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1 OS GRAFITES DO MURO DE BERLIM EM IMAGENS FOTOGRÁFICAS TESTEMUNHOS DE UMA HISTÓRIA CLÁUDIA GISELE MASIERO COLÉGIO SANTA CATARINA [email protected] JANICE ROBERTA SCHRÖDER PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ [email protected] 1. Introdução O Muro que, de 1961 a 1989, dividiu a cidade de Berlim, na Alemanha, permanece historicamente como um símbolo da disputa pelo poder entre comunistas e capitalistas durante a Guerra Fria e, também, como um dos símbolos das atrocidades que marcaram o século XX. Neste contexto e, sobretudo, por ter sido inserido abruptamente no cotidiano dos berlinenses, o Muro foi palco de muitos acontecimentos e consequentemente cenário para a produção de inúmeras imagens. Dentre elas as que são fontes deste estudo e que retratam-no em sua última década de existência. São, na verdade, fotografias, retiradas do livro “Berliner Mauer, Die längste Leinwand der Welt” (1998), que quer dizer em Língua Portuguesa: “Muro de Berlim: A maior tela do mundo”, do fotógrafo alemão Raimo Gareis. Esta obra contém inúmeras fotografias, de diferentes partes e ângulos, mostrando diferentes grafites. Destas, escolheu-se apenas cinco, as quais julgou-se que melhor representam a sua diversidade. Assim, o objetivo principal deste estudo é pesquisar e analisar tais fotografias que retratam os grafites do Muro de Berlim, que se espalharam por suas paredes de concreto no lado ocidental, especialmente nos anos de 1980, compreendendo-as assim, como fonte historiográfica. Interessa primeiramente considerar a fotografia como perpetuação da memória e posteriormente os grafites como testemunhos de uma época. A história destas imagens está, é claro, atrelada a este fato histórico, que é o Muro. Os motivos que levaram a sua construção e o mantiveram erguido por longos vinte e oito anos não são facilmente explicáveis. Primeiramente, para entender o processo, é preciso considerar

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OS GRAFITES DO MURO DE BERLIM EM IMAGENS FOTOGRÁFICAS –

TESTEMUNHOS DE UMA HISTÓRIA

CLÁUDIA GISELE MASIERO

COLÉGIO SANTA CATARINA

[email protected]

JANICE ROBERTA SCHRÖDER

PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO SEBASTIÃO DO CAÍ

[email protected]

1. Introdução

O Muro que, de 1961 a 1989, dividiu a cidade de Berlim, na Alemanha, permanece

historicamente como um símbolo da disputa pelo poder entre comunistas e capitalistas

durante a Guerra Fria e, também, como um dos símbolos das atrocidades que marcaram o

século XX. Neste contexto e, sobretudo, por ter sido inserido abruptamente no cotidiano dos

berlinenses, o Muro foi palco de muitos acontecimentos e consequentemente cenário para a

produção de inúmeras imagens. Dentre elas as que são fontes deste estudo e que retratam-no

em sua última década de existência. São, na verdade, fotografias, retiradas do livro “Berliner

Mauer, Die längste Leinwand der Welt” (1998), que quer dizer em Língua Portuguesa: “Muro

de Berlim: A maior tela do mundo”, do fotógrafo alemão Raimo Gareis. Esta obra contém

inúmeras fotografias, de diferentes partes e ângulos, mostrando diferentes grafites. Destas,

escolheu-se apenas cinco, as quais julgou-se que melhor representam a sua diversidade.

Assim, o objetivo principal deste estudo é pesquisar e analisar tais fotografias que retratam os

grafites do Muro de Berlim, que se espalharam por suas paredes de concreto no lado

ocidental, especialmente nos anos de 1980, compreendendo-as assim, como fonte

historiográfica. Interessa primeiramente considerar a fotografia como perpetuação da

memória e posteriormente os grafites como testemunhos de uma época.

A história destas imagens está, é claro, atrelada a este fato histórico, que é o Muro. Os

motivos que levaram a sua construção e o mantiveram erguido por longos vinte e oito anos

não são facilmente explicáveis. Primeiramente, para entender o processo, é preciso considerar

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que após o fim da Segunda Guerra Mundial, os países capitalistas França, Estados Unidos e

Reino Unido, ficaram com o oeste da Alemanha e a União Soviética, socialista, com o leste.

Berlim, mesmo estando situada ao leste, território soviético e, mesmo tendo sido tomada pelos

soviéticos, esses tiveram que ceder o lado ocidental da cidade, para ser dividido entre os

outros três aliados, uma vez que ainda era a cidade mais importante do país. Assim, a partir de

8 de maio de 1945, Berlim viu-se administrada e dividida em quatro setores: o americano, o

britânico e o francês, constituindo o lado oeste, e o russo, lado leste. A dualidade de poder em

Berlim refletia a bipolaridade de poder que o mundo vivia naquele momento. A Europa

Ocidental estava sob influência dos Estados Unidos e a Europa Oriental, sob a influência da

União Soviética, formando, assim, dois blocos geopolíticos antagônicos, separados por uma

linha, denominada Cortina de Ferro. A Alemanha, justamente, ficava no centro desse conflito,

cujo período de vigência ficou conhecido como Guerra Fria.

A cidade se dividia, então, volta-se a dizer, em duas. Ao leste Berlim Oriental,

soviética e comunista; ao oeste, Berlim Ocidental, capitalista. Com o passar do tempo, as

diferenças entre esses dois setores da cidade se acentuaram, como era de se esperar pela

diferença entre os regimes, considerando as questões políticas e econômicas. Berlim

Ocidental era um “pedaço” do mundo capitalista dentro da Alemanha Oriental (República

Democrática Alemã) de regime socialista. Muitos cidadãos orientais passaram a migrar,

primeiramente, para Berlim Ocidental e muitos, então, se dirigiam à Alemanha Ocidental

(República Federal da Alemanha). Com isso, a RDA e Berlim Oriental perdiam seus

melhores profissionais e muitos de seus serviços ficavam prejudicados, como, por exemplo,

atendimentos nas áreas da saúde e da educação. Em outras situações, igualmente

problemáticas, alguns berlinenses permaneciam com suas residências em Berlim Oriental,

mas iam trabalhar em Berlim Ocidental. Assim, ficavam com o “melhor dos dois mundos”, ou

seja, com os salários mais elevados obtidos no mundo capitalista e o menor custo de vida

proporcionado pelo mundo socialista. A situação de Berlim Ocidental estava ficando

insustentável devido ao êxodo de sua população.

Diante da ineficácia de várias tentativas para solucionar o problema de Berlim, uma

reunião com os países do pacto de Varsóvia foi convocada às pressas e, nos primeiros dias de

agosto de 1961, o líder soviético Khruschev, então, apoia o projeto da RDA de construir um

muro para separar Berlim Ocidental da Oriental e do restante da Alemanha Oriental.

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‘O muro era coisa odiosa’, reconheceu Kruschev, mas ‘o que poderia eu fazer? Mais

de 30 mil pessoas, para falar a verdade as melhores e mais qualificadas da RDA,

tinham deixado o país em julho. [...]. A economia da Alemanha Oriental entraria em

colapso se não fizéssemos alguma coisa para evitar a fuga em massa. [...]. De modo

que o muro era a única opção que restava.’ (GADDIS, 2006, p. 110).

O principal objetivo do muro era mesmo impedir a migração de cidadãos de Berlim

Oriental para o outro setor. Além disso, o governo da RDA também queria evitar o contato

dos cidadãos de Berlim Oriental e, consequentemente, de toda RDA com o mundo capitalista.

Em 13 de agosto de 1961, iniciou-se sua construção. Berlim Ocidental foi cercada por paredes

de concreto, o muro tinha aproximadamente 160 km. Quando se fala na divisão de uma

cidade, pode-se presumir que, incluído nesse processo, está a separação de famílias, amigos,

amores, enfim, pessoas são afastadas. No caso dos berlineses, muitos lutaram por uma

reaproximação, em alguns casos, houve reencontros que ocorreram somente após a queda do

Muro, em 9 de novembro de 1989. Outros tantos morreram ao tentar atravessá-lo.

A história do chamado Muro de Berlim foi amplamente registrada em imagens. Crê-se,

que esse fato se deve principalmente ao seu caráter extraordinário, sua brutalidade e também

pela curiosidade que despertava. Atualmente resta apenas um trecho de 1.3km que figura

como museu, chamado East Side Gallery. Desta forma, tais imagens assumem hoje a função

de testemunhas deste fato histórico e são sua memória materializada, ou seja, documentos

pelos quais este se desvenda.

As fotografias que são fontes de análise deste estudo, às quais já se referiu, cumprem

este papel. Pode-se dizer que duplamente, pois retratam o Muro e os grafites nele feitos,

constituindo-se em uma simples, mas interessante sobreposição de imagens. Primeiramente,

estes arquivos são vistos como elementos fotográficos e, posteriormente, será considerada a

sua ambivalência de trazer em si outra arte: a do grafite. Será feita a análise iconográfica e

iconológica das imagens, correspondendo iconografia à descrição das mesmas e iconologia

como a interpretação, o “além do aparente”, como lembrado por Boris Kossoy (2001).

Monteiro (2006) escreve que as imagens são ambíguas e passíveis de muitas interpretações e

que, por este motivo, é necessário um aprendizado desse código e uma cuidadosa discussão

teórico-metodológica que nos permita utilizá-lo na pesquisa histórica.

Se, durante épocas passadas, como coloca Kossoy (2007), a imagem, em especial a

fotografia, sempre se viu tradicionalmente relegada à condição de ‘ilustração’ dos textos e

‘apêndice’ da história, atualmente esta é, inegavelmente, uma fonte de pesquisa.

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As fontes fotográficas são uma possibilidade de investigação e descoberta que

promete frutos na medida em que se tenta sistematizar suas informações, estabelecer

metodologias adequadas de pesquisa e análise para a decifração de seus conteúdos e,

por consequência, da realidade que as originou (KOSSOY, 2001, p. 32).

Partiu-se do pressuposto de que as fotografias não são imediatamente espelhos féis do

passado, são ambíguas, portadoras de significados que muitas vezes não estão explícitos.

Conforme Burke (2004), as fotografias funcionam como testemunhas oculares de um fato,

evento ou de uma materialidade que já não existe mais; são um fragmento do passado,

desconectado do real, que “como as demais fontes deve ser submetida ao devido exame

crítico que a metodologia da história impõe aos documentos” (KOSSOY, 2007, p. 46).

Monteiro (2006) salienta que a fotografia é um recorte do real. Diz que,

primeiramente, é um corte no fluxo do tempo real, o congelamento de um instante separado

da sucessão dos acontecimentos. Em segundo lugar, ela é um fragmento escolhido pelo

fotógrafo pela seleção do tema, dos sujeitos, do entorno, do enquadramento, do sentido, da

luminosidade, da forma, etc. Em terceiro lugar, transforma o tridimensional em

bidimensional, reduz a gama das cores e simula a profundidade do campo de visão. Assim,

considera-se cada uma das cinco fotografias, que são analisadas neste estudo, como um corte,

um fragmento, selecionado por Raimo Gareis, do que foi o Muro de Berlim grafitado,

transformado em bidimensional, em memória visual.

2. A maior tela do mundo

O livro “Berliner Mauer, Die längste Leinwand der Welt”, que quer dizer em Língua

Portuguesa: “Muro de Berlim, A maior tela do mundo”, de Raimo Gareis (1998), dedica-se à

documentar os grafites feitos no Muro de Berlim no lado ocidental. O autor, ao introduzir seu

livro, explica que os grafites foram feitos gradualmente, através de um autodinamismo que se

transformou no mais interessante trabalho artístico dos anos de 1980. Afirma que este traz

todos os atributos e características desses anos radicais, dessa revolução, em que todos os

padrões dessa época passaram por novas definições. Afirma, ainda, que tudo começou com

um assobio, de forma rude e grosseira. Subitamente, apareceram no Muro sentenças e frases

espertas e picantes, de vez em quando politicamente críticas, como se retratassem todos os

aspectos e fatos berlinenses, de uma maneira artisticamente sádica. Como um milagre, as mais

interessantes imagens apareceram no setor em que o Muro dividia o Kreuzberg, uma das

partes centrais de Berlim, desaparecendo e aparecendo em novas formas. Talvez, uma das

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mais interessantes afirmações feitas pelo autor, seja a de que o Muro ganhou vida com os

grafites e perdeu cada vez mais a sua monótona aparência.

Quanto a esta arte, o grafite, que rendeu ao Muro o título de “maior tela do mundo”,

Lazzarin (2007) destaca que é uma linguagem artística contemporânea e que se insere na

dinâmica das culturas urbanas sendo, ao mesmo tempo, movimento artístico, social, e uma

forma de inscrição urbana. Suas origens remetem ao movimento de contracultura, iniciado na

década de 1960, que desde o início esteve ligado à contestação política e a movimentos de

afirmação identitária. O autor propõe que o grafite surge primeiramente na Europa, como

forma de manifestação política do movimento estudantil francês, cujas ideias teriam se

espalhado, chegando à América, onde teria sofrido influência dos movimentos hippie e punk

nas décadas de 70 e 80.

De acordo com Canclini (2006), o grafite está entre as linguagens que representam as

principais forças que atuam na cidade. Pode-se dizer que é uma forma de expressar

sentimentos, posições políticas e ideológicas. Segundo Possa (2011), ele cumpre papel social

como meio de divulgação de protesto ou de embelezamento nos diversos ambientes em que se

apresenta.

Com relação aos locais escolhidos para sofrer tais intervenções artísticas, Possa (2011)

enfatiza que eles passam a ser particularizados pelas obras e seus artistas, tornam-se, assim,

ponto de referência local, ao mesmo tempo estético, contendo traços históricos e sociais. Isto

porque, ainda segundo a autora, a escolha tanto do local como da temática abordada pode ou

não modificar a percepção quanto ao ambiente inicial. Nesse sentido, os grafites na "Cortina

de Ferro" particularizaram determinados locais e inclusive passaram a servir de referência. De

acordo com Ramos (2007), o Muro de Berlim é um dos espaços mais polêmicos quando se

fala em grafites na contemporaneidade, dizendo que do lado Leste, o muro totalmente branco

só mostrava cor nos incidentes de sangue; do lado Oeste, só a partir de 1985/86 - 15 anos

depois - o muro passou a mostrar cores das mais diversas manifestações, desde apelos ao seu

fim até sua sustentação. Após este período, o Muro recebeu intervenções de berlinenses e de

pessoas de diferentes lugares do mundo, de todas as classes sociais, incluindo artistas,

ativistas ou turistas, que dividiram o espaço do muro numa pacífica competição criativa.

Assim,

não só imagens e frases à moda do tradicional spray grafite fizeram a história do

muro. Muitas colagens, mosaicos e desenhos a lápis, carvão ou pastel anunciavam a

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diversidade imaginativa dos autores das grafitagens. Pintando, desenhando,

escrevendo ou fotografando, as pessoas se apoderavam do muro, transformando um

espaço de segregação em espaço de comunicação e de patrimônio (RAMOS, 2007,

p. 1264).

Porém, houve certa "perseguição" aos grafiteiros. Ramos (2007) traz o exemplo de

um cidadão que traçou uma linha branca por quilômetros do muro, como numa performance

minimalista, e que foi interceptado por um guarda. O cidadão foi levado a julgamento e ficou

preso por seis meses acusado de dano ao patrimônio público.

O trabalho dessas pessoas e o colorido que os grafites trouxeram ao Muro certamente

modificaram, em certo sentido, positivamente a sua aparência. Por outro lado, a sua presença

física, bem como tudo que ele representava, ainda se fazia evidente. A expressão “terror

colorido” exprime bem essa situação. Os desenhos e frases fazem parte da resistência ao

Muro. Como se viu anteriormente, são o reflexo do sentimento dos berlinenses e dos que

visitaram Berlim. Cores fortes, algumas figuras e algumas frases agressivas, talvez, expressem

o “terror” vivido por aqueles que conviveram ou se depararam com o Muro, ao mesmo tempo

em que o colorido que o impregnam, de certo modo, tornam sua presença esteticamente mais

aprazível. O que se vai debater por meio das fotografias que se seguem.

Fotografia 1 – Muro de Berlim transversal

No centro, em diagonal, a fotografia 1 retrata o Muro e foi tirada de um ponto elevado.

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Na parte inferior, o lado que pertencia a Berlim Ocidental grafitado. Sobre ele, no canto

direito, a sombra do que parece ser uma grande árvore, a qual obstrui uma pequena parte da

visão dos grafites. Na superior, a parede que ficava para Berlim Oriental. Entre essas duas

paredes, um corredor constantemente monitorado, vê-se a torre de vigilância destacada,

obstáculos anti-veículos e postes de iluminação. Ao fundo alguns prédios.

No canto esquerdo vê-se a seguinte inscrição: Big Skull Science, em português,

“grande crânio da ciência”. Tal inscrição pode estar se referindo, talvez, à grande ameaça à

liberdade que era materializada pelo muro, como se fosse a morte da razão, uma vez que a

divisão abrupta de uma cidade era inadmissível em pleno século XX. O outro grafite, à

direita, que se pode ver por completo, traz um desenho abstrato. As cores vibrantes dos

grafites, chamam atenção num primeiro momento, mas ao olhar a imagem com mais cuidado,

é o próprio Muro que se sobressai. Constiui-se assim, um paradoxo, de um lado a alegria do

colorido dos grafites e, de outro, a brutalidade da construção.

Gareis (1998) diz que o Muro foi chamado de “a maior tela do mundo” pelos artistas

que vieram do mundo todo para grafitá-lo. Pode-se ter uma pequena noção da extensão das

intervenções artísticas e como se estendiam ao longo do percurso. Para além disso, e antes que

se passe a apresentar as demais imagens, é preciso dizer que a interpretação das fotografias e

dos grafites, parte iconológica, é subjetiva, não sendo a interpretação trazida por este estudo, a

única possível. Burke (2004) afirma que as imagens são o melhor guia para entender o poder

de representações visuais nas vidas religiosa e política de culturas passadas, mas, também,

alerta para o fato de que elas são testemunhas mudas e que é difícil traduzir em palavras seu

sentimento.

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Fotografia 2 – Pássaros sobre o Muro

Na fotografia 2, o Muro parece uma tela. É uma obra de arte a céu aberto. As plantas,

que aparecem no inferior da fotografia, se misturam com o grafite, aparentando serem parte

integrante da intervenção artística. Podem nos fazer recordar da passagem do tempo, do ciclo

de vida que não se encerra, apesar da inércia do Muro.

Nota-se uma mistura de cores e várias formas abstratas, sobrepostas ou interligadas. A

cor cinza do Muro somente é vista no tubo que fica na sua extremidade superior. A

“desordem” desses desenhos parece representar a situação caótica vivida pelos berlinenses.

Sobre o Muro estão várias pombas, que o usam como poleiro. O que se encontra

retratado, na verdade, é um grande contraste, já que as pombas simbolizam liberdade e paz e o

Muro simboliza justamente a falta de ambas. Há uma discrepância entre esses dois elementos

da fotografia. Talvez, tenha sido essa a intenção de Gareis.

Se os berlinenses tivessem asas, talvez nem mesmo pousariam no Muro, mas voariam

de um lado a outro da cidade, livres, como antes da sua construção. As pombas têm o

privilégio de observar os dois lados da cidade e escolher o melhor lugar para elas. Os

berlinenses, naquele momento, se encontravam confinados, como “pássaros em gaiolas”.

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Fotografia 3 – Leveza e tristeza

A fotografia 3 retrata mais um dos grafites do Muro. Em torno do grafite, foi feita uma

espécie de moldura, nas cores amarela e vermelha, que a fotografia não conseguiu captar

totalmente. O grafite é dividido ao meio pelo que parece ser uma corda, de cor azul,

separando os elementos em dois lados. De um lado do desenho (à direita), duas pessoas estão

dançando, nuas, parecendo flutuar, ao que tudo indica trata-se de um casal. Próximo a eles,

foram feitos vários outros desenhos, os quais não se consegue identificar nitidamente. Nesse

lado, prevalecem as chamadas cores quentes, como o vermelho, o amarelo e o laranja. Do

lado oposto, vê-se também desenhadas duas pessoas, porém estão com as cabeças baixas,

parecendo estarem tristes. Uma delas diz “venha”, através de um balão com a palavra Komm,

que quer dizer exatamente isso. Ao lado delas, também foram feitos desenhos, os quais

também não apresentam uma forma nítida, possivelmente sejam estilizados. Prevalecem,

desta vez, as chamadas cores frias, como o azul e o verde, que trazem consigo um ar de

tristeza. O autor ou autores do grafite talvez desejassem expressar a própria divisão

estabelecida em Berlim.

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Fotografia 4 – Grafite expressionista

A figura pintada no Muro, que se pode ver através da fotografia 4, se assemelha à

Guernica, uma famosa obra de Pablo Picasso, que exprime o horror da Segunda Guerra

Mundial. A figura humana, pintada com contornos vermelhos, aparenta, também, estar

horrorizada. É uma figura expressionista, dotada de significados. Embora não exista na

realidade, a figura tem significação.

O peito da figura aparentemente está aberto, dele saem pequenas bolas, que parecem

ser, ao mesmo tempo, olhos. Sua cabeça está erguida e sua boca está entreaberta. É como se

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não pudesse controlar as emoções e essas lhe saltassem do peito, ganhando o mundo. Como

essa figura está grafitada no Muro que dividiu toda uma cidade e deixou os ânimos exaltados,

provocando os mais diferentes sentimentos em relação a ele, passa então a ter ainda mais

significação. Podem, talvez, exprimir os sentimentos encarcerados nos berlinenses que pouco

podiam fazer na luta por sua liberdade de ir vir dentro de sua própria cidade.

Fotografia 5 – O grande felino

Entre duas colunas gregas, vê-se um grande felino, mostrando sua língua e que possui

sete cabeças. É um monstro de garras e dentes afiados. Sua cabeça é amarela e seu corpo foi

pintado de forma que imitasse fogo. Esse grafite, que pode ser visto por meio da fotografia 5,

talvez, expresse todo o medo do Muro, já que tentar ultrapassá-lo era um grande risco de vida.

Ao fundo da imagem parece haver um vitral, pelo qual pode-se ver luzes, como

estrelas reluzentes. O chão é vermelho com sinais pretos, também parecendo representar

ardência. O próprio Muro, então, passa ser um monstro, à espera de suas vítimas. As garras do

monstro são os fios de arame, os obstáculos, os guardas armados, enfim, garras tão afiadas

como as do felino do grafite.

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Considerações finais

As palavras de Ramos (2007) são importantes para este estudo. O autor diz que

mesmo com a destruição física do Muro, em 9 de novembro de 1989, permanecem as imagens

dos grafites registrados em fotografias, as quais permanecem como testemunho do que chama

de “história da vergonha ocidental”. Salienta que as imagens e frases contidas nestas

intervenções artísticas, fossem elas de apelo a liberdade limitada pelo muro, ou até mesmo de

sua sustentação, são, atualmente, parte do patrimônio artístico de alguns museus de arte e

contribuíram para transformar o Muro em um ícone da arte.

Deste modo, percebe-se através da análise das imagens fotográficas que os grafites, ao

mesmo tempo em que se consolidaram naquele espaço geográfico e histórico, como uma nova

forma de arte, também cumpriram o papel de pacífico protesto e de vazão ao sentimento de

opressão e estranheza causado pela existência do Muro. Também reafirma-se o papel

importante da fotografia enquanto registro, pois como já se viu, é por meio destas que os

grafites sobrevivem.

As fotografias apresentadas retratam emoções. De um lado figuram a face sombria e

de outro uma avalanche de cores quentes, marcantes, talvez até "gritantes". Apresentam

contrastes de luz e sombras. Enfim, os grafites do Muro de Berlim são intervenções artísticas

em ambientes coletivos que expressaram sentimentos, carregaram também a contestação a

uma configuração política, econômica e social existente. Pode-se dizer que os grafiteiros

remodelam a cidade dando a ela um "caráter de comunicação compartilhada, de recepção de

novos significados, tensões e mudanças" (RAMOS, 2007, p. 1269). Assim, o Muro tornou-se

um espaço de opinião, contestação, de arte, enfim, tornou-se um espaço de comunicação.

Enquanto espaço de comunicação, tornou-se, também, um espaço híbrido. Neste

sentido, Canclini (2006) destaca que o grafite é um gênero constitucionalmente híbrido e

aponta que são "lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular,

aproximam o artesanal da produção industrial e da circulação massiva" (CANCLINI, 2006, p.

336). Para ele as intervenções artísticas fazem referência ao modo de vida e pensamento de

um grupo que não dispõe de circuitos comerciais ou políticos para se expressar. O Muro, lado

ocidental, constituiu-se na maior tela do mundo, conclui-se aqui, justamente porque além de

ser suporte era, em muitos casos, a própria inspiração para aqueles que o coloriam.

O título de uma das mais famosas obras do historiador Peter Burke "Testemunha

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ocular: história e imagem" evidencia que podem as imagens comunicar o passado. Por isso e

porque vivemos numa “civilização da imagem”, como afirma Boris Kossoy (2001, p. 134), é

que acredita-se na importância deste estudo que tem fotografias e imagens como fonte. Ainda

sobre isto, Paiva afirma que “nunca estivemos tão dependentes da imagem como linguagem e

ferramenta imprescindível de comunicação entre as pessoas” (2004, p. 102). Assim, para o

professor e pesquisador da História, é indispensável vincular a produção historiográfica a essa

característica da sociedade na atualidade.

Referências

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Tradução de Vera Maria

Xavier dos Santos. Bauru: EDUSC, 2004.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.

4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

GADDIS, Jonh Lewis. História da Guerra Fria. Traduzido por Gleuber Vieira. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2006. Tradução de The Cold War.

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______. Os Tempos da Fotografia, O Efêmero e o Perpétuo. Cotia, São Paulo: Ateliê

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LAZZARIN, Luís Fernando. Grafite e o Ensino da Arte. Revista Educação & Realidade.

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PAIVA, Eduardo França. História e Imagens. 2ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

POSSA, Andréa Christine. O grafite e as sua trajetória da rua para a instituição cultural.

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RAMOS, Celia Maria Antonacci. Grafite & pichação: por uma nova epistemologia da

cidade e da arte. 16º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes

Plásticas (anpap). Florianópolis, 2007.