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AS TECELÃS E A JUSTIÇA DO TRABALHO (1950-1954): UM RESGATE DA MEMÓRIA OPERÁRIA FEMININA ATRAVÉS DOS PROCESSOS TRABALHISTAS DA JCJ DE PAULISTA/PE. ANNA MARIA LITWAK NEVES * 1. INTRODUÇÃO Os estudos acadêmicos acerca da presença feminina nos mundos do trabalho têm ganhado projeção, sobretudo a partir dos debates suscitados por autoras como Michelle Perrot, Évelyne Sullerot, Joan Scott e Heleieth Saffioti. Se durante muito tempo a historiografia silenciou as trabalhadoras e o universo feminino como um todo - dando ênfase a um protagonismo masculino nas abordagens sociais, econômicas ou políticas - as tendências historiográficas mais recentes tendem a reconhecer a importância das mulheres como agentes históricas responsáveis por mudanças sociais e transformações nos papéis de gênero. A partir de uma perspectiva de que nossa atual realidade não é o resultado de uma construção unicamente empreendida por homens, os historiadores e historiadoras buscam, aos poucos, recuperar o lugar da mulher nas transformações da sociedade ao longo dos séculos. A invisibilidade dos temas relacionados ao trabalho feminino não decorre do fato de que as mulheres não trabalhavam, como outrora se acreditou. De acordo com Evelyne Sullerot, a questão fundamental é que sua atividade laboral foi, durante séculos, completamente desconsiderada. “Em tôdas as épocas, vemos as mulheres serem privadas do reconhecimento, pela sociedade, de suas atividades e, sobretudo, da participação na construção dessa mesma sociedade.” (SULLEROT, 1970: 22). Ser mulher dentro da sociedade capitalista é ser subvalorizada não apenas enquanto ser social, mas também como força de trabalho; ainda que as trabalhadoras ajudem os homens no sustento do lar, exercendo serviços que complementam a renda familiar. É também ser parte subjugada em um sistema constituído fundamentalmente pela exclusão social de determinados * Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História, na linha de pesquisa “Relações de Poder, Sociedade e Ambiente” da Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Profª. drª. Christine Rufino Dabat.

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AS TECELÃS E A JUSTIÇA DO TRABALHO (1950-1954): UM RESGATE DA

MEMÓRIA OPERÁRIA FEMININA ATRAVÉS DOS PROCESSOS TRABALHISTAS

DA JCJ DE PAULISTA/PE.

ANNA MARIA LITWAK NEVES*

1. INTRODUÇÃO

Os estudos acadêmicos acerca da presença feminina nos mundos do trabalho têm

ganhado projeção, sobretudo a partir dos debates suscitados por autoras como Michelle Perrot,

Évelyne Sullerot, Joan Scott e Heleieth Saffioti. Se durante muito tempo a historiografia

silenciou as trabalhadoras e o universo feminino como um todo - dando ênfase a um

protagonismo masculino nas abordagens sociais, econômicas ou políticas - as tendências

historiográficas mais recentes tendem a reconhecer a importância das mulheres como agentes

históricas responsáveis por mudanças sociais e transformações nos papéis de gênero. A partir

de uma perspectiva de que nossa atual realidade não é o resultado de uma construção

unicamente empreendida por homens, os historiadores e historiadoras buscam, aos poucos,

recuperar o lugar da mulher nas transformações da sociedade ao longo dos séculos.

A invisibilidade dos temas relacionados ao trabalho feminino não decorre do fato de que

as mulheres não trabalhavam, como outrora se acreditou. De acordo com Evelyne Sullerot, a

questão fundamental é que sua atividade laboral foi, durante séculos, completamente

desconsiderada. “Em tôdas as épocas, vemos as mulheres serem privadas do reconhecimento,

pela sociedade, de suas atividades e, sobretudo, da participação na construção dessa mesma

sociedade.” (SULLEROT, 1970: 22).

Ser mulher dentro da sociedade capitalista é ser subvalorizada não apenas enquanto ser

social, mas também como força de trabalho; ainda que as trabalhadoras ajudem os homens no

sustento do lar, exercendo serviços que complementam a renda familiar. É também ser parte

subjugada em um sistema constituído fundamentalmente pela exclusão social de determinados

*Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História, na linha de pesquisa “Relações de Poder, Sociedade e

Ambiente” da Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação da Profª. drª. Christine Rufino Dabat.

2

grupos, baseada em diferenciações que naturalizam a desigualdade dos indivíduos no meio

social e legitimam a manutenção do domínio de uma classe sobre a outra. De acordo com

Heleieth Safiotti:

O modo capitalista de produção não faz apenas explicitar a natureza dos fatores que

promovem a divisão da sociedade em classes sociais. Lança mão da tradição para

justificar a marginalização efetiva ou potencial de certos setores da população do

sistema produtivo de bens e serviços. Assim é que o sexo, fator que há muito

selecionado como fonte de inferiorização social da mulher, passa a interferir de modo

positivo para a atualização da sociedade competitiva, na constituição das classes

sociais. (SAFIOTTI, 1976: 35)

Michelle Perrot, ao tratar das dificuldades enfrentadas pelas operárias francesas no

século XIX, também pontua a desvalorização salarial e a ausência de reconhecimento que o

proletariado feminino encontrava no mercado de trabalho; em parte por sua essência de mão-

de-obra precarizada e instável. Suas palavras, no entanto, são muito atuais quando analisamos

a situação de mulheres em vários outros países e contextos:

Relativamente recente, sem tradição, oprimida por uma dominação bicéfala em que

o homem e o patrão se apoiam, o proletariado feminino oferece todas as

características do exército industrial de reserva: emprego flutuante, sem qualificação,

suas remunerações são inferiores a cerca da metade das remunerações dos homens.

Para os operários, o salário feminino representa sobretudo um complemento,

temporário, em maior ou menor grau. (PERROT, 2005: 156)

No entanto, mesmo que o papel de inferioridade relegado às mulheres seja um fato

histórico incontestável nas sociedades capitalistas e até mesmo nas pré-capitalistas, é necessário

compreender como se deram os diferentes mecanismos de exclusão das mesmas; e, sobretudo,

quais foram os discursos e os mitos fundadores dessas ideias para, então, desmistificá-las.

Também é importante perceber porque os historiadores - mesmo quando se debruçavam anos

ou séculos depois sobre os eventos, observando-os sob a ótica de valores diferentes daqueles

partilhados pelos povos do passado - parecem ter se esquecido da existência das mulheres nas

fontes históricas.

Nessa perspectiva, destacam-se os estudos de Joan Scott, que desenvolve em suas obras

a premissa de que a escrita dos fatos passados é também o resultado de como homens e mulheres

perceberam a questão do gênero ao longo da história. Sem entender o que de fato gênero

3

significa e como suas implicações moldaram os eventos históricos a nível global, torna-se difícil

entender as relações humanas. Para a autora:

O gênero é, portanto, um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações

complexas entre diversas formas de interação humana. Quando os(as)

historiadores(as) procuram encontrar as maneiras como o conceito de gênero

legitima e constrói as relações sociais, eles/elas começam a compreender a natureza

recíproca do gênero e da sociedade e das formas particulares, situadas em contextos

específicos, como a política constrói o gênero e o gênero constrói a política. (SCOTT,

1991: 23)

Assumir a presença da mulher na classe trabalhadora é também uma forma de recuperar

a contribuição das mulheres nos movimentos sociais e na conquista por direitos. No entanto,

essa constante luta contra o patriarcado e o sistema de exploração no qual se fundamenta o

capital não existiu apenas nos domínios europeus; ela também é uma realidade nas economias

sul-americanas, como o Brasil.

Nesse ínterim, surgem trabalhos sobre a mulher dentro do operariado em várias partes

do mundo, evidenciando a presença de trabalhadoras que resistiam e participavam ativamente

de greves e movimentos organizados; ou até mesmo das que travavam batalhas judiciais contra

a exploração patronal. Apesar de o movimento operário ser liderado por homens, que não

raramente tentavam obstaculizar a presença feminina nas entidades classistas, as fontes

históricas tornam evidente o fato de que as trabalhadoras não apenas estavam presentes em

grande número nas fábricas ou no campo, como também não aceitavam passivamente os

desrespeitos aos seus direitos.

Assim sendo, esse artigo se propõe a analisar a atuação de um grupo específico de

operárias na Justiça do Trabalho nos primeiros anos da década de 50, vinculadas à Companhia

de Tecidos Paulista. Os processos trabalhistas em questão foram todos requeridos na Junta de

Conciliação e Julgamento da Comarca de Paulista, presentes fisicamente no “Laboratório

Memória e História do Tribunal Regional do Trabalho TRT6/UFPE”. Ao todo foram

catalogados 353 (trezentos e cinquenta e três) processos judiciais entre os anos de 1950 e 1954,

dos quais 116 (cento e dezesseis) possuem pelo menos uma mulher (trabalhadora ou viúva de

trabalhador da CTP) entre os reclamantes e 87 (oitenta e sete) são, exclusivamente, de operárias.

4

De acordo com os resultados gerais desse grupo de 87 (oitenta e sete), que é o foco desse

estudo, temos os seguintes dados: cerca de 10% (dez por cento) foram arquivados por

desistência explícita da reclamante, 86% (oitenta e seis por cento) terminaram em acordo

firmado em alguma instância e apenas 3,47% (três vírgula quarenta e sete por cento) foram

julgados improcedentes ou tiveram decisão - geralmente positiva para a operária - revertida nas

instâncias superiores à JCJ-Paulista/PE. No que concerne às homologações de acordo, feitas

quase sempre na primeira instância, elas constituíam a maior parte dos desfechos das ações de

ambas as categorias de operários. No geral eram desvantajosas financeiramente, porém

carregavam a prerrogativa de serem soluções mais rápidas e seguras para processos que

poderiam tramitar durante muitos anos; e que nem sempre trariam um resultado justo para o

trabalhador.

Os dados acerca das mulheres operárias expostos aqui, por si só, não são muito

divergentes do que ocorre com o operariado masculino da CTP, embora a primeira vista seja

nítido que as trabalhadoras buscavam as vias judiciais em menor quantidade. Não obstante,

apesar de serem números considerados tímidos se tomarmos o total de ações trabalhistas

analisadas, esses processos revelam a coragem das operárias de não se calarem diante das

injustiças sofridas e a disposição de enfrentar o patronato para terem seus direitos considerados.

2. OPERÁRIO, OPERÁRIA E A JUSTIÇA DO TRABALHO

Desde sua criação, a Justiça do Trabalho - fundada em 1941 - se tornou um divisor de

águas em termos de julgamento e conciliação de causas envolvendo questões trabalhistas no

Brasil. Tanto vista com desconfiança pelo empregado quanto vista com desprezo pelo patrão, a

justiça trabalhista foi palco de intensos debates sobre acesso aos direitos e à cidadania dos

trabalhadores. De acordo com Larissa Côrrea, essa visão dicotômica das leis e da judicialização

na resolução de conflitos decorrentes das relações de trabalho, durante muito tempo, dominou

o debate ideológico dos historiadores do trabalho. Entretanto:

5

Enquanto alguns historiadores viram na JT um meio de pulverizar os interesses dos

trabalhadores, outros observaram um aspecto importante para a classe trabalhadora:

o direito de reclamar. Ainda que as leis não fossem respeitadas pelos patrões, a CLT

abriu novas possibilidades de os trabalhadores lutarem por direitos. A

regulamentação das relações de trabalho, independente de sua aplicação,

representava, ao trabalhador, uma oportunidade, concreta e acessível, de frear os

abusos patronais, utilizando-se das possibilidades que o mundo legal lhe oferecia. A

classe trabalhadora passou a fazer uso das mesmas armas articuladas pelo patronato,

a própria legislação trabalhista, antes usada para persuadi-los. Essas leis, que tantas

vezes os oprimiam, foram revertidas em estratégias de luta pela reivindicação de

direitos, além de possibilitarem a elaboração de táticas de resistência no cotidiano

das relações de trabalho nas fábricas, obtendo muitas vezes resultados positivos.

(CÔRREA, 2007: 17)

Com relação à questão de legislação propriamente dita, é importante ressaltar a

promulgação da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) em 1943: um arcabouço legal que

estabelecia direitos e obrigações do patronato e do operariado, regulamentando tópicos como

duração da jornada de trabalho, proteção à maternidade, seguridade social, abonos, dentre

outros temas. Isso não significa, contudo, afirmar que a CLT e a justiça trabalhista foram a

solução definitiva para todos os problemas enfrentados pelos trabalhadores. Havia uma

dicotomia entre a Lei e a prática dentro dos tribunais, que frustrava, ao menos em parte, as

expectativas dos que recorriam a esses mecanismos. John D. French aponta as desilusões com

as quais se deparavam os operários, ao assinalar que:

(…) a história não era muito mais promissora para aqueles trabalhadores que, de

boa-fé, levavam suas queixas aos tribunais do trabalho. Ineficiência administrativa,

tribunais superlotados e uma tendência para a “conciliação” frequentemente

produziam o que pode ser chamado de “justiça com desconto”. Mesmo quando

ganhava um caso legal, por exemplo, um trabalhador brasileiro era forçado a um

acordo com seus patrões, obtendo um valor muito menor do que o inscrito em seus

direitos legais, caso contrário teria de enfrentar atrasos intermináveis devido aos

apelos da empresa – que algumas vezes se estendiam por até 12 anos. (FRENCH,

2001: 19)

Para as trabalhadoras, não obstante, é incontestável que a Justiça do Trabalho era uma

ferramenta de reclamação particularmente útil, uma vez que elas não figuravam em posições de

poder dentro das associações sindicais ou das forças políticas na esfera nacional. Às operárias

restavam poucos caminhos de reivindicação, mesmo porque sua atividade profissional ainda

era tida como uma forma de economia secundária dentro da esfera familiar; e seu salário

acabava não possuindo a mesma importância do salário do homem. As exceções a essa regra

6

eram os casos em que a mulher era viúva ou não possuía marido nem qualquer outra figura

masculina responsável pela subsistência da casa.

A Companhia de Tecidos Paulista - que compreendia um dos maiores complexos

industriais do país nos anos 50 - possuía em torno de 25.000 operários vivendo em situação de

penúria, devido aos baixos salários recebidos. Essa situação dramática é mostrada por uma

denúncia entitulada “Dia a dia aumenta a miséria em Paulista.”, veiculada no jornal “Folha do

Povo”, na edição de 11 de março de 1950:

Apesar do custo de visa subir diariamente, os salários dos operários de Paulista

continuam os mesmos de há uns quatro ou cinco anos atrás, enquanto um quilo de

xarque custa Cr$ 16,00 e uma “cuia” de farinha custa 10, 12 e Cr$ 13; sem falar na

carne verde, que é coisa rara na mesa do operário e custa em Paulista 8 e 10 cruzeiros

com osso.1

A disparidade entre a quantidade recebida em salário e a alta carga de horas trabalhadas

levava muitos trabalhadores a questionarem sua realidade miserável por vias judiciais. De

acordo com José Sérgio Leite Lopes, “(...) o recurso dos trabalhadores à justiça, o botar questão

contra a companhia, é uma ação permanente dos operários de Paulista desde o pós-guerra,

atravessando os anos 50 até 1964, e persistindo após 64 até os anos 80.” (LOPES, 1988: 365)

As questões judiciais eram tão numerosas em Paulista que, nos anos 40, o juizado da cidade

“(...) passa à categoria de comarca, tendo competência para receber reclamações trabalhistas

transformando-se logo na mais movimentada do Estado, após Recife, o juiz não conseguindo

dar conta do volume do serviço.” (LOPES, op. cit.: 332)

Das ações aqui consideradas, 24% (vinte e quatro por cento) delas eram de

requerimentos feitos apenas por operárias. As queixas mais comuns assemelhavam-se às dos

operários masculinos, como demissão sem justa causa seguida do não recebimento de qualquer

parcela indenizatória; ou o corriqueiro não pagamento de horas extras e noturnas. No entanto,

existiam algumas particularidades legais que diferenciavam as ações de mulheres e homens.

1Dia a dia aumenta a miséria em Paulista. Folha do Povo. Recife, p. 01-02, 11 mar. 1950.

7

O próprio serviço noturno segundo a CLT, do art. 379 ao 381, é vedado ao sexo feminino;

exceto em casos especiais não contemplados pela atividade industrial exercida na Companhia.

Esse fato parecia ser completamente ignorado pela CTP, onde era comum ver operárias

trabalhando em regime de revezamento semanal até as 23:00 horas ou madrugada adentro, sem

receber nem ao menos os 20% (vinte por cento) de acréscimo salarial estabelecidos em lei2.

Também eram persistentes os relatos de demissão após retorno de licença médica ou

licença maternidade. Cerca de 39% (trinta e nova por cento) dos processos exclusivamente de

operárias foram motivados por demissão sem justa causa realizada após retorno de benefício

temporário no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (I.A.P.I.). Muitas dessas

mulheres adquiriram doenças ocupacionais no decorrer da atividade profissional ou foram

vitimadas por acidentes de trabalho; somando-se ainda às que foram dispensadas ainda em

período gestacional.

3. PELO DIREITO DE ADOECER: AS MULHERES E A DEMISSÃO NA

DOENÇA

No dia 25 de novembro de 1950, a ex-operária Josefa Barbosa de Sousa ingressa com

uma reclamação trabalhista - de número 5261 - na 2ª vara da Comarca de Paulista, alegando

que:

a) Foi admitida nos serviços da reclamada no dia 10 de julho de 1936;

b) que, por motivo de doença, requereu junto ao I.A.P.I. no dia 16 de agosto de 1940,

ficando à disposição daquele órgão de previdência social até fins de Agôsto do

corrente ano, quando, definitivamente, recebeu “alta”;

2 DECRETO-LEI N. 5.452 de 1º de maio de 1943. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-maio-1943-415500-

publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 06 ago. 2017.

8

(…) que ao se apresentar nos escritórios da reclamada, para trabalhar, neste ano,

não foi aceita, sob alegação que o seu contrato de trabalho estava extinto e nada

podia receber a título de indenização.3

Pedia, então, que “(...) seja a Companhia de Tecidos Paulista obrigada a lhe pagar a

importância de Cr$ 868,00 correspondentes à indenização e aviso prévio, pelo tempo de serviço

efetivo. (…)”, requerimento contestado pelos advogados da fábrica. Esse tipo de reclamação

era muito recorrente nos processos trabalhistas dessa comarca.

De forma geral, os advogados da CTP procuravam deslegitimar as reclamações dos

operários, alegando abandono de emprego espontâneo ou ausência longa seguida de perda do

vínculo. No caso de Josefa, José Ferreira Dantas (patrono representante da Companhia), tentou

afastar a responsabilidade da empresa, utilizando-se da segunda linha argumentativa, conforme

parte da ação em questão:

(…) tendo a reclamante se afastado por motivo de doença em 16 de março de 1940,

ficou como beneficiária do Instituto dos Industriários dez anos e seis meses; que na

seção de seu benefício entendeu a reclamante que teria direito à volta ao primitivo

lugar uma vez que aquela autarquia assim o considerou. Que em recente acórdão do

Trib. Superior do Trabalho, no proc. 1076/49, publicado no D.J. De 21/10/949 pag

2466 lê-se: “Se não obstante o decurso fatal do prazo de cinco anos, em que a

aposentadoria se transforma de provisória em definitiva, o Instituto entende de

cancelar a aquêle prazo, não é justo que se onere o empregador (…)4

Apesar de o advogado tentar convencer o juiz de que o caso da reclamante era de

aposentadoria e que a CTP não poderia responder mais pelo seu vínculo contratual com a

mesma, o magistrado, Dr. Mário Gadêlha Simas, solicitou ao I.A.P.I. que enviasse à comarca

um relatório com a real situação da requerente perante aquele órgão. O Instituto, por sua vez,

apenas se limitou a dizer que Josefa “(...) gozou de aposentadoria provisória no período de

160441 a 270749 (...)”, nada informando sobre qualquer processo de aposentadoria definitiva

em andamento. Assim sendo, o juiz julgou procedente o pedido da operária no tocante à

indenização pelo tempo trabalhado e ao aviso prévio, por entender que:

3Reclamação trabalhista da 2ª vara da Comarca de Paulista – Estado de Pernambuco. Processo: 5261, distribuído

em 25/11/50. p.01

4Idem, p.03-04

9

A Lei, em tal caso, subordina a situação do empregado ao estatuído nas leis de

previdência social. Se o empregado é considerado em aposentadoria provisória, não

seria dado modificar a sua situação, exatamente para privá-lo dos direitos que a lei

lhe assegura, o que decorreria da aposentadoria definitiva.5

Ao contrário do que ocorreu em outros casos semelhantes analisados, a CTP não

recorreu da decisão, pagando o valor de Cr$ 868,00 à operária Josefa Barbosa de Sousa, em 04

de agosto de 1951. Não se sabe o que aconteceu, posteriormente, a Josefa ou qualquer

informação adicional sobre seu estado de saúde.

Esse é apenas um dos processos em que trabalhadoras têm seus direitos questionados

em decorrência de afastamento por motivos de saúde. No entanto, por que a dispensa atrelada

ao retorno de licença médica afetava mais mulheres do que homens? Das 150 (cento e cinquenta)

ações impetradas exclusivamente por homens analisadas, apenas 12 (doze) operários se

queixaram de dispensa após retorno de licença médica (tendo alguns desses sofrido, inclusive,

acidente de trabalho).

De acordo com Rosilene Alvim, as moças trabalhadoras eram afetadas de forma mais

severa pela desnutrição e pelas moléstias. Em relatos colhidos pela pesquisadora, muitas

mencionavam doenças, sobretudo pulmonares, e os constantes acidentes laborais em suas

rotinas. “É recorrente nos relatos das mulheres a revelação de casos de “moças” atingidas pela

tuberculose, atribuída ao excesso de fome.” (ALVIM, 1997: 125)

A sobrecarga de trabalho, com jornada média de 10 a 12 horas de duração, também era

um ponto negativo para a operária; especialmente porque várias das horas contabilizadas

oficialmente no serviço da CTP eram no turno da noite. Os horários das seções de fiação e

tecelagem – que eram os serviços mais requisitados das mulheres - eram os seguintes:

Assim, a fiação trabalhava até os anos 50 em dois turnos de 12 horas cada, de meia-

noite ao meio-dia, havendo sempre um horário noturno para cada turno. Já a

tecelagem trabalhava com um primeiro turno das 4 da manhã às 14 horas, e outro

turno das 14 às 24 horas, não trabalhando entre meia-noite e 4 da manhã. (ALVIM,

op. cit.: 127)

5Idem, p.12

10

A rotina extenuante acabava afastando naturalmente as moças do trabalho: seja porque

estavam sempre doentes, seja porque viam no mudo doméstico uma forma de se livrar, mesmo

que temporariamente, desse estorvo que se transformara o emprego. Esse é um dos fatores que

explicam porque muitas trabalhadoras, assim como Josefa, tiravam licenças muito longas e

outras sequer retornavam das mesmas. Entretanto a necessidade de complementar a renda

familiar levava muitas moças a voltarem ao trabalho algum tempo depois, mesmo que não

tivessem recobrado completamente a saúde.

Era comum, em Paulista, que toda a família – inclusive a mulher casada – permanecesse

trabalhando, uma vez que os baixos salários não eram suficientes para garantir o sustento

familiar. O casamento e a estabilidade através da união com um homem provedor não eram

suficientes para afastar a operária por completo da rotina de trabalho. Como observou Elisabeth

Souza-Lobo, “o trabalho doméstico faz parte da condição de mulher, o emprego faz parte da

condição de mulher pobre”. (SOUZA-LOBO, 1991: 75)

Em reportagem entitulada “Como vivem as operárias de Paulista”, divulgada pela

Folha do Povo no dia 27 de abril de 1950, algumas operárias denunciam a miséria em que

vivem. Uma delas diz:

- “Trabalho nove horas por dia, recebo por semana 120 cruzeiros, incluindo o repouso

remunerado. Meu salário chega a ser abaixo do salário mínimo. Cr$ 14,20 é a média

diária”. E prosseguindo: “Com esse dinheiro, temos de enfrentar a carestia da vida.

Eu pelo menos tenho dois filhos para manter. Confesso que passamos fome. Comemos

melhor apenas três dias por semana.”6

Paradoxalmente, a CTP procurava construir nas páginas dos grandes veículos de

comunicação a imagem de uma empresa extremamente preocupada com a saúde do trabalhador.

O Diário de Pernambuco divulga, no dia 26 de fevereiro de 1950, uma reportagem entitulada

“O governador do Estado visitou a Policlínica Ana Elisabeth de Paulista”, exaltando a

fundação da Policlínica Ana Elisabeth, construída pela Companhia, ressaltando “(...) a

iniciativa dignamente humana dos industriais de Paulista” e que não é devidamente reconhecida

6Como vivem as operárias de Paulista. Folha do Povo. Recife, p.01-02, 27 abr. 1950.

11

pelos “(...) agitadores costumazes.”7. A reportagem em questão não deixa claro quem são os

agitadores mencionados. No entanto, essas palavras provavelmente se tratavam de ataques sutis

a personalidades do meio jornalístico local e aos comunistas do Folha do Povo, ferrenhos

opositores da CTP.

Não deve ser desconsiderado o fato de que a licença médica feminina, no geral, tinha

um impacto salarial relativamente menor que a masculina dentro da esfera da economia

doméstica. Por haver uma redução salarial considerável durante o período em que se

permanecia amparado pelo benefício, muitos operários homens optavam por permanecer

doentes no trabalho, enquanto as mulheres se expunham mais frequentemente ao risco de

ficarem desempregadas no retorno das licenças.

Em 06 de julho de 1950, um casal de trabalhadores da CTP deu entrada em uma ação

judicial contra a empresa; que demonstra como essa realidade funcionava. Na dita reclamação

- de número 5025 - da 2ª vara da Comarca de Paulista, o maquinista Antônio Otávio Rosa alega

que:

(…) devido ao serviço ficou seriamente doente, mas devido ao seu pequeno salário

não requereu os benefícios do I.A.P.I. Pois teria, em caso de benefício, uma redução

de 33% nos seus salários; que sabedor do seu estado de saúde, como uma

“perseguição mesquinha”, o seu chefe determinou uma radical mudança de horário

de serviço, passando o reclamante a trabalhar durante a noite; que pelo motivo de

não aceitar essa alteração em seu contrato de trabalho, foi afastado por tempo

indeterminado, desde Junho do corrente ano; (...)8

Sua companheira, a tecelã Ernestina Maria Rosa, no entanto, diz que estava licenciada

por motivo de doença no período de 16 de julho de 1946 a 18 de fevereiro de 1948, sendo

“punida” com a demissão ao retornar. Além de demonstrar o tratamento degradante reservado

aos empregados que sofriam de doenças ocupacionais na CTP – especialmente quando Antônio

7O governador do Estado visitou a Policlínica Ana Elisabeth de Paulista. Diário de Pernambuco. Recife, p.05, 26

fev. 1950. Disponível em

<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_13&pasta=ano%20195&pesq=ana%20elisab

eth> Acesso em: 06 ago. 2017.

8Reclamação trabalhista da 2ª vara da Comarca de Paulista – Estado de Pernambuco. Processo: 5025, distribuído

em 06/07/50. p.01

12

acusa sua chefia de “perseguição mesquinha” - esses relatos expõem o quanto as mulheres

arriscavam, com mais frequência, seu emprego em prol do direito de se licenciar por motivos

de saúde. Uma vez que, na realidade desses operários, o papel de provedor do sustento da casa

é do homem, cabe ao mesmo suportar o peso da doença. O casal então fez a opção de sacrificar

o trabalho de Ernestina, ao mesmo tempo em que agravava o estado de saúde de Antônio.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os mundos do trabalho possuem uma complexidade peculiar, decorrente da

multiplicidade de atores que constroem aquilo que se convencionou chamar de classe

trabalhadora. A classe trabalhadora, por sua vez, não é constituída por um personagem único

ou por algum protagonista específico; uma vez que as experiências de classe vividas pelos seus

membros são um reflexo, antes de tudo, da condição social desses indivíduos. Mulher ou

homem, operário ou operária: cada qual possui suas particularidades e lidam de forma diferente

com a exploração vivida no quotidiano.

Embora este artigo contenha apenas resultados preliminares de uma pesquisa ainda em

andamento, buscou-se compreender como as trabalhadoras da Companhia de Tecidos Paulista

se utilizavam da possibilidade de recorrer à Justiça do Trabalho para sanar questões ligadas às

arbitrariedades presentes no contexto fabril. Quais eram suas principais reivindicações, seus

dilemas e as principais formas de injustiça e opressão com as quais elas tinham de lidar e

enfrentar. Se para muitos os tribunais trabalhistas eram tidos como uma forma burguesa de

minar a luta da classe trabalhadora por condições mais dignas, para outros eles se configuraram

como uma das poucas possibilidades concretas de resistência.

No caso das operárias da Companhia de Tecidos Paulista, esse canal de exposição das

insatisfações quotidianas foi uma via importante. Ainda que a maior parte das ações terminasse

em acordos financeiros abaixo do valor considerado justo pela legislação, essas ações revelam

processos de resistências singulares ou coletivos, de trabalhadoras que não se permitiam desistir

perante a opressão patronal.

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5. BIBLIOGRAFIA

ALVIM, Rosilene. A Sedução da Cidade: os operários-camponeses e a fábrica dos Lundgren.

Rio de Janeiro: GRAPHIA Editorial, 1997.

CORRÊA, Larissa Rosa. Trabalhadores têxteis e metalúrgicos a caminho da Justiça do

Trabalho: leis e direitos na cidade de São Paulo – 1953 a 1964. Dissertação de Mestrado. São

Paulo, 2007.

FRENCH, John D. Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros.

Trad. Paulo Fontes. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2001.

LOPES, José Sérgio Leite. A Tecelagem dos Conflitos de Classe na “Cidade das Chaminés”.

São Paulo: Marco Zero, 1988.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Trad. Viviane Ribeiro. São Paulo:

EDUSC, 2005

SAFIOTTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classe: mito e realidade. Rio

de Janeiro: Vozes, 1976

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Trad. Christine

Rufino Dabat e Maria Betânea Ávila. New York: Columbia University Press, 1991

SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e

resistência. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

SULLEROT, Evelyn. História de Sociologia da mulher no trabalho. Tradução: Antonio Teles.

Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1970

6. FONTES PRIMÁRIAS

Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE

14

Dia a dia aumenta a miséria em Paulista. Folha do Povo. Recife, p. 01-02, 11 mar. 1950.

Como vivem as operárias de Paulista. Jornal Folha do Povo. Recife, p.01-02, 27 abr. 1950.

Hemeroteca da Biblioteca Nacional

O governador do Estado visitou a Policlínica Ana Elisabeth de Paulista. Diário de Pernambuco.

Recife, p.05, 26 fev. 1950. Disponível em

<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_13&pasta=ano%20195&pesq=ana%20elisabeth>

Acesso em: 06 ago. 2017.

Portal da Câmara dos Deputados

DECRETO-LEI N. 5.452 de 1º de maio de 1943. Disponível em:

<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-maio-1943-415500-

publicacaooriginal-1-pe.html> Acesso em: 06 ago. 2017.

Laboratório Memória e História do Tribunal Regional do Trabalho TRT6/UFPE

Reclamação trabalhista da 2ª vara da Comarca de Paulista – Estado de Pernambuco. Processo:

5261, distribuído em 25/11/50.

Reclamação trabalhista da 2ª vara da Comarca de Paulista – Estado de Pernambuco. Processo:

5025, distribuído em 06/07/50.