde, com uma coisa e outra — dois meses de adiantamento para os escritórios, honorários de advogados, despesas de mudanças, conta do telefone —, mal restava em caixa para comprar uma passagem para Salzburg, quanto mais

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para Washington. Que era para onde tinha de ir, na semana depois da próxima, 4 ou 5 de

fevereiro. Deu explicações a Max e Ester, enquanto eles tornavam a nova sede

mais parecida com o Centro de Informação de Crimes de Guerra e menos com H. Haupt & Filho, Novidades em Propaganda.

— Os Guthrie e os Curry — disse, raspando o segundo H da vidraça da porta com uma gilete envolta em um pedaço de papel — obtiveram seus bebês com cerca de quatro semanas de intervalo, no final de fevereiro e no final de março, em 1961. E Guthrie e Curry foram mortos com quatro semanas de intervalo, um dia adiante na mesma ordem. Os Wheelock obtiveram o seu bebê por volta de 5 de julho — isso eu sei porque eles deram a Frieda Maloney um cachorrinho de dez semanas de idade, nascido a 26 de abril...

— O quê? — Ester voltou-se e olhou-o. Ela segurava um mapa junto à parede, enquanto Max pregava as tachas.

—...e do final de março a 5 de julho — prosseguiu Liebermann, raspando — são aproximadamente catorze semanas. Portanto, há uma boa probabilidade de que Wheelock venha a ser morto por volta de 22 de fevereiro, catorze semanas depois de Curry. E quero estar em Washington duas ou três semanas antes.

— Acho que estou seguindo seu raciocínio — disse Ester. — Como não seguir? Eles estão sendo mortos na mesma ordem em que

obtiveram os bebês, e no mesmo espaço de tempo. A pergunta é: por quê? A pergunta, achava Liebermann, teria de esperar. Acabar com os

assassinatos, qualquer que fosse o seu motivo, eis o que importava, e a sua melhor possibilidade de consegui-lo seria através do Departamento Federal de Investigações dos Estados Unidos. Eles não teriam dificuldades em confirmar que os dois homens mortos em "acidentes" eram pais de filhos parecidos, ilegalmente adotados, e que Henry Wheelock era um terceiro (ou quarto, se confirmassem a hipótese de um em Macon). Em 22 de fevereiro, aproximadamente, poderiam capturar o futuro matador de Wheelock e saber por intermédio dele as identidades, e talvez mesmo as datas dos outros cinco. (Liebermann acreditava agora que os seis matadores trabalhavam sozinhos, não aos pares, devido à proximidade no tempo dos assassinatos de Döring, Guthrie, Horve e Runsten — todos em países diferentes.)

Poderia também, mais facilmente, procurar o Departamento Federal de Investigações Criminais, de Bonn, uma vez que estava certo de que numa agência de adoção alemã (e uma inglesa e três escandinavas) uma Frieda Maloney pesquisara seus fichários e distribuíra bebês. Klaus achara o menino de Freiburg idêntico ao de Trittau, e o próprio Liebermann, quando

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em Düsseldorf, telefonara para as Frauen Döring, Rausenberger e Schreiber, obtendo como resposta ao "Diga-me, por favor, seu filho é adotivo?", dois "sim" surpresos e cautelosos, um furioso "não", e três ordens para se meter com a sua vida.

Mas em Bonn não teria nova vítima a apresentar, e a explicação de como fizera Frieda Maloney falar não seria bem recebida. Ele próprio tampouco seria bem recebido, ao contrário do que esperava em relação a Washington. Além do mais, nas profundezas de seu coração judeu, não confiava nas autoridades alemãs tanto quanto nas americanas, no que se referia a questões nazistas.

Portanto, Washington e o FBI. Sentou-se ao telefone, na nova sede, telefonando para velhos

colaboradores. — Não me agrada imprensá-lo desta maneira, mas, acredite-me, é

importante. É a respeito de alguma coisa que está acontecendo atualmente, envolvendo seis homens das ss e Mengele. — Inflação, alegavam eles. Recessão. Os negócios andavam péssimos. Começou a lembrar os pais mortos, os Seis Milhões — coisa que odiava fazer, utilizando a culpa como angariadora de fundos. Conseguiu algumas promessas. — Por favor, imediatamente — dizia. — É importante.

— Mas não é possível — ponderava Lili, pondo com a colher uma segunda porção avantajada de bolinhos de batata no seu prato. — Como pode haver tantos meninos parecidos?

— Querida — retorquia-lhe Max, do outro lado da mesa —, não diga que não é possível. Yakov viu. O seu amigo de Heidelberg viu.

— Frieda Maloney viu — assegurou Liebermann. — Os bebês eram todos parecidos, mais do que de costume.

Lili, virando-se para o lado, imitou o gesto de quem cospe. — Tomara que morra. — O nome que ela usou — informou Liebermann — — foi Elizabeth

Gregory. Tencionava perguntar-lhe se lhe sugeriram o nome ou ela própria o escolhera, mas esqueci.

— Qual a diferença? — indagou Max, mastigando. — "Gregory" — tornou Lili. — O nome que Mengele usou na

Argentina. — Ah, sim, claro. — Deve ter sido idéia dele — asseverou Liebermann. — Tudo deve ter

sido idéia dele, a operação toda. Ele endossou a coisa toda, ainda que não o pretendesse.

Chegou algum dinheiro — da Suécia e dos Estados Unidos — e Liebermann reservou uma passagem para Washington, via Frankfurt e Nova

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York, para terça-feira, 4 de fevereiro. Na noite de sexta-feira, 31 de janeiro, Mengele usava o nome Mengele.

Voara com os seus guarda-costas para Florianópolis, na ilha de Santa Catarina, mais ou menos a meio caminho entre São Paulo e Porto Alegre, onde, no salão de festas do Hotel Novo Hamburgo, decorado para a ocasião com suásticas e flâmulas vermelhas e negras, os Filhos do Nacional-Socialismo davam um jantar-dançante a cem cruzeiros por cabeça. Que emoção quando Mengele apareceu! Os nazistas importantes, os que haviam desempenhado papéis de grande importância no Terceiro Reich e eram conhecidos no mundo todo, costumavam mostrar-se esnobes com relação aos Filhos, recusando os seus convites sob pretexto de doença e fazendo comentários irritadiços a respeito do seu líder, Hans Stroop (que, até mesmo os Filhos reconheciam, às vezes excedia-se na sua imitação de Hitler). Mas ali estava o próprio Herr Doktor Mengele, em pessoa e de dinner jacket branco, apertando mãos, beijando rostos, sorrindo, rindo, repetindo novos nomes. Que gentileza a sua de vir! E como parecia saudável e feliz!

E estava. Por que não? Era o dia 31, não era? Amanhã pintaria mais três cruzes no quadro e completaria mais da metade da primeira coluna — dezoito. Comparecia a todos os bailes e festas realizados naqueles dias. Numa reação, é claro, à angústia e depressão pelas quais passara em novembro e início de dezembro, quando chegara a parecer que \

Liebermann, aquele canalha judeu, ia estragar tudo. Bebericando champanha naquele alegre salão de festas, repleto de admiradores arianos, alguns dos homens em uniformes nazistas (semicerrando os olhos, era Berlim nos anos 30), lembrava-se com assombro do estado em que se encontrava há menos de dois meses. Absolutamente dostoievskiano! Conspirando, planejando, providenciando como recobrar-se se a Organização o traísse (o que estiveram prestes a fazer, não havia dúvidas quanto a isso). Mas aí, Liebermann conduzira Mundt a um giro pela França, e Schwimmer, através de cidades erradas da Inglaterra; finalmente desistira, graças a Deus, ficando em casa, na suposição, sem dúvida, de que o seu jovem subordinado americano se enganara. (Graças a Deus, também, tinham chegado até ele, antes que houvesse de fato passado a fita para Liebermann.) Portanto, beberiquemos champanha e comamos estes deliciosos e pequenos não-sei-o-quê ("Um prazer estar aqui! Obrigado! "), enquanto o pobre Liebermann, segundo The New York Times, anda pelos rincões da América entregue ao que, pelo que se pode depreender nas entrelinhas da propaganda sob controle judaico, não passa de' um giro de conferências da mais ínfima importância. E é inverno lá! Neve, por favor, Deus; muita neve.

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Sentou-se no tablado, com Stroop à sua esquerda. Foi saudado por ele de forma bastante eloqüente — o homem não era o perfeito idiota que esperava — e voltou sua atenção para a maravilhosa loura à sua direita. A Miss Nazista do ano passado, eis o que ela era, o que não era de admirar. Embora de aliança de casada agora e — o olhar dele não se enganava — grávida de quatro meses. Marido no Rio, a negócios, e emocionada de estar sentada ao lado de tão ilustre... Quem sabe? Sempre poderia pernoitar, e regressar, glorioso, bem cedo.

Enquanto dançava com a grávida Miss Nazista, descendo aos poucos a mão em direção ao seu traseiro realmente magnífico, Farnbach aproximou-se, dançando, e cumprimentou:

— Boa noite! Como vai? Soubemos que o senhor estava aqui e viemos de penetra. Permite que lhe apresente minha esposa Use? Querida, Herr Doktor Mengele.

Manteve-se dançando no mesmo lugar e sorrindo, achando que bebera demais, mas Farnbach não desapareceu ou se transformou em alguma outra pessoa. Continuou Farnbach — tornou-se mais Farnbach, na verdade. Cabeça raspada, lábios grossos, apresentando-se, de olhar faminto, à Miss Nazista, enquanto a mulherzinha feiosa em seus braços tartamudeava coisas como "honra", "prazer" e "embora o senhor tenha tirado Bruno de mim!"

Parou de dançar, soltou os braços. Farnbach explicou-lhe, alegre: — Estamos no Excelsior. Uma pequena segunda lua-de-mel. Ele fitou-o e disse: — Você devia estar em Kristianstad. Preparando-se para matar

Oscarsson. Arquejo da mulher feiosa. Farnbach empalideceu, de olhos postos nele. — Traidor! — berrou ele. — Porco de uma... — As palavras não

bastavam. Atirou-se sobre Farnbach e agarrou-lhe o pescoço grosso. Empurrou-o de costas, de roldão por entre os dançarinos, estrangulando-o, enquanto as mãos de Farnbach puxavam-lhe os braços. O inqualificável estava agora de rosto vermelho, olhos azuis esbugalhados. Um grito de mulher, gente se voltando: "Oh, meu Deus!" Uma mesa deteve Farnbach, desequilibrando-se; gente recuou. Ele derrubou Farnbach, estrangulando-o. A mesa afinal tombou, despejando pratos e talheres, derramando sopa no crânio raspado de Farnbach, banhando-lhe o rosto arroxeado.

Mãos puxaram Mengele, mulheres berraram, a música estilhaçou-se e morreu. Rudi deu um arranco nos pulsos de Mengele, fitando-o, súplice. Largou-o, deixou que o pusessem de pé e os separassem, firmou-se nos pés.

— Este homem é um traidor! — gritou para todos. — Traiu a mim, traiu a vocês! Traiu a raça! Traiu a raça ariana!

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Um guincho da mulher feiosa, ajoelhada ao lado de Farnbach, enquanto, rubro e molhado, ele esfregava o pescoço, arquejante.

— Tem vidro na cabeça dele! — gritou ela. — Oh, meu Deus! Chamem um médico! Oh, Bruno, Bruno!

— Este homem devia ser morto — explicou Mengele, ofegante, aos homens ao seu redor. — Traiu a raça ariana. Recebeu uma missão a cumprir, um dever de soldado. Preferiu não o cumprir.

Os homens olhavam confusos e inquietos. Rudi esfregava os pulsos avermelhados de Mengele.

Farnbach tossiu, tentando dizer alguma coisa. Empurrou de seu rosto a mão da esposa que segurava um guardanapo e soergueu-se no braço, erguendo o olhar para Mengele. Tossiu, esfregando o pescoço. A esposa agarrava-lhe os ombros molhados.

— Não se mexa! — exclamou ela. — Oh, Deus! Onde é que tem um médico?

— Eles! — vociferou Farnbach. — Me chamaram! De volta! — Uma gota de sangue deslizou pela frente da sua orelha direita e transformou-se num pequeno brinco de rubi, pendurado, crescendo.

Mengele empurrou os homens, baixando o olhar. — Segunda-feira! — disse-lhe Farnbach. — Eu estava em Kristianstad!

Preparando as coisas para... — olhou para os demais, para Mengele — o que eu tinha de fazer!

— Seu brinco de sangue caiu. Um outro começou a crescer no seu lugar. — Eles me chamaram a Estocolmo e disseram

— olhou em direção à mulher, voltou os olhos para Mengele — a um conhecido meu que eu devia regressar. Para a sede da minha companhia. Imediatamente.

— Está mentindo — retrucou Mengele. — Não! — exclamou Farnbach. O seu brinco de sangue caiu. — Todos

voltaram! Um estava na... sede, quando cheguei. Dois já haviam estado. Outros dois iam chegar.

Mengele fitou-o, engolindo. — Por quê? — indagou. — Não sei — respondeu-lhe Farnbach, com desdém. — Não faço mais

perguntas. Faço como me mandam. — Onde é que tem um médico? — guinchava a esposa. — Já está a caminho — anunciou alguém da porta. — Eu... sou médico — proferiu Mengele. — Não chegue perto dele! Olhou a esposa de Farnbach. — Cale-se — disse. Olhou em torno. — Alguém tem um par de pinças? No gabinete do diretor social, retirou lascas de vidro da nuca de

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Farnbach com pinças e uma lente de aumento, enquanto Rudi segurava uma lâmpada, ao lado.

— Apenas algumas mais — informou, deixando cair uma lasca dentro de um cinzeiro.

Farnbach, sentado em posição recurvada, nada falava. Mengele aplicou com pancadinhas o desinfetante sobre os talhos e cobriu-os com gaze e esparadrapo.

— Lamento muito — declarou. Farnbach levantou-se, alisou o casaco úmido. — E quando — indagou

— saberemos por que fomos enviados? Mengele fitou-o por um momento, e respondeu:

— Julguei que havia parado de fazer perguntas. Farnbach girou sobre os calcanhares e saiu. Mengele entregou as pinças a Rudi e despediu-o, ordenando:

— Procure Tin-tin. Logo partiremos. Mande-o na frente avisar Enrico. E feche a porta.

Guardou de volta as coisas no estojo de emergência, sentou-se à escrivaninha desarrumada, tirou os óculos, enxugou a testa com a palma da mão. Retirou a cigarreira. Acendeu um cigarro e puxou uma baforada, largando o fósforo sobre as lascas de vidro. Pôs de novo os óculos e retirou o caderno de endereços.

Telefonou para o número da residência de Seibert. Uma empregada brasileira, com risadinhas, participou-lhe que o senhor e a senhora haviam saído, ela não sabia para onde.

Tentou a sede, não esperando que atendessem. Não atenderam. Siegfried, o filho de Ostreicher, forneceu-lhe outro número, onde o

próprio Ostreicher atendeu o telefone. — Quem está falando é Mengele. Estou em Florianópolis. Acabo de ver

Farnbach. Pausa, e depois: — Droga. O coronel ia avisá-lo pela manhã. Vinha adiando. Está muito

contrariado a esse respeito. Lutou desesperadamente. — Faço idéia — retorquiu Mengele. — O que aconteceu? — É aquele filho da puta do Liebermann. Esteve com Frieda Maloney na

semana passada. — Ele está na América! — exclamou Mengele. — Só se a América mudou para Düsseldorf. Ela deve ter-lhe fornecido

toda a versão de sua parte na coisa. O advogado dela perguntou a alguns de nossos amigos como se explicava que estivéssemos fazendo mercado negro de bebês nos anos 60. Convenceu-os de que era verdade, e eles nos consultaram. Rudel chegou domingo passado, houve uma reunião de três

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horas. Seibert queria muito que você estivesse lá. Rudel e alguns dos outros, não... e foi tudo. Os homens chegaram na terça e na quarta.

Mengele empurrou os óculos para cima e gemeu, as mãos sobre os olhos. — Mas por que não poderiam simplesmente eliminar Liebermann? São

lunáticos, judeus, ou o quê? Mundt teria exultado com a oportunidade. Queria fazê-lo por sua própria conta, desde o começo. Ele, por si só, é mais capaz que todos os seus coronéis reunidos.

— Gostaria de ouvir as razões deles? — Prossiga. Se eu vomitar enquanto estiver falando, por favor me

desculpe. — Dezessete dos homens estão mortos. Isso significa, segundo os seus

cálculos, que poderemos estar certos de um ou mesmo dois sucessos. E talvez um ou dois mais entre os outros, já que alguns homens morrerão naturalmente aos sessenta e cinco anos. Liebermann ainda não sabe de tudo, pois Maloney também não sabe. Mas ela pode ter se lembrado de nomes, e, se o fez, o próximo passo lógico de Liebermann será tentar capturar Hessen.

— Então tragam-no de volta! Somente ele! Por que todos os seis? — Foi o que Seibert ordenou. — E então? — É aí que você vai vomitar. A coisa toda ficou muito perigosa, segundo

Rudel. Acabará pondo a Organização em evidência, como também o faria o assassinato de Liebermann. Melhor contentar-se com um ou dois sucessos, ou mesmo mais — que serão suficientes, não? — e terminar com tudo. Que Liebermann passe o resto da vida atrás de Hessen.

— Mas ele não o fará. Acabará descobrindo a verdade e voltando a atenção para os meninos.

— Talvez sim, talvez não. — A verdade — asseverou Mengele, tirando os óculos — é que eles são

um punhado de velhos cansados que perderam os colhões. Querem apenas morrer de velhice nas suas vilas à beira-mar. Pouco lhes importa que os seus netos sejam os últimos arianos num mundo de merda. Por mim, colocava-os diante de um pelotão de fuzilamento.

— Vamos lá, eles nos ajudaram a chegar até aqui. — E se meus cálculos estiverem errados? E se a possibilidade não for de

uma em dez, mas de uma em vinte? Ou trinta? Ou noventa e quatro? Onde estaremos então?

— Olhe, se dependesse de mim, mataria Liebermann, sem pensar nas conseqüências, e prosseguiria com os outros. Estou do seu lado. Seibert também está. Sei que não acredita, mas ele lutou bastante. Tudo seria decidido em cinco minutos, não fosse sua intervenção.

— Isso é muito consolador — tornou Mengele. — Tenho de ir agora.

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Boa noite. — E desligou. Sentou-se de cotovelos sobre a escrivaninha, o queixo apoiado nos

polegares das mãos, os dedos entrelaçados, os lábios tocando na falange mais próxima. Então é sempre assim que acontece, pensou, quando se depende dos outros. Terá alguma vez existido algum homem de visão, de gênio (gênio, sim, com os diabos!), bem servido pelos Rudels e Seiberts deste mundo?

Do lado de fora da porta fechada do gabinete, Rudi esperava, e mais Hans Stroop e seus ajudantes, o diretor social e o gerente do hotel, e, a uma discreta distância, a Miss Nazista, cuja atenção desligara-se do rapaz fardado que com ela conversava.

Quando Mengele saiu, Stroop dirigiu-se a ele de braços abertos e sorriso insinuante.

— O pobre-diabo retirou-se. Venha, estamos à sua espera para servir o prato principal.

— Não deviam ter feito isto — retorquiu Mengele. — Tenho de ir. — Fazendo um sinal para Rudi, apressou-se em direção à saída.

Klaus telefonou e disse que sabia de tudo: como noventa e quatro

meninos poderiam ser parecidos como gêmeos, e por que Mengele queria que os seus pais adotivos fossem mortos em datas determinadas.

Liebermann, que não dormira na noite anterior, com dores reumáticas e diarréia, estava de cama naquele dia, e a primeira coisa que lhe ocorreu foi a perfeita simetria daquilo: uma questão levantada por um jovem, por telefone, enquanto ele estava na cama, seria respondida por outro jovem, por telefone, enquanto ele estava na cama. Tinha a certeza de que Klaus não estaria enganado.

— Pode falar — disse, ajeitando os travesseiros. — Herr Liebermann — Klaus parecia embaraçado —, não é o tipo de

coisa que eu possa explicar pelo telefone. É complicada, e na verdade não compreendo tudo. Só a obtive de segunda mão, através de Lena, a garota com quem vivo. A idéia foi sua, e ela falou a esse respeito com um professor. Ele é quem realmente sabe. Poderia vir aqui, para organizarmos um encontro? Prometo-lhe que tem de ser esta a explicação.

— Estou de partida para Washington na manhã de terça-feira. — Então pegue um avião amanhã. Ou, melhor ainda, venha segunda-

feira, passe a noite, e parta daqui na terça. Terá de passar por Frankfurt de qualquer maneira, não é verdade? Apanho-o no aeroporto e depois levo-o de volta. Podemos nos encontrar com o professor na noite de segunda-feira. Ficará aqui, comigo e com Lena. O senhor com a cama e nós com os sacos

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de dormir. — Dê-me pelo menos a essência da coisa agora — instou Liebermann. — Não. Tem que ser de fato explicada por alguém que saiba do que está

falando. É esta a razão de sua ida a Washington? — Sim. — Então, certamente há de querer o máximo de informação possível,

hein? Não estará perdendo seu tempo, prometo-lhe. — Está bem, confio em você. Vou avisar-lhe a hora da minha chegada.

Será melhor combinar com o tal professor e verificar se está livre. — Farei isso, mas estou certo de que ele poderá vir. Lena disse que ele

está ansioso por conhecê-lo e colaborar. E ela também. É sueca, portanto está muito empenhada. Por causa daquilo em Göteborg.

— O que o professor dela ensina? Ciência política? — Biologia. — Biologia? — Isso mesmo. Tenho de sair agora, mas estarei em casa o dia inteiro

amanhã. — Telefonarei. Obrigado, Klaus. Até a vista. Desligou. Quanto à simetria perfeita, não era preciso dizer mais. Um professor de

biologia? Seibert sentia alívio por não ter sido encarregado de transmitir as

novidades a Mengele, mas achava também que se livrara do anzol talvez depressa demais. O prolongado relacionamento com Mengele e a admiração pelo seu talento verdadeiramente notável inclinavam-no a oferecer alguma forma de manifestação de conforto e encorajamento, e rendendo justiça a si mesmo tencionava apresentar uma descrição mais completa do que aquela que Ostreicher alegara ter feito da ardorosa batalha que havia travado contra Rudel, Schwartzkopf e os demais. Tentou comunicar-se com Mengele pelo rádio durante o fim de semana; não o conseguindo, voou para o sítio, no começo da tarde de segunda-feira, levando Ferdi, o seu neto de seis anos, e mais umas gravações novas de Die Walküre e Götterdämmerung.

A pista de aterrissagem estava deserta. Seibert duvidou que Mengele houvesse permanecido em Florianópolis, mas era possível que tivesse ido passar o dia em Assunção ou Curitiba. Ou apenas enviado o piloto a Assunção, em busca de suprimentos.

Percorreram a trilha em direção à casa, Seibert e o irrequieto Ferdi, com o co-piloto, que queria ir ao banheiro e seguia atrás.

Não havia ninguém por perto, nem guardas nem empregados. O barracão, cuja porta o co-piloto experimentou, estava trancado, e a casa dos empregados tinha as portas e janelas fechadas. Seibert começou a ficar inquieto.

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A porta dos fundos da casa principal estava trancada e a da frente também. Seibert bateu e esperou. Um tanquezinho de brinquedo jazia no chão de tábuas. Ferdi curvou-se para apanhá-lo, mas Seibert advertiu severamente:

— Não toque nisso! — como se alguma pestilência rondasse por ali. O co-piloto espatifou uma das janelas, empurrou com os cotovelos as

pontas de vidro remanescentes e cuidadosamente esgueirou o corpo para dentro. Um instante depois, destrancava e abria a porta.

Casa deserta, mas em ordem, sem sinais de partida precipitada. No escritório, a escrivaninha de tampo de vidro estava como Seibert a

vira pela última vez, com o material de pintura enfileirado sobre uma toalha, num canto. Voltou-se para o quadro.

Fora retalhado de vermelho. Vergastadas que se diria sanguinolentas rasgavam os quadradinhos da segunda e terceira colunas. Os da primeira coluna continham cruzes vermelhas perfeitas até a metade, que depois aumentavam, irregulares, ultrapassando as marcas.

Ferdi, parecendo preocupado, observou: — Ele saiu da linha. Seibert contemplou o quadro devastado. — Sim — assentiu. — Saiu da linha, sim. — E acenou com a cabeça. — O que é isso? — indagou Ferdi. — É uma lista de nomes. — Seibert voltou-se e pousou o embrulho de

discos na escrivaninha. Um bracelete de presas animais jazia no centro. — Hecht! — chamou, e mais alto: — Hecht!

A voz do co-piloto respondendo: "Senhor?", soou distante. — Acabe o que está fazendo e volte para o avião! — Seibert apanhou o

bracelete. — Traga-me uma lata de gasolina! — Sim, senhor! — Traga Schumann junto com você! — Sim, senhor! Seibert examinou o bracelete e jogou-o de novo sobre a mesa. Suspirou. — O que vai fazer? — indagou Ferdi. Seibert indicou com a cabeça o

quadro. — Queimar isto. — Por quê? — Para que ninguém o veja. — A casa vai pegar fogo? — Sim, mas o dono não voltará mais. — Como sabe? Ele ficará zangado se voltar. — Vá brincar com aquele brinquedinho lá fora. — Quero olhar.

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— Faça o que estou dizendo! — Sim, senhor. — Ferdi saiu depressa da sala. — Fique na varanda! — exclamou Seibert em seguida. Empurrou a mesa

com suas pilhas de revistas bem para junto da parede. Depois, dirigiu-se ao arquivo embaixo da janela do laboratório, agachou-se, abriu uma das gavetas e retirou um grosso punhado de pastas e mais outro. Trouxe-os para a mesa e enfiou-os por entre as pilhas de revistas. Lançou um olhar pesaroso sobre o quadro vergastado de vermelho, meneando a cabeça.

Trouxe vários carregamentos de pastas para a mesa e, quando não havia lugar para mais, abriu as gavetas restantes. Destrancou e abriu as janelas atrás da escrivaninha.

Ficou contemplando os souvenirs de Hitler por cima do sofá, tirou três ou quatro da parede, olhou especulativamente para o grande retrato no centro.

O co-piloto entrou com uma lata vermelha de combustível. O piloto permaneceu à porta.

Seibert pôs as coisas que retirara junto ao pacote de discos. — Tire o retrato — ordenou ao co-piloto. Mandou o piloto ver se não

havia mesmo ninguém na casa e abrir todas as janelas. — Posso trepar no sofá? — indagou o co-piloto. — Deus meu, e por que não? Despejou gasolina nas pastas e revistas, mantendo-se bem a distância, e

lançou alguns salpicos sobre o quadro. Nomes reluziram, umedecidos: "Hesketh", "Eisenbud", "Arlen", "Looft".

O co-piloto levou o retrato para fora. Seibert pôs a lata do lado de fora da porta e dirigiu-se às gavetas abertas

do arquivo. Retirou de uma delas algumas folhas de papel e torceu-as como um facho branco, aproximando-se da mesa. Apanhou o isqueiro sobre ela, preto e cilíndrico, e tirou fogo dele algumas vezes.

O piloto anunciou que não havia ninguém na casa e que as janelas estavam abertas. Seibert mandou-o levar para fora os discos, as recordações e a lata de combustível.

— Verifique se meu neto está mesmo lá fora — ordenou-lhe. Esperou um momento, isqueiro numa das mãos, facho de papel branco

na outra. — Ele está aí com você, Schumann? — bradou. — Está, sim, senhor! Acendeu a ponta do facho e pousou de novo o isqueiro atrás de si. Virou

para baixo o facho, a fim de fortalecer a chama, e, adiantando-se, jogou-o sobre as pastas e revistas, explodindo-as em fogo. As labaredas lamberam a

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parede. Seibert recuou e viu a coluna do meio do quadro, vergastada de

vermelho, empolar-se e tornar-se pardacenta. Nomes, datas e linhas, amortalhados em chamas, consumiram-se, enquanto a escuridão crescia em torno.

Retirou-se apressadamente. Atrás da casa, detiveram-se e ficaram assistindo algum tempo, bem

afastados do calor tremulante e da crepitação: Seibert segurando Ferdi pela mão, o co-piloto descansando o antebraço na moldura do retrato de Hitler, o piloto de braços carregados e com a lata vermelha a seus pés.

Ester estava de chapéu, casaco e um pé fora da porta — literalmente —

quando o telefone tocou. Não estava no seu dia. Quando haveria de chegar em casa? Suspirando, voltou atrás o pé, fechou a porta e foi atender ao telefone, que tocava à luz fraca da vidraça da porta.

Era uma telefonista com uma chamada para Yakov, de São Paulo. Ester disse-lhe que Herr Liebermann estava fora da cidade. O autor da chamada, em bom alemão, declarou que falaria com a senhora.

— Sim? — atendeu Ester. — Meu nome é Kurt Koehler. Meu filho Barry foi... — Oh, sim, eu sei, Herr Koehler! Sou a secretária de Herr Liebermann,

Ester Zimmer. Alguma notícia? — Sim, há, e é má. O corpo de Barry foi encontrado na semana passada. Ester soltou um gemido. — Bem, já esperávamos por isso... nenhuma palavra até agora. Vou

voltar para casa. Com... ele. — Ah! Lamento tanto, Herr Koehler! — Obrigado. Ele foi apunhalado, e depois jogado no mato. De um avião,

segundo parece. — Ah, meu Deus... — Julguei que Herr Liebermann haveria de querer saber... — Claro, claro! Vou avisá-lo. —...e tenho também uma informação. Eles apanharam a carteira e o

passaporte de Barry, é claro — aqueles imundos porcos nazistas —, mas havia um pedaço de papel nas suas calças que eles esqueceram. Quer me parecer que ele teria tomado algumas notas enquanto ouvia aquela gravação, e há muita coisa aqui que, tenho certeza, Herr Liebermann poderá utilizar. Poderia me dizer onde posso entrar em contato com ele?

— Está em Heidelberg esta noite. — Ester acendeu a lâmpada e manuseou a lista telefônica. — Em Mannheim, na verdade. Tenho o número

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aqui. — Amanhã ele estará de volta a Viena? — Não, de lá irá para Washington. — Ah! Bem, talvez eu devesse telefonar-lhe em Washington. Estou um

pouco... abalado no momento, como pode imaginar, mas estarei em casa amanhã e poderei falar mais facilmente. Onde ele estará hospedado?

— No Hotel Benjamin Franklin. — Ela manuseou a lista. — Tenho este número também. — Encontrou-o e leu-o com vagar e clareza.

— Obrigado. E ele chegará lá... ? — Seu avião aterrissa às seis e meia, se Deus quiser. Deverá estar no hotel às sete ou sete e meia. Amanhã à noite. — Espero que tenha ido por motivos ligados a esse assunto que Barry

investigava. — E foi mesmo — respondeu Ester. — Barry tinha razão, Herr Koehler.

Muitos homens foram assassinados, mas Yakov vai acabar com isso. Pode ficar descansado que o seu filho não morreu em vão.

— É bom ouvir isso, Fräulen Zimmer. Obrigado. — Não há de quê. Adeus. Ela desligou, suspirou, e balançou tristemente a cabeça. Mengele desligou também, apanhou a maleta de lona parda, e entrou na

menor das duas filas para o guichê de passagens da Pan Am. Tinha os cabelos castanhos repartidos de lado, um espesso bigode castanho, e usava grosso suporte ortopédico acolchoado no pescoço. Até então parecia estar cumprindo o objetivo de evitar que o olhassem nos olhos.

Segundo seu passaporte paraguaio, era Ramón Aschheim y Negrín, comerciante en antigüedades, um vendedor de antigüidades. Motivo por que levava uma arma na maleta, uma automática Browning Hi-Power de nove milímetros. Tinha licença para ela, como também uma carteira de motorista, uma provisão completa de credenciais sociais e de negócios e, no seu passaporte, páginas e páginas de vistos. O Señor Aschheim y Negrín estava partindo para uma viagem de compras multinacional: Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Holanda, Noruega, Suécia, Dinamarca, Alemanha e Áustria. Estava bem abastecido de dinheiro (e diamantes). Seus vistos, como o seu passaporte, tinham sido expedidos em dezembro, mas ainda eram válidos.

Comprou uma passagem para Nova York no vôo seguinte, que saía às sete e quarenta e cinco, o qual, em combinação com um vôo da American Airlines, o levaria até Washington, às dez e trinta e cinco da manhã seguinte.

Tempo suficiente para se instalar no Benjamin Franklin.

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Seis O professor de biologia — cujo nome era Nürnberger e que, por trás da

barba castanha aparada rente e seus óculos de aros dourados, não aparentava mais de trinta e dois ou trinta e três anos — empurrou para trás o mindinho, como se fosse parti-lo e oferecê-lo.

— Aparência idêntica — enumerou, e empurrou o dedo seguinte. — Similitude de interesses e atitudes, provavelmente em grau maior do que atualmente se sabe. — Empurrou o outro dedo. — A colocação em famílias semelhantes: o indício está aí. Reunamos tudo isso e só existe uma explicação possível. — Cruzou as mãos sobre as pernas cruzadas e inclinou-se para a frente, confidencial. — Reprodução mononuclear — disse a Liebermann. — O Dr. Mengele, aparentemente, estava uns dez anos adiantado nesse campo.

— Não é de espantar — observou Lena, sacudindo uma garrafinha, à porta da cozinha —, com as pesquisas que ele fazia em Auschwitz, nos anos 40.

— É — assentiu Nürnberger (enquanto Liebermann tentava recobrar-se do choque de ouvir falar em "pesquisas" e em "Auschwitz", na mesma frase: não tem culpa, é jovem e sueca, como poderia saber?). — Os outros — estava dizendo Nürnberger —, ingleses e americanos na maioria, só começaram pelos anos 50, e ainda não utilizaram óvulos humanos. Ou pelo menos é o que eles dizem. Pode-se apostar, entretanto, que chegaram além do que admitem. Por isso, afirmei que Mengele estava apenas dez anos adiantado, e não quinze ou vinte.

Liebermann olhou para Klaus, sentado à sua esquerda, para ver se ele sabia do que Nürnberger falava. Klaus mastigava, examinando um talo de cenoura. Seus olhos encontraram os de Liebermann, espelhando um "está vendo?" Liebermann meneou a cabeça.

— E os russos, claro — prosseguiu Nürnberger, balançando-se comodamente no seu assento dobradiço, segurando um joelho com os dedos entrelaçados —, estarão provavelmente ainda mais adiantados, sem a contestação da Igreja e da opinião pública. Terão provavelmente um rebanho inteiro de pequenos Vánias, em alguma parte da Sibéria. Mais velhos mesmo, talvez, do que esses meninos de Mengele.

— Desculpe-me — atalhou Liebermann —, mas não compreendo o que está dizendo.

Nürnberger mostrou-se surpreso. — Reprodução mononuclear — repetiu, paciente. — A produção de

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cópias geneticamente idênticas de um organismo isolado. Estudou alguma coisa de biologia?

— Um pouco — respondeu Liebermann. — Há uns quarenta e cinco anos atrás.

Nürnberger sorriu um sorriso de jovem. — Justamente quando a possibilidade disso foi reconhecida pela

primeira vez — afirmou. — Por intermédio de Haldane, o biólogo inglês. Denominou-a "clone", de uma palavra grega que significa "corte", de uma planta. "Reprodução mononuclear" é um termo muito mais explícito. Por que fabricar palavra nova, quando as antigas transmitem melhor o sentido?

— "Clone" é mais curto — observou Klaus. — Sim — acedeu Nürnberger —, mas não será melhor empregar mais

algumas sílabas e dizer exatamente o que se pretende? — Fale-me acerca da "reprodução mononuclear" — solicitou

Liebermann. — Mas não se esqueça, por favor, de que estudei biologia somente porque fui obrigado. Meu verdadeiro interesse era a música.

— Experimente dizer a ele cantando — sugeriu Klaus. — Se o fizesse, não daria uma canção que prestasse — retorquiu

Nürnberger. — Como a bela canção de amor da reprodução comum. Neste caso temos um óvulo, ou célula-ovo, e uma célula-esperma, cada uma com um núcleo contendo vinte e três cromossomos, em cujos filamentos os genes, centenas de milhares deles, se enfiam como contas. Os dois núcleos fundem-se, e teremos então uma célula-ovo fertilizada, de quarenta e seis cromossomos. Estou falando agora de células humanas; nas diversas espécies o número difere. Os cromossomos duplicam-se, duplicando cada um de seus genes — realmente miraculoso, não? —, e a célula se divide, um conjunto de cromossomos idênticos para cada célula resultante. Esta duplicação e divisão vai se repetindo...

— Mitose — completou Liebermann. — É. — As coisas que ficam na memória! — E em nove meses — prosseguiu Nürnberger — temos os bilhões de

células do organismo completo. Elas desdobraram-se a fim de desempenhar funções diferentes — transformar-se em osso, carne, sangue ou cabelo, reagir à luz, calor, doçura, etc. —, mas cada uma dessas células, cada uma dentre os bilhões de células que constituem o corpo, contém no seu núcleo reproduções exatas de um conjunto original de quarenta e seis cromossomos, metade da mãe, metade do pai: uma mistura que, exceto no caso dos gêmeos idênticos, é absolutamente única — como se fosse o projeto de um indivíduo absolutamente único. As únicas exceções à regra dos quarenta e seis cromossomos são as células sexuais, esperma e óvulo, que têm vinte e três, a

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fim de que possam fundir-se, completar-se e dar início a um novo organismo.

— Até agora está claro — declarou Liebermann. Nürnberger inclinou-se para diante.

— Esta — disse — é a reprodução comum, como ocorre na natureza. Entremos agora no laboratório. Na reprodução mononuclear, o núcleo da célula-ovo é destruído, deixando ileso o corpo da célula. Isso é realizado através de radiação, constituindo, é claro, uma microcirurgia das mais sofisticadas. Na célula-ovo de que se tirou o núcleo, é colocado o núcleo de uma célula corporal do organismo a ser reproduzido — o núcleo de uma célula corporal, não uma célula sexual. Temos agora exatamente o que tínhamos neste ponto na reprodução natural: uma célula-ovo com quarenta e seis cromossomos no seu núcleo, um óvulo fertilizado que, numa solução nutriente, passa a duplicar-se e dividir-se. Quando ela atinge o estágio das dezesseis ou trinta e duas células — o que leva quatro ou cinco dias —, pode ser implantada no útero de sua "mãe", que de fato não o é, biologicamente falando. Ela forneceu uma célula-ovo, e agora está fornecendo um ambiente adequado ao desenvolvimento do embrião, que nada recebeu, porém, da sua dotação genética. A criança, ao nascer, não tem pai nem mãe, apenas um doador — o fornecedor do núcleo —, de quem será um exato duplo genético. Seus cromossomos e genes são idênticos aos do doador. Ao invés de um indivíduo novo e único, teremos a repetição de um já existente.

— Isto... pode ser feito? — indagou Liebermann. Nürnberger acenou afirmativamente.

— Já foi feito — atalhou Klaus. — Com rãs — tornou Nürnberger. — Um processo muito mais simples.

É o único caso reconhecido, e causou tal impacto — em Oxford, nos anos 60 —, que todo o trabalho subseqüente foi feito em sigilo. Obtive relatos, como todo biólogo, acerca de coelhos, cães e macacos, na Inglaterra, América, aqui na Alemanha, em toda parte. E, como já disse, tenho certeza de que já o fizeram com seres humanos na Rússia. Ou pelo menos tentaram. Que sociedade planejada poderia resistir à idéia? Multiplicar os seus melhores cidadãos e proibir a reprodução dos piores. Que poupança nos serviços médicos e na educação! E o aprimoramento dos predicados da população dentro de duas ou três gerações.

— Mengele poderia ter feito isso com seres humanos no princípio dos anos 60? — indagou Liebermann.

Nürnberger encolheu os ombros. — A teoria já era conhecida — asseverou. — Precisaria apenas de

equipamento adequado, moças sadias e dispostas, e um alto grau de perícia microcirúrgica. Outros a tiveram: Gurdon, Shettles, Steptoe, Chang... E,

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evidentemente, um lugar onde pudesse trabalhar sem interferência e publicidade.

— Ele estava na selva, nessa ocasião — declarou Liebermann. — Foi para lá em 59. Acossei-o até...

— Talvez, não — atalhou Klaus. — Talvez ele tenha querido ir. Liebermann olhou-o, contrafeito. — Mas será inútil — alegou Nürnberger — dizer se ele poderia ou não

tê-lo feito. Se o que Lena me contou é verdade, é óbvio que o fez. O fato de os meninos terem sido colocados em famílias semelhantes o comprova. — Sorriu. — Veja, os genes não constituem o único fator em nosso desenvolvimento definitivo. Estou certo de que não ignora isso. A criança concebida através da reprodução mononuclear crescerá igual ao seu doador e partilhando com ele de certas características e tendências, mas se for criada em ambiente diverso, sujeita a influências domésticas e culturais — como fatalmente o será, quando mais não seja por ter nascido anos depois —, bem, poderá tornar-se bastante diferente psicologicamente do seu doador, apesar de sua uniformidade genética. Mengele estava evidentemente interessado não em reproduzir um determinado traço biológico, como acho que os russos estariam, mas ele próprio, um determinado indivíduo. As famílias semelhantes constituem uma tentativa de elevar ao máximo as possibilidades de os meninos crescerem no ambiente adequado.

Atrás de Nürnberger, Lena chegou à porta da cozinha. — Os meninos — indagou Liebermann — são... réplicas de Mengele? — Réplicas exatas, geneticamente — respondeu Nürnberger. — Agora,

se crescerão ou não como réplicas in totum, isso, como disse, é outra questão.

— Com licença — atalhou Lena. — Já podemos comer. — Sorriu, desculpando-se. Seu rosto inexpressivo embelezou-se por um instante. — Na verdade é o que teremos de fazer — acrescentou —, do contrário vai ficar ruim. Se é que já não está.

Levantaram-se e deixaram o pequeno quarto com mobiliário híbrido, ampliações de animais e brochuras, entrando numa cozinha quase do mesmo tamanho, com mais ampliações de animais, uma janela com grade de aço e uma mesa de toalha vermelha, com pão, salada e vinho tinto em copos de tipos diferentes.

Liebermann, instalado incomodamente numa cadeira pequena, de encosto de arame, olhou para Nürnberger, do outro lado da mesa, passando manteiga no pão.

— O que o senhor quis dizer — indagou — com referência aos meninos crescerem no "ambiente adequado"?

— O mais parecido possível com o de Mengele — respondeu

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Nürnberger, fitando-o. Sorriu, por dentro de sua barba castanha. — Olhe — acrescentou —, se eu quisesse fazer um outro Eduard Nürnberger, não bastaria simplesmente raspar um pouco a pele do meu dedo do pé, arrancar um núcleo de uma célula e seguir todo o processo por mim descrito — supondo que tivesse a perícia e o equipamento...

— E a mulher — completou Klaus, depondo um prato à sua frente. — Obrigado — disse Nürnberger, sorrindo. — Eu poderia arranjar a

mulher. — Para esse tipo de reprodução? — Bem, é de se supor. São apenas duas incisões diminutas, uma para

extrair o óvulo, a outra para implantar o embrião. — Nürnberger olhou para Liebermann. — Mas isso seria apenas parte da tarefa — asseverou. — Eu teria então de encontrar um lar adequado para o bebê Eduard. Ele exigiria uma mãe que fosse muito religiosa — na verdade quase uma fanática — e um pai que bebesse demais, de modo a que houvesse discussões constantes entre eles. E precisaria também em casa de um tio maravilhoso, um professor de matemática, que levasse o garoto para passear o mais que pudesse, aos museus, ao campo... Essa gente teria o menino como se fosse deles, e não como alguém concebido num laboratório, e além disso o "tio" teria de morrer quando o menino tivesse nove anos, e os "pais" teriam de se separar dois anos depois. O menino passaria a adolescência num vaivém entre os dois, juntamente com a irmã mais moça.

Klaus estava sentado com um prato diante de si, à direita de Liebermann. Um outro jazia diante de Liebermann

— um naco de carne parecendo ressequida, cenouras estufadas em hortelã.

— E ainda assim — tornou Nürnberger — ele poderia sair muito diferente deste Eduard Nürnberger. Seu professor de biologia poderia não se empolgar por ele, como o meu o fez. Uma garota poderia deixá-lo ir para a cama com ela mais cedo do que uma outra me deixou. Leria livros diferentes, veria televisão, quando eu ouvia rádio, estaria sujeito a milhares de encontros ocasionais que o poderiam tornar mais ou menos agressivo do que sou, mais ou menos afetuoso, espirituoso, etc, etc.

Lena sentara-se à esquerda de Liebermann, olhando para Klaus, do outro lado da mesa.

Nürnberger, abrindo a carne ressequida com o garfo, adiantou: — Mengele sabia da precariedade da coisa toda, por isso criou e

encontrou lares para muitos meninos. Dar-se-á por muito feliz, suponho, se uns poucos, ou mesmo apenas um sair exatamente certo.

— Está vendo agora — indagou Klaus a Liebermann — por que os homens são mortos?

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Liebermann acenou afirmativamente. — Para — não sei que palavra usar — moldar os meninos. — Exatamente — assentiu Nürnberger. — Para moldá-los, para tentar

fazer deles Mengeles psicológicos, tanto quanto genéticos. — Ele perdeu o pai quando tinha certa idade — atalhou Klaus —,

portanto com os meninos deverá acontecer o mesmo. Ou perder os homens que julgassem seus pais.

— O acontecimento — ponderou Nürnberger — certamente foi de suma importância para moldar a sua psique.

— É como abrir um cofre — aventou Lena. — Uma vez que se vire a maçaneta em direção a todos os números certos, na ordem certa, a porta se abre.

— A menos que — contraveio Klaus — a maçaneta tenha sido virada em direção a um número errado nesse meio tempo. Estas cenouras estão ótimas.

— Obrigada. — É — assentiu Nürnberger. — Tudo está delicioso. — Mengele tem olhos castanhos. Nürnberger olhou para Liebermann. — Tem certeza? — Tive em mãos sua carteira de identidade argentina — declarou Liebermann. — "Olhos castanhos." E seu pai era um rico

industrial, não um funcionário público. Maquinaria agrícola. — Ele é parente daqueles Mengele? — indagou Klaus. Liebermann

acenou afirmativamente. Pondo salada no prato, Nürnberger observou: — Não admira que pudesse arranjar o equipamento. Bem, ele não deve

ter sido o doador, já que os olhos não casam. — Sabe quem é o chefe da Organização dos Camaradas? — indagou

Lena a Liebermann. — É um coronel chamado Rudel, Hans Ulrich Rudel. — De olhos azuis? — perguntou Klaus. — Não sei. Terei de verificar. Como também a origem de sua família. Liebermann olhou para o garfo na mão, espetou-o numa fatia de cenoura

e ergueu-a, levando-a à boca. — Seja como for — tornou Nürnberger —, o senhor sabe agora por que

esses homens estão sendo mortos. O que planeja fazer em seguida? Liebermann ficou calado por um momento. Pousou o garfo e tirou o

guardanapo do colo, pondo-o sobre a mesa. — Com licença — disse, e saiu da cozinha. Lena seguiu-o com o olhar, baixou os olhos para o prato, voltou-os para

Klaus. — Não foi por isso — asseverou ele.

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— Espero que não — disse ela, e empurrou o naco de carne com o lado do garfo.

Klaus olhou além dela, observando Liebermann dirigir-se às estantes no outro aposento.

— Não é que esta carne não seja excelente — declarou Nürnberger —, mas chegará o dia em que todos comeremos uma carne muito melhor e muito mais barata, graças à reprodução mononuclear. Ela vai revolucionar a criação de gado. E também preservará as nossas espécies ameaçadas, como aquele belo leopardo ali.

— Está defendendo a experiência? — indagou Klaus. — Ela não precisa ser defendida — retrucou Nürnberger. — Trata-se de

uma técnica, e, como qualquer outra técnica que se possa mencionar, dela se pode fazer bom ou mau uso.

— Posso pensar em dois bons usos — ponderou Klaus —, e você acaba de mencioná-los. Dê-me lápis e papel, que em cinco minutos lhe darei cinqüenta maus.

— Por que tem sempre de ficar do lado contrário? — indagou Lena. — Se o professor tivesse dito que era uma coisa terrível, você agora estaria falando de criação de gado.

— Isso não é verdade — contrapôs Klaus. — É, sim. Ele contesta seus próprios argumentos. Klaus olhou além de

Lena: viu Liebermann de perfil, em pé, cabeça curvada sobre um livro aberto, gingando levemente, um judeu rezando. Não era uma Bíblia, porém; eles não tinham uma. Seria o livro de Liebermann? Estava parado bem no lugar do livro. Verificando a cor dos olhos do coronel?

— Klaus? — Lena oferecia a tigela de salada. Ele pegou-a. Lena voltou-se e olhou, depois concentrou-se na mesa. — Terei muita dificuldade de manter a boca fechada a respeito disso —

observou Nürnberger. — Mas vai ter que mantê-la, no entanto — disse Klaus. — Sei, sei, mas não será fácil. Dois dos homens lá do departamento

tentaram a experiência, com óvulos de coelha. Liebermann estava parado à porta, pálido e abatido, os óculos

dependurados na mão. — O que é? — Klaus pousou a tigela. Nürnberger olhou, Lena voltou-se

na cadeira. Liebermann dirigiu-se a Nürnberger. — Permita-me que lhe faça uma pergunta tola. Nürnberger assentiu. — O que fornece o núcleo. O doador. Tem de estar vivo, não é? — Não, não necessariamente — disse Nürnberger. — As células

isoladas não são vivas nem mortas, apenas intactas ou não. Com uma mecha dos cabelos de Mozart... nem precisa uma mecha; com um fio de cabelo de

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Mozart, alguém dispondo de perícia e equipamento — sorriu para Klaus — e de mulheres — voltou os olhos para Liebermann — poderia gerar algumas centenas de pequenos Mozarts. Descubram lares adequados para eles e teremos cinco ou dez Mozarts adultos, e uma quantidade muito maior de boa música neste mundo.

Liebermann pestanejou, deu um passo vacilante à frente, meneou a cabeça.

— Música, não — murmurou. — Mozart, não. — Trouxe a mão das costas e mostrou-lhes Hitler. A brochura exibia em três negras pinceladas: bigode, nariz proeminente, topete.

— Seu pai era funcionário público, da alfândega. Tinha cinqüenta e dois anos... quando o menino nasceu. A mãe, vinte e nove. — Olhou em torno, à procura de um lugar para pousar o livro, não encontrou nenhum, colocou-o sobre um dos bicos do fogão. Olhou novamente para eles, limpou a mão no lado. — O pai morreu aos sessenta e cinco — acrescentou. — Quando o menino tinha treze, quase catorze anos.

Deixaram as coisas na mesa e foram sentar-se na outra sala, Liebermann

e Klaus outra vez no sofá-cama, Nürnberger na cadeira de armar, Lena no chão.

Olharam os copos vazios na arca em frente, os pratinhos de talos de cenoura e amêndoas. Entreolharam-se.

Klaus pegou algumas amêndoas, jogou-as na palma da mão. — Noventa e quatro Hitlers — proferiu Liebermann, e sacudiu a cabeça.

— Não — acrescentou —, não é possível. — Claro que não é — frisou Nürnberger. — Há noventa e quatro

meninos com a mesma herança genética de Hitler. Podem sair muito diferentes. A maioria provavelmente sairá.

— A maioria — tornou Liebermann. Fez um gesto de cabeça na direção de Klaus e Lena. — A maioria. — Olhou para Nürnberger. — Restarão alguns.

— Quantos? — indagou Klaus. — Não sei — respondeu Nürnberger. — Você disse cinco ou dez Mozarts entre algumas centenas. Quantos

Hitlers em noventa e quatro? Um? Dois? Três? — Não sei — reiterou Nürnberger. — Estava apenas falando. Ninguém

sabe na realidade. — Sorriu ironicamente. — As rãs não passaram por testes de personalidade.

— Faça uma suposição — solicitou Liebermann. — Se os pais foram reunidos apenas por idade, raça e ocupação paterna,

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diria que as perspectivas são bem ruins. Do ponto de vista de Mengele, quero dizer. Muito boas, do nosso.

— Mas não completamente — retorquiu Liebermann. — Não, claro que não. — Ainda que houvesse apenas um — ponderou Lena —, restaria ainda

uma possibilidade de ele... ser influenciado da maneira certa. A errada. — Lembra-se do que disse na conferência? — indagou Klaus a

Liebermann. — Alguém perguntou se os grupos neonazistas eram perigosos, e o senhor respondeu que agora não, apenas se as condições sociais piorassem — e Deus sabe que pioram a cada dia — e aparecesse outro líder como Hitler.

Liebermann assentiu. — Falando para o mundo inteiro ao mesmo tempo, pela televisão via

satélite. O próprio Deus no céu. Fechou os olhos, pôs as mãos no rosto e esfregou os dedos nas pálpebras,

com força. — Quantos pais foram de fato assassinados? — indagou Nürnberger. — É isso mesmo! — exclamou Klaus. — Apenas seis! Não é tão mau

quanto parece! — Oito — disse Liebermann, baixando as mãos e piscando os olhos

avermelhados. — Você esquece Guthrie, em Tucson, e aquele entre ele e Curry. E outros também, de que não sabemos, nos outros países. Mais no princípio do que posteriormente. Assim foi nos Estados Unidos.

— A leva inicial deve ter obtido um índice de sucesso mais elevado do que ele esperava.

— Não posso deixar de pensar — declarou Klaus — que você se mostra um tanto satisfeito com o resultado.

— Bem, terá de admitir que de um ponto de vista estritamente científico é um passo adiante.

— Deus do céu! Quer dizer então que você, sentado aí, é capaz... — Klaus! — admoestou Lena. — Oh, merda! — Klaus jogou as amêndoas no chão. Liebermann

dirigiu-se a Nürnberger. — Vou a Washington, amanhã, contatar o Departamento Federal de

Investigações. Sei quem será ali o próximo pai. Eles poderão preparar uma armadilha para o assassino, terão de fazê-lo. Quer vir comigo e ajudar-me a convencê-los?

— Amanhã? — disse Nürnberger. — Seria impossível. — Mesmo para impedir um novo Hitler? — Oh, Deus! — Nürnberger esfregou a testa. — Sim, claro, se precisa

absolutamente de mim. Olhe, há homens lá, de Harvard, Cornell, Cal Tech,

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cujas credenciais têm muito mais prestígio do que as minhas, e que de qualquer modo teriam maior peso junto às autoridades americanas, justamente por serem americanos. Posso lhe fornecer nomes e escolas, se desejar...

— Sim, gostaria. —...mas se, por qualquer motivo, você me quiser, eu irei. — Está bem — assentiu Liebermann. — Obrigado. Nürnberger pegou

uma caneta e um bloco de memorando com capa preta, de dentro do casaco. — O próprio Shettles provavelmente haveria de auxiliá-lo — aventou. — Escreva o nome dele — solicitou Liebermann. — E onde poderei

encontrá-lo. Escreva todos os nomes que lhe ocorrerem. — Para Klaus, declarou: — Ele tem razão, um americano é melhor. Dois estrangeiros juntos receberão pontapés nos traseiros.

— O senhor tem contatos lá? — indagou Klaus. — Já tive — respondeu Liebermann. São do tipo "não-trabalha-mais-no-

Departamento-de-Justiça". Mas darei um jeito. Arrombarei as portas. O próprio Deus no céu! Imaginem! Noventa e quatro jovens Hitlers!

— Noventa e quatro meninos — retificou Nürnberger, escrevendo — com a mesma herança genética de Hitler.

O Benjamin Franklin, como hotel, um lugar de permanência, figurava

com um décimo de uma estrela, segundo o julgamento de Mengele, e isso devido apenas a certo encanto de peça de antigüidade que tinha a pia do banheiro. Entretanto, como lugar para alguém se livrar de um inimigo disposto a destruir a obra de uma vida inteira e a última esperança (corrija-se, certeza) da supremacia ariana, haveria de figurar com três estrelas e meia, talvez quatro.

Primeiro que tudo, a clientela no saguão era em parte negra, o que significava, evidentemente, que naquele local o crime não era coisa insólita. Como prova disso — se é que precisava — a porta do seu quarto, o 404, trazia as marcas de ranhura de um arrombamento e do lado de dentro um rótulo adesivo em letras vermelhas encarecia: "Para a sua proteção, é favor manter permanentemente a porta trancada". Ele aquiesceu.

Além do mais, no estabelecimento o serviço era ruim: às onze e quarenta da manhã as bandejas do café jaziam ainda do lado de fora das portas de alguns quartos. Logo que retirou o maldito suporte do pescoço (apenas para atravessar a fronteira e talvez para a Alemanha) deu um pulo rápido do lado de fora e apanhou uma bandeja, uma cesta de pão e uma tabuleta com o aviso: "É favor não perturbar". Escondeu a bandeja entre o colchão e as molas, a cesta de pão num saco de papel da lavanderia na prateleira do

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armário, pôs o aviso "É favor não perturbar" na gaveta da escrivaninha, junto com outro que já lá estava. Consultou a planta do andar pregada à porta: havia três escadas, uma bem próxima ao 404. Saiu novamente e encontrou-a. Abriu uma porta, entrou no patamar, olhou para os lances pintados de cinzento, acima e abaixo.

O atendimento nos quartos era abominável. Na hora em que o seu almoço apareceu, já havia esvaziado e limpado o tubo dos diamantes, lavara-se, passara talco no pescoço irritado, retirara da mala tudo o que pretendia, experimentara a televisão e preparara uma lista de tudo o que teria de comprar e fazer. Contudo, o garçom que trouxe o almoço — aí se justificava, certamente, mais uma estrela — era um branco quase da idade dele, de sessenta e poucos anos, e usava um casaco de serviço simples, de linho branco, do tipo que poderia sem dúvida ser comprado em qualquer loja de roupas de trabalho. Incluiu-o em sua lista, seria mais fácil que roubar um.

O prato servido era linguado à la bonne femme... bem, sem comentários. Saiu do hotel pouco depois da uma, por uma porta lateral. Óculos

escuros, sem bigode, chapéu, peruca, sobretudo com a gola levantada. Arma no coldre, junto à axila. Não haveria de deixar nada de valor naquele quarto vulnerável, e, além do mais, era prudente andar armado nos Estados Unidos. Não apenas ele, como qualquer outro.

Washington era mais limpa do que esperara e bastante atraente, mas as ruas largas estavam alagadas com neve de um dia. A primeira coisa que fez foi parar numa sapataria e comprar um par de galochas. Passara do verão para o inverno e sempre fora sujeito a resfriados. As vitaminas também faziam parte de sua lista.

Andou até chegar a uma livraria e ficou lendo aqui e ali, após trocar os óculos escuros pelos comuns. Encontrou um exemplar em brochura do livro de Liebermann. Examinou a fotografia em miniatura no lado posterior. Aquele nariz adunco de judeu não enganava. Percorreu a seção de fotografias no centro do livro e encontrou a sua. No entanto, Liebermann teria dificuldade em reconhecê-lo. Era a fotografia de Buenos Aires, de 59, evidentemente a melhor que Liebermann obtivera. Nem com a cabeleira castanha e o bigode, nem com os seus verdadeiros cabelos grisalhos e o lábio superior recentemente raspado guardaria de fato semelhança, que pena, com aquela bela imagem dele próprio dezesseis anos mais jovem. Além disso, é claro, Liebermann nem sequer estaria à sua espreita.

Recolocou o livro na prateleira e deparou com uma seção de livros de viagem. Escolheu mapas rodoviários dos Estados Unidos e Canadá. Pagou-os com uma nota de vinte dólares e aceitou o troco, notas e moedas, com um olhar distraído e um aceno de cabeça.

Novamente de óculos escuros, passou a percorrer ruas menos espaçosas,

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com vitrinas mais iluminadas e espalhafatosas. Não conseguiu encontrar o que queria, e finalmente perguntou a um jovem negro. Quem haveria de saber melhor? Prosseguiu seu caminho, seguindo as indicações surpreendentemente bem enunciadas.

— Que tipo de faca? — indagou-lhe um negro atrás do balcão. — Para caçar — respondeu. Escolheu a melhor. De fabricação alemã, ajustava-se bem na mão;

realmente bonita. E tão afiada a ponto de cortar tiras de um papel que pendesse frouxamente dos dedos. Mais duas de vinte e uma de dez.

Havia uma farmácia ao lado. Comprou suas vitaminas. E no próximo quarteirão, uma loja de uniformes e roupas de trabalho. — O senhor deve usar tamanho 36, não? — Sim. — Gostaria de experimentar? — Não. Por causa da arma. Comprou também um par de luvas brancas de algodão. Foi impossível encontrar uma loja de comestíveis. Ninguém sabia

informar, dir-se-ia que não comiam. Descobriu finalmente uma, um fulgurante supermercado cheio de

negros. Comprou três maçãs, duas laranjas, duas bananas e, para seu próprio consumo, um lindo cacho de uvas verdes sem caroço.

Tomou um táxi de volta ao Benjamin Franklin — entrada lateral, por favor —, e às três e vinte e dois regressava àquele sombrio quarto de um décimo de estrela de categoria.

Descansou um pouco, comendo uvas e examinando os mapas na poltrona (dura!), consultando vez por outra as folhas datilografadas com os nomes, endereços e datas. Poderia pegar Wheelock — supondo que ainda estivesse em New Providence, Pensilvânia — quase dentro do prazo, mas dali por diante teria de ser na base do vale-tudo. Tentaria manter-se dentro de seis meses das datas ideais. Davis, em Kankakee, depois uma subida até o Canadá para Stroheim e Morgan. Em seguida a Suécia. Teria de renovar os vistos?

Após descansar, ensaiou. Tirou a peruca e vestiu o casaco branco e as luvas. Treinou levar a cesta de frutas na bandeja. Proferiu: "Com os cumprimentos da gerência, senhor", uma e outra vez, até conseguir pronúncia perfeita.

Ficou de costas para a sua porta trancada, pendurou a tabuleta "É favor não perturbar" no ar, deixou-a cair, bateu no ar. "Com os cumprimentos da gerência, senhor." Atravessou o quarto levando a bandeja, pousou-a na cômoda, puxou a faca da bainha em seu cinto. Voltou-se, mantendo a faca

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atrás de si. Andou, parou, estendeu a mão esquerda. — Obrrigado, senhor. — Apanhou com a mão esquerda, apunhalou com

a direita. — Obrigado, senhor. Obrigado. — Caprichar na pronúncia. Apanhar

com a esquerda, apunhalar com a direita. Judeus dão gorjetas? Experimentou alguns movimentos adicionais. O platô de nuvens ensolarado terminava abruptamente. O oceano azul-

negro jazia abaixo, franzido e raiado de branco, imóvel. Liebermann desceu o olhar para ele, de queixo na mão.

Ei... Permanecera acordado a noite inteira, sentara-se desperto o dia inteiro,

pensando num Hitler crescido, proferindo com veemência seus discursos demoníacos para multidões demasiado descontentes para se importarem com a história. Dois ou três Hitlers mesmo, em manobras visando o poder em diferentes lugares, reconhecidos por seus seguidores e por si próprios como os primeiros seres humanos gerados através do que em 1990 mais ou menos haveria de ser um processo largamente praticado. Mais semelhantes do que irmãos, o mesmo homem multiplicado, como não juntariam as forças, travando de novo (com armas de 1990!) a guerra racial do primeiro deles? Certamente esta era a esperança de Mengele. Barry afirmara: "O objetivo é chegar ao triunfo da raça ariana, por Deus do céu!" Qualquer coisa nesse sentido.

Um belo fardo a ser trazido para o FBI, que dera uma reviravolta de quase cem por cento desde a morte de Hoover em 72. Soava-lhe aos ouvidos a pergunta intrigada: "Yakov de quê?"

Fora fácil, na noite anterior, dizer a Klaus que daria um jeito, arrombaria as portas. Na verdade, não perdera de todo os contatos. Conhecera senadores que ainda exerciam mandatos. Um deles certamente haveria de abrir as portas certas. Mas agora, tendo medido todo o horror, temia que, mesmo com as portas abertas, muito tempo fosse perdido. As mortes de Guthrie e Curry teriam de ser investigadas, suas viúvas interrogadas, os Wheelock interrogados... Agora o que mais importava era capturar o provável matador de Wheelock e descobrir os outros cinco através dele. Os restantes dos noventa e quatro homens teriam de permanecer vivos. Não deixar que as maçanetas dos cofres, segundo a comparação de Lena (boa de ser lembrada e utilizada em dias futuros), fossem giradas em direção ao que seria talvez o último e mais crucial número da combinação.

E, para dificultar ainda mais, o dia 22 era apenas uma aproximação da

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data da morte de Wheelock. E se a data verdadeira fosse mais cedo? E se — risível, o tipo da coisa pequenina de que talvez viesse a depender a história futura — Frieda Maloney se houvesse enganado ao dizer que o cãozinho tinha dez semanas de idade? E se fossem nove semanas, ou oito, o prazo em que os Wheelock obtiveram seu bebê? O assassino poderia matar e safar-se dentro de alguns dias.

Olhou o relógio: dez e vinte e oito. Não estava certo, ainda não o ajustara. Foi o que fez — moveu os ponteiros, concedendo-se mais seis horas, pelo menos no que dizia respeito a relógios: quatro e vinte e oito. Nova York dentro de meia hora, alfândega, e depois o pequeno pulo até Washington. Dormiria um pouco aquela noite, esperava — já se sentia meio tonto —, e pela manhã telefonaria para os gabinetes dos senadores. Telefonaria para Shettles também, e alguns outros da lista de Nürnberger.

Se ao menos pudesse conseguir agora que o assassino de Wheelock fosse vigiado, sem demora, explicações, verificações, indagações! Devia ter vindo mais cedo. É o que teria feito, evidentemente, se soubesse antes de toda a enormidade...

Ei... Precisava mesmo era de um FBI judaico. Ou de uma sucursal

estadunidense da Mossad, de Israel. Um lugar aonde pudesse ir amanhã e anunciar: "Um nazista vem matar um homem chamado Wheelock, em New Providence, Pensilvânia. Protejam-no, capturem o nazista. Não façam perguntas, explicarei depois. Sou Yakov Liebermann — acaso iria induzi-los ao erro?" E eles se poriam em campo.

Sonho! Se ao menos uma organização dessas existisse! As pessoas no avião afivelaram os cintos, fazendo comentários entre si.

O aviso acabara de acender. De testa franzida, Liebermann continuava quieto em seu lugar, junto à

janela. Após um retemperante cochilo de uma hora, Mengele lavou-se e fez a

barba, pôs a peruca e o bigode e vestiu o terno escuro. Espalhou tudo sobre a cama — casaco branco, luvas, faca na bainha, bandeja com cesta de frutas e tabuleta "É favor não perturbar" —, de modo que, mal visse Liebermann registrar-se e soubesse o número de seu quarto, pudesse voltar apressado e assumir sem demora o papel de garçom.

Ao sair do quarto, experimentou a maçaneta e pendurou nela a outra tabuleta "É favor não perturbar".

Às seis e quarenta e cinco estava sentado no saguão, folheando um exemplar da Time e vigiando a porta giratória. Os ocasionais recém-

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chegados que se dirigiam com suas maletas em direção à gerência, do outro lado do saguão, eram quase todos homens desacompanhados, um verdadeiro desfilar de tipos raciais inferiores. Não apenas negros e semitas, como também um par de orientais. Um jovem ariano de bela aparência registrou-se, mas alguns minutos depois, como que compensando um erro, um anão negro surgiu, em andar escarranchado, ao lado de uma maleta sobre um carrinho de rodas.

Às sete e vinte, Liebermann entrou — alto, ombros curvados, bigode preto, de boné e sobretudo cintado bege. Seria mesmo Liebermann? Judeu era, mas parecia jovem demais e sem um nariz tão adunco quanto o de Liebermann.

Levantou-se e, atravessando o saguão, tirou uma This Week in Washington de cima de uma pilha, sobre o balcão de mármore rachado.

— Vai ficar até a noite de sexta-feira? — indagou o recepcionista ao provável Liebermann às suas costas.

— Sim. Uma campainha tilintou. — Quer levar Mr. Morris ao 717? — Sim, senhor. Passeou de volta pelo saguão. Um libanês ou tipo parecido tomara o seu

lugar — gordo e de aparência sebosa, com anéis em todos os dedos. Encontrou outro lugar. O narigão dos narigões entrou, mas fazia parte da cara de um rapaz

agarrado ao cotovelo de uma mulher grisalha. Às oito horas, entrou numa cabine telefônica e telefonou para o hotel.

Perguntou — tendo o cuidado de não deixar os lábios encostarem no bocal, carregado de Deus sabe quantos germes — se Mr. Yakov Liebermann era esperado.

— Um momento. — Um estalido, um toque de chamada. O recepcionista do outro lado do saguão atendeu.

— Recepção. — O senhor tem um quarto reservado para Mr. Yakov Liebermann? — Para esta noite? — Sim. O recepcionista baixou os olhos, como se lesse. — Sim, temos. É Mr. Liebermann quem está falando? — Não. — Gostaria de deixar algum recado para ele? — Não, obrigado. Telefonarei mais tarde. Podia ficar de vigia ali dentro da cabine, por isso depositou outra moeda

de dez centavos no telefone e perguntou à telefonista como poderia obter o

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número de alguém de New Providence, Pensilvânia. Ela forneceu-lhe um número comprido para discar. Escreveu-o na margem vermelha da Time, retirou a moeda do receptáculo na parte inferior do aparelho, enfiou-a de novo em cima, discou.

Havia um Henry Wheelock em New Providence. Escreveu o número por baixo do outro. A mulher deu-lhe o endereço também, Old Buck Road, sem número.

Um latino, de maleta e poodle atrelado, dirigiu-se à recepção. Refletiu um momento, em seguida chamou a telefonista e pediu

instruções. Examinou sua série de moedas sobre a pequena prateleira da cabine, escolheu as certas.

Somente quando o telefone do outro lado deu o seu primeiro toque é que ele se lembrou de que, se aquele fosse o Henry Wheelock indicado, o próprio menino poderia atender. Dali a um momento poderia estar de fato falando com o seu Führer renascido! Uma vertigem de alegria tirou-lhe o fôlego, desequilibrando-o de encontro ao lado da cabine, quando o telefone tocou novamente. Oh, por favor, querido Menino, venha atender ao telefone!

— Alô. — Voz de mulher. Respirou fundo, soltando um suspiro. — Alô? — Alô. — Recobrou-se. — Mr. Henry Wheelock está? — Sim, mas no momento está nos fundos. — É Mrs. Wheelock quem fala? — É, sim. — Meu nome é Franklin, senhora. Segundo me consta, a senhora tem um

filho com uns catorze anos, não? — Temos... Graças a Deus. — Dirijo excursões para meninos dessa idade. Estaria interessada em

enviá-lo à Europa neste verão? Riso. — Oh, não, creio que não. — Posso enviar-lhe um folheto? — Pode, mas não vai adiantar. — O endereço é Old Buck Road? — Na verdade ele não poderá viajar. — Boa noite, então. Desculpe tê-la incomodado. Apanhou um folheto de

uma cabine vazia destinada ao aluguel de carros e passou a examiná-lo, sentado, levantando os olhos

cada vez que a porta giratória se movia. Amanhã alugaria um carro e se dirigiria a New Providence. Quando

Wheelock estivesse liquidado, iria para Nova York, entregaria o carro, venderia um diamante e voaria para Chicago. Se Robert K. Davis ainda

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estivesse em Kankakee... Mas onde diabo estava Liebermann? Às nove horas, foi até a lanchonete e tomou assento no balcão, de onde

pudesse avistar a porta giratória através da porta envidraçada. Comeu ovos mexidos com torrada, bebeu o pior café do mundo.

Recebeu um dólar de troco ao sair, voltou à cabine telefônica e telefonou para o hotel. Talvez Liebermann tivesse entrado pelo lado.

Não chegara. Ainda era aguardado. Telefonou para os dois aeroportos, na esperança — era possível, não? —

de que tivesse havido algum desastre. Nenhuma sorte desse tipo. E todos os vôos de chegada estavam dentro

do horário. O filho da puta certamente ficara em Mannheim. Mas por quanto tempo?

Era tarde demais para telefonar para Viena e saber através daquela Fräulen Zimmer. Ao contrário, era cedo demais. Ainda não eram quatro da manhã lá.

Começou a preocupar-se, achando que talvez alguém fosse se lembrar dele, sentado no saguão a noite toda e vigiando a porta.

Onde está você, seu maldito judeu canalha? Venha para que eu o mate! Quarta-feira à tarde, às duas e pouco, Liebermann saltou de um táxi

retido num engarrafamento, em pleno centro da zona de comércio de roupas de Manhattan, e seguiu pela calçada, apesar da chuva gelada. Seu guarda-chuva, que tomara emprestado das pessoas em cuja casa pernoitara, Marvin e Rita Farb, tinha uma cor berrante diferente em cada gomo (é um guarda-chuva, dizia a si mesmo, dê-se por feliz de tê-lo arranjado).

Chapinhou, apressado, pelo lado oeste da Broadway, esgueirando-se por entre outros guarda-chuvas (pretos) e homens empurrando pilhas de roupas cobertas de plástico. Olhava os números dos edifícios comerciais por onde passava. Apressou o passo.

Percorreu sete ou oito quarteirões, atravessou uma rua, lançou um olhar sobre um prédio dali — uma agência de apostas de hipódromo, uma loja de abajures e mais uns vinte andares de alvenaria de pedra encardida e janelas estreitas — e penetrou por sua entrada em arco, empurrando uma pesada porta envidraçada de vaivém, após fechar o guarda-chuva mui ticolo rido.

Passou pelo capacho preto do saguão — pequeno, quase todo tomado por uma banca de revistas e de balas — e reuniu-se à meia dúzia de pessoas à espera dos elevadores. Bateu contra o capacho de borracha molhado os sapatos encharcados e a ponta do guarda-chuva, fazendo cair um pouco de água.

No décimo segundo andar — escuro, as paredes descascando — foi

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lendo os números nas vidraças granuladas das portas: "1202, Aaron Goldman, Flores artificiais"; "1203, C. & M. Roth, Artigos de vidro importados"; "1204, Artesanato jovem de bonecas, B. Rosenszweig". A sala 1205 tinha "JDJ" colocado à vidraça, em letras metálicas, o D um pouco mais alto do que os dois /. Bateu com os nós dos dedos no vidro.

Uma mancha indistinta, cor de carne e branca, cresceu sobre a vidraça. — Sim? — veio uma voz feminina. — É Yakov Liebermann. A abertura para correspondência por baixo da vidraça abriu-se com um

estalido, lançando uma réstia de luz. — Quer passar sua carteira de identidade? Retirou o passaporte e enfiou-o pela abertura. Alguém tirou-o de seus

dedos. Esperou. A porta tinha duas fechaduras, uma que parecia mais antiga, e,

abaixo, outra de metal reluzente, com aspecto de nova. Uma lingüeta correu e a porta abriu-se. Entrou. Uma garota gorda, de uns dezesseis anos, de cabelos rui vos

puxados para trás, sorriu-lhe e devolveu o passaporte, saudando: — Shalom. Ele apanhou-o e respondeu: — Shalom. — Temos de ser cuidadosos — desculpou-se a garota. Fechou a porta e

correu a lingüeta. Usava camisa de meia branca e blue jeans apertados. O cabelo pendia-lhe pelas costas, num reluzente rabo-de-cavalo ruivo-alaranjado.

Achavam-se numa pequena sala de espera toda atravancada: uma escrivaninha, um mimeógrafo sobre uma mesa, com pilhas de papel branco e rosa, estantes de madeira bruta, com montes de boletins e reproduções de jornais. Na parede oposta, uma porta entreaberta, tendo colado um cartaz dos Jovens Defensores Judaicos, uma mão brandindo um punhal à frente de uma estrela judaica azul.

A garota estendeu a mão para o guarda-chuva. Liebermann entregou-o, ela o colocou dentro de uma cesta de metal, com dois outros, pretos e molhados.

Tirando o chapéu e o sobretudo, Liebermann indagou: — Você é a jovem que atendeu ao telefone? Ela assentiu com a cabeça. — Providenciou tudo com muita eficiência. O rabino está? — Ele acaba de chegar. Apanhou o chapéu e o sobretudo de Liebermann. — Obrigado. Como está o filho dele? — Eles ainda não sabem. O estado dele está estacionário.

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— Humm. — Liebermann meneou a cabeça, compassivo. A garota encontrou lugares para o chapéu e para o sobretudo por entre

uma árvore de cabides ocupados. Liebermann, endireitando o casaco, alisando o cabelo, lançou os olhos para as pilhas de boletins, numa prateleira ao lado dele: "O novo judeu"; "Kissinger beija a morte"¹ ; "Concessões — nunca!"

1 Trocadilho no original: KISSinger OF DEATH. (N. do T.) A garota pediu licença e, passando por Liebermann, bateu na porta

coberta pelo cartaz. Abriu-a mais e espiou para dentro. — Rabino, Mr. Liebermann está aqui. Abriu toda a porta e, sorrindo para Liebermann, afastou-se. Um homem atarracado, de barba loura, carrancudo, fitou Liebermann

quando ele entrou num gabinete abafado, com uma barafunda de gente e de mesas, em meio a um montão de coisas. E, saindo da mesa do canto, o Rabino Moshe Gorin, bem-apessoado, de cabelos pretos, sólido, sorridente, rosto lívido, colete xadrez e camisa amarela aberta no peito, segurou a mão de Liebermann, apertando-a entre as suas, e pousou nele seus magnéticos olhos castanhos, carregados de sombras.

— Tenho vontade de conhecê-lo desde que era garoto — proferiu em voz suave, porém veemente. — O senhor é um dos poucos homens deste mundo que eu realmente admiro, não apenas por causa do que fez, mas por tê-lo feito sem qualquer ajuda do sistema. O sistema judaico, quero dizer.

Embaraçado, porém satisfeito, Liebermann retorquiu: — Obrigado. Queria conhecê-lo também, rabino. Sou grato por sua

vinda aqui. Gorin apresentou os outros homens. O de barba loura, nariz de gavião,

com um aperto de mão triturante, era Phil Greenspan, seu subcomandante. Um alto, calvo, de óculos, era Elliott Bachrach. Um outro, corpulento, de barba preta: Paul Stern. O mais jovem — vinte e cinco anos mais ou menos —, grosso bigode negro, olhos verdes, e outro aperto de mão triturante: Jay Rabinowitz. Todos estavam em mangas de camisa, e, como Gorin, de solidéu.

Trouxeram cadeiras de outras mesas, puseram-nas em volta da extremidade da mesa de Gorin, e sentaram-se. O alto, de óculos, Bachrach, recostou-se ao peitoril da janela, atrás de Gorin, os braços cruzados, a cortina amarela toda baixada por trás dele. Liebermann, em frente a Gorin, olhou aqueles homens sisudos e de aparência resoluta, e o humilde gabinete atravancado, com os seus mapas de parede da cidade e do mundo, cavalete com quadro-negro, pilhas de livros, papéis, caixas de papelão.

— Não repare na desordem — fez Gorin, com um aceno.

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— Não é muito diferente do meu escritório — retorquiu Liebermann, sorrindo. — Um pouco maior, talvez.

— Lamento pelo senhor. — Como está passando o seu filho? — Acho que ficará bom — respondeu Gorin. — Seu estado está

estacionário. — Agradeço sua vinda. Gorin encolheu os ombros. — A mãe está com ele. Fiz minhas preces. — Sorriu. Liebermann tentou acomodar-se na cadeira sem braços. — Sempre que falo em público — disse —, quero dizer... perguntam-me

o que acho do senhor. Sempre digo que "nunca o vi pessoalmente, portanto não tenho opinião".

— Sorriu para Gorin. — Agora terei de dar nova resposta. — Favorável, espero. — O telefone sobre a mesa tocou. — Ninguém

está aqui, Sandy! — gritou Gorin em direção à porta. — A menos que seja minha mulher! — Voltou-se para Liebermann, indagando: — Não está esperando algum telefonema, está?

Liebermann meneou a cabeça. — Ninguém sabe que estou aqui. Pensam que estou em Washington. —

Pigarreou, sentado com as mãos sobre os joelhos. — Saí a caminho de lá ontem à tarde — declarou.

— Para ir ao FBI, devido a uns assassinatos que estou investigando. Aqui e na Europa. Cometidos por antigos membros das ss.

— Assassinatos recentes? — Gorin mostrou-se inquieto. — Ainda estão sendo cometidos — tornou Liebermann. — Planejados

pela Organização dos Camaradas, da América do Sul, e pelo Dr. Mengele. — Aquele filho da puta... — murmurou Gorin. Os homens agitaram-se. O de barba loura, Greenspan, informou a

Liebermann: — Temos uma nova ramificação no Rio de Janeiro. Logo que estiver

suficientemente organizada, treinaremos uma equipe para apanhá-lo. — Desejo-lhes sorte — disse Liebermann. — Ele ainda está vivo, sim,

dirigindo todo este negócio. Matou um moço lá, um rapaz judeu de Evanston, Illinois, em setembro. O rapaz estava ao telefone, falando comigo, quando aconteceu. Meu problema agora é que levará tempo para convencer o FBI. Sei do que estou falando.

— Por que esperou tanto? — indagou Gorin. — Se sabia em setembro... — Eu não sabia — retorquiu Liebermann. — Houve muitos "se",

"talvez", incertezas. Somente agora tenho tudo armado. — Meneou a cabeça e suspirou. — Foi então que me ocorreu no avião — disse a Gorin — que talvez vocês, os JDJ — olhou para todos —, pudessem ajudar-me nisso,

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enquanto sigo para Washington. — Tudo o que pudermos fazer — tornou Gorin —, é só pedir, que

obterá. — Os outros assentiram. — Obrigado — respondeu Liebermann. — É o que eu esperava. Trata-se

de proteger alguém, um homem na Pensilvânia. Num vilarejo de lá, New Providence, um ponto no mapa, perto da cidade de Lancaster.

— Pensilvânia, terra holandesa — disse o homem de barba preta. — Conheço-a.

— Esse homem é o próximo a ser morto neste país — anunciou Liebermann. — No dia 22 deste mês, talvez antes. Talvez daqui a poucos dias. Portanto, precisa ser protegido. Mas o homem que vem matá-lo não deve ser espantado ou morto. Tem de ser capturado, a fim de que o interroguemos.

— Olhou para Gorin. — Tem pessoas que possam cumprir uma missa dessas? Proteger alguém, capturar alguém?

Gorin acenou afirmativamente. — Está olhando para elas — asseverou Greenspan, e, dirigindo-se a

Gorin: — Deixe Jay fazer a demonstração. Eu me encarrego disso. Gorin sorriu, inclinou a cabeça na direção de Greenspan e informou a

Liebermann: — A maior tristeza deste aqui é ter perdido a Segunda Guerra Mundial.

É o nosso instrutor de combate. — Será apenas por uma semana mais ou menos, espero — assegurou Liebermann. — Somente até o FBI entrar em ação. — Para que precisa deles? — indagou o jovem de bigode, e Greenspan

garantiu a Liebermann: — Vamos apanhá-lo para o senhor, e obteremos mais depressa informações dele do que o FBI. Com toda a certeza.

O telefone tocou. Liebermann meneou a cabeça. — Tenho de usá-los — declarou — porque através deles a coisa chega à

Interpol. Há outros países envolvidos. Há mais cinco homens além desse. Gorin olhava em direção à porta. Voltou-se para Liebermann. — Quantos assassinatos houve? — indagou. — Oito, que eu saiba. Gorin mostrou-se acabrunhado. Alguém assobiou. — Sete, que eu saiba — corrigiu Liebermann. — Um provável. Talvez

outros ainda. — Judeus? — indagou Gorin. Liebermann meneou a cabeça. — Gois¹. 1 Nome dado pelos judeus aos que não são judeus. (N. do T.)

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— Por quê? — perguntou Bach, da janela. — Com que objetivo? — Sim — instou Gorin. — Quem são eles? Quem é o da Pensilvânia? Liebermann respirou fundo. Inclinou-se para diante. — Se eu lhes disser que é muito, muito importante — asseverou —, mais

importante a longo prazo do que o anti-semitismo russo e a pressão sobre Israel, seria bastante para vocês agora? Garanto-lhes que não estou exagerando.

Em silêncio, Gorin franziu a testa para a mesa diante de si. Ergueu os olhos para Liebermann, meneou a cabeça e sorriu, desculpando-se.

— Não — disse. — O senhor está pedindo a Moshe Gorin que lhe ceda três ou quatro de seus melhores homens, talvez mais. Homens, não meninos. Numa hora em que estamos espalhados demais, em que o governo vive me pressionando, achando que estou estragando a sua preciosa distensão. Não, Yakov — meneou a cabeça —, dar-lhe-ei toda a ajuda que puder, mas que espécie de líder seria eu se entregasse cegamente meus homens, ainda que fosse a Yakov Liebermann?

Liebermann assentiu. — Imaginei que no mínimo haveria de querer saber — concedeu. — Mas não me peça provas, rabino. Apenas escute e

confie em mim. Do contrário, terei perdido meu tempo. — Olhou para todos eles, para Gorin, pigarreou. — Por algum acaso — indagou — teriam estudado um pouco de biologia?

— Deus! — exclamou o de bigode. — O termo usado é "clone". Saiu um artigo no Times sobre isso há

alguns anos. Gorin sorriu levemente, enrolando uma linha solta em torno do botão do

punho. — Esta manhã — declarou —, junto à cama de meu filho, exclamei: "O

que virá depois, Senhor?" — Fez um gesto em direção a Liebermann, com um aceno de cabeça, sorrindo amargamente. — Noventa e quatro Hitlers.

— Noventa e quatro meninos com os genes de Hitler — retificou Liebermann.

— Para mim — disse Gorin — isso significa noventa e quatro Hitlers. — Tem certeza de que este tal de Wheelock ainda está vivo? — indagou

Greenspan a Liebermann. — Tenho. — E que não se mudou? — reiterou o de barba preta. — Tenho o seu telefone — respondeu Liebermann. — Não queria falar

com ele ainda, até conseguir saber se vocês fariam o que eu desejava que

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fizessem. — Olhou para Gorin. — Entretanto, pedi à mulher na casa de quem me hospedei que

telefonasse para ele esta manhã. Ela alegou que pretendia comprar um cão e teve como resposta que eles eram criadores. É ele mesmo. Ela obteve indicações de como chegar lá.

— Teremos de fazer isto fora da Filadélfia — disse Gorin a Greenspan. E a Liebermann: — O que não faremos é atravessar uma fronteira estadual levando armas. O FBI adoraria um pretexto para nos prender e aos nazistas.

— Telefono então para Wheelock agora? — indagou Liebermann. Gorin assentiu. — Vou colocar alguém junto dele, em sua casa — declarou Greenspan. O rapaz de bigode chegou o telefone para perto de Liebermann. Liebermann pôs os óculos e tirou um envelope do bolso do casaco. — Olá, Mr. Wheelock, seu filho é Hitler — motejou Bachrach, da janela. — Não vou falar no menino — alegou Liebermann. — Ele poderá

desligar o telefone na minha cara, dadas as condições em que foi realizada a adoção. É só discar, não é?

— Se tem o código da região. Liebermann discou, lendo o número escrito no envelope. — Esta é a época de férias — disse Gorin. — É provável que o menino

atenda. — Somos amigos — retorquiu Liebermann, impassível. — Já estive com

ele duas vezes. O telefone do outro lado começou a tocar. Tocou novamente.

Liebermann olhou para Gorin, que estava de olhar fito nele. — Alô. — Atendeu grossa voz masculina. — Mr. Henry Wheelock? — É ele quem fala. — Mr. "Wheelock, meu nome é Yakov Liebermann. Estou telefonando

de Nova York. Dirijo o Centro de Informação de Crimes de Guerra, de Viena — talvez tenha ouvido falar em nós, não? Colhemos informações a respeito de criminosos de guerra nazistas, ajudamos a encontrá-los e auxiliamos a promotoria.

— Já ouvi falar. O negócio daquele Eichmann. — Isto mesmo, e mais outros. Mr. Wheelock, estou atrás de alguém

presentemente, alguém que se acha neste país. Estou a caminho de Washington, a fim de recorrer ao FBI. Este homem matou dois ou três homens aqui, não há muito tempo, e está planejando matar mais.

— Está procurando um cão de guarda? — Não — respondeu Liebermann. — O próximo homem que ele planeja

matar, Mr. Wheelock — olhou para Gorin —, é o senhor.

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— Ah, é? Diga logo quem está falando! É o Ted? Arranjou um perfeito sotaque alemon, seu cabeça de bagre.

— Não se trata de brincadeira — disse Liebermann. — Sei que o senhor julga que um nazista não teria motivos para matá-lo...

— Não teria? Eu matei uma quantidade deles. Aposto que ficariam tremendamente felizes de poderem diminuir a diferença. Se ainda existir algum por perto...

— Existe um por perto... — Vamos acabar com isso, quem é que está falando? — É Yakov Liebermann, Mr. Wheelock. — Incrível! — exclamou Gorin. Ao redor, cresceu um coro de protestos

irritados. Liebermann enfiou um dedo no seu ouvido livre. — Juro-lhe — insistiu — que um homem, um antigo membro das ss,

está a caminho de New Providence para matá-lo, talvez dentro de alguns dias. Estou tentando salvar-lhe a vida.

Silêncio. — Estou aqui, no escritório do Rabino Moshe Gorin, dos Jovens

Defensores Judaicos. Até que eu consiga a proteção do FBI para o senhor, o que talvez demore cerca de uma semana, o rabino tenciona enviar alguns de seus homens. Eles poderão chegar...

Lançou um olhar interrogativo para Gorin, que respondeu: — Amanhã de manhã. — Amanhã de manhã — completou Liebermann. — O senhor

colaborará com eles até que os homens do FBI cheguem? Silêncio. — Mr. Wheelock? — Olhe, Mr. Liebermann, se é mesmo Mr. Liebermann. Está bem, talvez

seja assim. Mas deixe-me dizer uma coisa. Acontece que o senhor está falando com um dos homens em melhor situação de segurança dos Estados Unidos. Primeiro, sou antigo agente de repressão de uma penitenciária estadual, portanto sei alguma coisa a respeito de como cuidar de mim próprio. Depois, tenho a casa cheia de Dobermanns treinados. Digo uma palavra e eles saltam na garganta de qualquer um que olhe torto para mim.

— Fico satisfeito em ouvir isso — tornou Liebermann —, mas poderão eles evitar que uma parede desabe sobre o senhor? Ou que alguém o alveje a distância? Foi o que aconteceu com dois outros homens.

— Mas que diabo de história é essa? Nenhum nazista está atrás de mim. O senhor está falando com o Henry Wheelock errado.

— Existe outro em New Providence que crie Dobermanns? Com sessenta e cinco anos de idade, uma esposa muito mais jovem, um filho com

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quase catorze anos? Silêncio. — O senhor precisa de proteção — insistiu Liebermann. — E o nazista

precisa ser capturado, e não morto pelos cães. — Vou acreditar quando o FBI assim disser. Não quero saber de uns

garotos judeus com bastões de beisebol à minha volta. Liebermann calou-se por um momento. — Mr. Wheelock — indagou —, posso ir vê-lo a meio do caminho para

Washington? Explicarei melhor. Gorin olhou-o, interrogativo; ele desviou o olhar. — Venha, se quiser, estou sempre em casa. — Quando é que sua esposa não está aí? — Ela passa fora a maior parte do dia. É professora. — E o rapaz está na escola também? — Quando não está às voltas com sua mania de cinema. Será um futuro

Alfred Hitchcock, é o que diz. — Estarei aí por volta de meio-dia, amanhã. — Como quiser. Mas somente o senhor. Se eu vir algum "Defensor

Judaico" por perto, solto os cachorros. Tem um lápis? Vou lhe dar o endereço.

— Já tenho — retorquiu Liebermann. — Vejo-o amanhã. E espero que esta noite o senhor permaneça em casa.

— É o que estou pretendendo. Liebermann desligou. — Terei de dizer-lhe que isso tem relação com a adoção — explicou a

Gorin. — Sempre é preferível que ele não desligue na minha cara. — Sorriu. — Também terei de convencê-lo de que os JDJ não são "uns garotos judeus com bastões de beisebol". — E, dirigindo-se a Greenspan, acrescentou: — Terá de ficar esperando por perto, até que eu o chame.

— Tenho de ir à Filadélfia primeiro — retorquiu Greenspan. — Para pegar meus homens e o meu equipamento. — E preveniu a Gorin: — Quero levar Paul.

Estabeleceram os planos. Greenspan e Paul Stern iriam à Filadélfia no carro de Stern, logo que arrumassem as suas coisas, e Liebermann seguiria para New Providence no carro de Greenspan, pela manhã. Quando persuadisse Wheelock a aceitar a proteção dos JDJ, telefonaria para a Filadélfia e a equipe partiria ao seu encontro, na casa de Wheelock. Uma vez assentadas as coisas ele rumaria para Washington, conservando o carro de Greenspan, até que o FBI substituísse a equipe.

— Preciso avisar meu escritório — disse ele, mexendo o chá. — Pensam que já estou lá.

Gorin fez um gesto em direção ao telefone. Liebermann meneou a

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cabeça. — Não, agora não, é muito tarde lá. Cedo, pela manhã, telefonarei. —

Sorriu. — Não vou explorar os JDJ. Gorin encolheu os ombros. — Telefono para a Europa o tempo todo — retorquiu. — Para as nossas

ramificações. Liebermann aquiesceu com a cabeça, meditativo e sentenciou: — Os contribuintes me largaram e aderiram ao senhor. — Acredito que alguns o fizeram — tornou Gorin. — Mas o fato de

estarmos sentados aqui juntos, trabalhando juntos, prova que eles estão ajudando a mesma causa, não é verdade?

— Acho que sim — acedeu Liebermann. — Sim, é verdade. Pouco depois, acrescentou: — O garoto do Wheelock não pinta quadros. Estamos em 1975: ele faz

cinema. — Sorriu. — Mas escolheu sozinho as iniciais adequadas. Quer ser um novo Alfred Hitchcock. E o pai, o funcionário público, não acha isso uma boa idéia. Hitler e o pai tinham grandes discussões porque ele queria ser artista.

Mengele atravessara a rua de manhã cedo na quarta-feira e tomara um

quarto em outro hotel, o Kenilworth, registrando-se como Mr. Kurt Koehler, da Sheridan Road, 18, Evanston, Illinois. Pediram-lhe, como era de se esperar, para pagar adiantado, uma vez que trazia apenas uma fina pasta de couro (documentos, faca, pentes para a Browning, diamantes) e um saquinho de papel (uvas).

Não poderia telefonar para o escritório de Liebermann do quarto do Sr. Ramón Aschheim y Negrín, pois em seguida à morte de Liebermann os telefonemas de Koehler certamente seriam controlados, e tampouco se sentia particularmente disposto a juntar sete dólares em moedas e passar uma hora encardindo o polegar enfiando-as num telefone de cabine. E, como Kurt Koehler, poderia receber um telefonema, se necessário.

No seu segundo quarto (nem um décimo de estrela) conseguira comunicar-se com Fräulen Zimmer e explicara-lhe que voara de Nova York para Washington, enviando o corpo de Barry sem acompanhante, dada a avassaladora importância de fazer chegar às mãos de Herr Liebermann o mais depressa possível as anotações do pobre rapaz, ainda mais importantes do que julgara a princípio. Mas onde, por favor, me digam, se encontrava Herr Liebermann?

Não estava no Benjamin Franklin? Fräulen Zimmer se mostrara surpresa, porém não alarmada. Ela telefonaria para Mannheim, a fim de ver o que

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poderia averiguar. Talvez fosse bom Herr Koehler tentar outros hotéis, embora ela não pudesse imaginar o motivo por que Herr Liebermann teria ido para outro lugar. Certamente ele telefonaria dentro em breve, geralmente o fazia quando mudava os planos. (Geralmente!) Sim, ela telefonaria para Herr Koehler logo que reunisse informações. Estava no Kenilworth, gentil Fräulen. O Benjamin Franklin estava cheio quando ele chegara. Mas com um quarto reservado para Herr Liebermann, claro.

Na altura em que ela telefonara de volta, ele havia ligado para mais de trinta hotéis, e para o Benjamin Franklin seis vezes.

Liebermann deixara Frankfurt no seu pretendido vôo na terça-feira pela manhã. Portanto, ou estaria em Washington ou se detivera em Nova York.

— Onde ele se hospeda lá? — Às vezes no Hotel Edison, mas geralmente em casa de amigos,

colaboradores. Tem uma quantidade deles. É uma grande comunidade judaica, como sabe.

— Sei, sim. — Não se preocupe, Herr Koehler, estou certa de que terei notícias em

breve, e lhe direi que o senhor está à espera. Vou ficar aqui até tarde, para o caso de isso acontecer.

Ele telefonou para o Edison, de Nova York, para outros hotéis de Washington, para o Benjamin Franklin a cada meia hora. Correu até lá, debaixo da chuva gelada, a fim de certificar-se de que suas roupas e a mala ainda estavam no seu quarto, com a tabuleta "É favor não perturbar".

Passou a noite de quarta-feira no Kenilworth. Tentou dormir. Ficou deprimido. Lembrou-se da arma na mesinha-de-cabeceira... Teria realmente possibilidade de apanhar Liebermann e os outros que ainda deviam ser mortos (setenta e sete!) antes que ele próprio fosse morto? Ou, pior ainda, capturado e obrigado a suportar o tipo de hediondo pseudojulgamento que atingira os pobres Stangl e Eichmann? Por que não acabar com tantas lutas, projetos, preocupações?

Descobriu, à uma da manhã, na televisão americana — o que certamente era obra divina, um sinal enviado para despertá-lo do desânimo —, um filme glorioso com o Führer e o General von Blomberg assistindo a uma demonstração da Luftwaffe. Silenciou a detestável narração inglesa e ficou com os olhos naquelas imagens mudas, granulosas e velhas, tão de torcer o coração, agridoces, reanimadoras...

Dormiu. Poucos minutos depois das oito, na manhã de quinta-feira, quando estava

prestes a fazer outra chamada para Viena, o telefone tocou. — Alô? — É Mr. Kurt Koehler? — Era uma mulher, americana, não Fräulen

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Zimmer. — Sim... — Alô, aqui é Rita Farb. Sou amiga de Yakov Liebermann. Ele esteve

hospedado em nossa casa, em Nova York. Pediu-me para telefonar para o senhor. Ele telefonou para o seu escritório em Viena há pouco, e soube que o senhor está à sua espera. Ele chegará a Washington esta noite, por volta das seis. Gostaria que o senhor jantasse com ele. Vai telefonar-lhe assim que chegar.

Aliviado, contente, Mengele exclamou: — Magnífico! — Será que o senhor lhe poderia fazer um favor? Telefonar para o Hotel

Benjamin Franklin e avisá-los de que ele irá com toda a certeza? — Sim, com muito prazer! Sabe em que vôo ele chega? — Ele vai de carro, não de avião. Acaba de partir. Por isso é que sou eu

que estou telefonando. Ele estava um pouco apressado. Mengele franziu a testa. — Não chegará então um pouco antes das seis? — indagou. — Uma vez

que já saiu? — Não, terá de fazer um desvio até a Pensilvânia. Talvez chegue até um

pouco depois das seis, mas estará aí sem falta e imediatamente lhe telefonará.

Mengele calou-se por um momento. Em seguida, indagou: — Será que ele vai falar com Henry Wheelock? Em New Providence? — Sim, fui eu que lhe dei o endereço. É sem dúvida interessante ter

Yakov em casa. Calculo que alguma coisa realmente importante está em andamento.

— Sim — retorquiu Mengele. — Obrigado por me ter telefonado. Ah, sabe a que horas Yakov e Henry vão estar juntos?

— Ao meio-dia. — Obrigado. Adeus. Apertou o botão do telefone, sem largar, consultou o relógio, fechou os

olhos e permaneceu imóvel. Abriu os olhos, largou o botão, bateu-lhe de leve. Comunicou-se com a caixa e pediu-lhe para aprontar a sua conta da comida e do telefone.

Pôs o bigode, a peruca. A arma. Casaco, sobretudo, chapéu. Apanhou a pasta.

Atravessou a rua correndo e entrou no Benjamin Fran-klin. Parou no guichê da caixa, a fim de dar instruções, e dirigiu-se apressadamente à cabine de aluguel de carros. Uma moça bonita, de uniforme amarelo e preto, deu-lhe um sorriso radioso.

Que se tornou menos radioso quando soube que ele era paraguaio e não

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tinha cartão de crédito. O custo estimado do aluguel teria de ser pago adiantadamente. Uns sessenta dólares, achava ela. Ia calculá-lo com mais precisão. Ele largou algumas notas, deixou sua carteira de motorista, disse-lhe para aprontar o carro dentro de dez minutos e não mais, e apressou-se em direção aos elevadores.

Por volta de nove horas, estava na estrada, a caminho de Baltimore, num Ford Pinto branco, sob um brilhante céu azul. Arma debaixo do braço, faca no bolso do sobretudo. Deus do seu lado.

Guiando dentro do limite de noventa quilômetros por hora, chegaria a New Providence quase uma hora antes de Liebermann.

De quando em quando outros carros o ultrapassavam. Americanos! O limite é noventa, eles vão a cem. Meneou a cabeça e permitiu-se andar mais depressa. A gente dança conforme a música...

Chegou a New Providence — um punhado de casas pardacentas, uma

loja, uma agência de correio cor de tijolo — às dez para as onze, mas aí precisou encontrar Old Buck Road sem pedir indicações a alguém que pudesse depois descrever sua pessoa, ou o carro, à polícia. O mapa rodoviário que arranjara num posto de gasolina de Maryland, mais detalhado do que o geral, mostrava uma cidade de nome Buck, a sudoeste de New Providence. Seguiu naquela direção, por uma estrada de duas pistas, cheia de saliências, que serpenteava através de terras agrícolas atingidas pelo inverno. Diminuía a marcha a cada encruzilhada e apurava a vista para as tabuletas e marcos quase ilegíveis. Carros e caminhões passavam com pouca freqüência.

Achou Old Buck Road, com duas bifurcações, uma à direita e outra à esquerda. Escolheu a da direita e virou para New Providence, olhando as caixas de correio. Passou por "Gruber" e "C. Johnson". Árvores despidas entrelaçavam ramos por sobre a estrada estreita. Uma charrete preta veio se aproximando. Vira outras parecidas em cartazes, na estrada principal. A seita mennonita constituía atração turística, segundo parecia. Sob a capota preta, um homem barbado, de chapéu preto, e uma mulher de touca preta estavam sentados, olhar fixo adiante.

As caixas de correio, junto a entradas que iam dar em terrenos arborizados, eram poucas e distanciadas. O que era bom, assim podia usar a arma.

"H. Wheelock." A bandeirola vermelha de aviso estava ao lado da caixa "CÃES DE GUARDA", avisava (ou anunciava?) uma tabuleta abaixo dela, em letras pretas maltraçadas.

O que era mau. Embora não inteiramente mau, uma vez que lhe dava um motivo mais razoável do que o negócio da excursão-de-verão-para-o-menino

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que pretendia impingir novamente. Virou à direita, guiando as rodas do carro para dentro dos sulcos

profundos do caminho de terra que subia gradualmente, em corcova, colina acima, através das árvores. O fundo do carro raspava de encontro ao ressalto: isso era problema para Herr Hertz. Mas seu também, caso o carro ficasse inutilizado. Guiou devagar. Consultou o relógio: onze e dezoito.

Sim, ele se lembrava vagamente de um casal americano que havia incluído entre os seus interesses a criação de cães. Sem dúvida os Wheelock. E o guarda de prisão, agora certamente aposentado, talvez tivesse transformado em ocupação de tempo integral seu antigo passatempo.

— Bom dia! — exclamou Mengele em voz alta. — A tabuleta lá embaixo diz "Cães de guarda", e é isso exatamente o que estou procurando.

Apertou o bigode grosso, bateu de leve na peruca nos lados e atrás, inclinou o espelho e olhou-se. Endireitou-o e seguiu vagarosamente pelo caminho sulcado. Enfiou a mão por dentro do casaco e do sobretudo, abrindo o coldre, de modo a que a arma pudesse ser sacada livremente.

Latidos de cães, um tumulto deles, irromperam de uma clareira ensolarada, onde uma casa de dois andares — persianas brancas, telhas pardas — situava-se em ângulo em relação a ele. E, nos fundos, uma dúzia de cães arrojava-se de encontro a uma grade alta de arame, latindo, ganindo. Um homem de cabelos brancos, de pé atrás deles, olhava em sua direção.

Guiou até junto da alameda calçada de pedra da casa e parou o carro ali. Pôs em ponto morto e girou a chave. Um dos cães gania agora, filhote, a julgar pelo som. No outro extremo da casa, uma caminhonete vermelha estava parada dentro de uma garagem para dois carros; a outra metade estava vazia.

Destravou a porta do carro, abriu-a e saltou. Estirou-se e cocou as costas, enquanto um gemido do carro lembrou-o de tirar a chave. A arma moveu-se embaixo do braço. Bateu a porta e ficou olhando o pórtico arrematado de branco na extremidade da alameda. Então era ali que um deles morava! Talvez uma fotografia do menino estivesse em algum canto. Que maravilha ver aquele rosto de quase catorze anos! Deus do céu, e se ele não estivesse na escola hoje? Idéia perturbadora, mas emocionante!

O homem de cabelos brancos veio em passos longos pelo lado da casa, com um cão ao lado, preto e reluzente. Usava um volumoso blusão marrom, luvas pretas, calças marrons. Era alto e largo, o rosto corado e soturno, hostil.

Mengele sorriu. — Bom dia! — exclamou. — A... — O senhor é Liebermann? — indagou o homem, numa voz grossa,

aproximando-se com longas passadas.

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Mengele sorriu mais largamente. — Ja, sim! — exclamou. — Sim! Mr. Wheelock? O homem parou perto de Mengele e acenou afirmativamente com a

cabeça de cabelos brancos ondulados. O cão, um belo Dobermann preto-azulado, rosnou para Mengele, mostrando os dentes brancos aguçados. Um dedo de couro preto enganchava-se na coleira de corrente. Descoseduras e rasgões esfrangalhavam as mangas do grosseiro blusão marrom, as fibras do forro branco sobressaindo.

— Cheguei um pouco cedo — desculpou-se Mengele. Wheelock olhou para além dele, em direção ao carro, e

depois contemplou-o, os olhos azuis apertando-se sob as espessas sobrancelhas brancas. Rugas vincavam suas faces com barba branca, curta e espetada.

— Entre — disse, enviesando a cabeça branca em direção à casa. — Não posso deixar de reconhecer que o senhor me despertou uma curiosidade dos diabos.

Voltou-se e foi andando na frente, pela alameda, segurando pelo dedo a coleira do Dobermann preto-azulado.

— Lindo cão — observou Mengele, indo atrás. Wheelock subiu até o pórtico. A porta branca tinha uma aldrava representando uma cabeça de cão.

— Seu filho está em casa? — indagou Mengele. — Não tem ninguém em casa — retorquiu Wheelock, abrindo a porta.

— Exceto eles. — Dobermanns, dois, três, vieram lamber-lhe a luva, rosnando para Mengele. — Quietos, meninos — tranqüilizou Wheelock. — É um amigo.

— Fez um gesto para os cães recuarem — eles obedeceram — e entrou com o outro cão, fazendo um sinal para Mengele. — Feche a porta.

Mengele entrou e fechou a porta. Parou, os olhos em Wheelock, agachado entre os Dobermanns negros aglomerados, afagando-lhes as cabeças, dando palmadas em seus flancos compactos, enquanto esfregavam nele a língua e o focinho.

— Como são lindos — disse Mengele. — Estes jovens aqui — tornou Wheelock, feliz — são Harpo e Zeppo,

foi meu filho quem deu os nomes, a única ninhada que lhe permiti batizar. Este velhote aqui é Sansão — quieto, Sansãozinho — e este é Major. Apresento-lhes Mr. Liebermann, rapazes. Um amigo. — Ergueu-se e sorriu para Mengele, puxando as pontas das luvas. — Pode ver agora por que não urino nas calças quando o senhor me diz que alguém anda no meu encalço.

Mengele acenou afirmativamente. — É — acedeu. — Baixou os olhos para os dois Dobermanns que

farejavam seu sobretudo. — Magnífica proteção — acrescentou —, uns cães

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como esses. — Pulam na garganta de quem me olhar enviesado. — Wheelock abriu o

fecho ecler do blusão. Havia uma camisa vermelha por dentro. — Tire seu sobretudo — recomendou.

— Pendure ali. À direita de Mengele havia um móvel alto, com grandes cabides pretos.

Seu espelho oval mostrava uma cadeira e a extremidade de uma mesa de jantar no aposento do outro lado. Mengele pendurou o chapéu num cabide, desabotoou o sobretudo. Sorriu para os Dobermanns, sorriu para Wheelock, que tirava o blusão. Atrás deste subia uma íngreme escada estreita.

— Então o senhor foi quem apanhou o tal de Eichmann. — Wheelock pendurou seu blusão de mangas rasgadas.

— Os israelenses é que o pegaram — retorquiu Mengele, tirando o sobretudo. — Entretanto, ajudei-os, é claro. Descobri onde se escondia, lá na Argentina.

— Ganhou recompensa? — Não. — Mengele pendurou o sobretudo. — Faço essas coisas por

prazer — declarou. — Odeio os nazistas. Deviam ser caçados e destruídos como uma praga.

— Os crioulos, não os nazistas, é que nos devem preocupar atualmente — contraveio Wheelock. — Venha cá para dentro.

Endireitando o casaco, Mengele entrou atrás de Wheelock na sala à direita. Dois dos Dobermanns acompanhavam-no, fuçando suas pernas. Os outros dois acompanharam Wheelock. O aposento era uma aprazível sala de estar, com cortinas brancas nas janelas, uma lareira de pedra, e, à esquerda, toda uma parede de fitas de prêmio coloridas, troféus dourados, fotografias com molduras pretas.

— Ah, mas isso é notável — louvou Mengele, e foi olhar. Os retratos eram todos de Dobermanns, nenhum do menino.

— Agora me diga por que há um nazista atrás de mim. Mengele voltou-se. Wheelock estava sentado num canapé vitoriano, entre as duas janelas da frente, retirando porções de fumo de dentro de um pote de vidro lapidado em cima de uma mesa baixa e enfiando-o dentro de um atarracado cachimbo preto. Um Dobermann tinha as patas dianteiras sobre a mesa e observava-o.

Outro Dobermann, o maior de todos, jazia sobre um tapete oval, entre Wheelock e Mengele, de olhos erguidos para Mengele, tranqüilo, porém interessado.

Os outros dois Dobermanns farejavam as pernas de Mengele, as pontas dos dedos.

Wheelock olhou Mengele, inquisitivo: — Então?

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Sorrindo, Mengele disse: — Sabe, fica difícil para mim falar com... — e indicou com um gesto o

Dobermann ao seu lado. — Não se preocupe — tranqüilizou Wheelock, preparando o cachimbo.

— Não irão perturbar, a menos que o senhor me perturbe. Trate de sentar-se e falar. Eles se habituarão ao senhor.

Mengele sentou-se num sofá de couro, que rangeu. Um dos Dobermanns saltou em pé ao seu lado, dando reviravoltas, pronto a deitar-se de novo. O Dobermann sobre o tapete levantou-se e veio empurrar a cabeça preta e luzidia entre os joelhos de Mengele, farejando em direção à virilha.

— Sansão — admoestou Wheelock, sugando a chama do fósforo dentro do fornilho do cachimbo.

O Dobermann retirou a cabeça e deitou-se no chão, olhando para Mengele. Outro Dobermann, sentado aos pés de Mengele, cocou a coleira de corrente com a pata traseira. O Dobermann deitado junto a Mengele, no sofá, observava o Dobermann sentado diante de Mengele.

Mengele pigarreou e anunciou: — O nazista que virá é o próprio Dr. Mengele. Provavelmente estará

aqui... — Um médico? — Wheelock, segurando o cachimbo, sacudiu o fósforo. — Sim — assentiu Mengele. — O Dr. Mengele. Mr. Wheelock, não

duvido que estes cães estejam perfeitamente treinados, posso avaliar, tendo diante dos olhos estes magníficos prêmios — indicou com o dedo a parede atrás de si —, mas o fato é que, quando eu tinha oito anos, fui atacado por um cão. Não um Dobermann, mas um pastor alemão. — Tocou na coxa esquerda. — A coxa inteira — explicou

— ainda hoje é um montão de cicatrizes. E ficaram cicatrizes mentais também. Sinto-me muito inquieto quando tenho um cão junto de mim, no mesmo aposento, e quatro então... bem, é um verdadeiro pesadelo!

Wheelock baixou o cachimbo. — Devia ter dito isso logo de cara — disse. E levantou-se, estalando os

dedos. Os Dobermanns pularam, arremessando-se, aos atropelos, para o seu lado. — Venham, meninos — disse, dirigindo o bando através da sala, em direção à porta junto ao sofá. — Temos aqui em casa um outro Wally Montague. Entrem. — Apontou-lhes em direção à porta, retirou com a ponta do pé alguma coisa embaixo dela e fechou-a, experimentando a maçaneta.

— Eles não podem entrar por outro caminho? — indagou Mengele. — Não. — Wheelock tornou a cruzar a sala. Mengele suspirou, dizendo: — Obrigado. Sinto-me muito melhor agora. — Chegou-se para a frente

do sofá e desabotoou o casaco. — Conte sua história depressa — preveniu Wheelock, sentando no sofá,

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pegando o cachimbo. — Não gosto de mantê-los presos muito tempo. — Entrarei direto no assunto — principiou Mengele —, mas primeiro —

ergueu um dedo — gostaria de emprestar-lhe uma arma, a fim de que possa defender-se em momentos como este, quando os cães não estão com o senhor.

— Tenho uma arma — retorquiu Wheelock, recostando-se, com o cachimbo entre os dentes, os braços ao longo da armação do sofá, as pernas cruzadas. — Uma Luger.

— Retirou o cachimbo da boca, soprou a fumaça. — Duas espingardas e um fuzil.

— Esta é uma Browning — tornou Mengele, tirando a arma do coldre. — Preferível à Luger, por ter um pente de treze balas. — Empurrou a trava para baixo com o polegar e, segurando a arma em posição de atirar, virou-a para Wheelock. — Levante as mãos — ordenou. — Primeiro pouse o cachimbo, devagar.

Wheelock franziu a testa para ele, as sobrancelhas brancas eriçadas. — Ouça — disse Mengele. — Não quero fazer-lhe mal. Por que o faria?

É um perfeito estranho para mim. Em Liebermann é que estou interessado. Seria mais correto dizer: "É ele que me interessa" — acrescentou Mengele.

Wheelock descruzou as pernas e inclinou-se para a frente vagarosamente, fitando Mengele com um ar feroz, o rosto rubro. Pousou o cachimbo e ergueu as mãos abertas acima da cabeça.

— Na cabeça — sugeriu Mengele. — O senhor tem uma bonita cabeleira; invejo-o. Infelizmente, isto aqui é uma peruca. — Levantou-se do sofá, sacudindo o cano da arma para cima.

Wheelock ergueu-se, as mãos cruzadas na nuca. — Não me importo merda nenhuma tanto com judeus quanto com

nazistas — asseverou. — Ótimo — retorquiu Mengele, mantendo a arma apontada para o peito

de Wheelock, coberto pela camisa vermelha. — Entretanto, gostaria de pô-lo num lugar onde não pudesse fazer nenhum sinal para Liebermann. Existe algum porão?

— Claro — respondeu Wheelock. — Vá para lá. Andando tranqüilamente. Há outros cães nesta casa, além

desses quatro? — Não. — Wheelock caminhou devagar em direção ao vestíbulo, as

mãos na cabeça. — Sorte sua. Mengele seguiu-o com a arma. — Onde está sua esposa? — indagou. — Na escola. Ensinando. Em Lancaster. — Wheelock entrou no

vestíbulo.

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— Tem retratos do seu filho? Wheelock deteve-se por um momento, andou para a direita. — Para que é que você quer os retratos? — Para olhar — respondeu Mengele, acompanhando-o com a arma. —

Não estou pensando em fazer-lhe mal. Sou o médico que o fez nascer. — Que diabo significa isso? — Wheelock parou junto a uma porta ao

lado da escada. — Tem retratos? — indagou Mengele. — Há um álbum ali. Onde estávamos. Na parte inferior da mesa onde

está o telefone. — É esta a porta? — Sim. — Baixe uma das mãos e abra-a, apenas um pouco. Wheelock voltou-se

para a porta, baixou uma das mãos, abriu a porta ligeiramente. Pôs a mão de volta na cabeça.

— O resto com o pé. Wheelock abriu toda a porta com a ponta do pé. Mengele moveu-se até a

parede oposta e encostou-se nela, a arma junto às costas de Wheelock. — Entre. — Tenho de acender a luz. — Faça-o. Wheelock estendeu a mão, puxou um cordão. Uma luz forte surgiu por

dentro da porta. Pondo a mão de volta na cabeça, Wheelock abaixou-se e desceu para um patamar com utensílios domésticos presos à parede de tábua.

— Desça — ordenou Mengele. — Devagar. Wheelock virou-se para a esquerda e começou a descer devagar pela escada.

Mengele aproximou-se da porta, desceu para o patamar. Virou-se para Wheelock, puxou a porta, fechando-a.

Wheelock desceu devagar os degraus do porão, as mãos na cabeça. Mengele apontou a arma para as costas cobertas pela camisa vermelha.

Disparou uma, duas vezes. Estampidos ensurdecedores. Cápsulas pularam. As mãos deixaram a cabeça branca, desceram, tateantes, encontraram os

corrimãos. Wheelock oscilou. Mengele disparou outro tiro ensurdecedor nas costas revestidas pela

camisa vermelha. As mãos escorregaram dos corrimãos e Wheelock desabou para a frente.

A testa, num baque, foi de encontro ao chão lá embaixo. As solas dos sapatos esparramaram-se, as pernas e o tronco resvalaram ainda mais, escada abaixo.

Mengele olhou, dilatando o ouvido com o indicador. Abriu a porta e saiu para o corredor. Os cães latiam furiosamente.

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— Quietos! — berrou Mengele, dilatando o outro ouvido com o dedo. Os cães continuaram latindo.

Mengele empurrou a trava para cima e pôs a arma no coldre. Tirou fora o lenço, limpou a maçaneta de dentro da porta, puxou o cordão da luz, fechou a porta com o cotovelo.

— Quietos! — berrou, enfiando o lenço no bolso. Os cães continuavam latindo. Arranhavam e golpeavam pesadamente a

porta na extremidade do vestíbulo. Mengele precipitou-se em direção à porta da frente, espiou através da

vidraça estreita ao lado. Abriu a porta e correu para fora. Entrou no carro, deu a partida e guiou-o em volta da casa, até a metade

vazia da garagem. Voltou às pressas para a casa, fechou a porta. Os cães latiam, uivavam,

arranhavam, davam trancos. Mengele mirou-se no espelho do móvel da entrada. Tirou a peruca e

puxou o bigode do lábio superior. Pôs o bigode e a peruca no bolso do seu sobretudo pendurado, cobrindo-os com a aba.

Olhou-se novamente, tocando com a palma das mãos a cabeleira grisalha cortada rente. Franziu a testa.

Tirou o casaco, pendurou-o num cabide. Mudou o sobretudo para o mesmo cabide, cobrindo o casaco.

Desfez o laço da gravata de listras pretas e douradas, puxou-a fora, enrolou-a e meteu-a no bolso do sobretudo.

Desabotoou o colarinho da sua camisa azul-clara, o botão seguinte também. Abriu o colarinho, alisando as pontas.

Os cães latiram e uivaram atrás da porta. Mengele ajeitou a correia de trás do coldre. Olhou-se no espelho e

indagou: — O senhor é Liebermann? Perguntou outra vez, mais americano, menos alemão. — O senhor é Liebermann? — Tentou fazer uma voz mais parecida com

a de Wheelock, mais grossa. — Entre. Devo confessar que estou curioso como o diabo. Non lique parra eles, semprre latem atsim. Ligue. Para. Não ligue para eles, sempre latem assim. Você é Liebermann? Entre.

Os cães latiram. — Quietos! — berrou Mengele.

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Sete Liebermann mantinha os olhos nos décimos de quilômetros registrados

vagarosamente no painel de instrumentos do pequeno Saab que lhe moia os rins. A casa de Wheelock ficava exatamente a seiscentos e quarenta metros da curva à esquerda para o Old Buck Road — se é que estava lendo corretamente a letra extravagante de Rita, o que nem sempre conseguira até então. Entre a letra de Rita e as paradas para descanso a que os solavancos do Saab obrigavam, já passavam vinte minutos de meio-dia.

Mesmo assim, sentia as coisas ajustando-se e correndo satisfatoriamente. Tivera a tristeza, é claro, de saber que o corpo de Barry fora encontrado, mas a notícia chegara numa ocasião que, pelo menos, apresentava seu lado propício: agora tinha um ponto de partida consistente e comprovável para utilizar em Washington. E Kurt Koehler estava lá, não apenas com as anotações feitas por Barry — importantes e úteis, ao que tudo indicava —, como também detentor da influência de um cidadão respeitado. Certamente haveria de querer continuar ajudando de todas as maneiras possíveis. O fato de se encontrar ali era prova de seu empenho.

E Greenspan e Stern estavam na Filadélfia, prontos, segundo se presumia, para vir com a equipe de comandos dos JDJ, logo que Wheelock se convencesse de estar em perigo. "Diz respeito a seu filho, Mr. Wheelock. A adoção. Foi arranjado para o senhor e sua esposa por intermédio de uma mulher chamada Elizabeth Gregory, não? Agora, por favor me acredite, ninguém..."

Os seiscentos e quarenta metros deslizaram no mostrador, e adiante, à esquerda, uma caixa de correio se aproximava. "CÃES DE GUARDA", em letras pretas pintadas numa tabuleta abaixo; "H. Wheelock", na tampa da caixa. Liebermann diminuiu a marcha do carro, parou, esperou que um caminhão passasse e atravessou a estrada. Guiou as rodas do carro para dentro dos sulcos profundos do caminho de terra que subia gradualmente, em corcova, colina acima, através das árvores. O fundo do carro raspava de encontro ao ressalto. Liebermann fez a mudança, guiou devagar. Olhou o relógio: quase vinte e cinco minutos passados.

Meia hora, digamos, para convencer Wheelock (sem entrar na questão dos genes: "Não sei por que estão matando os pais dos meninos; o fato é que estão, eis tudo"), e depois, cerca de uma hora para os JDJ chegarem. Aí, seriam pouco mais de duas horas. Poderia talvez sair às três e chegar a Washington às cinco, cinco e meia. Telefonaria para Koehler. Ansiava por encontrá-lo e ver as anotações de Barry. Era de surpreender que Mengele as

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houvesse deixado escapar. Mas talvez Koehler superestimasse sua importância...

Latidos de cães, um tumulto deles, irromperam de uma clareira ensolarada, onde uma casa de dois andares — persianas brancas, telhas pardas — situava-se em ângulo em relação a ele. E nos fundos, uma dúzia de cães arrojava-se de encontro a uma grade alta de arame, latindo, ganindo.

Guiou até junto da alameda calçada de pedra e parou o carro ali. Pôs em ponto morto e girou a chave, puxou o freio de mão. Os cães ainda latiam nos fundos. No outro extremo da casa, uma caminhonete vermelha e um seda branco estavam dentro de uma garagem.

Saltou do carro, fechou a porta e, de pasta na mão, ficou contemplando a casa marrom com frisos brancos. Seria bastante fácil proteger Wheelock. Os cães — ainda latindo — constituíam natural sistema de alarma. E repressivo. O matador provavelmente agiria em algum outro lugar — no vilarejo ou na estrada. Wheelock teria de seguir uma rotina normal, deixando que o assassino tivesse oportunidade de se mostrar. Problemas: assustá-lo o bastante para que aceitasse a proteção dos JDJ, mas não tanto a ponto de fazê-lo ficar em casa e trancar-se num armário.

Respirou fundo e subiu pelo caminho em direção ao pórtico. A porta tinha uma aldrava, uma cabeça de cão de ferro, e um botão de campainha preto, ao lado. Escolheu a aldrava; acionou-a duas vezes. Era velha e dura. As batidas não foram muito altas. Esperou um momento — cães latiam dentro da casa — e estendeu um dedo na direção do botão. Mas a porta abriu-se e um homem menor do que ele esperava, com cabelos grisalhos cortados rentes e olhos castanhos vividos e joviais, olhou-o e disse em uma voz grossa:

— O senhor é Liebermann? — Sim. Mr. Wheelock? Um aceno de assentimento da cabeça de cabelos grisalhos cortados

rentes, e a porta abriu-se mais. — Entre. Entrou num vestíbulo que cheirava a cachorros, de onde subia uma

escada. Tirou o chapéu. Cães — cinco ou seis, ao que parecia — latiam, uivavam, arranhavam atrás de uma porta na extremidade do vestíbulo. Voltou-se para Wheelock, que fechara a porta e sorria para ele.

— Prazer em conhecê-lo — disse Wheelock, elegante numa camisa azul-clara aberta no peito e com os punhos dobrados, de calças cinzento-escuras assentando bem e sapatos pretos de boa aparência. Não devia haver recessão no negócio de cães de guarda. — Estava começando a pensar que você não vinha.

— Li errado as indicações — explicou Liebermann. — Uma senhora não

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lhe telefonou de Nova York? — Meneou a cabeça, com um sorriso de desculpas. — Em meu nome?

— Ah! — fez Wheelock, e sorriu. — Tire o seu sobretudo. — Apontou para os cabides, onde já estavam pendurados um chapéu e um sobretudo pretos e um blusão marrom, com as mangas descosidas e rasgadas.

Liebermann pendurou o chapéu, pousou a pasta no chão, desabotoou o sobretudo. Wheelock mostrava-se mais amável do que ao telefone — parecia mesmo verdadeiramente satisfeito em vê-lo —, mas alguma coisa na sua maneira de falar contrariava a amabilidade. Liebermann percebeu-a, sem contudo conseguir defini-la. Olhando para a porta onde os cães latiam e uivavam, observou:

— Não exagerou quando disse ter uma casa cheia de cães. — É — retorquiu Wheelock, passando por ele, sorridente. — Não ligue.

Sempre latem assim. Coloquei-os lá dentro para que não o incomodassem. Há pessoas que ficam nervosas. Venha para cá. — Entrou pela porta à direita.

Liebermann pendurou o sobretudo, pegou a pasta e, com um olhar meditativo para as costas de Wheelock, acompanhou-o, passando a uma aprazível sala de estar. Os cães começaram a dar encontrões e a latir atrás de uma porta à esquerda, perto de um sofá de couro preto, acima do qual se penduravam as fitas de prêmio coloridas numa parede de lambris, por entre troféus e fotografias em molduras pretas. Uma lareira de pedra emergia na extremidade da sala, com mais troféus sobre o consolo e um relógio. Janelas com cortinas brancas na parede da direita, um antiquado canapé entre elas. No canto, junto à porta, uma mesa e uma cadeira, telefone, livros de escrituração, cachimbos num suporte.

— Sente-se — convidou Wheelock, com um gesto em direção ao sofá, enquanto se dirigia ao canapé. — Agora me diga por que há um nazista atrás de mim. Tenho de admitir que você me despertou uma curiosidade dos diabos.

"Curiosidade" — o R ligeiramente carregado. Era isso que o inquietava. O amável Henry Wheelock o estava arremedando, sombreando sua fala americana com um leve "tsotaque alemon". Nada de exagerado, apenas o R ligeiramente carregado, a mínima explosão de um P por trás da doçura de um B. Liebermann sentou-se no sofá — a almofada arquejou — e olhou à sua frente para Wheelock, inclinado para diante, no canapé, cotovelos sobre os joelhos afastados, pontas de dedos deslizando para a frente e para trás, ao longo da borda de um álbum de fotografias ou de recortes sobre uma mesa baixa. Sorrindo-lhe, na expectativa.

Teria sido o arremedo involuntário? Ele próprio às vezes imitava o ritmo e as inflexões do alemão desajeitado de um estrangeiro. Surpreendera-se

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fazendo isso e sentira-se embaraçado. Mas não, aquilo era intencional, tinha certeza. Do sorridente Wheelock

emanava hostilidade. E o que se poderia esperar de um antigo guarda penitenciário anti-semita que treina cães para se atirarem aos pescoços das pessoas? Extrema bondade? Boas maneiras?

Bem, ele não viera até ali para fazer um novo amigo. Pôs a pasta junto aos pés, descansou as mãos nos joelhos.

— Para explicar isso, Mr. Wheelock — disse —, tenho de entrar em assunto pessoal. Pessoal relativo ao senhor e sua família. Acerca do seu filho e de sua adoção.

As sobrancelhas de Wheelock soergueram-se, inquisitivas. — Estou informado — tornou — de que o senhor e Mrs. Wheelock

obtiveram-no na cidade de Nova York, através de "Elizabeth Gregory". Agora, por favor, me acredite — inclinou-se para diante —, ninguém irá criar problemas com relação a isso. Ninguém tentará tirar o seu filho do senhor ou acusar o senhor de qualquer infração à lei. Já passou muito tempo e não tem mais importância, importância direta. Dou-lhe minha palavra.

— Acredito em você — proferiu Wheelock gravemente. Sujeito muito frio, aquele "caladon", recebendo tudo tão calmamente. Ali

sentado, correndo as pontas dos indicadores ao longo da borda da capa do álbum verde, unindo-as e separando-as, unindo-as e separando-as. A lombada estava voltada para Liebermann. A capa inclinava-se, parecendo apoiada em alguma coisa dentro.

— "Elizabeth Gregory" — continuou Liebermann — não era o nome verdadeiro dela. Seu nome verdadeiro era Frieda Maloney, Frieda Altschul Maloney. Ouviu falar?

Wheelock franziu a testa, refletindo. — Refere-se àquela nazista? — indagou. — A que foi devolvida à

Alemanha? — Sim. — Liebermann apanhou a pasta. — Tenho aqui algumas

fotografias da mulher. Verá que... — Não precisa — retrucou Wheelock. Liebermann fitou-o. — Vi o retrato no jornal — explicou Wheelock. — Pareceu-me familiar.

Agora sei por quê. — Sorriu. O "agora" saíra quase "agorra". Liebermann acenou com a cabeça. (Teria sido intencional? A não ser

pelo arremedo, Wheelock estava sendo bastante amável.) Ajustou de volta a correia solta da pasta e olhou para Wheelock.

— O senhor e a sua esposa — declarou, tentando não deixar os seus próprios RR saírem carregados — não foram o único casal a receber bebês. Um casal de nome Guthrie também recebeu, e Mr. Guthrie foi assassinado em outubro passado. Um casal de nome Curry igualmente, e Mr. Curry foi

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assassinado em novembro. Wheelock parecia preocupado agora. As pontas dos dedos se tinham

imobilizado na borda da capa do álbum. — Há um nazista em atividade neste país — asseverou Liebermann,

segurando a pasta no colo —, um antigo membro das ss, matando os pais dos meninos adotados por intermédio de Frieda Maloney. Matando-os na mesma ordem das adoções, e com o mesmo intervalo de tempo. O senhor é o próximo, Mr. Wheelock. — Acenou com a cabeça. — E para breve. E há muitos outros depois. Por isso é que vou ao FBI, e, enquanto vou, o senhor deverá ser protegido. De forma melhor do que por seus cães. — Fez um gesto em direção à porta junto à extremidade do sofá. Os cães uivavam agora atrás dela, um ou dois latidos sem muito entusiasmo.

Wheelock meneou a cabeça, assombrado. — Humm! — proferiu. — Mas isso é tão estranho! — Olhou, atônito,

para Liebermann. — Os pais dos meninos estão sendo mortos? — Sim. — Mas por quê? — Pronúncia perfeita desta vez. Ele também estava

tentando. Deus do céu, não havia dúvida! Não se tratava de arremedo, intencional

ou não, mas de um sotaque autêntico como o dele sendo reprimido! — Não sei... — respondeu. E sapatos e calças de um homem de cidade, não do campo. A hostilidade

brotando, os cães presos para não "perturbarem"... — Não sabe? — perguntou-lhe o nazista-que-não-era-Wheelock. —

Todos esses assassinatos ocorrendo e não sabe a razon? Mas os assassinos tinham cinqüenta e poucos anos, e aquele homem teria

sessenta e cinco, talvez um pouco menos. Mengele? Impossível. Estava no Brasil ou Paraguai, e não ousaria vir ao norte, não poderia estar ali em New Providence, Pensilvânia.

Meneou a cabeça para o-que-não-podia-ser-Mengele. Mas Kurt Koehler estivera no Brasil, e viera para Washington. O nome

poderia ter constado no passaporte ou carteira de Barry como parente mais próximo...

Uma arma surgiu de trás da capa do álbum, o cano apontado para ele. — Então devo lhe dizer — anunciou o homem de arma em punho.

Liebermann olhou-o, escureceu e encompridou o seu cabelo, deu-lhe um bigode fino, completou-o, tornou-o mais jovem... Sim, era Mengele. Mengele! O odiado, há tanto tempo caçado. O Anjo da Morte, assassino de crianças! Ali sentado. Sorridente. De arma apontada para ele. — Deus me livre — disse Mengele em alemão — que você venha a morrer ignorando. Quero que saiba exatamente o que acontecerá dentro de uns vinte anos. Esse

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seu olhar ossificado é só para a arma, ou será que me reconheceu? Liebermann piscou, respirou fundo. — Eu o reconheci — declarou. Mengele sorriu. — Rudel, Seibert e os outros — motejou — são um punhado de

mulheres velhas. Chamaram de volta os homem porque Frieda Maloney lhe falou acerca dos bebês. Por isso, tive de terminar sozinho a missão. — Encolheu os ombros. — Na verdade, não me importo. O trabalho me conservará jovem. Ouça, baixe a pasta bem devagar, sente-se de mãos na cabeça e descanse. Tem um bom minuto ou mais antes que eu o mate.

Liebermann arriou lentamente a pasta, à esquerda dos pés, pensando que se tivesse uma oportunidade de se atirar para a direita e abrir a porta ali — supondo que não estivesse trancada — talvez os cães choramingando do outro lado vissem Mengele com a arma e o atacassem, antes que pudesse dar muitos tiros. Claro, talvez os cães também o atacassem, ou talvez não atacassem nenhum deles sem que Wheelock (morto lá dentro) desse a ordem. Mas não lhe ocorria outra coisa senão tentar.

— Gostaria que demorasse mais — asseverou Mengele. — De verdade, mesmo. Este é um dos momentos mais gratificantes da minha vida, como estou certo poderá avaliar, e, se fosse possível, prazerosamente eu conversaria assim com você por uma hora ou duas. Para refutar alguns dos grotescos exageros do seu livro, por exemplo... Mas infelizmente... — Encolheu os ombros, pesaroso.

Liebermann cruzou as mãos no alto da cabeça, sentado ereto na beira do sofá. Começou a afastar os pés, muito devagar. O sofá era baixo e levantar-se rapidamente não ia ser fácil.

— Wheelock está morto? — indagou. — Não — respondeu Mengele. — Está na cozinha, fazendo almoço para

nós. Ouça bem agora, caro Liebermann: vou lhe dizer uma coisa que lhe parecerá inteiramente incrível, mas juro-lhe sobre a sepultura de minha mãe que é a verdade absoluta. Iria me dar ao trabalho de mentir para um judeu? E, além do mais, morto?

Liebermann relanceou os olhos para a janela, à direita do canapé, e de volta para Mengele, atentamente.

Mengele suspirou e meneou a cabeça. — Se eu quiser olhar pela janela — disse —, primeiro o matarei, depois

olharei. Mas não quero olhar pela janela. Se alguém estivesse se aproximando, os cães lá nos fundos estariam latindo, não é? Não é?

— É — assentiu Liebermann, sentado com as mãos à cabeça. Mengele sorriu. — Está vendo? Tudo me é favorável. Deus está comigo. Sabe o que vi

na televisão hoje, à uma hora da madrugada? Filmes de Hitler. — Acenou

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com a cabeça. — Num momento em que me achava gravemente deprimido, virtualmente suicida. Se isso não foi um sinal dos céus, jamais houve outro. Portanto, não perca seu tempo olhando para as janelas, olhe para mim e ouça. Ele está vivo. Este álbum — apontou com a mão livre, sem tirar os olhos ou a arma de cima de Liebermann — está cheio de retratos dele, de um a treze anos. Os meninos são réplicas genéticas exatas. Não perderei tempo explicando-lhe como consegui isso e, mesmo que o fizesse, duvido que você tivesse capacidade para compreender, mas confie na minha palavra, eu o consegui. Réplicas genéticas exatas. Foram concebidas em meu laboratório e levadas a termo por mulheres da tribo Auiti, criaturas sadias, dóceis, com um chefe dotado de espírito prático. Os meninos não guardam mácula alguma delas, são Hitler puro, inteiramente gerados de suas células. Ele me permitiu tirar meio litro de seu sangue e um pedaço de pele de suas costelas — nossa disposição de espírito era bíblica — a 6 de janeiro de 1943, no Covil do Lobo. Ele se recusara a ter filhos — o telefone tocou. Mengele manteve os olhos e a arma voltados para Liebermann — porque sabia que filho algum poderia florescer à sombra de tão... — o telefone tocou — sublime pai. Por isso, quando soube que era teoricamente possível, que eu poderia... — o telefone tocou — criar algum dia não o seu filho, mas um outro ele mesmo, não uma cópia de carbono, mas... — o telefone tocou — outro original, emocionou-se com a idéia, tanto quanto eu. Foi então que me concedeu a posição e as oportunidades necessárias para iniciar a pesquisa. Acha realmente que o meu trabalho em Auschwitz foi uma loucura sem propósito? Que estúpidas as pessoas são! Ele comemorou a ocasião, a doação do sangue e da pele, com uma cigarreira e uma bela inscrição. "Para meu amigo de muitos anos Josef Mengele, que me serviu melhor do que muitos homens, e talvez algum dia me sirva melhor do que todos. Adolf Hitler." É o meu bem mais venerado, naturalmente. Demasiado perigoso para ser levado através das alfândegas, por isso repousa no cofre do meu advogado, em Assunção, à espera de que eu regresse de minhas viagens. Está vendo? Estou lhe concedendo mais de um minuto — olhou para o relógio...

Liebermann levantou-se e — um disparo soou — rodeou a extremidade do sofá, estirando-se. Um disparo soou, outro disparo soou, a dor arremessou-o de encontro à parede dura, dor no peito, dor mais abaixo. Cães latiram alto no seu ouvido colado à parede. A porta de madeira parda estremeceu com os trancos. Estirou-se para o lado oposto, atrás da maçaneta de vidro. Um disparo soou. A maçaneta fez-se em pedaços ao agarrá-la, um buraquinho nas costas da sua mão foi se enchendo de sangue. Agarrou um pedaço pontiagudo de maçaneta — um disparo soou, os cães latiram furiosamente — e, encolhendo-se de dor, olhos fechados, apertados, torceu o pedaço de maçaneta, puxou. A porta se escancarou de encontro ao seu braço

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e ombro, os cães uivando. Disparos soaram, uma salva trovejante. Latidos, um grito, estalidos de uma arma vazia. Um baque, um estardalhaço, rosnados, um grito. Largou o pedaço de maçaneta cortante, virou-se, arquejante, de encontro à parede. Deixou-se escorregar para o chão, abriu os olhos...

Os cães negros empurraram Mengele de lado sobre o canapé, as pernas esparramadas. Grandes Dobermanns, de dentes arreganhados, olhos furiosos, orelhas pontudas para trás. A face de Mengele bateu contra o braço do canapé. Seu olho fitou o Dobermann à sua frente, movendo-se por entre as pernas da mesa virada, abocanhando-lhe o pulso. A arma caiu-lhe dos dedos. Seu olho revirou para fitar os Dobermanns rosnando junto à sua face e pescoço. O Dobermann junto à sua face estava entre suas costas e o encosto do canapé, as patas dianteiras pisando-lhe o ombro, em busca de apoio. O Dobermann junto ao seu pescoço tinha as patas traseiras no chão, entre suas pernas esparramadas, e debruçava-se sobre a coxa encolhida, o corpo arriando sobre seu peito. Subiu mais o rosto de encontro ao braço do canapé, olhos fixos no chão, lábios trêmulos.

Um quarto Dobermann escarrapachara-se, enorme, no chão, de lado, entre o canapé e Liebermann, as costelas pretas se elevando, o focinho no tapete oval. Uma réstia de luz foi se espalhando debaixo dele, uma poça de urina.

Liebermann escorregou parede abaixo e, encolhendo-se, sentou no chão. Esticou lentamente as pernas, observando os Dobermanns ameaçarem Mengele.

Ameaçando, não matando. O pulso de Mengele fora solto. O Dobermann que o abocanhara ficou rosnando para ele, de focinho contra o seu nariz.

— Matem! — ordenou Liebermann, mas somente um murmúrio saiu. A dor que lhe trespassava o peito aumentou e aguçou-se.

— Matem! — gritou, contrapondo-se à dor. Uma ordem rouca saiu. Os Dobermanns rosnavam, sem se mover. O olho de Mengele cerrou-se

apertado, os dentes morderam-lhe o lábio inferior. — MATEM! — berrou Liebermann, e a dor rasgou-lhe o peito,

dilacerando-o. Os Dobermanns rosnaram, sem se mover. Um guincho muito agudo saiu da boca de Mengele, por entre os dentes

cerrados. Liebermann jogou novamente a cabeça de encontro à parede e fechou os

olhos, arfando. Desceu com um puxão o laço da gravata, desabotoou o colarinho. Abriu mais outro botão sob a gravata e levou os dedos até a dor; encontrou uma umidade no peito, na beira da sua camiseta. Retirou os dedos, abriu os olhos. Viu o sangue nas pontas dos dedos. A bala o atravessara.

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Atingindo o quê? O pulmão esquerdo? Isso não importava, o fato é que cada respiração intensificava a dor. Procurou o lenço no bolso da calça, rolou para a esquerda para poder alcançá-lo. Uma dor pior explodiu abaixo, no quadril. Encolheu-se, perfurado por ela. Ai!

Tirou fora o lenço, trouxe-o até em cima, apertou-o de encontro ao ferimento do peito e manteve-o ali.

Ergueu a mão esquerda. O sangue escorria dos dois lados, mais da brecha irregular na palma do que do furo menor no dorso. A bala atravessara por baixo do primeiro e segundo dedos. Estavam entorpecidos e não conseguia movê-los. Dois cortes sangravam pela palma.

Tencionava manter a mão para cima, a fim de que sangrasse menos, mas não conseguiu, deixando-a cair. Não havia mais forças nele. Apenas dor. E cansaço... A porta ao seu lado fechava-se devagar.

Olhou Mengele seguro pelos Dobermanns. O olho de Mengele observava-o. Fechou os olhos, respirando suavemente para se defender da dor que lhe

queimava o peito. — Fora... Abriu os olhos e olhou para o outro lado da sala, onde Mengele jazia

estatelado sobre o canapé, entre os Dobermanns rosnadores. — Fora... — murmurou Mengele brandamente, com cautela. Seu olho

moveu-se do Dobermann diante dele para o Dobermann no seu pescoço, e para o Dobermann no seu rosto.

— Saiam. Não tenho mais arma. Nenhuma arma. Fora. Saiam. Sejam bonzinhos.

Os Dobermanns preto-azulados rosnaram, sem se mover. — Quietinhos — tornou Mengele. — Sansão? Sansão, meu velho.

Saiam. Vão embora. — Virou a cabeça vagarosamente de encontro ao braço do canapé. Os Dobermanns recuaram um pouco as cabeças, rosnando. Mengele esboçou um sorriso débil para eles. — Major? — indagou. — Você é Major? Meu bom Major, meu bom Sansão. Sejam bonzinhos. Amigo. Não tenho mais arma. — Sua mão, de pulsos avermelhados, agarrou a parte da frente do braço do canapé, a outra mão segurou as costas do canapé. Começou a soerguer-se lentamente de lado. — Sejam bonzinhos. Saiam. Fora.

O Dobermann no meio da sala jazia imóvel, as costelas pretas paradas. A poça de urina ao seu redor fragmentara-se em outras menores espalhadas, cintilando nas tábuas largas do chão.

— Sejam bonzinhos... quietinhos...

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Deitado de costas, Mengele começou a levantar-se vagarosamente no canto do canapé. Os Dobermanns rosnaram, mas permaneceram onde estavam, encontrando outro apoio para as patas enquanto ele se erguia, longe de seus dentes.

— Fora — disse. — Sou amigo de vocês. Estou fazendo mal a vocês agora? Não, não, eu gosto de vocês.

Liebermann fechou os olhos, respirou suavemente. Sentava-se no sangue que lhe escorria por trás.

— Meu bom Sansão, meu bom Major. Beppo? Zarko? Sejam bonzinhos. Fora. Fora.

Dena e Gary tinham um problema qualquer. Mantivera a boca fechada

quando estivera lá em novembro, mas talvez não devesse. Talvez ele... — Está vivo, judeu canalha? Abriu os olhos. Mengele estava sentado no canto do canapé, ereto, uma perna levantada,

um pé no chão. Segurando o braço e as costas do canapé. Sarcástico, comandando a situação. Exceto quanto aos três Dobermanns encostados nele, rosnando baixinho.

— É pena — tornou Mengele —, mas você não vai durar muito. Posso ver daqui. Você está nas últimas. Estes cães perderão o interesse em mim, basta que eu me sente calmamente e fale com eles. Vão querer sair para urinar ou beber água. — Dirigiu-se em inglês aos Dobermanns: Água? Beber? Não querem água? Sejam bonzinhos. Vão beber água.

Os Dobermanns rosnaram, sem se mover. — Filhos da puta — proferiu Mengele amavelmente em alemão. E para

Liebermann: — Então você nada conseguiu, judeu canalha, a não ser morrer devagar, em vez de depressa, e arranhar um pouco meu pulso. Dentro de quinze minutos sairei daqui. Cada homem da lista morrerá na sua data. O Quarto Reich se aproxima, não apenas um Reich alemão, mas um pan-ariano. Viverei o bastante para vê-lo e estar ao lado de seus líderes. Pode imaginar a admiração que inspirarão? A autoridade mística que exercerão? O temor dos russos e dos chineses? Para não falar dos judeus.

O telefone tocou. Liebermann tentou mover-se da parede — arrastar-se, se pudesse, até o

fio pendente da mesa junto à porta —, mas a dor no quadril trespassou-o, imobilizando-o, deixando-o incapaz de reagir. Sentou-se de novo no sangue pegajoso. Fechou os olhos, arquejando.

— Bom. Morra um minuto antes. E enquanto morre, vá pensando nos seus netos indo para os fornos.

O telefone continuava tocando.

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Greenspan e Stern, talvez. Telefonando para saber o que estava acontecendo, por que ele não telefonara. Não obtendo resposta, não ficariam preocupados, resolvendo vir, colhendo informações no vilarejo? Se ao menos os Dobermanns retivessem Mengele...

Abriu os olhos. Mengele permanecia sentado, sorrindo para os Dobermanns — um

sorriso calmo, persistente, amistoso. Não rosnavam agora. Deixou os olhos fecharem. Tentou não pensar em fornos, exércitos, multidões bradando saudações.

Imaginou se Max, Lili e Ester conseguiriam manter vivo o centro. Contribuições talvez chegassem. Haveria comemorações.

Latidos, rosnados. Abriu os olhos. — Não, não! — exclamava Mengele, recostado no canto do canapé,

agarrado no braço e nas costas do canapé, enquanto os Dobermanns arremetiam e rosnavam. — Não, não! Sejam bonzinhos! Sejam bonzinhos! Não, não vou sair! Não, não. Estão vendo como estou quieto? Sejam bonzinhos. Sejam bonzinhos.

Liebermann sorriu, fechou os olhos. Sejam bonzinhos. Greenspan? Stern? Venham... — Judeu canalha? O lenço aderia sozinho ao ferimento, por isso ficou de olhos fechados,

sem respirar — deixe-o pensar —, e então ergueu a mão direita e esticou o dedo médio.

Latidos distantes. Os cães nos fundos. Abriu os olhos. Mengele lançou-lhe um olhar feroz. O mesmo ódio que lhe chegara pelo

telefone, naquela noite, há tanto tempo. — Não importa o que acontecer — disse ele —, eu venci. Wheelock foi

o décimo oitavo a morrer. Dezoito perderam seus pais quando ele perdeu o seu, e pelo menos um dos dezoito chegará a ser adulto como ele, tornando-se quem ele se tornou. Você não sairá vivo desta sala para detê-lo. Eu também não, talvez, mas você, com toda a certeza, não escapa. Juro.

Passos à entrada. Os Dobermanns rosnaram, debruçados sobre Mengele. Liebermann e Mengele entreolharam-se a distância.

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A porta da frente se abriu. Fechou-se. Olharam para a porta. Alguém deixou cair um peso no vestíbulo. Um metal tiniu. Passos. O menino chegou e parou à porta — magro, nariz proeminente, cabelos

escuros. Uma larga listra vermelha atravessava o peito de seu blusão azul de fecho ecler.

Olhou para Liebermann. Para Mengele e os Dobermanns. Para o Dobermann morto. Para um lado e para o outro, os olhos azul-claros arregalados. Afastou a

mecha escura com uma luva azul de plástico. — Chiiiiu! — comandou. — Mein... querido menino — disse Mengele, com um olhar de adoração.

— Meu querido, querido menino, você não pode fazer idéia de como estou feliz, jubiloso, vendo-o aí de pé, tão admirável, forte e belo! Quer afastar esses cães tão leais e magníficos? Eles me mantiveram imobilizado durante horas, sob a errônea impressão de que eu, e não aquele perverso judeu ali, teria vindo para lhe fazer mal. Quer afastá-los, por favor? Explicarei tudo. — Sorriu afetuosamente, sentado entre os Dobermanns rosnando.

O menino fitou-o, e virou a cabeça vagarosamente em direção a Liebermann.

Liebermann moveu levemente a cabeça. — Não se deixe enganar por ele — tornou Mengele. — É um criminoso,

um assassino, um homem terrível. Veio fazer mal a você e sua família. Afaste estes cães, Bobby. Está vendo? Sei o seu nome. Sei tudo a seu respeito; que visitou Cape Cod no verão passado, que tem uma câmara de cinema, que tem duas priminhas bonitas chamadas... Sou um velho amigo de seus pais. Na verdade, sou o médico que o pôs no mundo, que acaba de voltar de fora! Dr. Breitenbach. Eles lhe falaram de mim? Parti há muito tempo.

O menino olhou-o, em dúvida. — Onde está meu pai? — indagou. — Não sei — disse Mengele. — Presumo, já que aquele indivíduo tinha

uma arma que consegui tirar dele — e os cães nos viram lutando e chegaram à conclusão errada —, presumo que ele tenha — sacudiu a cabeça, pesaroso — dado cabo de seu pai. Tendo acabado de chegar do exterior, como já disse, vim fazer uma visita, e ele me deixou entrar, passando-se por amigo

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da família. Quando sacou a arma, consegui dominá-lo e tirá-la dele, mas aí ele abriu aquela porta e soltou os cães. Mande-os embora e vamos procurar seu pai. Talvez ele só esteja amarrado. Pobre Henry! Tomara que nada de mau tenha acontecido. Ainda bem que sua mãe não estava aqui. Ela ainda dá aulas em Lancaster?

O menino olhou para o Dobermann morto. Liebermann sacudiu um dedo, tentando atrair o olhar do menino.

O menino olhou Mengele. — Ketchup — proferiu. Os Dobermanns voltaram-se e correram para

ele. Dois ficaram de um lado, um do outro. Suas luvas tocavam-lhes as cabeças preto-azuladas.

— Ketchup! — exclamou Mengele, contente, baixando a perna de cima do canapé, sentando-se para a frente e esfregando os braços. — Nunca na vida pensaria em dizer "ketchup"! — Moveu os pés no chão, esfregando as coxas, sorrindo. — Disse "saiam", disse "fora", disse "vão", disse "amigos", jamais me ocorreu dizer "ketchup"!

O menino, franzindo a testa, tirou as luvas. — Seria melhor... chamarmos a polícia — disse. A mecha escura caiu-

lhe obliquamente na testa. Mengele continuava de olhos fitos nele. — Como você é maravilhoso! — exclamou. — Estou tão... — Piscou,

engoliu, sorriu. — Sim — assentiu —, certamente devemos chamar a polícia. Faça-me um favor, mein... querido Bobby. Leve os cães e vá para a cozinha arranjar-me um copo d'água. Preciso também comer alguma coisa. — Levantou-se. — Chamarei a polícia e depois procurarei seu pai.

O menino enfiou as luvas no bolso do blusão. — É seu este carro aí em frente? — perguntou. — Sim — respondeu Mengele. — E o dele é o que está na garagem. Ou

pelo menos presumo. É o seu? O da família? O menino olhou-o, cético. — O que está na frente — tornou — tem um adesivo no pára-choque, a

respeito de os judeus não cederem nada de Israel. Você disse que ele era judeu.

— E é — assentiu Mengele. — Pelo menos, parece um deles. — Sorriu. — Isso não é hora de falar das palavras que usei. Vá buscar água, por favor, que eu chamarei a polícia.

O menino pigarreou. — Quer sentar-se novamente? — redargüiu. — Eu os chamarei. — Querido Bobby... — Picles — ordenou o menino. Os Dobermanns precipitaram-se,

rosnando, sobre Mengele. Ele recuou no cana-pé, os antebraços cruzados

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diante do rosto. — Ketchup! — exclamou. — Ketchup! Ketchup! — Os Dobermanns debruçaram-se sobre ele, rosnando.

O menino atravessou a sala, abrindo o fecho ecler do blusão. — Eles não obedecerão a você — declarou. Voltou-se para Liebermann,

afastou da testa a mecha escura. Liebermann fitou-o. — Ele mentiu, não foi? — perguntou o menino. — Ele tinha a arma, e

abriu a porta para você. — Não! — exclamou Mengele. Liebermann assentiu. — Não pode falar? Ele assentiu com a cabeça, apontou para o telefone. O garoto concordou com um gesto e voltou-se. — Este homem é seu inimigo! — gritou Mengele. — Juro por Deus

como é! — Pensa que sou idiota? — O menino dirigiu-se à mesa, levantou o

fone. — Não faça isso! — Mengele inclinou-se em sua direção. Os

Dobermanns avançaram e rosnaram, mas ele continuou inclinado. — Por favor! Imploro-lhe! Pelo seu bem, não pelo meu! Sou seu amigo! Vim aqui ajudá-lo! Ouça-me, Bobby! Apenas um minuto!

O menino encarou-o, de fone na mão. — Por favor! Explicarei! A verdade! Menti, sim! Eu tinha a arma. Para

ajudar você! Por favor! Escute-me só por um minuto! Vai me agradecer, juro que vai! Um minuto!

O menino continuou a encará-lo e baixou o fone, desligando. Liebermann sacudiu, desesperado, a cabeça. — Telefone! — proferiu num sussurro que mal lhe saiu da boca. — Obrigado — disse Mengele ao menino. — Obrigado. — Recostou-se,

sorrindo tristemente. — Devia ter visto que era inteligente demais para que lhe mentissem. Por favor — fitou os Dobermanns, olhou para o menino —, afaste-os. Ficarei sentado aqui.

O menino permaneceu junto à mesa, olhando-o. — Ketchup — ordenou. Os Dobermanns voltaram-se e correram para

ele. Colocaram-se ao seu lado, todos os três do lado em que estava Liebermann, frente a Mengele.

Mengele meneou a cabeça, passou a mão sobre os rentes cabelos grisalhos.

— Isso... é tão difícil. — Baixou a mão e olhou aflito para o menino. — Então? — indagou este. — Você é inteligente, não é? — tornou Mengele. O menino permaneceu

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de olhos nele, os dedos se movendo sobre a cabeça do Dobermann mais próximo.

— Não vai bem na escola — continuou Mengele. — Foi bem quando era pequeno, não agora. Isso porque é muito inteligente, muito — ergueu a mão, bateu na testa. — Tem suas próprias idéias. A verdade é que sabe mais que os professores, hein?

O menino olhou o Dobermann morto, franzindo a testa, os lábios. Olhou para Liebermann.

Liebermann apontou, ansioso, o telefone. Mengele inclinou-se para o menino.

— Se vou ser sincero com você — asseverou —, você deve ser sincero comigo! Não sabe mais que os professores?

O menino fitou-o, encolheu os ombros. — Com exceção de um — respondeu. — E tem grandes ambições, não é mesmo? O menino acedeu

silenciosamente. — De ser um grande pintor, ou um arquiteto. O menino negou com um

movimento. — Quero fazer filmes. — Sim, é claro. — Mengele sorriu. — Ser um grande cineasta. — Olhou

para o menino, seu sorriso desvaneceu-se. — Você e seu pai discutiram sobre isso — tornou. — Ele é um velho teimoso, com um ponto de vista limitado. Você fica indignado com ele, com razão.

O menino fitou-o. — Está vendo? — instou Mengele. — Conheço-o mesmo. Melhor que

qualquer pessoa deste mundo. O menino, perplexo, indagou: — Quem é você? — O médico que o pôs no mundo. Isso é verdade. Mas não sou um velho

amigo de seus pais. Na verdade, nunca os conheci. Somos estranhos. O menino inclinou a cabeça, como para ouvir melhor. — Entende o que isso quer dizer? O homem que considera seu pai —

balançou a cabeça — não é seu pai. E sua mãe — embora a ame, e ela o ame, estou certo — não é sua mãe. Eles o adotaram. Fui eu quem arranjou a adoção. Através de intermediários. Auxiliares.

O menino encarou-o. Liebermann, apreensivo, observava o menino. — Deve ser penoso receber notícias como essa tão de repente — disse

Mengele —, mas talvez... não de todo desagradáveis, hein? Nunca se sentiu superior aos que o cercavam? Como um príncipe entre plebeus?

O menino empertigou-se, encolhendo os ombros.

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— Sinto-me... diferente de todos, às vezes. — Você é diferente — asseverou Mengele. — Infinitamente diferente, e

infinitamente superior. Você tem... — Quem são meus pais verdadeiros? — indagou o menino. Mengele olhou, pensativamente, para suas mãos, apertou-as, ergueu o

olhar para o menino. — Seria melhor, para você — declarou —, não saber ainda. Quando for

mais velho, mais maduro, descobrirá. Mas isso posso lhe dizer agora, Bobby: nasceu do mais nobre sangue de todo o mundo. Sua herança — não me refiro a dinheiro, mas a caráter, talento — é incomparável. Tem dentro de si possibilidades de satisfazer ambições milhares de vezes maiores do que aquelas com que sonha atualmente. E irá satisfazê-las! Mas somente — e deve ter em mente quão bem o conheço, e confiar em mim quando digo isso —, somente se sair daqui agora com os cães, e deixar-me... fazer o que tenho de fazer e ir embora.

O menino permaneceu olhando para ele. — Pelo seu bem — tornou Mengele. — Sua felicidade é só o que levo

em conta. Deve acreditar nisso. Dediquei minha vida a você e ao seu bem-estar.

— Quem são meus pais verdadeiros? — tornou o menino. Mengele meneou a cabeça. — Quero saber. — Nisso, deve curvar-se à minha decisão. Na ocasião devida, você... — Picles. — Os Dobermanns avançaram, rosnando, sobre Mengele. Ele

encolheu-se, os antebraços cruzados à frente. Os Dobermanns debruçaram-se sobre ele, rosnando.

— Diga-me — ordenou o menino. — Agora mesmo. Senão eu... direi uma coisa diferente para eles. Falo sério. Posso fazer com que eles o matem, se quiser.

Mengele fitava o menino por sobre punhos cruzados. — Quem são meus pais? — indagou o menino. — Vou contar até três.

Um... — Você não tem pais! — exclamou Mengele. — Dois... — É verdade! Nasceu da célula do maior homem que já existiu!

Renasceu! Você é ele, está revivendo a sua vida! E aquele judeu ali é seu inimigo declarado! E dele também!

O menino voltou-se para Liebermann, os olhos azuis confusos. Liebermann ergueu a mão, tocou a testa com o dedo curvado, apontou

para Mengele. — Não! — exclamou Mengele, quando o menino se voltou para ele. Os

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Dobermanns rosnaram. — Não sou doido! Embora você seja inteligente, há coisas de que não tem conhecimento, acerca de ciência e microbiologia! Você é a réplica viva do maior homem de toda a história! E ele

— seu olhar saltou em direção a Liebermann — veio aqui matá-lo! E eu vim protegê-lo!

— Quem? — intimou o menino. — Quem sou eu? Que grande homem? Mengele fitou-o por sobre as cabeças dos Dobermanns rosnadores. — Um... — proferiu o menino. — Adolf Hitler — respondeu Mengele. — Disseram-lhe que ele era

mau, mas à medida que crescer e vir o mundo engolido por negros e semitas, eslavos, orientais, latinos

— e a sua gente ariana ameaçada de extinção, da qual você a salvará —, chegará à conclusão de que ele era o melhor, o mais admirável, o mais sábio de toda a humanidade! Vai rejubilar-se de sua herança, e me abençoará por tê-lo criado! Como ele próprio me abençoou por haver tentado!

— Sabe o que mais? — tornou o menino. — Você é o maior maluco que já vi. O mais esquisito, o mais doido

— Estou dizendo a verdade! — exclamou Mengele. — Consulte seu coração! A energia capaz de comandar exércitos está nele, Bobby! De submeter países inteiros à sua vontade! De exterminar sem piedade todos os que se opuserem a você!

— Você... está maluco — disse o menino. — Consulte seu coração — instou Mengele. — Toda a força dele está

em você, ou estará quando chegar a hora. Agora faça como lhe digo. Deixe-me protegê-lo. Tem um destino a cumprir. O mais alto de todos os destinos.

O menino baixou os olhos, esfregou a testa. Ergueu o olhar para Mengele.

— Mostarda — proferiu. Os Dobermanns atacaram. Mengele debateu-se, aos gritos. Liebermann olhou. Retraiu-se, estremecendo. Olhou.. Olhou para o

menino. O menino enfiou as mãos nos bolsos do blusão azul de listra vermelha.

Afastou-se da mesa, aproximou-se vagarosamente do lado do canapé, permanecendo de olhos baixos. Franziu o nariz.

— Chiiiu... — comandou. Liebermann olhou para o menino, e para os açulados Dobermanns

derrubando Mengele no chão. Olhou para a sua mão esquerda sangrando lentamente, dos dois lados. Grunhidos soaram. Arreganhar de dentes. Rasgaduras. Pouco depois, o menino afastou-se do canapé, as mãos ainda nos bolsos.

Baixou o olhar para o Dobermann morto, cutucou-lhe a anca com a ponta do

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tênis. Lançou um olhar a Liebermann, voltou-se e olhou para trás. — Fora — ordenou. Dois dos Dobermanns ergueram as cabeças e

vieram na direção dele, as línguas lambendo as bocas ensangüentadas. — Fora! — exclamou o menino. O terceiro Dobermann ergueu a

cabeça. Um dos Dobermanns farejou o Dobermann morto. O outro Dobermann passou por Liebermann, empurrou com o focinho a

porta ao lado deste e saiu. O menino veio colocar-se entre os pés de Liebermann, olhos baixados

sobre ele, a mecha caindo em diagonal pela testa. Liebermann levantou os olhos para ele. Apontou o telefone. O menino retirou as mãos dos bolsos e agachou-se, os cotovelos sobre as

coxas recobertas de veludo cotelê, as mãos pendentes. Unhas sujas. Liebermann olhou o rosto jovem e sombrio: o nariz proeminente, a

mecha, os olhos azul-claros sobre ele. — Acho que você vai morrer logo — disse o menino — se alguém não vier ajudá-lo, levando-o para o hospital. — Seu hálito recendia a goma de mascar. Liebermann acenou com a cabeça. — Posso sair novamente — declarou o menino. — Com os meus livros.

E voltar depois. Dizer... que estava apenas dando um passeio. Costumo fazer isto às vezes. E minha mãe só volta para casa às vinte para as cinco. Garanto que você estaria morto nessa altura.

Liebermann olhou para ele. Outro Dobermann saiu. — Se eu ficar e chamar a polícia — indagou o menino — dirá para eles

o que fiz? Liebermann refletiu. Meneou a cabeça. — Nunca? Ele meneou a cabeça. — Promete? Ele assentiu. O menino estendeu a mão. Liebermann olhou para ela. Olhou para o menino. Este olhou para ele. — Se pode apontar, também pode apertar a mão — ponderou o menino. Liebermann olhou para a mão do menino. Não, disse a si mesmo. De qualquer forma você vai morrer. Que espécie

de médicos haveria num buraco daqueles? — Então? E talvez haja uma vida depois da morte. Talvez Hannah estivesse à

espera. Mamãe, papai, as meninas... Não se iluda. Ergueu a mão. Apertou a

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mão do menino. O mínimo possível. — Ele era realmente esquisito — tornou o garoto, e levantou-se. Liebermann olhou para a mão dele. — Fora! — gritou o menino para o Dobermann ocupado com Mengele. O Dobermann correu para o vestíbulo, voltou, alucinado, boca

sanguinolenta, para junto de Liebermann, e saiu. O menino dirigiu-se ao telefone. Liebermann fechou os olhos. Lembrou-se. Abriu-os.

Quando o menino acabou de falar, fez sinal para ele. O garoto aproximou-se.

— Água? — indagou. Ele meneou a cabeça, fez sinal. O menino agachou-se ao seu lado. — Há uma lista — sussurrou. — O quê? — o garoto aproximou o ouvido. — Há uma lista — proferiu, o mais alto que pôde. — Uma lista? — Veja se pode achá-la. No sobretudo dele, talvez. Uma lista de nomes. Observou o menino se dirigindo ao vestíbulo. Hitler, meu auxiliar.

Manteve os olhos abertos. Olhou para Mengele diante do canapé. Branco e vermelho, onde estivera

o seu rosto. Osso e sangue. Bom. Pouco depois o menino voltou, olhando uns papéis. Ele estendeu a mão. — Meu pai faz parte dela — disse o garoto. Estendeu mais para o alto a

mão. O menino olhou-o, inquieto, pousou os papéis na sua mão. — Tinha esquecido. É melhor ir procurá-lo. Cinco ou seis folhas datilografadas. Nomes, endereços, datas. Difíceis de

ler sem os óculos. "Döring", riscado. "Horve", riscado. Outras páginas, sem riscos.

Dobrou os papéis de encontro ao chão, enfiou-os no bolso do casaco. Fechou os olhos. Permaneça vivo. Ainda não acabou. Latidos distantes. — Encontrei-o. Greenspan, de barba loura, olhou-o fixamente. Sussurrou : — Ele está morto! Não podemos interrogá-lo! — Está bem. Eu tenho a lista. — O quê? Cabelo louro crespo, solidéu bordado com alfinete. O mais alto que

pôde:

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— Está bem. Eu tenho a lista. Todos os pais. Foi levantado — Ai! — e arriado.

Numa padiola. Transportado. Aldrava com cabeça de cachorro, luz do dia, céu azul.

Uma lente cintilante sobre ele, demorando-se, zunindo. Nariz proeminente do lado.

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Oito Tinham bons médicos, conforme ficou provado. Suficientemente bons,

de qualquer forma, para deixá-lo com a mão no gesso, um tubo enfiado no braço, e ataduras por todo o corpo — na frente, atrás, em cima, embaixo.

No centro de tratamento intensivo do Lancaster Hospital. Sábado. A sexta-feira fora perdida.

Ficaria bom, um médico indiano rechonchudo lhe disse. Uma bala havia passado através do seu "mediastino" — o médico tocou no seu peito coberto pelo avental branco. Fraturara uma costela, ferira o pulmão esquerdo e uma coisa chamada "nervo recorrente laringiano" e deixara de atingir a aorta por milagre. Outra bala fraturara a cintura pélvica e alojara-se no músculo. Outra danificara ossos e músculos da mão esquerda. Outra esfolara uma costela do lado direito.

A bala alojada fora removida e todo o estrago remediado. Poderia falar dentro de uma semana ou dez dias, andaria de muletas dentro de duas semanas. A embaixada austríaca fora avisada, embora — o médico sorriu — provavelmente não fosse necessário. Por causa dos jornais e da televisão. Um detetive queria falar com ele, mas teria de esperar, é claro.

Dena curvou-se e beijou-o, apertando sem parar sua mão direita e sorrindo. Que dia era? De olheiras, mas bonita.

— Não podia ter dado um jeito de fazer isso na Inglaterra? — indagou ela.

Foi removido para um centro de tratamento intermediário, pôde sentar-se e escrever. "Onde estão minhas coisas?"

— Vai receber tudo quando estiver no seu quarto — disse a enfermeira com um sorriso.

"Quando?" — Quinta ou sexta, é o mais provável. Dena leu-lhe as reportagens dos jornais. Mengele foi identificado como

Ramón Aschheim y Negrín, um paraguaio. Matara Wheelock, ferira Liebermann, e fora morto pelos cães de Wheelock. O filho de Wheelock, Robert, de treze anos, chamara a polícia, ao voltar da escola. Cinco homens que haviam chegado imediatamente depois da polícia tinham-se identificado como membros dos Jovens Defensores Judaicos e amigos de Liebermann. Tinham a intenção de encontrá-lo, declararam, e acompanhá-lo numa viagem a Washington. Manifestaram a opinião de que Aschheim y Negrín era um nazista, mas não puderam dar qualquer explicação para a presença dele ou de Liebermann na casa de Wheelock, ou para o assassinato de Wheelock. A

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polícia esperava que Liebermann, se e quando se recuperasse, pudesse lançar luz sobre a questão.

— Você pode? — indagou Dena. Inclinou a cabeça, fazendo uma boca de "talvez". — Quando você se aproximou dos JDJ? "Na semana passada." Uma enfermeira veio avisar a Dena que alguém queria vê-la. O Dr. Chavan entrou, examinou o quadro de Liebermann, segurou-lhe o

queixo, olhou-o atentamente e declarou-lhe que a pior coisa que havia com ele era estar precisando fazer a barba.

Dena voltou, inclinada ao peso da valise de Liebermann. — É falar no diabo... — disse, arriando-a junto à divisória. Greenspan

trouxera a valise. Fora buscar o carro, que a polícia não lhe permitira retirar na quinta-feira. Deixara com Dena um bilhete para Liebermann: "Primeiro, fique bom; segundo, o Rabino Gorin o procurará logo que puder. Ele tem problemas pessoais. Observe os jornais".

Doía-lhe o corpo todo. Dormiu um bocado. Mudaram-no para um bom quarto, com cortinas listradas e um aparelho

de televisão na parede, sua pasta sobre uma cadeira. Logo que o colocaram na cama, abriu a gaveta de mesinha-de-cabeceira. A lista estava ali, junto com suas outras coisas. Pôs os óculos e olhou os nomes datilografados. Os números de 1 a 17 riscados. Riscado o de Wheelock também. A data de Wheelock fora 19 de fevereiro.

Um barbeiro veio fazer-lhe a barba. Podia falar, roucamente, mas não devia. Tanto melhor, teria tempo para

pensar. Dena escreveu cartas. Ele leu o Philadelphia Inquirer e o The New York

Times, viu as notícias na televisão de controle remoto. Nada sobre Gorin. Kissinger em Jerusalém, num encontro com Rabin. Crime, desemprego.

— O que é que há, pai? — Nada. — Não fale. — Você perguntou. — Não fale! Escreva! Para isso tem o bloco! "NADA!" Às vezes, bem que ela era uma praga. Chegaram cartões e flores: de amigos, contribuintes, da agência de

conferências, da irmandade do templo local. Uma carta de Klaus, que obtivera o endereço do hospital através de Max: "Por favor, escreva logo que puder. Dispensável dizer que eu, Lena e Nürnberger também estamos por demais ansiosos para saber além do que está nos jornais".

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Um dia depois que teve licença para falar, um detetive de nome Banhart veio procurá-lo, um rapaz ruivo, corpulento, cortês, de voz suave. Liebermann não tinha muita luz a lançar sobre o caso. Nunca vira Ramón Aschheim y Negrín antes do dia em que este atirara nele. Nem sequer ouvira falar do nome. Sim, Mrs. Wheelock estava certa: ele telefonara para Wheelock um dia antes e lhe dissera que um nazista poderia aparecer com a intenção de matá-lo. Isso se prendia a um informe que recebera de fonte não muito fidedigna da América do Sul. Viera procurar Wheelock a fim de tentar descobrir se havia realmente algum fundamento naquilo. Aschheim o recebera, disparara. Ele deixara os cães entrarem. Os cães mataram Aschheim.

— O governo do Paraguai declarou que o passaporte é falso. Tampouco sabem quem ele é.

— Não têm registro das suas impressões digitais? — Não, senhor, não têm. Mas quem quer que fosse, parece que andava

atrás do senhor, não de Wheelock. Sabe, ele morreu apenas um pouco antes de chegarmos. O senhor deve ter chegado por volta de duas e meia, não foi?

Liebermann refletiu e acenou afirmativamente. — Sim. — Mas Wheelock morreu entre onze e meio-dia. Portanto "Aschheim"

esperou umas duas horas pelo senhor. Esse seu informe faz pensar numa arapuca, senhor. Wheelock nada tinha a ver com o tipo de gente que o senhor vive caçando, temos certeza disso. Será melhor ficar de orelha em pé quanto a informes futuros, se me permite dizê-lo.

— Perfeitamente, trata-se de um bom conselho. Obrigado. Ficar de "orelha em pé". Perfeitamente.

Gorin surgiu no noticiário daquela noite. Estava em livramento condicional desde 1973, quando recebera suspensão da pena de três anos, por conspiração de ataque a bomba, de cuja acusação se confessara culpado. Agora o governo federal tentava obter a revogação de seu livramento condicional, baseando-se em que ele conspirara novamente, desta vez para raptar um diplomata russo. Um juiz marcara audiência para 26 de fevereiro. A revogação significaria que Gorin teria de voltar à prisão para o restante da sua sentença, um ano. É, ele tinha problemas, sim, não havia dúvida.

E Liebermann também. Estudou a lista quando ficou sozinho. Cinco páginas de papel fino, habilmente datilografadas. Noventa e quatro nomes. Fitou a parede. Meneou a cabeça e suspirou. Dobrou a lista várias vezes e enfiou-a na capa do passaporte.

Escreveu cartas para Max e Klaus, sem dizer grande coisa. Começou a receber e a dar telefonemas, embora ainda estivesse rouco e não pudesse falar em volume normal.

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Dena tivera de voltar para casa. Providenciara a respeito da conta do hospital. Marvin Farb e alguns outros cuidariam da conta, e, quando Liebermann voltasse à Áustria e recebesse o seguro, trataria de reembolsá-los.

— Não se esqueça da cópia da conta — preveniu-o ela. — Não tente andar antes do tempo. E não saia até que eles digam que deve sair.

— Prometo, prometo, prometo. Depois que ela saiu, ele constatou que não tinha abordado a questão

entre ela e Gary. Teve remorsos. Que pai. Andou de muletas de um lado para o outro do corredor, trabalho penoso

com a mão ainda engessada. Conheceu outros pacientes, reclamou da comida.

Gorin telefonou. — Yakov? Como vai? — Bem, obrigado. Sairei dentro de uma semana. Como vai você? — Não vou grande coisa. Viu o que andam fazendo comigo? — Sim. É uma vergonha. — Estamos tentando conseguir um adiamento, mas a coisa não vai bem.

Estão realmente dispostos a me pegar. E eu sou apontado como conspirador. Oh, droga. Escute, como vão as coisas? Pode falar? Estou numa cabine, portanto não há problema.

Ele respondeu em ídiche: — Será melhor falarmos em ídiche. Não haverá mais assassinatos. Os

homens foram chamados de volta. — Ah, é? — E o que atirou em mim, que foi apanhado pelos cachorros, era... o

Anjo. Entende o que quero dizer? Silêncio. — Tem certeza? — Absoluta. Nós conversamos. — Oh, meu Deus! Graças a Deus! Graças a Deus! Os cães foram bons

demais para ele! E você vai ficar calado? Eu convocaria a maior entrevista coletiva da história!

— E o que vou dizer quando perguntarem o que ele estava fazendo ali? Um joão-ninguém do Paraguai é uma coisa, mas ele? E, se eu não explicar, o FBI entrará em cena para descobrir. Isso seria bom? Não sei ainda.

— Não, não, está claro que você tem razão. Mas saber e não poder dizer! Você vem a Nova York?

— Sim. — Onde vai ficar? Entrarei em contato. Ele lhe deu o número dos Farb. — Phil disse que você tem uma lista. Liebermann pestanejou.

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— Como ele sabe? — Você lhe disse. — Eu? Quando? — Lá na casa. Não disse? — Sim. Agora me lembro. É um problema, rabino. — Eu que o diga. Fique de sobreaviso. Até breve. Shalom. — Shalom. Conversou com alguns repórteres e garotos de ginásio. Andou de

muletas de um lado para o outro do corredor, pegando o jeito da coisa. Uma tarde, uma mulher de cabelos castanhos, corpulenta, de casaco

vermelho e pasta, aproximou-se e indagou: — Mr. Liebermann? — Sim? Ela sorriu para ele: covinhas, bons dentes. — Posso falar com o senhor um minuto, por favor? Sou Mrs. Wheelock.

Mrs. Hank Wheelock. Ele fitou-a. — Sim — respondeu. — Certamente. Foram para o quarto. Ela sentou-se numa das cadeiras, com a pasta no

colo, e ele encostou as muletas na cama e arriou-se sobre a outra cadeira. — Meus sentimentos — disse ele. Ela acenou com a cabeça, olhando para a pasta, esfregando nela o

polegar de unha vermelha. Levantou os olhos. — A polícia me disse que aquele homem veio para apanhar o senhor, e

não para matar Hank. Ele não tinha interesse em Hank, ou em nós. Estava apenas interessado no senhor.

Liebermann acenou afirmativamente. — Mas enquanto ele esperava — prosseguiu ela —, examinou nosso

álbum de família. Estava lá no chão, onde ele... — Ela moveu um ombro, olhou para Liebermann.

— Talvez — tornou ele — o seu marido estivesse examinando-o. Antes de o homem chegar.

Ela meneou a cabeça, os cantos da boca caídos. — Ele nunca olhou para o álbum. Fui eu quem tirou aquelas fotografias.

Fui eu quem as arrumou lá, e fiz as legendas. O homem é que estava olhando.

— Talvez quisesse apenas passar o tempo — ponderou Liebermann. Mrs. Wheelock permaneceu calada, olhando o quarto, as mãos cruzadas

sobre a pasta. — Nosso filho é adotivo — declarou. — Meu filho. Ele não sabe. Fazia

parte do acordo não lhe dizermos. Na noite de anteontem ele me perguntou

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se tinha sido adotado. A primeira vez que tocou no assunto. — Olhou para Liebermann. — O senhor lhe disse alguma coisa naquele dia que pudesse ter-lhe posto a idéia na cabeça?

— Eu? — Ele meneou a cabeça. — Não. Como poderia saber? — Julguei que talvez houvesse uma ligação. A mulher que arranjou a

adoção era alemã. Aschheim é nome alemão. Um homem com sotaque alemão telefonou e perguntou acerca de Bobby. E eu sei que o senhor é... contra os alemães.

— Contra os nazistas — retrucou Liebermann. — Não, Mrs. Wheelock, não tinha idéia de que ele fosse adotivo, e não estava podendo falar quando ele chegou. Não estou falando muito bem agora, como pode ouvir. Talvez pense desta maneira por ter perdido o pai. Ela suspirou, concordando.

— Talvez — disse. Esboçou um sorriso. — Desculpe tê-lo incomodado. Estava preocupada... que isso pudesse dizer respeito a Bobby.

— Está bem — tornou ele. — Fiquei satisfeito de nos termos encontrado. Ia telefonar-lhe antes de partir, a fim de expressar-lhe meus sentimentos.

— O senhor viu o filme? — indagou ela. — Não, suponho que não tenha podido. Engraçado como as coisas acontecem, não é mesmo? Coisas boas resultando das más. Toda essa desgraça: Hank morto, o senhor ferido tão gravemente, aquele homem... e também os cães. Tivemos de pô-los para dormir, sabe? E Bobby tem a sua grande oportunidade.

— Sua oportunidade? — redargüiu Liebermann. Mrs. Wheelock assentiu.

— A WGAL comprou o filme que ele fez naquele dia, e exibiu uma parte — o senhor sendo levado para a ambulância, os cães cobertos de sangue, aquele homem e Hank ao serem carregados —, e a CBS, isto é, a cadeia, todas as estações do país inteiro, aproveitaram-no, exibindo-o nas "Notícias matinais de Hughes Rudd", na manhã seguinte. Somente o senhor sendo levado na ambulância. Uma oportunidade dessas pode ser tremendamente importante para um menino da idade de Bobby. Não somente pelos contatos, como também por questão da autoconfiança. Ele quer ser diretor de cinema.

Liebermann olhou-a e disse: — Faço votos que o consiga. — Acho que tem possibilidades — asseverou ela, levantando-se com um

leve sorriso de orgulho. — Não lhe falta talento. Os Farb vieram na sexta, 28 de fevereiro, e acomodaram Liebermann,

muletas, valise e pasta no seu deslumbrante Lincoln novo. Marvin Farb entregou-lhe uma cópia da conta do hospital.

Ele examinou-a, e fitou Farb. — E ainda está barato — assegurou Farb. — Em Nova York teria sido

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duas vezes isto. — Gott im Himmel! Sandy, a garota do escritório dos JDJ, telefonou transmitindo um convite

para um almoço na terça-feira, dia 11, ao meio-dia. — Será de despedida. Ele ia partir no dia 13. Seria para ele? — Para quem é? — indagou. — Para o rabino. Não soube? — O recurso não foi aceito? — Ele desistiu. Quer acabar logo com a coisa. — Oh, céus! Lamento sabê-lo. Sim, claro, estarei lá. Ela lhe deu o

endereço: Restaurante Smilkstein, na Canal Street. O Times fizera uma reportagem de uma coluna, que ele perdera. Ao

invés de contestar a nova acusação de conspiração, Gorin decidira aceitar a decisão do juiz revogando o seu livramento condicional. Daria entrada na penitenciária federal da Pensilvânia em 16 de março.

— Humm... — Liebermann balançou a cabeça. Na terça-feira, dia 11, pouco depois de meio-dia, subiu vagarosamente a escada do Smilkstein, apoiado a uma bengala. Um degrau de cada vez, segurando com a mão direita o corrimão. Um suplício.

No alto da escada, ofegante e suarento, viu-se diante de um salão onde havia um dossel nupcial de folhagem sobre um tablado de orquestra, uma quantidade de mesas descobertas e cadeiras douradas de armar, e no centro, na pista de danças, homens sentados a uma mesa, consultando cardápios, e um garçom recurvado, tomando notas. Gorin, à cabeceira da mesa, avistou-o, pousou o cardápio e o guardanapo, levantou-se e aproximou-se rapidamente. De aparência tão satisfeita como se tivesse lutado contra a decisão e vencido.

— Yakov! Que prazer vê-lo! — Apertou a mão de Liebermann, segurou-lhe o braço. — Você está ótimo! Que droga, esqueci que tinha escada.

— Não faz mal — retorquiu Liebermann, tomando fôlego. — Faz mal, sim, foi burrice minha. Devia ter escolhido outro lugar. —

Encaminharam-se para a mesa, Gorin na frente, Liebermann apoiado na bengala. — Meus dirigentes da ramificação daqui — apresentou Gorin — e mais Phil e Paul. Quando parte, Yakov?

— Depois de amanhã. Lamento que você... — Esqueça, esqueça, estarei em boa companhia — toda a assessoria de

Nixon. É o "quente" para conspiradores. Senhores, este é Yakov. E aqui, Dan, Stig, Arnie...

Havia cinco ou seis deles, além de Phil Greenspan e Paul Stern.

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— O senhor está com aparência cem por cento melhor do que da última vez que o vi — declarou Greenspan, sorridente, partindo um pão.

Sentado numa cadeira em frente a ele, Liebermann confessou: — Quer saber, naquele dia nem me lembro de ter visto o senhor! — Acredito — tornou Greenspan. — O senhor estava cor de terra. — Médicos esplêndidos os que eles têm lá — disse Liebermann. —

Fiquei de fato surpreendido. — Chegou para a frente a cadeira, com auxílio do homem à sua direita. Encostou a bengala na beira da mesa, pegou o seu cardápio.

À sua esquerda, Gorin preveniu: — O garçom não aconselha carne assada. Gosta de pato? Fazem muito

bem aqui. Foi uma despedida triste. Enquanto comiam, Gorin discorreu acerca de

diretrizes de comando, e providências que ele e Greenspan estavam tomando a fim de manterem contato enquanto estivesse na prisão. Propuseram-se ações retaliatórias, disseram-se piadas amargas. Liebermann tentou alegrar o ambiente com uma história sobre Kissinger, supostamente verdadeira, que Marvin Farb lhe contara. Não ajudou muito.

Depois que o garçom tirou a mesa e desceu, deixando-os com o doce e o chá, Gorin, os antebraços na mesa, cruzou as mãos e olhou para todos gravemente.

— Estes nossos problemas atuais são café pequeno — declarou, e olhou para Liebermann. — Não é verdade, Yakov?

De olhar sobre ele, Liebermann acenou afirmativamente. Gorin olhou para Greenspan e Stern, para cada um dos dirigentes. — Há noventa e quatro meninos — disse ele — de treze anos de idade,

alguns deles com doze e onze, que precisam ser mortos antes que fiquem mais velhos. Não — reiterou —, não estou brincando. Quem me dera que estivesse. Alguns estão na Inglaterra, Rafe. Alguns na Escandinávia, Stig. Outros aqui e no Canadá, outros na Alemanha. Não sei como iremos apanhá-los, mas o faremos, teremos de fazê-lo. Yakov explicará quem eles são e como... vieram a existir. — Recostou-se e fez um gesto em direção a Liebermann. — Faça uma síntese — solicitou. — Não precisa fornecer todos os detalhes. — E para os outros: — Confirmo cada palavra que ele disser, assim como Phil e Paul também o farão. Eles viram um deles. Pode começar, Yakov.

Liebermann ficou de olhos postos na colher do seu chá. — Você está com a palavra — tornou Gorin. Liebermann olhou-o e

indagou com a voz enrouquecida: — Poderíamos falar um minuto em particular? — E pigarreou. Gorin fitou-o, inquisitivo, e em seguida mudou de expressão. Respirou

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sonoramente pelas narinas, sorriu. — Está bem — retorquiu, e levantou-se. Liebermann pegou a bengala,

segurou a borda da mesa e ergueu-se da cadeira. Deu um passo apoiado na bengala, e Gorin pôs a mão nas suas costas e caminhou junto dele, murmurando:

— Já sei o que vai dizer. Afastaram-se em direção ao tablado da orquestra, com o seu dossel

nupcial. — Já sei o que vai dizer, Yakov. — Pois eu ainda não. Ainda bem que você sabe. — Está bem, direi por você: "Não devemos fazê-lo. Deveríamos dar-lhes

uma oportunidade. Mesmo os que perderam os pais podem vir a se tornar pessoas comuns".

— Pessoas comuns, não, não acredito. Mas não Hitlers. — Por isso, deveríamos ser judeus à moda antiga, bons e generosos, e

respeitar seus direitos civis. E, quando alguns deles se tornarem de fato Hitlers, bem, então, deixemos simplesmente que nossos filhos se preocupem com isso. A caminho das câmaras de gás.

Liebermann deteve-se junto ao tablado da orquestra, voltou-se para Gorin.

— Rabino — disse —, ninguém sabe quais as possibilidades. Mengele julgou que eram boas, mas se tratava do seu projeto, da sua ambição. Pode ser que nenhum deles se torne Hitler, mesmo que houvesse mil deles. Eles são meninos. Não importa quais sejam os seus genes. São crianças. Como poderemos matá-los? Este seria serviço para Mengele, matar crianças. Deverá ser o nosso? Eu nem sequer...

— Você de fato me surpreende. — Deixe-me terminar, por favor. Eu nem sequer acho que deveríamos

mantê-los vigiados por seus governos, porque isso transpirará, esteja absolutamente certo, há de colocá-los em evidência, atraindo para eles exatamente o tipo de meshuganahs que fariam deles Hitlers, encorajando-os. Ou até mesmo de dentro de um governo poderiam vir os meshuganahs. Quanto menos souberem, melhor.

— Yakov, se um deles se tornar um Hitler, apenas um... meu Deus, você sabe o que teremos!

— Não — retorquiu Liebermann. — Não. Venho pensando nisso há semanas. Digo nas minhas conferências que são necessárias duas coisas para fazer com que isso aconteça novamente: um novo Hitler, e condições sociais como as dos anos 30. Mas isso não é verdade. São necessárias três coisas: um Hitler, as condições... e pessoas que seguissem esse Hitler.

— E não acha que ele as encontraria?

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— Não, não em número suficiente. Acredito de fato que atualmente as pessoas são melhores e mais inteligentes, não há tantos julgando que seus líderes são Deus. A televisão faz uma grande diferença. E a história, o conhecimento... Alguns ele encontraria, sim. Mas não mais, acho... tenho a esperança... do que os pretensos Hitlers que temos agora, na Alemanha e na América do Sul.

— Bem, você tem uma fé dos diabos na natureza humana, muito mais que eu — disse Gorin. — Olhe, Yakov, pode ficar aí falando até ficar roxo, que eu não irei mudar de idéia sobre isso. Não apenas temos o direito de matá-los, temos também o dever. Deus não os fez e sim Mengele.

Liebermann permaneceu olhando para ele, e acenou afirmativamente. — Está bem — declarou. — Pensei em levantar a questão. — Já a levantou — tornou Gorin, e fez um gesto em direção à mesa. —

Quer explicar-lhes agora? Temos um bocado de coisas para resolver antes de sair.

— Minha voz se gastou por hoje — retorquiu Liebermann. — É melhor você explicar.

Voltaram juntos em direção à mesa. — Aproveitando que estou de pé — indagou Liebermann —, onde fica o

banheiro dos homens? — Ali. Liebermann encaminhou-se para a escada, apoiado na bengala. Gorin foi

para a mesa e sentou-se. Liebermann entrou no banheiro dos homens apoiado na bengala — era

pequeno — e passou para a privada, trancando-se. Pendurou a bengala no pulso direito, retirou o passaporte, de cujo invólucro puxou a lista bem dobrada. Pôs o passaporte de volta no casaco, desdobrou a lista e rasgou-a, juntou os pedaços e rasgou novamente, e ainda mais uma vez juntou-os e rasgou. Jogou o bolo de pedacinhos dentro do vaso sanitário, e quando os fragmentos datilografados se haviam separado e assentado sobre a água, girou para baixo a alavanca preta do tanque. O papel e a água remoinharam, afunilando-se, num gorgolejo. Pedaços de papel grudaram nos lados, outros voltaram na água que subiu.

Ele esperou o tanque encher de novo. E, já que estava ali, abriu a braguilha. Quando saiu, vendo que um dos homens na extremidade da mesa o

avistara, apontou para Gorin. O homem falou com Gorin, e este voltou-se e olhou para ele. Fez um sinal. Gorin hesitou um momento, levantou-se e veio em sua direção, parecendo aborrecido.

— O que há agora? — Prepare-se.

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— Para o quê? — Joguei a lista dentro da privada. Gorin fitou-o. Confirmou com a cabeça. — É a coisa certa a fazer — disse. — Acredite-me. Gorin olhava-o,

lívido. — Sinto-me sem graça de dizer a um rabino... — A lista não era sua — exclamou Gorin. — Era... de todos! Do povo

judeu! — Não podia dar meu voto? — redargüiu Liebermann. — Estava

sozinho lá. — Meneou a cabeça. — Matar crianças, quaisquer crianças, é errado.

O rosto de Gorin ficou rubro. Suas narinas fremiram, seus olhos castanhos abrasaram-se, rodeados de negro.

— Não me venha dizer o que é certo ou errado — contrapôs. — Seu bunda-mole! Seu estúpido e ignorante peido humano!

Liebermann encarou-o. — Devia jogá-lo escada abaixo! — Encoste a mão em mim que lhe quebro o pescoço — ameaçou Liebermann. Gorin respirou fundo, de punhos cerrados. — São judeus iguais a você — disse — que deixaram acontecer da

última vez. Liebermann fitou-o. — Os judeus não "deixaram" acontecer — retorquiu. — Os nazistas é que fizeram com que acontecesse. Gente que mataria até

crianças para conseguir o que desejava. Gorin cerrou os maxilares enrubescidos. — Dê o fora daqui — proferiu. E, fazendo meia-volta, afastou-se

empertigado. Liebermann observou-o ir-se, respirou fundo e voltou-se para a escada.

Segurou no corrimão e começou a descer vagarosamente, apoiado à bengala, um degrau de cada vez.

Através da janela do táxi, entrando no Aeroporto Kennedy, ele avistou

Howard Johnson's Motor Lodge. Onde Frieda Maloney distribuíra os bebês para os casais dos Estados Unidos e do Canadá. Viu-o passar de relance, com os seus dez ou doze andares profusamente iluminados ao crepúsculo...

Após se dirigir à Pan Am, telefonou para Mr. Goldwasser, da agência de conferências.

— Alô! Como vai? Onde está você?

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— No Kennedy, de volta para casa. E não estou tão ruim assim. Só tenho de tomar cuidado durante alguns meses. Recebeu meu bilhete?

— Sim. — Novamente obrigado. Lindas flores. Boa publicidade, heim? Primeira

página do Times, CBS, a cadeia inteira... — Espero que você nunca mais receba uma publicidade dessas. — Ainda assim, foi publicidade. Escute, se lhe der a minha palavra de

honra solene de que não cancelarei, gostaria de me contratar para o final da primavera ou começo do outono? Minha voz voltará ao normal, o médico garante.

— Bem... — Vamos, com tantas flores, o senhor está interessado. — Está bem, vou sondar alguns grupos. — Bom. E escute, Mr. Goldwasser... — Quer me chamar de Ben, pelo amor de Deus? Há quantos anos nos

conhecemos? — Ben... nada de templos, nem Hadassahs. Jovens das universidades.

Até mesmo dos ginásios. — Eles não pagam nada. — Universidades, então. ACMS. Onde quer que existam jovens. — Tentarei organizar um circuito bem distribuído, está bem? — Está bem. Preencha os intervalos com os ginásios. Dê-me notícias.

Até a vista. Desligou e pôs o dedo no depósito de moedas. Apanhou a pasta e,

apoiado à bengala, dirigiu-se ao portão de embarque.

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Nove A escuridão circundava o quarto. Uma maçaneta cintilou, um espelho,

pontas de bastões de esquis. Vulto de uma cama, de uma cadeira. Aro metálico de uma gaiola. Dentro, uma roda de moinho girando, parando, girando. Modelos de foguete. Asas de um aviãozinho de prata virando devagar.

No centro do quarto, uma brancura plana enquadrada sob uma lâmpada recurvada. Uma mão molhou um pincel, enxugou-o, encheu de tinta preta os contornos a lápis. Fazendo um estádio: imenso, com uma cúpula circular, transparente.

O menino trabalhava cuidadosamente, chegando o nariz proeminente perto do papel. Começou a pôr gente, fileiras de curvinhas representando cabeças, concentradas na plataforma, ao meio. Molhou o pincel, enxugou-o, afastou a mecha de cabelo com as costas da mão, pintou mais cabeças, mais gente.

Um piano tocava: uma valsa de Strauss. O menino levantou os olhos e ouviu. Sorriu. Debruçou-se sobre o desenho e fez mais cabeças, cantarolando a

melodia. Jóia sem o papai aqui. Só ele e mamãe. Nada de brigas, nada de portas

abertas com violência e "Largue isso e faça seu dever de casa, senão..." Bem, não era "jóia", não queria dizer "jóia". Apenas mais fácil, mais

cômodo. Até mesmo vovó costumava dizer que papai era um verdadeiro ditador. Mandão arrogante, imbuído de preconceitos, sempre agindo como o homem mais importante do mundo... Por isso, era mais fácil agora. Mas isso não significava que o tivesse odiado, tivesse querido vê-lo morto. Gostara um bocado do pai, na verdade. Não chorara no enterro?

Entrou no desenho, onde tudo era mais bonito. Pôs-se na plataforma, no homem em pé sobre ela. Pequeno na distância. Pinceladas e mais pinceladas e mais pinceladas. Levantou os braços: pinceladas e mais pinceladas.

Quem haveria de ser ele, aquele homem sobre a plataforma? Eminente, com toda a certeza, para toda essa gente vir vê-lo. Não apenas um cantor ou comediante. Um homem fantástico, uma pessoa verdadeiramente boa que amavam e respeitavam. Pagaram fortunas para entrar, e se não pudessem pagar ele os deixaria entrar de graça. Um homem bom assim...

Pôs uma pequena câmara de televisão no alto da cúpula. Dirigiu mais alguns refletores sobre o homem.

Enxugou o pincel, afinando-o ao máximo, e, mediante uns pontinhos,

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deu bocas às pessoas maiores mais próximas, para que aclamassem, fazendo sentir a ele — isto é, ao homem — como ele era bom e quanto o amavam.

Aproximou mais do papel o nariz proeminente e deu bocas com os tais pontinhos às pessoas menores. Sua mecha caiu. Ele mordeu o lábio, estreitou os olhos azul-claros. Pontinhos, pontinhos, pontinhos. Começou a ouvir as pessoas aclamando, rugindo. Uma linda manifestação de amor, como um trovão que crescia e crescia, e depois pulsava, pulsava, pulsava.

Como naqueles filmes antigos de Hitler.

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O AUTOR E SUA OBRA Alguns críticos já definiram Ira Levin como um dos mais brilhantes

discípulos da escola de Alfred Hitchcock, aquela que reúne os chamados "mestres do suspense". Enquanto o velho Hitchcock arrepia multidões em salas de cinema, Ira Levin vem se transformando num conhecido escritor de best sellers, onde a intriga, o medo e o mistério arrebatam milhares de leitores em todo o mundo.

Natural de Nova York, onde nasceu a 27 de agosto de 1929, Ira Levin era um escritor em busca do sucesso desde 1953, época em que escreveu o primeiro romance, "A kiss before dying". Porém, foi somente em 1967 que Ira Levin viu realizado o seu objetivo: nesse ano, ao ser editado o romance "Rosemary's baby", o seu nome passaria a ser rapidamente conhecido, com o livro esgotando as tiragens em poucas semanas. E chegaria ao êxito absoluto um ano depois, quando o diretor Roman Polansky transformou "O bebê de Rosemary" numa das fitas mais célebres da história do cinema de suspense.

Autor de "Este mundo perfeito" (1972) e "As possuídas" (1974), lançadas no Brasil, Ira Levin continua nesta obra a técnica de opressão e de intriga que domina com desenvoltura: "Os meninos do Brasil" (1976) narra a ambição de um ex-nazista em deflagrar o aparecimento do IV Reich na América Latina — uma fantasia que o desenvolvimento da engenharia genética poderá converter em aterradora realidade.