os filhos da jihad

Upload: gabriel-monteiro

Post on 11-Jul-2015

56 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Marcio ScalrcioHistoriador

JihadLogo aps concluir a criao do mundo, Deus deparou-se com uma enorme quantidade de restos. Eram pedregulhos soltos, de vrios tamanhos e que no encaixavam com nada. Deus empurrou aquelas sobras despejando-as num canto do mundo. Com isto, criou o Afeganisto.(Mito pashtun explicativo da origem do Afeganisto)48 PS-BARBRIE

Os filhos da

As origens do Talib e de como conquistaram o poder no Afeganisto

OuTuBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2010

49

I N S I G H T

INTELIGNCIA

s ingleses da era colonial os chamavam coletivamente de pathans, uma raa guerreira irredutvel e obstinada que habitava as reas do norte do Raj indiano e o remoto Afeganisto. Hoje em dia, quando designados desse modo, geralmente reagem de forma indignada. O nome correto pashtun. Muulmanos sunitas devotos, faladores da lngua pashto e que se gabam descender dos filhos de Qais, um dos companheiros de Maom, o mensageiro de Deus, integrante da comunidade islmica original. Em nossos dias, os pashtun representam o maior grupo tnico do Afeganisto, alcanando aproximadamente 44% da populao. Suas tribos espalham-se pelas reas do Sul do pas, com concentraes em torno da cidade de Kandahar. Os pashtun vivem ainda em grande nmero no visinho Paquisto especialmente na Provncia da Fronteira Noroeste, no Vaziristo e no Baluchisto. Bastante inclinados carreira das armas, soldados de origem pashtun representam 20% das Foras Armadas do Paquisto. Os pashtun configuram tambm o maior grupo tribal do mundo. As tribos pashtun do Afeganisto se dividem em dois grandes ramos: os Ghilzai e os Abdali que aps o sculo XVIII trocaram sua designao para Durrani. Adotaram o nome do mais importante rei da histria do

O

Afeganisto, Ahmad Shah Durrani. Em 1747, o conselho das tribos pashtun, a Loya Jirga escolheu Durrani, do ramo Abdali, para o cargo de rei. Diz o mito que a principal razo que pesou para a seleo de Durrani foi o fato de ele manter-se em silncio ao longo de todo o encontro. Enquanto vrios chefes tribais enalteciam suas prprias qualidades, Durrani quedava-se impassvel e discreto. Parecia desinteressado do assunto e enfadado com toda aquela arenga. Um dos lderes da Jirga, impressionado por tal comportamento, ergueu-se e sugeriu o nome de Durrani para o posto. Afirmou que o mesmo possua dois importantes predicados para o exerccio do cargo: era modesto e jamais falava demais. Assim, aclamado pelos lderes convencidos por aqueles argumentos, Durrani, sempre em silncio, assentiu e tornou-se rei. Durrani falava pouco e fazia muito. Revelou-se um chefe guerreiro de fibra, bem ao gosto dos lderes tribais que o elegeram. Durante o seu reinado, consolidou a primazia pashtun em todo o Afeganisto, combateu e derrotou os exrcitos da Confederao dos Mahrattas na ndia, imps o controle pashtun sobre a Caxemira e seus domnios alcanaram as fraldas das montanhas do Tibete. Quando morreu, seu corpo foi sepultado numa mesquita situada na cidade de Kandahar. Nos anos que

se seguiram, a mesquita converteu-se em lugar de peregrinao dos pashtun que devotamente oravam em torno da tumba de Durrani, Os resultados das proezas de Durrani se desfizeram pouco depois de sua morte. Mas a impresso deixada foi duradoura. Para muitos, os tempos de Durrani marcaram a era de ouro dos pashtun. No sculo XIX, enquanto os ingleses consolidavam seu poderio no Subcontinente Indiano, os russos avanavam cleres pela sia Central. Direta ou indiretamente os dois imprios se digladiavam. Alm da sia Central, os russos lanavam olhares gordos na direo dos despojos do combalido Imprio Otomano. Queriam a Crimeia, o domnio dos Estreitos e Istambul. Os ingleses criavam-lhes toda a sorte de empecilhos. Os russos respondiam fomentando encrencas na ndia Britnica. No meio da bulha, quedava-se o Afeganisto. Ao tutelar as reas do norte do Subcontinente Indiano, os ingleses dividiram os velhos territrios das tribos pashtun. Parte deles vivia governando o prprio nariz no Afeganisto enquanto a outra parte passaria a existir sob a gide da Pax Britannica. Os pashtun dificilmente se conformariam com isso. Como era possvel que estrangeiros infiis se metessem em seus negcios. Os pashtun eram divididos em ra-

50 PS-BARBRIE

I N S I G H T

INTELIGNCIA

mos, os ramos em tribos, as tribos em cls denominados khels e todos obedeciam ao pashtunwali o cdigo de conduta reconhecido pelas tribos. O pashtunwali regulava as disputas ligadas aos assuntos mais importantes da vida: zar, zam e zamin isto , ouro, mulheres e terras. Pelo cdigo, um pashtun que se sentisse ofendido, podia buscar uma satisfao de sangue, o badal. A famlia e o cl viam-se obrigados a prestar solidariedade ao membro que exigia o reparo de sua honra. S as crianas, as mulheres e os hspedes estavam livres do badal. Assim, os cls frequentemente se envolviam em rixas violentas, que persistiam por longo tempo, alimentadas pela necessidade da satisfao da honra, pelo badal. Os ingleses, naturalmente, tentavam limitar ou eliminar as rixas nas terras sob a sua tutela. Queriam impor a ordem um tipo de ordem totalmente estranha aos usos das tribos. Os pashtun resistiam invariavelmente a tal interferncia nas suas tradies. Os russos se aproveitaram disso. Forneciam dinheiro e armas

no suporte dos levantes pashtun. O desassossego ingls era infindvel. Tropas foram estacionadas permanentemente nas regies do Raj habitadas pelos pashtun. Mas de nada adiantava tentar enquadrar apenas os cls que viviam em territrio britnico. Os bandos de guerreiros, quando se viam em apuros, simplesmente cruzavam a fronteira e entravam no Afeganisto. L, sempre contavam com o santurio garantido por seus parentes. Pashtunwali e badal como de hbito. Por duas vezes os ingleses tentaram resolver de uma vez por todas a encrenca afeg e tornar o pas um Estado amigvel e dcil governado por um raj ou maraj paralisado pela engorda dos subsdios britnicos. Duas Guerras Afegs 1839/1842, 1878 /1880 duas derrotas inglesas. O resultado de tais reveses foi um modus vivendi inusitado para os organizados ingleses. Dentro dos territrios do Raj, os pashtun viveriam deixados em paz cuidando de seus negcios.1 De vez em quando, expedies militares percorriam as reas tribais em fora recolhendo

armas e munies. A fronteira com o Afeganisto seria permanentemente vigiada, com destaque para a principal via de acesso, o famoso Passo Khyber. O Exrcito indiano procurava assim filtrar o ir e vir na fronteira e conter o contrabando. Porm, o cimo dos penhascos ngremes que cercavam o Passo Khyber era territrio dominado pelos indceis pashtun da tribo dos Afridis. Os governos britnicos procuravam manter os Afridis sossegados por meio da distribuio de estipndios regulares aos diversos khels da tribo. Porm, no momento em que a dinheirama por alguma razo secava, as guarnies do Exrcito Indiano e as caravanas que cruzavam o passo voltavam a ser alvejadas por atiradores Afridis que nunca dormiam na pontaria. A criativa explorao dos negcios de transporte e manuteno do Passo Khyber tornara-se um modo de vida para muitos Afridis.1. Tudo indica que tal estado de coisas se mantm em nossos dias. Os territrios pashtun fora do Afeganisto pertencem ao Paquisto. Contudo, nas denominadas reas Tribais o governo paquistans no exerce sua autoridade soberana plenamente.

O fim da monarquia e a Jihad contra os soviticosNo ano de 1973, por meio de um golpe palaciano, o rei pashtun do Afeganisto, Zahir Shah derrubado do poder por um parente e a Repblica instaurada no pas. Foi durante ela que a influncia sovitica se intensificou no Afeganisto, culminando com a invaso em dezembro de 1978. No Afeganisto, golpes palacianos e invasores conquistando Kabul na verdade so capazes de resolver quem possui o controle da cidade-capital e, rigorosamente, mais nada. Quanto ao resto do pas, a histria muito diferente. Os vrios grupos tnicos zelavam por manter o mximo possvel de autonomia. Os mais importantes, alm dos pashtun, so os tadjiques aproximadamente 26%, os haza-

OuTuBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2010

51

I N S I G H T

INTELIGNCIA

52

I N S I G H T

INTELIGNCIA

ras 9,3%, os uzbeques 8,7% e os turcomenos 3,3%. Existem ainda pelo menos mais trs grupos tnicos os aimaks, os baluches e os nuristanis, mas nenhum deles alcana 1% da populao.2 Os tadjiques so muulmanos sunitas que falam uma lngua derivada do farsi o idioma persa chamada dari. Tradicionalmente a etnia tadjique forneceu os mais importantes intelectuais, no s do Afeganisto, mas de toda a sia Central. A histria dourada dos esplendores das altaneiras cidades de Samarcanda e Bukara foi uma saga artstica e intelectual basicamente vanguardeada pelos tadjiques. Assim sendo, o dari uma espcie de lngua franca e elegante naquelas plagas. As concentraes do povo tadjique situam-se no norte do Afeganisto, sendo que algumas de suas comunidades se espalham pelo oeste do pas. Muito embora Kabul seja a capital, a cidade mais intelectualizada e cosmopolita do Afeganisto Herat, no oeste povoada fundamentalmente pelos tadjiques. Durante a invaso sovitica, os tadjiques pegaram em armas e aderiram ao chamado da Jihad. De seu povo saiu o mais talentoso comandante militar dos mudjahedeen, Ahmad Shah Massoud, o Leo do Panjshir. Massoud foi aluno de um Liceu francs e estudante de engenharia. Era um homem muito articulado que falava fluentemente o dari, o urdu, o pashto, o hndi e o francs. Saia-se muito bem em ingls tambm. Durante a guerra contra os soviticos, defendeu com2. Ver: SELLIER, Jean et SELLIER, Andr. Atlas des peuples D`Orient. Paris, La Dcouverte, 2002.

sucesso o Vale do Panjshir, sua terra natal, ao norte de Kabul. Sovou os comunistas e ganhou reputao. O Ir, temeroso da consolidao do poder russo no Afeganisto, enviou armas e equipamento para as tropas de Massoud. Em 1989 as foras soviticas retiram-se do Afeganisto. Trs anos depois, Massoud e seus tadjiques, aliados aos uzbeques conquistaram Kabul derrubando o que restava do regime comunista aliado aos soviticos.

A

religiosidade de Massoud era genuna e foi a fonte de sua adeso luta contra os soviticos. No campo da reconstruo nacional, os tadjiques de Massoud sonhavam com um novo governo afego que contasse com os representantes de todas as etnias do pas. No concordavam com a repetio de uma mera hegemonia pashtun e desconfiavam da interferncia paquistanesa e da presena no pas dos jihadistas rabes ambos preferencialmente apoiavam ou combatiam ao lado dos grupos mudjahedeen pashtun. Os hazaras, muulmanos xiitas, descendem de uma combinao entre as linhagens mongol e tibetana. Vivem no centro do pas e por muito tempo foram tratados quase como prias pelos demais grupos tnicos. Em parte por causa de sua adeso ao xiismo, em parte devido a seu aspecto fsico muito particular que no se assemelha com o das demais etnias afegs. Durante a Jihad contra a URSS, os hazaras organizaram uma milcia liderada por Karim Khalili.

Os uzbeques formam um povo que, no que tange arte guerreira temido em toda a sia Central. Combatem de forma pertinaz, impiedosa e ousada. So muulmanos sunitas de fala turca. Na Jihad contra a URSS formaram suas prprias milcias que envergavam uma tradio de ter guerreado contra os russos desde os tempos do czarismo e contra os comunistas desde os tempos da Revoluo Bolchevique. O Exrcito Sovitico, durante a ocupao do Afeganisto, transferiu para o pas unidades de combate uzbeques originrias da Repblica Socialista Sovitica do Uzbequisto. Aps a retirada sovitica, muitos dos uzbeques no afegos continuaram no Afeganisto, pois no desejavam parar de guerrear. Mudaram de lado e aderiram milcia uzbeque liderada pelo general Rashid Dostum. Como foi dito antes, aliados aos tadjiques, a milcia uzbeque de Dostum assumiu o controle de Kabul. Com a posse da capital e formando um novo governo provisrio, imaginava-se que poderiam negociar a partir de uma posio de fora com os lderes pashtun. Um dos problemas que as tropas uzbeques e tadjiques portaram-se muito mal logo que tomaram a cidade. Saques foram promovidos, mulheres atacadas, prisioneiros eram executados sumariamente e pashtun da capital foram perseguidos, roubados e s vezes assassinados. O outro problema consistia na ao das foras polticas e das rivalidades das potncias daquela regio do mundo. O governo indiano no assistiria impassvel ao aumento da influncia paquistanesa no Afeganisto. Assim,

OuTuBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2010

53

I N S I G H T

INTELIGNCIA

passou a apoiar os tadjiques de Massoud que contavam tambm com o suporte iraniano e os uzbeques de Dostum. Era a resposta indiana parceria paquistanesa-pashtun. Quanto aos pashtun, o seu posicionamento geogrfico concentrado no Sul do pas privou-os de um naco na partilha do poder em Kabul. O perigo era que pela primeira vez, desde os tempos de Emir Durrani, os pashtun se encontravam alijados do centro do poder. Ao saberem das notcias relativas perseguio contra os pashtun de Kabul movida pelos tadjiques e uzbeques, imediatamente apontaram suas armas contra os donos do poder provisrio. A Jihad contra os comunistas convertia-se em guerra civil. Na poca da Jihad antissovitica, os pashtun formaram uma grande quantidade de milcias mudjahedeen. A mais importante de-

las era liderada pelo general Gulbuddin Hekmatyar, um membro da tribo Kharoti do ramo Ghilzai. A fora de Hekmatyar era provida pelo Paquisto. Durante quase todo o perodo da Jihad, Hekmatyar foi considerado a menina dos olhos do ISI Inter-service Inteligence o todo-poderoso sistema de inteligncia do Exrcito Paquistans. Boa parte da ajuda americana para os freedon-fighters do Afeganisto intermediada pelo ISI era despejada na milcia de Hekmatyar. Portadora de recursos dessa monta, a milcia de Hekmatyar, porm, atuava de forma menos formidvel do que deveria. Para uns, era porque os rapazes do general Hekmatyar entretinham-se mais no ato de tirotear contra outros grupos afegos do que combater os russos. Para outros, o problema era que na sua senda em

direo ao poder, Hekmatyar entendia como justo o desvio de parcela dos recursos para si prprio. Em resumo, Hekmatyar no se apresentava como uma liderana confivel sequer aos olhos dos pashtun. Desse modo, o sul do Afeganisto foi tomado por uma enorme quantidade de milicianos pashtun bem armados e valentes. Combatiam entre si pela posse dos vilarejos, aeroportos, depsitos de vveres e por tudo que podia resultar em alguma vantagem. Esqueceram-se de suas obrigaes em proteger o povo, oprimindo-o cruelmente. De forma gaiata, apossavam-se arbitrariamente do zar, zam e zamin. Continuavam a ostentar o glorioso ttulo de mudjahedeen, mas esqueceram-se lamentavelmente do Isl. Algum logo iria se encarregar da tarefa de ensin-los a parar de esquecer.

O TalibNs combatemos muulmanos que agem errado. Como poderamos permanecer quietos quando assistamos a crimes sendo cometidos contra as mulheres e os pobres?(Frase explicativa das motivaes para a formao do Talib proferida pelo mullah Mohammed Omar, no melhor estilo Robin Hood)

Talib significa estudante do Isl. Talib o plural de talib. Dizem no Afeganisto que o iniciador do movimento Talib foi o mullah Mohammed Omar que continua em nossos dias liderando o movimento. Omar nasceu em 1959 em Nadesh, um vilarejo prximo a Kandahar. Pertencia a uma famlia pobre integrante da tribo Hotak do ramo Ghilzai.

Seu pai morreu prematuramente e Omar cedo assumiu o sustento da famlia. Tal qual seus parentes, Omar trabalhou nos campos e estudou numa pequena escola islmica uma madrassa prxima a seu vilarejo. Identificou-se fervorosamente com a religio, decorando com afinco passagens e mais passagens do Coro. Ao alcanar a idade adulta,

Omar resolveu tornar-se um mullah e abriu uma pequena madrassa. No final do ano de 1978, com a invaso sovitica, Omar aderiu Jihad. Combateu pela milcia do partido Khali Hizb-e-Islammi sob o comando de Nek Mohammed. Durante a Jihad, Omar foi ferido quatro vezes, perdendo um olho e alguns dedos das mos. Em seu grupo de com-

54 PS-BARBRIE

I N S I G H T

INTELIGNCIA

OuTuBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2010

55

I N S I G H T

INTELIGNCIA

bate, destacou-se como um exmio artilheiro de RPG arma lana-foguetes anticarro de projeto russo, que devido razovel leveza e facilidade de uso caiu no gosto dos guerrilheiros do mundo inteiro. As obrigaes da Jihad no impediram Omar de contrair matrimnio. Hoje em dia sabe-se que no total possui trs esposas e cinco filhos. Com a expulso dos soviticos, Omar retomou integralmente s suas obrigaes como mullah. Para os pashtun de sua regio, as marcas de guerra que exibia no corpo eram prova inequvoca da intensidade de sua f. Segundo esse modo de pensar, a perda de um olho em prol da causa de Deus valia mais do que uma sofisticada erudio. Contudo, o rumo dos acontecimentos chamaria Omar novamente s armas. A histria mais difundida sobre a origem do Talib conta que, em meados do ano de 1994, vizinhos da aldeia de Singesar procuraram

Omar para pedir conselho sobre o que fazer em face de um grave acontecimento. Nos vilarejos pashtun do Afeganisto, esse um servio constantemente solicitado aos mullahs devotos prestar conselho. O grave acontecimento era que duas adolescentes haviam sido raptadas por um grupo de mujahedeen locais. Suas cabeas foram raspadas e as moas foram levadas para um campo militar controlado pelos raptores para serem estupradas. De acordo com a histria, Omar no deu conselho, resolveu agir. Era um veterano da Jihad, e muitos de seus talib eram to veteranos quanto ele. Reuniu por volta de trinta talib de sua madrassa e dezesseis armas. Liderando o grupo, atacou de surpresa o campo dos raptores, resgatou as meninas e, carregando o chefe capturado para um dos vilarejos, enforcou-o no alto do cano do canho de um tanque para que todos vissem. Ao tomarem o campo militar, Omar e

seus talib apossaram-se de farta quantidade de armas e munies. Alguns meses depois, dois comandantes de mudjahedeen enfrentaram-se na disputa pela posse de um menino que desejavam sodomizar. Na luta que se seguiu, nos bairros da cidade de Kandahar, vrios civis foram mortos. O grupo Talib de Omar resolveu interferir na refrega. A ordem foi restaurada, o menino libertado e muitos dos mudjahedeen receberam aquilo que comeara a se tornar a punio de praxe: foram enforcados no alto do cano dos canhes dos tanques. Da para frente, o Talib passou a ser regularmente requisitado para mediar disputas locais. O prestgio de Omar crescia, pois prontificava-se a agir sem exigir qualquer recompensa. Porm, s pessoas que lhe pediam ajuda, determinava que ajustassem as suas vidas aos padres daquilo que ele e seus talib imaginavam ser a conduta muulmana correta.

O Talib e o PaquistoNo ano de 1993, estava no comando do governo do Paquisto a primeira ministra Benazir Bhutto. Dois anos antes, a URSS implodira e as repblicas soviticas da sia Central tornaram-se independentes. Para o Paquisto, uma ampla oportunidade se abria. Havia chance de estabelecer slidos laos comerciais e de criar uma rede de influncia poltica paquistanesa que envolvesse todas as novas repblicas independentes, solidamente muulmanas assim como o Paquisto. Os novos pases procuravam se libertar da dependncia russa e diversificar suas relaes com o exterior. O Paquisto deveria tentar com afinco assumir o papel de principal elo entre a sia Central e o resto do mundo. A ministra sonhava com uma hegemonia paquistanesa. A principal via de comunicao terrestre entre as novas repblicas e o Paquisto atravessava necessariamente o Afeganisto. Desde o perodo sovitico, caminhes cuja propriedade pertencia mfia de contrabandistas paquistaneses, faziam o transporte de mercadorias

56 PS-BARBRIE

I N S I G H T

INTELIGNCIA

ilegais usando o eixo de rodovias norte, tendo como ponto de partida a cidade paquistanesa de Peshawar, entrando no Afeganisto at Kabul, dali alcanando a cidade de Mazar-i-Charif e ento a fronteira do Turcomenisto. Tudo dependia da distribuio de propinas para as autoridades soviticas e assim a coisa flua. Mas nos anos 90, o Afeganisto cara na guerra civil e a rota do norte era controlada pelos no confiveis tadjiques, uzbeques e hazaras. Os pashtun pertencentes ao governo paquistans imaginaram o uso de uma rota alternativa, pelo sul, atravessando, na maior parte, areas dominadas pelos pashtun. A via comeava em Quetta, no Paquisto, passando por Kandahar, Herat e dali chegando ao Turcomenisto. Havia, contudo, dois problemas: o primeiro era que Herat ficava numa regio dominada pelos tadjiques. O segundo era que boa parte da estrada era controlada por diferentes bandos de mudjahedeen pashtun que cobravam pedgios dos caminhes e frequentemente assaltavam as mercadorias e matavam os motoristas. Tudo indicava que recorrer ao velho aliado Gulbuddin Hekmatyar no iria adiantar muito. Parte das tropas de sua milcia mantinha postos de pedgio e abusavam dos motoristas. Alm disso, as autoridades internacionais convenceram-se de que Hekmatyar, alm de comandar um bando de saqueadores da pior espcie, era responsvel por cometer crimes de guerra durante o conflito civil afego. No seria uma boa ideia para o Paquisto a confirmao cabal de

uma coisa que todos j sabiam: a associao entre o governo daquele pas e Hekmatyar. Melhor ento era a postura de manter tais relaes em discreto banho-maria.

N

a busca de novos aliados dentro do Afeganisto, de preferncia pashtun, o ISI ouvira falar do Talib. Negociaes diretas foram abertas entre o servio de inteligncia paquistans e a liderana do movimento. Um primeiro passo, um flerte de abertura. Ao mesmo tempo, garantir boas relaes com o Talib parecia ser uma medida interessante, especialmente tendo em vista o que se passava dentro do Paquisto. Ao longo da Jihad contra os soviticos e durante a guerra civil que se sucedeu, grande quantidade de pashtun fugiram do Afeganisto e se instalaram em campos de refugiados dentro do Paquisto. Estamos falando de um nmero que oscilava entre um milho e meio a dois milhes de pessoas. Muitos dos homens mantinham-se em permanente vai-e-vem cruzando a fronteira para tomar parte na Jihad ou mesmo, depois, na guerra civil. Os campos eram mantidos pela ajuda arrecadada pela ONU, pelo prprio Paquisto, ONGs internacionais do Ocidente e por doaes de diversos governos. No ltimo item dos doadores, destacavam-se organizaes humanitrias muulmanas sustentadas pelo governo da Arbia Saudita. Nos campos residiam milhares de crianas das tribos pashtun afegs. Essas crianas foram separadas de

sua terra natal, das tradies de seus khels e vida tribal. Eram os filhos da Jihad. Se estivessem no Afeganisto, durante toda a meninice, teriam sido educadas fundamentalmente pelas mulheres da famlia que transmitiriam para elas a cultura ancestral. Mas nos campos, a responsabilidade pela educao das crianas foi assumida pelas madrassas financiadas pelo dinheiro da caridade saudita. Antes de mais nada, nas madrassas, os meninos eram separados das meninas. Mesmo o convvio com as mes era intensamente reduzido. As mulheres adultas dedicavam-se em cuidar das crianas de colo, procurar incessantemente comida ou simplesmente sucumbiam dureza da vida nos campos e pereciam. No final das contas, tudo o que os meninos sabiam sobre as mulheres era resultado daquilo que lhes era contado pelos mullahs. As madrassas financiadas pelos sauditas eram dirigidas por mullahs dotados de parca sofisticao, similar a do mullah Mohammed Omar, o lder do Talib. Transmitiam uma verso do Isl que, na opinio de estudiosos muulmanos de outros lugares era tosca e simplificada. Muitas vezes a Shariah a lei muulmana tinha o seu contedo entremeado por superficiais interpretaes do pashtunwali. Na tradio dos pashtun enraizados em suas tribos, as primeiras noes do pashtunwali eram transmitidas para as crianas pelas mulheres. Nos campos os meninos s tinham acesso verso simplria e distorcida dos mullahs intelectualmente limitados. Os textos religiosos a serem estudados nas madrassas dos campos

OuTuBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2010

57

I N S I G H T

INTELIGNCIA

58

I N S I G H T

INTELIGNCIA

de refugiados, refletiam a verso do Isl wahabita, uma interpretao da religio extremamente rigorosa professada pelos sauditas. Nas madrassas, como por encanto, as velhas canes das tribos, os usos ancestrais e a prpria vida sedimentada na forte solidariedade familiar foi fenecendo nas

mentes dos meninos. O passado da famlia, do khel e da tribo foi substitudo por um passado que os avs e os pais dos garotos jamais viveram. Um novo passado imaginado pelos mullahs incultos, que tinha como base uma comunidade islmica original totalmente inventada. Os venerveis campees das

tribos, cujas proezas confirmavam os ditames morais do pashtunwali, deram lugar aos combatentes da Jihad, que seguiam os preceitos wahabitas. O talib das madrassas dos campos ia se tornando um tipo de estudante muito especfico um recruta para o movimento Talib do mullah Omar.

Galgando o poderNs pegamos em armas para alcanar os objetivos da Jihad afeg e salvar nosso prprio povo de sofrimentos maiores nas mos dos auto-proclamados mudjahedeen. Ns temos f completa em Deus, o todo-poderoso. Jamais esquecemos disso. Ele pode nos abenoar com a vitria ou nos punir com a derrota.(Declarao do mullah Omar para um jornal paquistans).

Os arranjos entre o Talib e o Paquisto avanaram pelo ano de 1994. Os sauditas logo concretizaram seu entusiasmo pelo movimento mandando dinheiro e fornecendo o tipo de carro de combate preferido nas guerras do Afeganisto contemporneo: centenas pick-ups de marca japonesa 4X4. Restava saber se o Talib seria capaz de limpar as estradas e proteger os comboios de caminhes paquistaneses. No ms de outubro daquele ano, o ISI transmitiu ao Talib uma informao quanto a existncia de um grande depsito de armas e munies fornecidas aos mudjahedeen de Hekmatyar pelo Paquisto na localidade de Spin Baldak. O Talib atacou o posto capturando armas e munies suficientes para equipar dez mil homens. Na mesma poca, as

companhias de transporte do Paquisto, por conta prpria, ofereceram ao Talib um polpudo estipndio regular, dezoito mil Kalashnikovs, algumas peas de artilharia, munio e vrios veculos militares no caso do Talib se comprometer com a abertura das estradas. Em 29 de outubro de 1994, os paquistaneses organizaram um grande teste. Um comboio de oitenta caminhes dirigidos por motoristas que haviam pertencido ao Exrcito foi enviado para cruzar a rota do sul. No comboio viajava o comandante do ISI na regio, o coronel Imam. Ao atingir Takht-e-Pul, uma rea que fica a trinta quilmetros de Kandahar, prxima ao aeroporto, o comboio foi detido por foras lideradas pelos senhores da guerra Amir Lalai, Mansur Achakzai e Ustad

Halim. Os comandantes queriam dinheiro e uma parte das mercadorias. Desejavam ainda que o Paquisto parasse de apoiar o Talib. Em face do problema, o governo do Paquisto elaborou trs opes para liberar o comboio: a) enviar o Grupo de Servios Especiais a fora de comandos do Exrcito Paquistans; b) ordenar que uma tropa de paraquedistas saltasse na rea; c) solicitar que o Talib resgatasse o comboio. Como se tratava de um teste, a terceira opo foi escolhida. No dia 3 de novembro, o Talib atacou e liberou o comboio. Mansur Achazai foi caado deserto adentro, capturado e executado juntamente com dez guarda-costas. Desnecessrio dizer que seu cadver foi atado pelo pescoo no alto do cano de um

OuTuBRO NOVEMBRO DEZEMBRO 2010

59

I N S I G H T

INTELIGNCIA

canho etc etc. Na mesma noite, o Talib moveu-se contra Kandahar e atacou as foras do principal comandante da cidade, o mullah Naquib. Em poucas horas seus dois mil e quinhentos homens se renderam. O Talib capturou uma substancial quantidade de veculos, armas e munies. Apossaram-se ainda de seis caas MIG-21 e seis helicpteros de transporte. Graas ao estmulo paquistans e saudita, o Talib tornara-se dono da segunda maior cidade do Afeganisto, Kandahar e assumira o controle do corao do pas dos pashtun. Em dezembro de 1994, aproximadamente doze mil rapazes afegos e paquistaneses da etnia pashtun, oriundos de madrassas situadas na Provncia da Fronteira Noroeste e no Baluchisto, portando documentos fornecidos pelo governo paquistans, cruzaram a fronteira para se unir ao Talib em Kandahar. No ano seguinte, o Conselho de Segurana da ONU declarou que o Talib representava uma fora que poderia restaurar a ordem no Afeganisto. O servio de inteligncia dos Estados Unidos a CIA pensava a mesma coisa. Recebida na Casa

Branca e indagada pelo presidente Bill Clinton quanto ao envolvimento paquistans com o Talib, a primeira ministra Benazir Bhutto negou peremptoriamente qualquer ligao e afirmou que o Talib era um assunto exclusivamente afego.

ma vez em Kandahar, o Talib imediatamente declarou a imposio de sua verso muito particular da Shariah. Todos os homens deviam andar com a cabea coberta e deixar crescer a barba. O teatro e o cinema foram proibidos. Nada de msica nas rdios ou na TV. Nada de competies esportivas em lugar nenhum. Quanto s mulheres, a ordem era para que sumissem, isto , abandonassem seus empregos, ficassem em casa, e no caso de terem de circular nas ruas, deviam cobrir o corpo inteiro com as burkhas. A conquista de Kandahar foi apenas o primeiro passo. Com suporte saudita e paquistans, o Talib marcharia adiante. Em Kandahar, reuniu-se a Shura conselho do Talib. Os conselheiros ratificaram o

U

nome do Mullah Mohammed Omar como lder supremo. Para o Talib a escolha de Omar no se justificava nem pelo fato dele ser um grande orador, nem porque ele fosse um excepcional lder militar. Nas reunies da Shura, o mullah Omar raramente fala, e na luta, sempre cedeu a liderana aos chefes militarmente mais talentosos. O mullah Omar foi escolhido em virtude de sua devoo. Em termos polticos, sua maneira, o Talib perseguiu um objetivo revestido de palavras cornicas, mas essencialmente movido por fortes resqucios de interesse tribal: avanar sobre Kabul, deslocar os tadjiques e os uzbeques do poder e restaurar a supremacia pashtun em todo o pas. Para a concretizao do projeto, o Talib, sem sequer esboar um tmido obrigado, continuaria a aceitar a ajuda dos amigos. Para alguns desses amigos mais generosos, estenderia at as obrigaes de hospitalidade do pashtunwali. Essa a lgica explicativa do vnculo entre o Talib e Osama Bin Laden.O articulista professor do Instituto de Relaes Internacionais da PUC-Rio [email protected]

60 PS-BARBRIE