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Os GinerJos d~,1 L~teraturJ(jOral Tradicional: CCtlft'lbuto para (+j $ua Cla$$ificaçãc l;:'~:~:::i:{~~z~:~*~!~iHtV João David Pinto Correia A designão «Literatura Popular» corresponde a um conceito dema- siado amplo e ambíguo que, por isso mesmo, tem sido contestado por muitos estudiosos. Durante muito tempo, e desde Garrett, Teófilo Braga, Leite de Vasconcellos, foi aceita comooportuna, tanto mais que apontava para um conjunto de práticas heterogéneas cuja incontestável natureza comum era a sua manifestação lin- guística, o qual se situava no âmbito mais englobante das práticas da Cultura Popu- lar. Ainda nos nossos dias, defende-a Manuel Viegas Guerreiro que a considera como o conjunto de textos que «circulam entre o Povo». A esta designação têm outros preferido «Literatura Étnica» (A. J. Greimas), «Literatura Folclórica» (M. Pop) ou simplesmente «Literatura Tradicional» (Mendez Pidal e Lindley Cintra), embora tenhamos de reconhecer que, se formos fiéis aos significados estritos dos respecti- vos qualificativos, nenhuma das alternati- vas coincida com o que ela se propõe abranger. Já noutra ocaso reconhecemos que esta Literatura Popular, no seu carácter mais vasto, poderia significar o conjunto de prá- ticas linguístico-discursivas que abrangeria pelo menos quatro subsectores de compo- sições: 1- as dxito efémero junto das populações (uma canção de grande voga, proposta por um intérprete de grande sucesso) ou seja a literatura popular o tradicional; 2- as propostas por autores da Literatura-Instituição, com aproveita- mento de estruturas e linguagem próprias da «poética» dos neros da Literatura Tra- dicional (FestaRedonda, de VitorinoNemé- sio, ou Quadras ao Gosto Popular, de Fer- nando Pessoa) ou literatura populariza me (para utilizar a designação sugerida por J. deAlmeida Pavão);3 - as produzidas por umdos representantes do Povo (Este Livro que vos Deixo, de AntónioAleixo, ou Nas Ondas do kIar Salgado, de Manuel Pardal) ou literatura popular tradicionalista; e 4 - , finalmente, as aceitese transmitidas ao longo dos tempos, património cultural, colectivo e anónimo, quechamaríamos lite- ratura popular tradicional.

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Os GinerJos d~,1L~teraturJ(jOral Tradicional:CCtlft'lbuto para (+j $ua Cla$$ificaçãc

l;:'~:~:::i:{~~z~:~*~!~iHtVJoão David Pinto Correia

A designação «Literatura Popular»corresponde a um conceito dema-siado amplo e ambíguo que, porisso mesmo, tem sido contestado

por muitos estudiosos. Durante muitotempo, e desde Garrett, Teófilo Braga, Leitede Vasconcellos, foi aceita como oportuna,tanto mais que apontava para um conjuntode práticas heterogéneas cuja incontestávelnatureza comum era a sua manifestação lin-guística, o qual se situava no âmbito maisenglobante das práticas da Cultura Popu-lar. Ainda nos nossos dias, defende-aManuel Viegas Guerreiro que a consideracomo o conjunto de textos que «circulamentre o Povo». A esta designação têmoutros preferido «Literatura Étnica» (A. J.Greimas), «Literatura Folclórica» (M. Pop)ou simplesmente «Literatura Tradicional»(Menéndez Pidal e Lindley Cintra), emboratenhamos de reconhecer que, se formosfiéis aos significados estritos dos respecti-vos qualificativos, nenhuma das alternati-vas coincida com o que ela se propõeabranger.

Já noutra ocasião reconhecemos que estaLiteratura Popular, no seu carácter maisvasto, poderia significar o conjunto de prá-ticas linguístico-discursivas que abrangeria

pelo menos quatro subsectores de compo-sições: 1 - as de êxito efémero junto daspopulações (uma canção de grande voga,proposta por um intérprete de grandesucesso) ou seja a literatura popular nãotradicional; 2 - as propostas por autoresda Literatura-Instituição, com aproveita-mento de estruturas e linguagem própriasda «poética» dos géneros da Literatura Tra-dicional (FestaRedonda, de Vitorino Nemé-sio, ou Quadras ao GostoPopular, de Fer-nando Pessoa) ou literatura populariza·me(para utilizar a designação sugerida por J.de Almeida Pavão); 3 - as produzidas porum dos representantes do Povo (EsteLivroque vos Deixo, de António Aleixo, ou NasOndas do kIar Salgado, de Manuel Pardal)ou literatura popular tradicionalista; e4 - , finalmente, as aceites e transmitidasao longo dos tempos, património cultural,colectivo e anónimo, que chamaríamos lite-ratura popular tradicional.

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Deste panorama sobressai que só os doisúltimos subconjuntos nos interessam maisparticularmente: são eles que mais estreita-mente se encontram ligados à vida do Povo- tomado este no sentido de "estratospopulacionais da comunidade nacional maisdesfavorecidos do ponto de vista da eco-nomia e da instrução, e de certo modocúmplices de uma condição rura]" -, e,acrescentemos, que garantem a desejávelconsecução poética da exemplar idade queefectivamente articula e orienta o conteúdoe a expressão dos textos propostos.

Defendemos, portanto, que duas verten-tes únicas terão de ser consideradas na Lite-ratura Popular: a tradicionalista, que assimpropomos seja chamada, porque, indepen-dentemente de constituir "produção deautor», bem individualizada e mesmo auten-ticada (e, neste aspecto, muito tem decomum com a Literatura-Instituição), recebeelementos de sentido ligados à Tradição(crítica social, alusão à experiência pessoal,ete.) e de realização expressiva (preferên-cia pelas quadras ou pelas décimas), e a tra-diciona!, que, no seu anonimato, se pro-duz continuadamente como composição"colectiva», beneficiando da sua transmis-são, e se torna presente nos vários momen-tos da experiência histórica e circunstan-cial do seu verdadeiro detentor, isto é, opróprio Povo. Acrescentemos que qualquerdestas vertentes pode transmitir-se pela ora-lidade e pela escrita.

Só a literatura popular tradicional nosinteressa considerar no limite destas pági-nas. Mais: tOmaremos apenas como objectoda nossa proposta de classificação a litera-tura tradicional oral. ficando para outraocasião ocuparmo-nos da literatura tradi-cional escrita, vasto sectOr também, queexige ser caracterizado e rigorosamenteclassificado, sobretudo porque se encontrapor demais confundido (apesar de para talhaver muito boas razões) com a parte maisabundante da chamada literatura de cordel.

~, Antes de mais, e pensando concreta-mente num género ela Literatura Oral Tra-dicioiZal -- que bem pode ser o "romancetradicionah, mais especificamente num dosseus textos, por exellljJl0. a «i'VíortF de n

Beltrão», com a sua quase centena de ver-sões, ou o «conto", para o qual apontamoscomo exemplo "A Gata Borralheira» -,podemos muito rapidamente esboçar umcotejo quanto a características desse con-junto maior de composições da LiteraturaPopular em comparação com as daLiteratura-f nstituição.

Em primeiro lugar, a literatura-Institui-ção pressupõe sempre o texto na sua maru-festação escrita, enquanto o conjunto decomposições de que estamos a tratar cen-tra o seu interesse na realização oral dotexto, aceitando apenas o registo escrito (ousonoro, em cassete audio ou video) comoum meio para garantir a memória ela per-formance passada.

Enquanto a Literatura dos ditos clássicosou tão-só bons escritores se apresenta pre-ferencialmente num texto único e fixo (senão houver uma só versão, proposto pelorespectivo autor ou pelos sucessivos edito-res, será sempre necessário decidir-se porum texto definitivo, que será sempre o dachamada edição crítica), a Literatura OralTradicional vive justamente na da própriavariedade, com as versões e as variantes,não só as sincrónicas, como também as decarácter diacrónico. E, em vez de autenti-cada e individualizada com a chancela donome de autor, essa Literatura Oral Tradi-cional constitui resultado anónimo da par-ticipação colectiva na própria transmissão(o que, noutros estudos, temos chamado"produ-transmissão»), o que não quer dizerque seja de autoria colectiva. Na verdade,houve sujeito produtor no início do pro-cesso que antecedeu a aceitação e trans-missão do texto por parte da comunidade,mas esse quase sempre perdeu a sua iden-tidade.

A realização discursiva do texto oral tra-dicional é quase sempre de natureza con-vergentemente múltipla, não rejeitando,como faz a chamada Literatura, a [-usão como discurso linguístico de outros, como ogestuaL o musical, o icónico. Neste aspecto,o texto literário é exclusivamente lin-guístico.

Outro carácter específico do texto oraltradicional é apresentar-se como prática decxtracontexto complexo -. o que quer

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llllJif!J t/TERATURA POPtJLAR / LIlfRATURA ORAL

dizer que sempre se articula com momen·toS muito variados ela vida de trabalho, deactividade ou de 1azer da comunidade -;lembremo-nos de que um romance podeser cantado ou recitado numa «segada» ounum serão, de que uma «benzedura,)integrar-se-á em determinados momentos davivência dos agentes. Não exige, como oliterário, situações de plena entrega à acti-vidade de contacto, como a leitura ou arecitação.

Quanto à realização de expressão e con-teúdo das versões dos vários textos, apon-taríamos, como grandes diferenças dasmanifestações ela Literatura Oral Tradicio-nal, em confronto com as da «grande)) Lite-ratura, a economia ele meios expressivose 3 condensação, senào mesmo a elemen-tarid3de, do seu conteúdo. No que respeitaao primeiro aspecto, sabemos como os tex-tos tradicionais orais evitam a componentedescritiva, centrando-se na acção e no diá-logo, privilegiando categorias morfológicastais como o substantivo e o verbo. O quechamamos aqui «economia» vai consagrar,por exemplo no romanceiro, subtis estra-tégias de funcionamento elo explícito como implícito, o que exige participação <dma-ginativa» elo receptor ou, então, como con-sequência do que acabamos de dizer, a purae simples dispensa de clidascálias para apre-sentação ele quem vai tomar a iniciativa dodiálogo; e ainda as fundamentais expressõese estrmuras formulísticas que marcam noenunciado facilitações elo circuito interlo-cutivo, permitindo sobretudo ao transmis-sor momentos de relançamento da mensa-gem (<<palavrasnão eram elitas», «de calçadaem calçada", «À entrada duma vila, à s;ídadum lugar)), etc.).

No que respeita ao conteúdo, temos desalientar a condensação semâilticCi dassituações e dos respectivos agentes, bemcomo das categorias espaço e tempo, oque, ligado à sua elementaridade, lhes con-fere um forte alcance simbólico (pensemosem contos como A Gata Borralbeira ou() CapucIJinbo V'ermelho). Estamos longe,da táctica de atingir a profunda espessurade significação que o texto literárioemprega, táctica esta que consiste, afinaLnuma disseminação semântica conseguida

através de meios estilísticos, poéticos eretóricos, e que bem pode ser consideradacomo profusão bem distribuída de meiosadequados com efeitos difusos de sentido.

Estas são, por comparação com as daLiteratura-Instituição, as características quejulgamos mais importantes para o C01PU5

de composições que constituem a litera-tura Oral Tradicional. Todas elas se ade-quam aos textos que, de seguida, procura-remos arrumar e classificar por géneros.

3, Na classificação dos géneros da Litera-tura Oral Tradicional, julgamos pertinentepropor uma divisão em macroconjuntos,segundo as naturezas lírica, narrativo--dramática e meramente dramática das com-posições. Cada um desses macroconjuntosaponta para um específico conteúdo e res-pectiva expressão; o primeiro diz respeitoao sentimento, ao afecto, à confessionali-dade ou mesmo a práticas que muito têma ver com as crenças e superstições; osegundo, que engloba também os textosderivados do gênero épico, abrange as com-posições, quer em verso, quer em prosa,que assentam na componente discUísivaque é a narração, e que têm, como ele-mento diminuto ou principal, o diálogo,contado com muito pouca descrição: o ter-ceiro integra as manifestações do génerodramático, isto é, desde os grandes "autos"aos «pequenos diálogos».

É evidente que, para cada um dessesmacroconjuntos, temos de considerar duasvertentes: a religiosa e a profana. Ambasse fazem sentir ao longo elos géneros aquiconsiderados, mais nLlns que noutros. Fre-quentemente, as composições de umgênero profano testemunham a intenção eleos seus assuntos serem aproveitados a lodh'ino.

E~!1 C 1,[):L omeçaremos pe_as composições decarácter lírico. Dizem respeito à autênticaexperiência da vida do Povo, na qual o sen-timento ou a crença se revela como osuplemento principal da vivência quoti-diana. São quase sempre em verso,podendo, no entanto, em certos casos,como nas «benzeduras", se manifestarem

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elTl prosa. Nessas composições, distingui-remos três subconjuntos:

- em primeiro lugar, o das práticas decarácter prático-utilitário, em queevidenciaremos:

a) as práticas de intenção mágica ereligiosa:

- rezas e orações paralelas (em relaçãoàs oficiais, da Igreja): por exemplo, o«Padre Nosso Pequenino», «Oração aoLevantar" ou «Oração ao Deitar», qual-quer uma delas com motivos densosde carácter simbólico.

- ensalmos, benzeduras, exorcismos:nestas composições, com suas estru-turas e registos linguísticos muito pró-prios (invocações, séries enumerativas,esboços narrativos), pretendem osseus utentes actuar sobre a realidade,com base no poder da palavra.

- cantigas de embalar! de ninar/ deberço. a palavra aliada à melodia tornapossível o adormecimento do bebé -são quadras que quase sempre têm aver com o elogio do próprio destina-tário (<<menino de ouro))), com umaalega da afugentação do «papão" ouainda com a situação religiosa de acriança se identificar com o próprioJesus.

b) as prâticas de sabedoria: acrescente-mos que também se visam objectivosprático-utilitários-- são pequenas, masdensas mensagens em que se registamseculares conclusões de conhecimentoteórico sobre a existência ou, maisconcretamente, indicações de caráctermeteorológico. Nelas, integraremos:

- prouérbios, sentenças, má:xirnas; ete.,isto é, todas as manifestações da pare-miologia (incidem na vida de todosos dias);

- ditos/ expressões estereotipadas: navida quotidiana dos portugueses, mui-tos destes ditos e expressões, commuito ele metafórico, constituem patri-mónio comum de uso frequente:"anelava numa lona.", "estar corn lima

pedra rIO sapato», «ser arnigo de Peni-clJe»; etc.

c) as práticas de intenção meramenteutilitária: encontram-se representadasno nosso corpus sobretudo pelos:

- pregões: hoje quase desaparecidosprincipalmente na sua vertente can-tada, foram importantes suportes poé-ticos para algumas actividades mercan-tis ((Quem quer figos, quem queralmoçar,,);

- em segundo lugar, as composições decarácter lúdico, isto é, aquelas que sedestinam a acompanhar momentospredominantemente recreativos ouvertentes de lazer que sejam comple-mentares de actividades, mesmo queelas sejam de trabalho:

a) rimas ir~fantis: trata-se de um «vastocontinente», para aproveitar a expres-são de uma· das estudiosas deste domí-nio, no qual podemos enumerar:

- fórmulas encantatórias. constituem asrepresentantes de uma quase intençãomágica sobre a realidade; são muitosos exemplos: «Joaninha avoa, avoa, teupai vai para Lisboa»; «Poisa, poisa,Maria Loisa, que amanhã dou-te umacoisa"

- lengalengas: composlçoes poéticasque se estruturam fundamentalmentenLlma sintaxe de encadeamento sobre-tudo copulativo e, de modo secundá-rio, relativo: «Amanhã é domingo/ Péde cachimbo/ Galo monteiro/ Pisou naareia,! A areia é final Que deu no sino)O sino é de prata,! Que deu na barata,etc.y>;

- anJi'guris: julgamos que representamprolongamentos das (1atrasias» de ori-gem medieval: «Era não era/ Andavana serra.! Era seu pai nado,! Sua mãepor nascer.í Ora o pobre do homem/O que lh'havia de acontecer, etc.»

- trava-línguas: apesar de os arrumar-mos nesta grande categoria das «com-posições lúdiGls", eswmos em crer quefuncionam como importantes práticaspedagógicas para a capacidade linguís-

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tica: «- Pardal pardo, porque palras? 1Eu palro e palrarei) Porque sou o par-dal pardo,! Palrador d'el-reh.

b) cantigas: este é um domínio vasto donosso «cancioneiro), que deverá serobjecto de uma atenção multo espe-cial, mas no qual, por agora, poclere-mos muito em geral distinguir:

- cantigas de raízes medievais (as para-lelísticas): são evidentes restos dasparalelísticas medievais - algumasdelas (os «ritmos», na expressão deLeite de Vasconcellos) acompanham ostrabalhos rurais, Garantem o parale-lismo semântico e estrutural e aindaconservam as alternâncias de rimatoante -i-o e -a-o: «As meninas toelastrês Mariasl foram-se a colher as andri-nas.!1 As meninas todas três ]oanaslforam-se a colher as maçanas.llQuando lá chegaram, acharam-nascolhidas,! Quando lá chegaramacharam-nas talhadas».

- cantigas <<inteiras»: apesar de quasesempre serem compostas por quadras,estas, em número variável (dois outrês, ou mais), apresentam-se ligadasentre si no que respeita ao assunto;

- cantigas de quadras soltas: cada umadas estrofes destas cantigas trata de umsó assunto;

- quadras. canta elas ou recitadas isola-damente

- outras (l'aria): poderá haver tambémvariações de estrofes com outronúmero de versos.

c) adivinhas: são composlçoes queexploram desenvolvimentos, por vezesmuito subtis, que exigem uma deci-fração final; introduzem-nas expressõesformulístlcas sobejamente conhecidas:«Que é, que é» ou «Qual é a coisa,qual é ela».

- em terceiro lugar, algumas outras com-posições que bem podem ser consi-deradas numa alínea classificatóriamuito oportuna que designaremos/Yi/·Úz.

:3,2, Um segundo macroconjunto é consU-ruído pelas composições narrattvo-dmrná-ricas. Na sua maior pane, são em prosa;no entanto, como nos romances, podemtambém ser em verso. Comunicam acçõescompletas ou pequenos episódios narrati-vos, sempre completados pelo diálogo.

Funcionalmente, pode este macrocon-junto ser subdividido em quatro conjuntos:

- em primeiro lugar, o das composiçõesexplicatz'vo-exemplares: - por elas, acomunidade pretende explicar aspec-tos não suficientemente esclarecidospela razão, para o que adoptam "rela-tos" que são considerados ou "reais"ou aceites como verosímeis (pensemosno significado profundo de expressõescomo «No tempo em que os animaisfalavam ... »). São quase sempre muitomarcadas pelo «fantástico», mais doque pelo "maravilhoso»:

a) mitos - entre eles, avultam os queGarrett considerava importantes paraa comunidade portuguesa: o sebastia-nismo e o das «mouras encantadas»;

b) lendas - histórias mais ou menosextensas acerca ele vultos históricos ouacerca de lugares muito concretos;algumas vezes, são franClmente etio-lógicas, São inúmeras e podem teralcance nacional ou significado muitoregional.

c) fábulas e apólogos - apesar ela inve-rosimilhança derivada de os protago-nistas serem animais ou objectos afalarem, a exemplaridade das situaçõestorna-os textos credíveis «<Foi notempo em que os animais e os objec-tos falavam ... »), insubstituíveis mesmopelas suas pertinentes «lições demora]". São composições muitoimportantes para a tipologia simbólicaele alguns motivos animais e objectuais(a "raposa", o <dobo»),o «corcleiro», o«cágado")'

- em seguida, o conjunto das composi-ções registadoras-elementares:designamos deste modo, talvez con-testável. o conjunto de textos que

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- registam casos vanos da expenenciahumana (realista ou feericamente con-siderada), dotados de significação ele-mentar, isto é, de conteúdo simplesna sua estruturação e na própria repre-sentação do mundo, mas composto deelementos de grande densidadesemântica. Dois grandes corpora ocompõem: o dos romances, em queprevalece o ({reah, senão mesmo o«histórico", e o dos contos, em quea categoria dominante é o {(maravi-lhoso» (o «tudo é possível»).

a) romances: pequenas histórias emverso, quase sempre episódicas, mas,algumas vezes, com pretensões a nar-rações completas, nas quais predominao realismo dos agentes e das situações,ele grande antiguidade, sendo o «mara-vilhoso» um ingredieme muito poucoutilizado. Entre estas composições,avulta, pela sua representatividadenacional, a Nau Catr'ineta, mas, pelasua vetustez, Cid e o Mouro Búcar,j1;JQrtede D. Beltrão, Bela Infanta.etc.

b) contos: histórias em prosa, muitasdelas universais, nas quais a categoriaprevalecente é o «maravilhoso", ape-sar de terem como ponto de partidao aproveitamento de elementos da«representação do mundo». No querespeita à sua representatividade, oscontos são quase sempre válidos paratoda a comunidade, adultos ou jovens,impondo-se pela significação simbó-lica, quer na dimensão psicanalítica,quer na dimensão etnoantropológica.Teremos de adiantar que os contostornam aceitáveis situações ({metamor-foses», «inserção do sobrenatural»,eLc.) e agentes (convívio de «humanos»com «fadas", «bruxas,), «gigantes», ete.)que, habitualmente, são consideradosilógicos pelo senso comum.

o que respeita à tradição, podemosdistinguir os contos que dizem res-peito à tradição universal (entre eles,citemos A Gata Borralbeira, A Belae o Alonstro, O CapuchinlJo Verme-

lho) e à tradição nacional (pensamosem As Três Cidras do Amor, Os De.zAnõezinbos da Tia Verde-Água).

- em terceiro lugar, as composições crí-ticas (humorística:>): dominam esteconjunto as anedotas; que temos deconsiderar como o gênero por exce-lência vivo da tradição oral moderna,visto que satisfaz quanto às caracterís-ticas da Literatura Popular Tradicionalnão só do pomo de vista da variação(muitas vezes, os textos não são senãoadaptações ao tempo presente de rela-tos mais antigos, actualizados paraoutras personagens), como sobretudono que respeita à sua circulação oral(quem pensa registar por escrito umaanedota?).

- em quarto lugar, podemos pressupora existência de outros relatos, deoutras histórias, que irão prefazer osuaria.

3.3, As composições dramáticas constituemo terceiro macroconjunto de composiçõesda Literatura Oral Tradicional: dizem res-peito às peças e aos diálogos que muitoabundam na vida quotidiana do nossoPovo. Empregam sobremaneira o diálogo,garantido por uma tradição de família (paracada protagonista), o qual, para alguns dosmais importantes géneros, se encontraregistado no casco. Poderíamos acrescen-tar que, à semelhança do que aconteceucom Gil Vicente ou com Baltasar Dias, adesignação mais habitual para estas com-posições é a de autos. No entanto, tere-mos de considerar a sua tipologia funcio-nal - por isso, temos os se~"'intessubconjuntos:

- em primeiro lugar, o das composiçõesexemplares: - aludimos às composi-ções dramáticas que põem em cenaassuntos, histórias, personagens, exem-plarmente significativas quer a nívelnacional, quer a nível mais alargado(peninsular ou internacional). Temosem linha de conta:

a) tragédias e dramas. pensamos empeças dramáticas como Sete Infantes

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/fl1ªfJ2J L!T&~4TUR4 POPULAR / LlTEPJiTLlR4 ORAL

de Lara, Tragédia do iVlarquês deJlântua ou Tc!Jilolí, ou, no que res-peita a uma vertente exclusivamentereligiosa, os vários Autos da Pai:yão;

b) comédias: embora muitas vezes, adesignação de comédia seja aplicadaa dramas, como é o caso da Comédiados Doze Pares de França, muitas sãoas peças populares que se caracterizampela representação dos «aspectos con-cretos e risíveis da vida» (Auerbach);

c) simplesmente autos: esta é uma desig-nação muito ambígua, que serve paramuitas composições de natureza muitovariada: desde o Auto de Floripes aosjá mencionados Autos da Paixão.

- depois, em segundo lugar, o das com-posições críticas: têm sobretudo emmira os costumes e as pessoas, e sãomuito importantes em determinadasépocas do ano, principalmente duranteo Carnaval:

a) entremezes, com os testamentos e asfarsas: por exemplo, o "Testamentodo Galo));

b) cegadas: pequenas peças dramáticasrelizadas em várias regiões do País(estamos a pensar nas que se realiza-ram no Seixal ou em Sesimbra, aindahá poucos anos).

- finalmente, o elas composições regis-tadoras do quotidiano. pretendemtão'só pôr a público cenas ele todosos elias:

b) diálogos (curtas representações emmomentos festivos).

~" Esta é uma proposta de classificaçãopara os géneros da Literatura Oral Tradi-ciotlal. Muito elementar. talvez mesmo sim-plista em certos aspectos. No entanto, comela procuramos arrumar os principais géne-ros, segundo critérios coerentes: um, pri-meiro, que tem em linha de conta a própria natureza das componentes discursivas;

e, depois, o que aponta para a funcionali-dade desses mesmos géneros e discursos.

Para mais tarde, ficará considerarmoscada um destes macroconjuntos de modomais promenorizado, exigindo-se atençãomuito especial a cada um dos respectivosgéneros.

Notas - 1) Para não alongarmos esta nossacontribuição, evitámos notas bibliográficas,que seriam abundantes; elas serão introdu-zidas em futura versão, revista e aumen-tada, deste artigo ou, mais concretamente,no capítulo dedicado ao assunto em Lite-ratura Oral Tradicional - Conceitos) Pro-blemas e Perspectivas, obra a publicar embreve.2) No entanto, consideramos que, para oexposto, tivemos em linha de conta asseguintes obras e artigos:

AA. vv. - «Les gemes de la littératurepopulaire», n? especial ele Poétique, n? 19,Paris, 1974;

Braga, Teófilo - O Povo Português nosseus Costumes, Crenças e Tradições. 2 a

ed., Lisboa. Vol. I, Lisboa, 1985; Vol. lI,Lisboa, 1986;

Cascudo, Luís ela Câmara (1984). litera-tura Oral no Brasil, 3 a ec!. Belo Horizonte:S, Paulo.

Guerreiro, M. \liegas (1978). Para a His-tória da Literatura Popular POl'tuguesa.Lisboa.

Pinto-Correia, João David (987). OsRomances Carolingios da Tradiçiio Ora!Portuguesa, 3 v01s, Lisboa. (tese mime 0-

grafada) (a publicar muito em breve);

Zumthor, Paul (1982). hztroduction li laPoésie Orale. Paris.

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