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ISSN: 2175-8875www.enanpege.ggf.br/2017 4750 OS KAINGANG DA TERRA INDÍGENA FAXINAL: DA PERMANÊNCIA A RESSIGNIFICAÇÃO E DA HIBRIDAÇÃO A (RE)INVENÇÃO DE PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS TERRITORIAIS JULIANO STRACHULSKI 1 JORGE NO KAYA ALVES 2 ADELITA STANISKI 3 Resumo: A proposta deste texto é compreender a relação entre as práticas socioculturais territoriais atuais dos Kaingang da Terra Indígena Faxinal, Cândido de Abreu-PR. Este povo sofreu grandes perdas territoriais, implicando na diminuição da intensidade de algumas práticas tradicionais. Outras permanecem, como a língua e a organização social baseada na divisão em metades exogâmicas: kamẽ e kanhru. Contudo, o contato intenso também acaba propiciando uma hibridação de práticas (existência concomitante da agricultura tradicional e moderna). Por outro lado, ocorre a invenção de tradições como festas de santos, rezas, bailes, futebol, dentre outras. O contato e convivência com o não-indígena provocou descontinuidades, mas também permanências, ressignificações, hibridações e (re)invenções a partir de processos de assimilação e resistência. Palavras-chave: Permanência e ressignificação; hibridismo; invenção de tradição. Abstract: The proposal this text is understand the relationship between territorial socio-cultural practices current the Kaingang of Terra Indígena Faxinal, Cândido de Abreu-PR. This people have suffered great territorial losses, implying in reduction of intensity some traditional practices. Others remain, such as language and social organization based on the division in exogamous halves: kamẽ and kanhru. However, the intense contact also ends provide a hybridization of practices (concomitant existence of traditional and modern agriculture). On other hand, there is the invention of traditions such as feasts of saints, prayers, dances, football, among others. The contact and coexistence with the non-indigenous caused discontinuities, but also permanences, ressignifications, hybridizations and (re)inventions from of assimilation and resistance processes. Key-words: Permanence and resignification; Hybridity; Invention of tradition. 1 Introdução A cultura Kaingang desenvolveu-se na floresta com Araucárias, em territórios dos estado do sul e São Paulo (TOMMASINO, 2002). Porém, a vida nos pinheirais se transformou, a partir do contato com os europeus, no início do século XVI, intensificando-se a relação entre práticas culturais Kaingang e não-indígenas. Assim, a proposta deste texto é compreender a relação entre as práticas socioculturais territoriais atuais dos Kaingang da Terra Indígena Faxinal, Cândido de Abreu-PR. 1 Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Doutorado em Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail de contato: [email protected] 2 Morador da T.I. Faxinal e professor no Colégio Estadual Indígena Professor Sérgio Krigrivaja Lucas - EIEFM. E-mail de contato: [email protected] 3 Licenciada em Geografia e Mestra em Gestão do Território (UEPG). E-mail de contato: [email protected]

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ISSN: 2175-8875www.enanpege.ggf.br/2017

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OS KAINGANG DA TERRA INDÍGENA FAXINAL: DA PERMANÊNCIA A RESSIGNIFICAÇÃO E DA HIBRIDAÇÃO A (RE)INVENÇÃO DE

PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS TERRITORIAIS

JULIANO STRACHULSKI1 JORGE NO KAYA ALVES2

ADELITA STANISKI3

Resumo: A proposta deste texto é compreender a relação entre as práticas socioculturais

territoriais atuais dos Kaingang da Terra Indígena Faxinal, Cândido de Abreu-PR. Este povo sofreu grandes perdas territoriais, implicando na diminuição da intensidade de algumas práticas tradicionais. Outras permanecem, como a língua e a organização social baseada na divisão em metades exogâmicas: kamẽ e kanhru. Contudo, o contato intenso também acaba propiciando uma hibridação de práticas (existência concomitante da agricultura tradicional e moderna). Por outro lado, ocorre a invenção de tradições como festas de santos, rezas, bailes, futebol, dentre outras. O contato e convivência com o não-indígena provocou descontinuidades, mas também permanências, ressignificações, hibridações e (re)invenções a partir de processos de assimilação e resistência.

Palavras-chave: Permanência e ressignificação; hibridismo; invenção de tradição.

Abstract: The proposal this text is understand the relationship between territorial socio-cultural

practices current the Kaingang of Terra Indígena Faxinal, Cândido de Abreu-PR. This people have suffered great territorial losses, implying in reduction of intensity some traditional practices. Others remain, such as language and social organization based on the division in exogamous halves: kamẽ and kanhru. However, the intense contact also ends provide a hybridization of practices (concomitant existence of traditional and modern agriculture). On other hand, there is the invention of traditions such as feasts of saints, prayers, dances, football, among others. The contact and coexistence with the non-indigenous caused discontinuities, but also permanences, ressignifications, hybridizations and (re)inventions from of assimilation and resistance processes.

Key-words: Permanence and resignification; Hybridity; Invention of tradition.

1 – Introdução

A cultura Kaingang desenvolveu-se na floresta com Araucárias, em territórios

dos estado do sul e São Paulo (TOMMASINO, 2002). Porém, a vida nos pinheirais

se transformou, a partir do contato com os europeus, no início do século XVI,

intensificando-se a relação entre práticas culturais Kaingang e não-indígenas. Assim,

a proposta deste texto é compreender a relação entre as práticas socioculturais

territoriais atuais dos Kaingang da Terra Indígena Faxinal, Cândido de Abreu-PR.

1Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Doutorado em Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail de contato: [email protected] 2Morador da T.I. Faxinal e professor no Colégio Estadual Indígena Professor Sérgio Krigrivaja Lucas - EIEFM. E-mail de contato: [email protected] 3Licenciada em Geografia e Mestra em Gestão do Território (UEPG). E-mail de contato: [email protected]

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Ao longo do tempo e ao largo do espaço os Kaingang da T.I.F vem passando

por um processo de intensa interação com a sociedade não-indígena, buscando se

adaptar ao momento socioeconômico e cultural do qual fazem parte, num processo

de assimilação e resistência, no qual acabam ocorrendo rupturas, hibridações,

ressignificações invenção de tradições, além de algumas permanências.

Determinadas características culturais dos Kaingang da T.I.F permanecem

vivas: a língua materna, e a organização social em metades exogâmicas: kamẽ e

kanhru. Outras como a pintura corporal, o artesanato e as rodas de chimarrão são

ressignificadas. Já a agricultura, bem como a saúde comportam elementos

modernos e tradicionais num processo denominado hibridismo cultural (CANCLINI,

2008). De forma complementar, para organizar as relações sociais e a cultura local

inventam tradições (HOBSBAWN; RANGER, 2008): bailes, festas, futebol, etc.

Ao longo da história recente de transformações culturais aliado a perdas

territoriais a que foram submetidos, os Kaingang buscam reequilibrar seu modo de

vida, sendo que em determinadas circunstâncias prevalecem elementos criados ou

modernos e em outras os tradicionais. Os Kaingang da T.I.F buscam se adaptar a

este choque entre perspectivas culturais diferentes e reforçar seus anseios e suas

convicções de mundo.

2 – Materiais e Métodos

O desenvolvimento dessa pesquisa contou com trabalhos de campo

realizados na Terra Indígena Faxinal (T.I.F) entre os meses de abril e junho do ano

de 2015, com a realização de três estadias, sendo uma com duração de um mês e

outras duas com duração de um semana cada.

Em campo, buscou-se em alguns momentos utilizar a técnica de observação

simples. Nestes termos, buscava-se uma visão externa ao grupo e situação

estudada, observando espontaneamente os fatos (GIL, 2008). Aliado a observação

simples estava a utilização de um caderno de campo, com posterior transferência de

informações ao computador.

Em outros momentos, fazia-se uso da observação participante, técnica que

permite uma observação ativa da realidade (GIL, 2008), interagindo em momentos

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do cotidiano da comunidade. Aqui buscava-se uma aproximação com as pessoas,

participando nos eventos locais (festas, trabalho, reuniões, momentos de reza,

caminhadas pela T.I.F, dentre outros).

A partir de uma maior aproximação com a comunidade, pode-se realizar

entrevistas de caráter aberto e não estruturado, entrevistas informais (GIL, 2008).

Essas possibilitam um diálogo, sendo recomendadas para “[...] estudos exploratórios

[...] ou oferecer visão aproximativa do problema pesquisado” (GIL, 2008, p. 111).

Foram realizadas conversas ao ar livre com entrevistados eleitos aleatoriamente.

De modo complementar, foram feitas observações in loco, possibilitando a

percepção de fatos habituais das pessoas (GIL, 2008), além de registros

fotográficos, demonstrando o campo de estudo e os elementos que entram em jogo

na configuração atual das relações socioculturais.

3 – Resultados e discussões

No passado o povo Kaingang possuía vastas áreas territoriais e uma grande

liberdade para realizar suas práticas tradicionais. Contudo, com o contato, acabam

sofrendo perdas territoriais severas, ficando cada vez mais encurralados,

enfrentando um processo de desterritorialização.

A área inicial da T.I.F, a partir das demarcações, era de 19.205 ha, desde a

década de 1910, passando para 2.785 ha entre as décadas de 20 e 30 e 2.043 ha

(figura 1) a partir de 1951 (MOTA; NOVAK, 2008), sua configuração atual (2017). As

áreas usurpadas foram transferidas para companhias colonizadoras e a particulares.

O intenso e violento processo de contato entre os povos indígenas e a

sociedade não-indígena, com perda significativa de seus territórios (em torno de

90%), causou e ainda vem causando mudanças, rupturas, hibridações,

ressignificações, invenções de tradições, mas também permanências, num processo

constante e inacabado.

A partir das entrevistas informais e observações em campo foi possível

constatar que na T.I.F são visíveis as práticas tradicionais e também as modernas,

percebidas no dia-a-dia dos moradores, relativas tanto ao convívio social quanto as

práticas produtivas.

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Figura 1 - Mapa de localização da T.I.F e configuração territorial atual

Localmente ocorre um embate entre as relações socioculturais tradicionais e

a introdução de novos elementos, entendidos como modernos. Contudo, ressalta-se

que esse choque não deve ser compreendido apenas como uma dicotômica entre

moderno e tradicional. Pois, podem ser entendidos como processos híbridos

(CANCLINI, 2008) ou de invenção de tradições (HOBSBAWN; RANGER, 1997).

A cultura tradicional, compreendida como aberta ao diálogo com outros

modos de vida, pode se abrir para a absorção de elementos externos, a partir de

situações de contato (harmônico e/ou conflituoso). Nestes termos, pode ser tanto o

resultado de experiências cotidianas, mas não estáticas, como fruto da interação a

processos e fenômenos de outras culturas, podendo gerar um hibridismo cultural.

No território da T.I.F o conjunto de inúmeros hábitos presentes alude a um

hibridismo de costumes, relações sociais, trabalho, e outras situações. Hibridismo se

refere a “processos socioculturais ou práticas discretas, que existiam de forma

separada, e se combinam para gerar novas estruturas, objetos e relações”

(CANCLINI, 2008, p. 19).

A partir do contato entre elementos tradicionais e modernos, devido a

flexibilidade da tradição, é possível ocorrer uma assimilação-ressignificação dos

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elementos modernos e invenção de tradições que a princípio não são próprias a

cultura tradicional de um povo.

Mais que somente hibridismos, ocorrem fenômenos de apropriação e

invenção de tradições, criando novas matizes culturais com a consolidação e

fortalecimento de práticas antes dispersas, atribuindo-lhes continuidade

(HOBSBAWN; RANGER, 1997). Tradição inventada seria um conjunto de práticas

implícitas e aceitas, visando instituir valores e normas através da recorrência,

implicando uma continuidade ao passado (HOBSBAWN; RANGER, 1997).

A partir deste referencial, é possível compreender que na T.I.F a cultura local

vem passando por um processo de transformação, sendo que há um conflito latente

entre práticas tradicionais e modernas. Fica evidente que em determinados

momentos predominam práticas modernas (agricultura intensiva e tecnologias

digitais, dentre outras) e em outros as tradicionais (conversas a noite em volta do

fogo, o uso da língua materna, agricultura de coivara, dentre outras).

A interação entre moderno e tradicional permite dizer que a relação entre

estas formas de viver não pode ser considerado “nem transplante alienado, nem

desajuste com a própria realidade: tentativas de organizar o mundo moderno sem

abdicar da história” (CANCLINI, 2008, p. 117).

As práticas (i)materiais tradicionais que caracterizam a cultura local,

considerados aspectos símbolos da cultura Kaingang são, a língua materna, bem

como a organização social baseada na divisão em metades exogâmicas: kamẽ e

kanhru, com casamentos respeitando esta divisão.

Outros elementos tradicionais são a confecção do artesanato e os momentos

de sorver o mate (que podem estar associados) (figura 2), reuniões entre as

lideranças, mutirões, língua materna, saberes tradicionais, caça e pesca, em

especial o pari (embora pouco praticada, devido as perdas territoriais) (figura 3).

O pari é uma prática tradicional de pesca, que consiste em trançar taquara

(Chusquea sp.), fazendo uma esteira e colocando sobre uma armação feita de

galhos de árvores que se eleva para cima do nível da água, sendo colocada dentro

de um funil constituído de uma parede de pedras, que vai direcionando a água e os

peixes, sendo construído em uma corredeira.

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Figura 2 - Elemento tradicional da cultura Kaingang: chimarrão e artesanato

Fonte: Pesquisa de Campo 2015.

Figura 3 - Elemento tradicional da cultura Kaingang: o pari

Fonte: Pesquisa de Campo 2015.

O artesanato e o chimarrão são práticas tradicionais ressignificadas. O

artesanato possuía um uso prático, como a confecção dos arcos e flechas para a

caça e pesca, bem como a cestaria para transporte de alimento (milho, mandioca,

etc.). Atualmente é utilizado para o aumento da renda das famílias.

A pratica do artesanato ainda possibilita que os Kaingang percorram longas

distâncias, deslocando-se pelas cidades vizinhas (acampando nas rodoviárias ou

próximos a elas, em abrigos temporários cobertos por lonas) ressignificado uma

outra prática que era a de percorrer longas distâncias por comida e acampar na

mata, o que atualmente se torna impossível devido a redução de seu território.

Quanto a prática de sorver o mate, no passado o chimarrão era utilizado pelos

indígenas para tratar de ressacas causadas pela ingestão de álcool ou bebidas

fermentadas. Atualmente o chimarrão é uma forma de reunir e acolher o outro, de

possibilitar a união entre pessoas. Exemplo de que o mate é convidativo está

expresso na figura 2, onde se toma chimarrão e confecciona artesanato, no que se

denomina de puxirãozinho (pequena reunião de pessoas para realizar um trabalho).

Mas nem só de práticas tradicionais vive o povo Kaingang, tendo em vista a

presença das tecnologias modernas como o telefone móvel, os micro computadores,

e a agricultura moderna. Desta forma, em quase todos os locais em que se percebe

a modernidade também se percebe a hibridação, pois esta não repele os elementos

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tradicionais, mas acaba se inserindo nestes, possibilitando mesclar características e

aproximar temporalidades, objetos e lugares (CANCLINI, 2008).

Muitos elementos da modernidade, expressivamente difundidos na sociedade

urbano-industrial chegam a T.I.F, estimulando a disseminação do modo de vida

moderno, cujas principais características são o apego e consumo de bens materiais,

o individualismo e a valorização da cultura de massa. Os telefones móveis, o rádio,

a TV e os micro computadores tem incentivado cada vez mais uma hibridação nas

práticas sociais, em que acabam incorporando estilos musicais urbanos (Ex: funk,

gauchesco, forró, sertanejo), junto com características tradicionais locais.

A presença de pessoas com um modo de vida carregado de elementos da

modernidade, normalmente de hábito de vida urbano, nas festas locais, bem como

no cotidiano, como os professores e funcionários não-indígenas das escolas locais,

negociantes de alimentos e outros, também contribuem para uma incorporação de

novos valores aos já estabelecidos ao longo de décadas.

Desta forma, a cultura local buscando se adaptar ao contexto sociocultural em

que está inserida acaba se abrindo, modificando elementos tradicionais e

assimilando códigos da cultura moderna, acarretando em situações de apreensão e

stress no cotidiano dos moradores locais.

Não obstante, o processo tensionado fruto do embate entre moderno e

tradicional acaba gerando um hibridismo que na visão de Canclini (2008) não é um

processo ameno, pois não é uma simples adaptação, envolvendo percas e

assimilações, sendo o resultado do choque entre fenômenos e processos

concebidos e praticados em escalas diferenciadas.

Quando ficam doentes utilizam plantas da floresta para remédio, mas com a

presença de um posto de saúde na aldeia, o uso de medicamentos industrializados

se tornou maior, havendo um uso conjunto de medicamentos industrializados e da

medicina tradicional. A transmissão de conhecimentos sobre plantas medicinais e

ritualísticas, está cada vez mais dificultoso, pois os transmissores se encontram em

idade elevada e em número reduzido e os mais novos tem medicamentos do posto

de saúde a sua disposição.

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No tocante as práticas de trabalho, em especial a agrícola, foi possível

perceber alguns elementos que podem ser considerados híbridos: a presença de

sementes crioulas, semeadeira manual (perna de grilo) (figura 4) e roça no toco de

um lado e, por outro lado, semeadeira motomecanizda, tratores, uso de agrotóxicos,

fertilizantes e revolvimento do solo (figura 5).

Figura 4 - Elemento da agricultura tradicional: semeadeira manual

Fonte: Pesquisa de Campo 2015.

Figura 5 - Elemento da agricultura moderna: semeadeira motomecanizada

Fonte: Pesquisa de Campo 2015.

Outras práticas assíduas ao trabalho agrícola são a “troca de dias” de serviço

na lavoura e o plantio “de as meia”. Também utilizam cavalo para a busca de milho

na roça, quando plantado sob coivara. Em função das dificuldades do terreno, até

mesmo o próprio agricultor pode puxar parte da produção nas costas para um local

de mais fácil acesso a tratores e demais veículos. Nestas terras também são

reproduzidos ao longo do tempo cultivos tradicionais como o milho, o feijão, a

abóbora, a mandioca, dentre outros, mediante técnicas tradicionais.

De outra forma, é cada vez mais notória a presença de elementos da

modernização da agricultura, como seu arcabouço instrumental (maquinário agrícola

e veículos automotores) e químico-genético (adubos, agrotóxicos e sementes

geneticamente modificadas), voltando seus esforços para a produção de soja em

grandes áreas. Assim, ocorre uma diminuição do plantio de policultivos, que passam

a ocupar papel secundário no sistema agrário local.

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Para Claval (2007, p. 86) “o fato de que os homens estejam inscritos numa

continuidade e sejam sempre herdeiros não os priva de criatividade”, deixando claro

que as práticas socioculturais, de trabalho e outras não precisam e talvez não seja

possível sua reprodução por completo ao longo do tempo. Isso demonstra uma

capacidade de improviso da cultura local, que muitas vezes se deixa influenciar pelo

modo de vida moderno e por outros resiste ao longo do tempo.

Canclini (2008) destaca que a hibridação explicita que há processos e/ou

fenômenos que não se mesclam. Isto é, “uma teoria não ingênua da hibridação é

inseparável de uma consciência crítica de seus limites, do que não se deixa ou não

quer ou não pode ser hibridado” (CANCLINI, 2008, p. 27). Nestes casos, pode-se

citar as praticas tradicionais consolidadas no passado (língua e divisão clânica) e

aquelas inventadas, consolidadas no presente, como os bailes, o futebol e as rezas.

De acordo com Hobsbawm e Ranger (1997, p. 19) há uma perceptível

diferença entre práticas antigas e inventadas. “As primeiras eram práticas sociais

específicas e altamente coercivas, enquanto as últimas tendiam a ser bastante

gerais e vagas [...]”.

Hobsbawn e Ranger (1997) compreendem que as tradições inventadas não

precisam estar inseridas num passado longínquo, apresentando um elo artificial com

este, pois são “[...] reações a situações novas que ou assumem a forma de

referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da

repetição quase que obrigatória” (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p. 10).

O que diferencia um processo de hibridismo cultural de um que resulte na

invenção de cultura está na temporalidade, mas não numa situação concreta de

existência de um determinado fenômeno ou processo. Pois, o hibrido não tem um

passado, tratando-se de uma combinação de elementos que não estavam aliados e

que passaram a estabelecer relações devido a vários fatos: necessidade, imposição,

resistência, dentre outros.

Por sua vez, a invenção de tradição possui um passado inventado em comum

muito rico e capaz de modelar o presente e possibilitar uma coesão sociocultural

entre os membros de um povo. Portanto, a invenção de tradição ocorre “Quando

uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para

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os quais as ‘velhas tradições’ foram feitas, produzindo novos padrões com os quais

essas tradições são incompatíveis” (HOBSBAWM; RANGER, 1997, p. 12).

Desta forma, os bailes com música gaúcha (figura 6), as festas de santos

(Nossa Senhora, Santo Antônio, dentre outros) (figura 7), a prática do futebol, os

velórios, as missas e cultos e as tatuagens que as crianças (tatuagem temporária) e

os adultos (tatuagem permanente) possuem no rosto são tradições (re)inventadas.

Figura 6 - As tradições inventadas: os bailes com músicas gaúchas

Fonte: Pesquisa de Campo 2015.

Figura 7 - As tradições inventadas: as festas de santos

Fonte: Pesquisa de Campo 2015.

Os bailes com música gaúcha são muito frequentes na T.I.F, podendo ser

realizados em datas comemorativas, como dia do índio (também tradição inventada),

festas juninas ou atendendo as demandas locais. São fequentemente realizados aos

sábados, sendo promovidos pelas lideranças locais, times de futebol, além de

grupos religiosos e quem queira e tenha condições de contratar uma banda. O baile

em si começa tarde da noite e vai até o amanhecer do dia, com venda de bebida

alcoólica, podendo contar com a presença ou não de não-indígenas.

As festas de santos podem ser consideradas como tradições inventadas,

contando com a reza do terço e queima de fogos, todos atributos da cultura não-

indígena. Contudo, diferente da língua, pratica agrícola e artesanato que são

costumes, transmitidos de geração a geração, as tradições inventadas estão sujeitas

a serem (re)inventadas. Portanto, diferente dos costumes, não impedem inovações,

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podendo mudar até certo instante, embora devam possuir compatibilidade e

semelhança ao seu precedente (HOBSBAWM; RANGER 1997).

As continuidades históricas que estes eventos representam revelam sempre

um elemento incorporado ou inventado, pois “a inovação não se torna menos nova

por ser capaz de revestir-se facilmente de um caráter de antiguidade” (HOBSBAWM;

RANGER, 1997, p. 13). Por este motivo a utilização do termo “invenção”, tendo em

vista que apesar de remeter ao passado os postulados são do presente e estão

atrelados a fenômenos e processos atuais.

O futebol, por sua vez, é praticado com grande frequencia (as crianças

apreendem a jogar futebol desde pequenos) em especial aos sábados e domingos,

mas também pode ocorrer no meio da semana, dependendo da disponibilidade dos

jogadores e da realização de determinados eventos, como campeonatos de futebol

locais ou municipais. Independente dos dias, sempre há um bom público que

acompanha o jogo, desde os mais jovens até os mais velhos.

Outro elemento que pode ser considerado uma tradição (re)inventada é a

utilização de tatuagens no rosto, que relembra a tradição da pintura corporal

Kaingang, que, no passado, diferenciava os kamẽ de pintura facial com motivos

compridos (râ téi) dos kanhru com motivos redondos (râ rôr).

Grande parte das crianças possuem tatuagens de chicletes em algumas

partes do corpo como a testa, o pescoço e as bochechas, além de os adultos

possuírem tatuagens na testa, sendo que algumas se assemelham a riscos

compridos e outras a bolinhas, o que faz menção as pinturas inerentes as duas

metades clânicas, que talvez nem as crianças nem alguns adultos conheçam, mas

estando intrínseca ao ser Kaingang.

A tradição é reavivada, restaurada e (re)significada graças as referências que

a ela possam ser feitas ao longo do tempo. São sempre invenções, que surgiram em

algum momento no passado e que no futuro poderão sofrer alguma alteração. As

mudanças parecem ser uma constante em relação as tradições, contudo, há algo

estabilizador: a persistência; capacidade de continuidade, resistindo as tensões que

ocorrem ao longo do tempo (HOBSBAWM; RANGER, 1997).

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4 – Considerações finais

Neste trabalho buscou-se mostrar a relação entre as práticas socioculturais

territoriais atuais dos Kaingang da Terra Indígena Faxinal. Percebe-se, assim, que

há um embate entre o moderno e o tradicional, além da ressignificação e invenção

de tradições, buscando rebalancear aquilo que foi perdido ao longo do contato com

o não-indígena. Por outro lado, ressalta-se que este texto apenas inicia a discussão,

necessitando aprofundamento, tendo em vista que foi uma aproximação.

Retomando o que disse Claval (2007) sobre o ser humano estar inscrito numa

continuidade, mas apesar disso não ser desprovido de criatividade, é notório que há

uma necessidade em preencher aquilo que não se apresenta completo pelas

circunstâncias socioculturais atuais. Isso acaba promovendo o hibridismo cultural, as

ressignificações e a invenção de tradições, mas também permite permanências, que

tentam (re)organizar a cultura local num processo dinâmico e inacabado.

Em determinadas circunstâncias foi possível perceber que prevalecem

elementos criados, em outras são os modernos e em outras mais os tradicionais. Os

Kaingang da T.I.F buscam se adaptar a este choque entre perspectivas culturais

diferentes e reforçar seus anseios e suas convicções de mundo.

Por fim, destaca-se que ao longo da história recente de transformações

culturais aliado a perdas territoriais a que foram submetidos os Kaingang, “muitas

tradições perderam-se no tempo, outras se simplificaram, novas foram criadas, mas

a lógica social e os princípios estruturantes do pensamento Kaingang continuam

ativos (TOMMASINO, 2002, p. 97).

5 – Referências

CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: EdUSP, 2008. CLAVAL, P. A geografia cultural. 3. ed. Florianópolis: UFSC, 2007. GIL, A. C. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção das tradições.Tradução de Celina Cardim Cavalcante. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. MOTA. L. T.; NOVAK, É. S. Os Kaingang do vale do rio Ivaí: história e relações interculturais. Maringá: Eduem, 2008. TOMMASINO, K. A ecologia dos Kaingang da bacia do rio Tibagi. In: MEDRI, M. E.; BIANCHINI, E.; SHIBATTA, O. A.; PIMENTA, J. A. (Orgs.). A bacia do rio Tibagi. Londrina: UEL/KLABIN/FUNDAÇÃO ARAUCÁRIA/SERCOMTEL/ CONFEPAR, 2002. p. 81-98.